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CONTOS DE BATMAN

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Volume 1

Digitalização e revisão:
ÐØØM™ SCANS

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CONTOS DE BATMAN
VOLUME 1

BATMAN, O CORINGA e todos os personagens contidos neste li-


vro, seus slogans e equipamentos são marcas registradas da DC
Comics, lnc. Todos os direitos reservados.
Copyright © 1994 DC Comics, Inc.

Arte de capa: Joe DeVito


Textos: Robert Sheckley, Joe R. Lansdale,
Mike Resnick, William F. Nolan, Ed Gorman
Edição: Martin H, Greenberg

Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida


por nenhuma forma ou meio, eletrônico ou mecânico, incluindo
fotocópia, gravação, armazenagem de informações ou sistema de
recuperação de dados, sem permissão por escrito do editor.

ISBN 85-7305-079-9

Abril Jovem

Publicado pela Editora Abril Jovem S.A.


Rua Bela Cintra, 299, CEP 01415-000,
Caixa Postal 2372, São Paulo - SP.
Fundador: VICTOR CIVITA (1907-1990)
Impresso na Divisão Gráfica da Editora Abril S.A.
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Sumário

A GAROTA DO PAPAI
WILLIAM F. NOLAN
PÁGINA 05

SOLO NEUTRO
MIKE RESNICK
PÁGINA 39

JACK DO METRÔ
JOE R. LANSDALE
PÁGINA 48

ÍDOLO
ED GORMAN
PÁGINA 121

A MORTE DO MESTRE DO SONHO


ROBERT SHECKLEY
PÁGINA 136

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A Garota do Papai
WILLIAM F. NOLAN
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Do diário de anotações de Robin:

Era um trabalho solo, noturno.


Bruce estava em Washington fazendo
uma conferência sobre assuntos econômicos,
numa convenção de homens de negócios, e
havia me pedido para ficar em Gotham. Meu
trabalho era prender o Gato, um ladrão de
joias muito esperto que estava limpando de
madrugada as mansões do West Side, uma
por noite. Eram muitos os cidadãos furiosos
de Gotham City exigindo a sua prisão, mas a
polícia não tinha nem conseguido ver o la-
drão, quanto mais prendê-lo. Agarrar o ca-
marada, com Batman ausente, era minha
responsabilidade.
“Como você sabe, a ronda de um gato
tende a seguir rotas preconcebidas”, obser-
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vou Batman. “Então, para saber onde nosso
gato vai atacar a seguir, basta inverter a tri-
angulação dos pontos de seus roubos anteri-
ores, alimentar as coordenadas fixas de sua
provável área de ataque e teremos tudo re-
duzido a um quarteirão.”
Sempre que Batman fala essas coisas, eu
me lembro do Sherlock Holmes. Só que o ve-
lho Sherlock nunca teve um bat-computador
para trabalhar. O nosso processou a leitura
de uma área de um quarteirão, mansão por
mansão, de modo que só tivemos de fazer
uma tocaia naquela área e esperar o Gato
chegar.
“É você quem vai ter que pegar esse gato
pelo rabo”, disse Batman.
“Não se preocupe, vou fazer ele miar”,
prometi.

