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FALSAS MEMÓRIAS E PROVA TESTEMUNHAL NO PROCESSO PENAL

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#SistemaInquisitório

Resumo: A prova testemunhal, além de parcial, está longe de reproduzir


fidedignamente o acontecimento devido a fatores de contaminação, tais como
memória, transcurso do tempo e viés do entrevistador, portanto, a prova oral
deve ser reestruturada ou substituída por outros métodos de probatórios mais
eficazes.

“O conteúdo da memória é função da velocidade do esquecimento. Isso quer dizer que a


memória é o que resta quando nós esquecemos, e que não há memória sem esquecimento.
Porém a rapidez do esquecimento é mais importante, se esquecemos muito rápido, caímos na
amnésia, mas se nós não esquecemos ficamos loucos.”
Paulo Virilio

O estudo da prova no processo penal passa, necessariamente, pela


concepção de sistemas processuais penais, pois a atuação do magistrado em
relação ao conteúdo probatório indica sua posição de garantidor ou inquisidor.
O sistema inquisitório baseia-se em um princípio de autoridade, segundo
o qual quanto maiores forem os poderes conferidos ao investigador maior a
proximidade da verdade. Neste sentido não há porque falar em ônus da prova
e direito à prova.
Neste modelo há a união das funções de acusar, defender e julgar em
um só sujeito processual: o juiz, o qual também é o gestor das provas.
Restando claro sua parcialidade no momento do julgamento.
Os atos processuais são sigilosos, escritos e não se revestem de
garantias ao acusado, pois o réu é visto apenas como um objeto de
persecução, desprovido de direitos.
Para a obtenção da confissão, principal meio de prova para os
inquisidores, era comum a utilização de torturas e meios cruéis. Além disso,
havia a presunção de culpabilidade do réu.
Atualmente há a predominância do sistema acusatório em face do
inquisitório, a vista da necessidade do estabelecimento de um processo justo e
com garantias ao acusado.
O princípio norteador do sistema acusatório é de que as partes são
gestoras das provas, havendo um equilíbrio entre elas. As funções de acusar,
defender e julgar encontra-se em sujeitos distintos.
Os atos do processo são, em regra, públicos, regidos pelo princípio da
publicidade, possibilitando a participação da sociedade na gestão das decisões
judiciais e a fiscalização da atuação do juiz e demais agentes.
Resumindo, quando o sistema utilizado mantiver o juiz afastado da
iniciativa probatória, fortalece-se a estrutura dialética do processo penal, a
segurança jurídica, o tratamento igualitário entre as partes e acima de tudo,
preserva-se a imparcialidade do julgador.
Contudo, extrai-se da leitura dos dispositivos do Código de Processo
Penal (CPP) de 1941 um modelo nitidamente inquisitório, sendo, portanto,
necessária a sua interpretação sistemática com a Constituição Federal, com o
fim da não aplicação de dispositivos substancialmente inconstitucionais.
Das pontuais reformas realizadas no CPP, a Lei 11.690/2008 conferiram
poderes instrutórios ainda maiores ao juiz, pois autorizou expressamente o uso
de elementos informativos colhidos durante a investigação na fundamentação
da sentença, bem como a faculdade de produção de provas de ofício pelo
magistrado.
O processo penal se utiliza de fatos passados e através da prova
pretende reconstruir a história do delito. Da mesma maneira que o historiador,
o juiz tem o papel de reconstruir um fato individual do passado, irrepetível e
não diretamente conhecido, utilizando-se de provas que tragam o
conhecimento indireto do fato, contudo este tem seu papel limitado à lei e
princípios processuais.
Assim, faz-se uma retrospectiva daquilo que aconteceu com a finalidade
de sanar a falta de conhecimento do julgador e, neste aspecto, é certo que tão
somente as pessoas envolvidas no delito possuem conhecimento sobre este e
que tal resgate não se dará da exata forma em que ocorreu.
Neste processo de reconstrução dos fatos, entre os meios de prova do
processo penal, a prova testemunhal é aquela com pior utilização na práxis
forense, tendo em vista que depende da memória e do método utilizado para
realizar a inquirição das testemunhas, o que pode provocar a supressão de
bens jurídicos constitucionais do acusado.
Isto porque o cérebro pode armazenar informações como verdadeiras
que, no entanto, não condizem com a realidade, as quais são nomeadas falsas
memórias, o que pode ser maximizado pela utilização de técnicas de repetição
e pelo transcurso de lapso temporal exacerbado entre a coleta de depoimento
policial e testemunhos judiciais.
