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VERDADE E MENTIRA NO
SENTIDO EXTRAMORAL1
Friedrich Nietzsche
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No desvio de algum rinc„o do universo inundado pelo fogo de inume-
r·veis sistemas solares, houve uma vez um planeta no qual os animais
inteligentes inventaram o conhecimento. Este foi o minuto mais soberbo
e mais mentiroso da ìhistÛria universalî, mas foi apenas um minuto. De-
pois de alguns suspiros da natureza, o planeta congelou-se e os animais
inteligentes tiveram de morrer5 .
Esta È a f·bula que se poderia inventar, sem com isso chegar a ilumi-
nar suficientemente o aspecto lament·vel, fr·gil e fugidio, o aspecto v„o
e arbitr·rio dessa exceÁ„o que constitui o intelecto humano no seio da
natureza. Eternidades passaram sem que ele existisse; e se ele desapare-
cesse novamente, nada se teria passado; pois n„o h· para tal intelecto
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tro mundo, o mundo intuitivo das primeiras impressıes, como sendo aquele
melhor estabelecido, mais geral, melhor conhecido, mais humano e, por
esta raz„o, como uma inst‚ncia reguladora e imperativa. Enquanto toda
met·fora da intuiÁ„o È particular e sem igual, escapando sempre portanto
‡ qualquer classificaÁ„o, o grande edifÌcio dos conceitos apresenta a estri-
ta regularidade de um columb·rio romano, edifÌcio de onde emana aquele
rigor e frieza da lÛgica que s„o prÛprios das matem·ticas. Aquele que
estivesse impregnado desta frieza hesitaria em crer que mesmo o concei-
to ó duro como o osso e c˙bico como um dado e como ele intercambi·vel
ó acabasse por ser somente o resÌduo de uma met·fora e que a ilus„o prÛ-
pria a uma transposiÁ„o estÈtica de uma excitaÁ„o nervosa em imagens,
se n„o era a m„e, era entretanto a avÛ de tal conceito. Mas nesse jogo de
dados dos conceitos, chama-se ìverdadeî o fato de se utilizar cada dado
segundo a sua designaÁ„o, de computar exatamente seus pontos, de for-
mular rubricas corretas e de jamais pecar contra o ordenamento das divi-
sıes ou contra a sÈrie ordenada das classificaÁıes. Assim como os roma-
nos e os etruscos dividiram o cÈu segundo linhas matem·ticas estritas e
destinaram este espaÁo assim delimitado para templum de um deus, assim
tambÈm todo povo possui um cÈu conceitual semelhante a que est· adstrito;
a exigÍncia da verdade significa ent„o para ele que todo conceito, a exem-
plo de um deus, somente deve ser procurado na sua prÛpria esfera. Bem
poderÌamos, a respeito disso, admirar o homem pelo fato de ser ele um
poderoso gÍnio da arquitetura: ele conseguiu erigir uma catedral conceitual
infinitamente complicada sobre fundaÁıes movediÁas, de qualquer ma-
neira sobre ·gua corrente. Na verdade, para encontrar um ponto de apoio
em tais fundaÁıes, precisa-se de uma construÁ„o semelhante ‡s teias de
aranha, t„o fina que possa seguir a corrente da onda que a empurra, t„o
resistente que n„o se deixe despedaÁar ‡ mercÍ dos ventos. Enquanto
gÍnio da arquitetura, o homem supera em muito a abelha: esta constrÛi
com a cera que recolhe da natureza, o homem o faz com a matÈria bem
mais fr·gil dos conceitos que È obrigado a fabricar com seus prÛprios
meios. Nisso, o homem È bem digno de ser admirado ó mas n„o por seu
instinto de verdade ou pelo conhecimento puro das coisas. Se alguÈm
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tipo, a cada vez que se mostrou claramente persuadido pela lÛgica, pela