Então, lá estava eu no meu trabalho no-


turno, solo. Eu tinha vindo no batmóvel, mas

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já o havia mandado para a bat-caverna, não
queria que o nosso ladrão o avistasse na
área. O computador direcional levou-o de
volta sem qualquer problema — como um
bom cavalo voltando ao seu estábulo.
Agora eu estava caçando, protegido pela
sombra das árvores ao longo da Forest Ave-
nue, usando o infra-batscópio para escanear
os edifícios em busca de alguma possível ati-
vidade do Gato. Uma lua cheia de primavera
transitava acima de Gotham City, pintando
manchas bruxuleantes nos tetos e nas calça-
das. Uma noite perfeita para caçar.
Eu me sentia contente por estar em ação
sob aquele céu e não em Washington com
Batman. A despeito de todos esses anos
prendendo bandidos, a emoção da caçada
não havia diminuído. Em noites como essa,
meu sangue coloca todo meu corpo em esta-
do de alerta — deixando cada músculo ten-
so, pronto para o combate. O que poderia
dar mais sentido à vida de um verdadeiro
combatente do crime?
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Foi aí que eu o vi o Gato escalando uma
trepadeira para chegar ao teto de uma man-
são vitoriana bastante recuada, quase enter-
rada nas árvores.
“Peguei!”, disse para mim mesmo e parti
para a cerca de ferro da mansão. Sob o bri-
lho da lua, a casa se erguia diante de mim
como um iceberg. Atravessei o gramado,
rápido e silencioso como uma sombra, ele
não sabia que eu o estava seguindo.
Alcancei o teto e cheguei a tempo de
avistar o sr. Gato agachado junto a uma cla-
raboia, tentando abrir a fechadura com um
pé-de-cabra. Era um cara alto e esguio, todo
de preto, de cartola e luvas de couro negras
— e tinha um perfil bicudo que lembrava o
Pinguim. Aparentemente, ele sabia que não
havia ninguém em casa, uma vez que clara-
mente não estava tentando ser nada sutil na
maneira de entrar.
Esgueirei-me pelo telhado, certo da caça.
Ia ser fácil apanhar esse felino.
Eu estava enganado. Quando cheguei a
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apenas sessenta centímetros de distância,
ele ergueu a cabeça, silvou como um felino e
me atacou com o pé-de-cabra — o que não
teria sido nenhum problema se meu pé direi-
to não tivesse tropeçado numa telha solta,
me tirando o equilíbrio.
O pé-de-cabra me atingiu no peito e caí
de cabeça para baixo, através da claraboia.
Me senti caindo no espaço. Então, grande
choque e escuridão.
Escuridão total.

A primeira coisa que vi depois, foi um ros-


to claro e delicado sobre mim — o rosto de
uma linda jovem, com olhos redondos e as-
sustados como os de uma gazela.
“Olá”, disse ela numa voz tão suave quan-
to seus olhos. “A carne do seu corpo está do-
endo?”
Pergunta estranha. “...a carne do meu
corpo?” Ao meu redor, as coisas começavam