A questão da memória, em relação ao papel da testemunha no
procedimento e processo penal, então, tem seu ponto crítico nas chamadas
“falsas memórias”. Estas consistem em recordações de situações que, na
verdade, nunca ocorreram. A interpretação errada de um acontecimento pode
ocasionar a formação de falsas memórias. Embora não apresentem uma
experiência direta, as falsas lembranças representem a verdade como os
indivíduos as lembram. (BARBOSA, 2002, p. 26)
Cabe ressaltar que as falsas memórias não são mentiras ou fantasias
das pessoas, elas são semelhantes às memórias verdadeiras, tanto no que
tange a sua base cognitiva quanto neurofisiológica. No entanto, se diferenciam
das verdadeiras pelo fato de as falsas memórias serem compostas no todo ou
em parte por lembranças ou eventos que não ocorreram na realidade. As falsas
memórias são fruto do funcionamento normal, não patológico da nossa
memória (STEIN, 2009, p. 22) .
Os primeiros estudos específicos sobre as falsas memórias versavam
sobre as características de sugestionabilidade da memória, ou seja, a
incorporação e a recordação de informações falsas sejam de origem interna ou
externa, que o indivíduo lembra como sendo verdadeiras. Essas pesquisas
sobre a sugestão da memória foram conduzidas por Alfred Binet, 1900, na
França. Uma das importantes contribuições deste pesquisador foi categorizar a
sugestão na memória em dois tipos: autossugerida (isto é, aquela que é fruto
dos processos internos do Indivíduo) e deliberadamente sugerida (isto é,
aquela que provém do ambiente). As distorções mnemônicas advindas desses
dois processos foram posteriormente denominadas de falsas memórias
espontâneas e sugeridas (STEIN, 2009, p. 23).
A memória, portanto, pode sofrer distorções fruto do próprio
funcionamento da memória, sem a interferência de uma fonte externa à
pessoa, neste caso, uma interpretação pode passar a ser lembrada como parte
da informação original e comprometer a fidedignidade do que é recuperado.
Por outro lado, as distorções sugeridas advêm da aceitação de falsa
informação externa ao sujeito e subsequente incorporação à memória original.
Tal fenômeno pode ocorrer tanto de forma acidental quanto de forma
deliberada. Nestas situações transcorre-se determinado lapso temporal no qual
nova informação é apresentada como fazendo parte do fato inicial. As falsas
informações produzem no indivíduo a redução das lembranças verdadeiras e o
aumento das falsas memórias.
Portanto, o efeito da sugestionabilidade na memória pode ser definido
como uma aceitação e subsequente incorporação na memória de falsa
informação posterior a ocorrência do evento original (GUDJONSON, 1986, p.
137).
Deste modo, a inserção de uma simples palavra ou sugestionabilidade
no questionamento de testemunhas pode alterar a memória adquirida
previamente e levar a respostas dissonantes da realidade.
Desta forma, constatamos que a produção de falsas memórias é, em
última análise, mais um sintoma de uma sociedade complexa, caracterizada
pela velocidade e aceleração dos acontecimentos.
Por óbvio, não há solução singela para o problema da criação de falsas
memórias e sim medidas de redução e compensação de danos, tais como a
colheita da prova em prazo razoável, objetivando diminuir a influencia do
tempo, a adoção de técnicas de interrogatório e a entrevista cognitiva, que
permitem a obtenção de informações quantitativa e qualitativamente superiores
às das entrevistas tradicionais e gravação das entrevistas realizadas na fase
pré-processual, principalmente as realizadas por assistentes sociais e
psicólogos, o fomento de novas tecnologias na produção da prova, além do
alerta aos profissionais do direito sobre a fragilidade da confiabilidade da prova
testemunhal e da formação de uma equipe multidisciplinar para a colheita do
depoimento da forma correta.

REFERENCIAS

BARBOSA, Cláudia. Estudo Experimental sobre Emoção e Falsas


Memórias. Porto Alegre: PUCRS, 2002. Dissertação (Mestrado em Psicologia).
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Disponível
em Acesso em 10 fev. 2019.

ÁVILA, Gustavo Noronha de; GAUER, Gabriel José Chittó ; PIRES FILHO, Luiz
Alberto Brasil Simões. Falsas Memórias e Processo Penal: (Re)Discutindo o
Papel da Testemunha. Revista do Instituto do Direito Brasileiro da Faculdade
de Direito de Lisboa, v. 12, p. 7180-7181, 2012;

DI GESU, Cristina. Prova Penal e Falsas Memórias. 2. ed. Porto Alegre:


Livraria do Advogado, 2014.

STEIN, Lilian Milnitsky. Falsas memórias: Fundamentos científicos e suas


aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre: Artes Médicas, 2009.

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