universalidade e pela infalibilidade eternas das leis da natureza, e disso
tirou a seguinte conclus„o: aÌ tudo È certo, elaborado, infinito, regrado,
desprovido de falha atÈ onde pode levar o nosso olhar ó graÁas ao teles-
cÛpio apontado para as alturas do mundo e graÁas ao microscÛpio dirigi-
do para as suas profundezas. A ciÍncia ter· sempre material para explorar
com Íxito este poÁo e tudo quanto ela puder encontrar concordar· sem se
contradizer. Qu„o pouco se assemelha isto a um produto da imaginaÁ„o,
pois, se assim o fosse, seria todavia necess·rio que algo da ilus„o e da
irrealidade que lhe s„o prÛprias se revelasse. Ao contr·rio, È preciso dizer
primeiramente o seguinte: se tivÈssemos em cada parte nossa uma per-
cepÁ„o sensÌvel de natureza diferente, poderÌamos perceber ora como um
p·ssaro, ora como um verme de terra, ora como uma planta; ou, se um de
nÛs percebesse uma excitaÁ„o visual como vermelha, se outro a perce-
besse como azul ou se, para um terceiro, fosse uma excitaÁ„o auditiva,
ninguÈm diria que a natureza È regida por leis, mas contrariamente a con-
ceberÌamos somente como uma construÁ„o altamente subjetiva. Assim:
o que È ent„o para nÛs uma lei da natureza? Ela n„o nos È conhecida em
si, mas apenas nos seus efeitos, ou seja, nas suas relaÁıes com outras leis
da natureza que, por sua vez, somente s„o conhecidas enquanto relaÁıes.
Portanto todas as relaÁıes nada fazem sen„o remeter-se umas ‡s outras e
nos s„o absolutamente incompreensÌveis quanto ‡ sua essÍncia. Unica-
mente o que aÌ colocamos, o tempo e o espaÁo, quer dizer, as relaÁıes de
sucess„o e os n˙meros, nos È realmente conhecido. Mas tudo o que preci-
samente nos surpreende nas leis da natureza, que reclama nossa an·lise e
que poderia nos levar ‡ desconfianÁa do idealismo, reside de fato e unica-
mente no rigor matem·tico, unicamente na inviolabilidade das represen-
taÁıes do tempo e do espaÁo, e n„o em outro lugar. Ora, produzimo-las
em nÛs e projetamo-las fora de nÛs segundo a mesma necessidade que
leva a abelha a tecer sua teia. Se somos obrigados a conceber todas as
coisas apenas sob tais formas, ent„o n„o h· nada de admir·vel em captar
sob estas mesmas formas o que verdadeiramente procuramos nas coisas.
De fato, todas elas necessariamente se referem ‡s leis do n˙mero, e o
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Como vimos, na elaboraÁ„o dos conceitos trabalha originariamente a
linguagem e depois a ciÍncia. Como a abelha que constrÛi os alvÈolos de sua
colmÈia e logo os preenche com mel, a ciÍncia trabalha incansavelmente
no seu grande columb·rio de conceitos que È o cemitÈrio das intuiÁıes,
constrÛi ininterruptamente novos e mais elevados est·gios, escora, limpa
e renova os velhos compartimentos e se esforÁa sobretudo para preen-
cher este colossal andaime atÈ a desmedida e para fazer entrar e arrumar
aÌ a totalidade do mundo empÌrico, isto È, o mundo antropomÛrfico. En-
quanto o homem de aÁ„o chega a ligar sua existÍncia ‡ raz„o e a seus
conceitos, a fim de n„o se ver arrastado e n„o se perder, o pesquisador
constrÛi o seu tug˙rio ao pÈ da torre da ciÍncia para buscar auxÌlio no seu
trabalho e encontrar proteÁ„o sob o baluarte j· edificado. Ele tem neces-
sidade de fato de proteÁ„o, pois h· poderes terrÌveis que o ameaÁam cons-
tantemente e que opıem ‡ verdade cientÌfica verdades de um tipo total-
mente diferente, com os sinais mais diversos.