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a entrar em foco. Eu estava num grande
aposento, provavelmente o quarto dela, pois
era rosa e cheio de babados. A jovem tam-
bém estava de rosa, usando o tipo de vestido
vitoriano largo e cheio de laços que se veste
numa festa a fantasia.
Tentei sentar. “Ai!”, exclamei, tocando mi-
nhas costelas. “Está doendo.”
Foi quando percebi que estava usando um
pijama de seda branco. Minha capa e minha
máscara haviam desaparecido! Isso era sé-
rio, uma vez que ninguém em Gotham City
poderia jamais ver Robin sem máscara. Bat-
man ia ficar muito chateado comigo por isso!
“Quem é você?”, perguntei à garota.
“Sue-Hellen”, respondeu suavemente.
“Sue-Hellen de quê?”
Ela corou. “Não tenho sobrenome. Às ve-
zes, nem me sinto como se fosse uma pes-
soa real. Quero dizer, pessoas reais têm so-
brenomes — e o Papai nunca me contou o
meu.”
“Teria de ser o sobrenome dele”, comen-
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tei.
“Mas eu não sei o dele também. Eu sim-
plesmente o chamo de Papai.”
Ela piscou para mim. “Qual é o seu
nome?”
“Eu... não estou autorizado a revelar mi-
nha verdadeira identidade.”
Os olhos dela se arregalaram. “Você tra-
balha para o FBI?”
“Não. Mas eu luto contra o crime.”
“É por isso que estava usando uma más-
cara?” Seus cabelos longos e loiros emoldu-
ravam o oval de seu rosto, a luz do luar atra-
vessando a janela fazia com que brilhassem
como um halo.
Arrumei o travesseiro e me sentei ereto.
“Você nunca viu meu retrato nos jornais?”
“Eu nunca leio jornais, nem revistas. O
Papai nunca deixa essas coisas entrarem em
casa.”
Ela tinha me pega do todo uniformizado
— e Robin havia aparecido na TV inúmeras
vezes. “Você nunca me viu na televisão?”
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“Nós não temos televisão aqui”, respon-
deu. Depois sorriu pela primeira vez e pare-
cia radiante. Fiquei estonteado com sua bele-
za pálida.
Mas aquela conversa surrealista não esta-
va levando a parte alguma. “Preciso ir embo-
ra”, falei. “Quanto tempo estive aqui?”
“Umas dez horas. Mas você não pode ir
embora. Ninguém sai desta casa, só o Papai.
E ele está longe agora. Muito, muito longe.”
“Não, realmente”, falei. “Preciso ir. Só me
dê as roupas que eu tinha quando me encon-
trou.”
Ela balançou a cabeça. “Quero que fique
aqui comigo. Você é a primeira pessoa de
carne que eu conheço, além do Papai.”
“Escute, Sue-Hellen”, retruquei, jogando
as pernas para fora da cama. “Eu realmente
agradeço o que fez por mim, curou minha
costela e tudo o mais, mas preciso sair ime-
diatamente.” Fiquei de pé. “Mesmo que te-
nha de sair daqui usando este pijama de
seda branco.”
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“Gork não vai deixar”, declarou ela. “Eu
disse a ele que você tem que ficar.” Ela esta-
lou os dedos.
Um gigante de mais de dois metros surgiu
na porta do quarto. Tinha um rosto chato e
cinzento, os olhos não tinham pupilas e usa-
va um uniforme cinza sem costura. Parecia
ser forte — mas eu tinha certeza de que po-
dia com ele.
“Vou ter que bater no seu amigão se ele
ficar no caminho”, disse à garota. “Diga a ele
para se afastar da porta.”
“Gork é meu amigo. Ele faz o que eu peço
e não vai deixar você sair.”
Eu não estava disposto a discutir o assun-
to. Simplesmente abaixei a cabeça e ataquei.
Foi como se tivesse me chocado contra uma
parede de tijolos. E tentar golpeá-lo era
inútil. Meus socos não faziam nenhum efeito.
Então Gork pôs suas mãos em mim. Eram
como dois ganchos de aço.
“Não o machuque, Gork”, disse Sue-Hel-
len. “Apenas coloque-o de volta na cama.”
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O grandalhão fez isso. E me carregou
como se eu tivesse três anos de idade. Tudo
isso sem alterar sua expressão.
“Pode ir agora”, disse a garota.
Ele cambaleou para fora do quarto.
“Ele não é humano, é?”
“Claro que não”, ela respondeu. “Ninguém
é humano nesta casa, a não ser eu. E o Pa-
pai — quando está em casa.”
“O que é o Gork?”
“Ele é feito basicamente de metal. Quan-
do eu era muito jovem, o Papai se interessou
pela ciência da robótica. Ele é brilhante e
tem muitos interesses. Começou a fazer ex-
periências com pessoas de metal. Robôs. E o
Gork é isso — igual a dezenas de outros que
o Papai construiu pra tomar conta de mim.
Mas Gork é o único que eu realmente gosto.”
Ela chegou bem perto, inclinando-se sobre a
cama. “Posso tocar no seu rosto?”
“Hã... claro, acho que sim.”
Ela estendeu seus dedos hesitantes e co-
meçou a explorar os planos do meu rosto.
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“É quente — como o meu. Os robôs têm
rostos frios, como peixes.” Ela deu um de
seus radiantes sorrisos. “Eu também sou
uma pessoa de carne. Como você.”
A situação era bastante bizarra. Eu não
conseguia entender. “Preciso falar com um
amigo”, observei. “Posso usar seu telefone?”
“Não temos telefone aqui. O Papai diz que
isso só iria me distrair — que eu ficaria ligan-
do para outras pessoas de carne.” Ela deu
um risinho. “Mas isso é bobagem, porque
não conheço ninguém além de você e você
está aqui.”
Olhei para ela intensamente. “É verdade...
que sou... o primeiro rapaz que conhece?”
“Eu já disse isso e nunca minto.”
“Onde você estudou?”
“Aqui. Nesta casa. Os robôs me ensina-
ram.”
“Quer dizer... que nunca esteve numa es-
cola fora daqui?”
“Eu nunca estive em lugar nenhum a não
ser aqui”, declarou ela. “Só estive aqui, na
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casa do Papai. Toda minha vida.”
Eu estava chocado. “Está dizendo que seu
pai mantém você prisioneira?”
“Prisioneira?”, ela estranhou a palavra.
“Não... eu não sou prisioneira... sou a garota
do Papai. É aqui que ele quer que eu fique —
onde me trouxe quando eu era bebê, depois
que Mamãe e Papai desistiram de morar jun-
tos.”
“O que aconteceu com a sua mãe?”
“Não sei. Nunca mais a vi. De qualquer
forma, depois que ela foi embora o Papai me
disse que eu era preciosa demais para que o
mundo me poluísse. Disse que me manteria
aqui para sempre, a salvo da aspereza do
mundo, porque não queria me ver maculada.
O Papai usa palavras assim o tempo todo.
Ele é muito mais sabido que eu.”
“Você nunca brincou com outras crian-
ças?”
“Oh, não — nunca. O Papai tinha crianças
robôs feitas para brincar comigo. Nunca vi
crianças de verdade, eu cresci aqui — com
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os robôs.” Seu rosto se iluminou, “Até apren-
di a fazer robôs. E sou muito boa nisso, tam-
bém.”
“Quem é o seu pai?” Eu estava furioso
com o que aquele homem tinha feito com a
filha. “Diga quem é esse homem.”
“Eu já disse que não sei o nome dele. Ele
é apenas... Papai.”
Fui até o armário dela. “Mas você deve
ter um retrato... uma foto. Quero ver o rosto
dele.”
“Ele não gosta de retratos. Não há ne-
nhum.”
“O que ele faz pra viver? Como ganha di-
nheiro para tudo isso?”
“Ele trabalha num circo. Como palhaço.
Acho que sempre trabalhou. É onde está no
momento, num circo, lá longe, em Washing-
ton. Você sabe, a capital.”
“Sei, é lá que meu amigo está agora — o
que eu queria entrar em contato.”
Ela anuiu. “Então talvez o Papai encontre
o seu amigo por lá.”
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Havia algo estranho no ar. Senti um arre-
pio me percorrendo, uma espécie de cócegas
me dizendo que aquele pai maluco dela era
uma ameaça para Batman. Eu não tinha pro-
vas, apenas um palpite visceral. Mas era for-
te.
Eu tinha de saber o que estava aconte-
cendo em Washington.
“Quando você me encontrou”, comecei a
dizer com urgência para Sue-Hellen, “quando
caí pela claraboia... eu estava usando um
cronômetro de pulso.”
Ela pareceu confusa.
“Como um relógio”, falei. “Onde está?”
“Os robôs levaram junto com suas rou-
pas.”
“Eu preciso dele, Sue-Hellen! Muito.”
“Tudo bem, vou pedir para o Gork pegar.”
E ela pediu. O grande robô cinzento me
entregou o aparelho, depois cambaleou para
fora do quarto outra vez.
O bat-cron era um equipamento de comu-
nicação, com uma mini-TV. Digitei as coorde-
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nadas e o rosto de um apresentador preocu-
pado surgiu na telinha. Estava falando com
gravidade: “... e o chocante atentado contra
a vida do presidente foi evitado pelo Cruzado
Encapuzado de Gotham City, numa ousada
ação em que Batman surgiu de repente no
circo, atirando-se diretamente no caminho do
palhaço assassino, conseguindo arrancar sua
mortal arma de dardos. Se um daqueles dar-
dos recobertos de veneno houvesse atingido
o presidente, ele teria morrido instantanea-
mente. Na confusão subsequente, o assassi-
no escapou do circo, mas Batman não estava
ferido...”
Desliguei. Eu e Sue-Hellen estávamos nos