Esse instinto que compele ‡ criaÁ„o de met·foras, esse instinto funda-
mental do homem do qual n„o podemos prescindir um sÛ instante, pois
assim fazendo n„o levarÌamos em conta o homem mesmo, esse instinto
n„o est· submetido ‡ verdade, apenas encontra-se disciplinado na medi-
da em que, a partir de produÁıes evanescentes, como s„o os conceitos,
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Notas
1. ExtraÌdo de Oeuvres Philosophiques ComplËtes, I, 2, …crits Posthumes: 1870-1873; Paris: Ed. Gallimard,
1975, pp. 275-290. TraduÁ„o, apresentaÁ„o e notas por NoÈli Correia de Melo Sobrinho.
2. Cf. Hans Vaihinger, PrÛlogo de Sobre Verdad y Mentira, p. 9.
3. Cf. Curt Paul Janz, Friedrich Nietzsche, II, p. 180. Cf. tambÈm Werner Ross, El ·guila angustiada,
p. 333.
4. Cf. Daniel HalÈvy, Nietzsche, p. 114.
5. A primeira vers„o desta bela passagem se encontra em Nietzsche, Oeuvres, I, 2, …crits posthumes:
1870-1873, num texto intitulado ìO Pathos da Verdadeî, pp. 167-172.
6. A referÍncia aqui È ao filho de Lessing [1729-1781]que morreu com apenas dois dias de nascido.
Lessing foi citado por Nietzsche pelo menos 50 vezes nas suas Oeuvres.
7. Em latim no texto. Nietzsche toma esta famosa locuÁ„o emprestada de Hobbes quando este fala
dos homens no estado de natureza; express„o que significa ìa guerra de todos contra todosî.
8. Ernst Friedrich Chladni [1765-1824]: fÌsico alem„o que ficou famoso por suas experiÍncias sobre
a teoria do som.
9. Cf. AristÛfanes, Os P·ssaros, v 819; literalmente: ìCucol‚ndia das Nuvensî.
10. Em latim no texto: significa qualidade oculta.
11. Cf. Pascal, Les PensÈes [Èd. Brunschvicg] VI, 386. Br·s Pascal [1623-1662], matem·tico, fÌsico,
filÛsofo e escritor francÍs. Pascal È nominalmente citado mais de 100 vezes nas Oeuvres de Nietzsche.
12. PisÌstrato [cerca de 600-527 a.C.], tirano de Atenas, contempor‚neo de SÛlon e Licurgo. Ele
aparece citado apenas 3 vezes nas Oeuvres de Nietzsche.
ReferÍncias bibliogr·ficas
HAL…VY, Daniel. Nietzsche. Porto: Editorial Inova, s/d.
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche. Madrid: Alianza Editorial, 1987.
NIETZSCHE, Friedrich. Oeuvres Philosophiques ComplËtes, I, 2, …crits
Posthumes: 1870-1873. Paris: Ed. Gallimard, 1975.
ROSS, Werner, El ·guila angustiada. Buenos Aires: Ediciones PaidÛs, 1994.
VAIHINGER, Hans. PrÛlogo de Sobre Verdad y Mentira. Madrid: Editorial
Tecnos, 1990.
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Resumo
Este texto de Nietzsche trata da quest„o da verdade e da mentira rela-
cionada com uma teoria da linguagem e com a vida do homem em socie-
dade. Por outro lado, indica tambÈm o estatuto do intelecto como mestre
da dissimulaÁ„o na sua tarefa de construÁ„o do mundo.
Palavras-chave
Friedrich Nietzsche [1844-1900], filosofia, verdade-mentira, lingua-
gem, intelecto, conhecimento.
Abstract
This text of Nietzsche deals with the question of the truth and lie
related with a theory of language and with the manís life in society. On
the other hand, he also indicates the statute of the intellect as the master
of dissimulation in its task of making the world understandable.
Key-words
Friedrich Nietzsche [1844-1900], philosophy, truth-lie, language,
intellect, knowledge.
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