encarando. “Aquele palhaço... no noticiário”,
disse ela, “eles só mostraram de costas —
mas tenho certeza que é o Papai.”
“Então o seu pai tentou assassinar o pre-
sidente dos Estados Unidos.”
“Sinto muito”, murmurou Sue-Hellen sua-
vemente, com a cabeça baixa. “Isso é muito
errado, não é?”
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“Muito”, respondi.
“Por que ele faria uma coisa dessas?”,
disse a garota. “Bem... na verdade ele não é
um homem muito bom. Eu tenho tentado
amá-lo, mas simplesmente não consigo. Gork
é muito mais delicado comigo do que o Pa-
pai.”
Eu estava começando a suspeitar de uma
terrível verdade a respeito do pai de Sue-Hel-
len. Mas precisava que ela verificasse isso.
“Descreva seu pai pra mim”, pedi. “Como
é ele?”
“Se você se refere às feições, não sei
bem. Quero dizer, não muito. Ele está sem-
pre com a maquiagem de palhaço. Nunca o
vi sem ela.”
“E o cabelo dele? Que cor é?” Meu tom de
voz era urgente.
“É verde”, ela respondeu. “Uma cor verde
feia... e ele sempre pinta os lábios de verme-
lho.”
Eu estava certo. O pai de Sue-Hellen era
nosso velho inimigo, o próprio Príncipe Pa-
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lhaço do Crime...
“Surpresa!” Uma voz oleosa vinda da por-
ta.
Ergui os olhos — e ele estava lá, com seu
sorriso demoníaco distorcendo aquele rosto
pálido como a morte, totalmente maligno.
“Coringa!” Olhei para ele. Sue-Hellen re-
cuou, como que na presença de uma serpen-
te. Ele a ignorou, seus olhos queimando nos
meus.
“Ah... é Dick Grayson”, falou lentamente.
“Um conhecido amigo de Batman e Robin.”
“E com muito orgulho”, retruquei.
“Bem, parece que seu amigo me frustrou
outra vez”, disse o Coringa. “Mas vou fazer
com que pague pelo que fez comigo em
Washington!”
Estávamos frente a frente na cama. Seu
hálito era horrível, como carne podre. “Você
é bom em ameaças vazias, Coringa”, falei.
“Mas quando as fichas estão na mesa você
sempre perde. Batman e Robin venceram
você muitas vezes — e um dia desses vão
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acabar definitivamente com a sua carreira.”
“Nunca! Minha inteligência é bem maior
do que a dos homens normais.”
“Pelo menos nisso nós concordamos”, dis-
se a ele. “Você não é nada normal.”
Durante todo esse intercâmbio, desde o
momento em que seu pai havia entrado no
quarto, Sue-Hellen ficara em silêncio, atenta
ao jogo de palavras entre nós. Agora ela fa-
lou com firmeza, o pequeno queixo erguido
de maneira desafiante.
“Papai, o senhor está sendo muito indeli-
cado. Esse é o meu primeiro amigo de carne
e não gosto da forma como está falando com
ele. Acho que devia pedir desculpas.”
“Desculpas!” A risada do Coringa era
amarga. “Eu não peço desculpas a nenhum
amigo do Batman. Aquele idiota de orelhas
de morcego tem sido uma praga em minha
vida — sempre contrariando meus planos.”
“Se seus atos passados foram tão maldo-
sos quanto o de hoje em Washington”, de-
clarou a garota, “então seus planos tinham
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que ser contrariados.”
O palhaço olhou para ela, “O que você
sabe sobre bem e mal... sobre lucros e ga-
nhos... sobre vencer as autoridades... sobre
o poder e a alegria de ser um mestre do cri-
me?”
“Sei que não é razão para se orgulhar dis-
so”, retrucou ela. “Pelo que aprendi hoje, di-
ria que devia estar na cadeia.”
“Se Batman estivesse aqui você ia ver
como ele lida com o seu pai”, disse a Sue-
Hellen. “Ele o poria fora de ação rapidamen-
te!”
“Ah, mas ele estará aqui”, sorriu o Corin-
ga. “Vamos providenciar isso! Vou atraí-lo
exatamente para esta casa... e haverá um
presente para ele... um presente do Coringa
para o Batman.”
“Como assim?”, perguntei.
“Não sei que estranho golpe do destino
trouxe você até esta casa”, começou ele,
“mas vou fazer um bom uso disso. Quando
Batman chegar — e vou convocá-lo pessoal-
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mente — encontrará Dick Grayson, seu ami-
go da sociedade, esperando por ele...”, deu
uma gargalhada maligna, “...com a garganta
cortada!”
E ele empunhou uma faca. Sua longa lâ-
mina brilhava com a luz. “E você, querida fi-
lha”, continuou, virando-se para Sue-Hellen,
“vai cortar a garganta dele de orelha a orelha
e vamos deixá-lo para seu bat-amigo encon-
trar.” Seus olhos tinham um brilho quente.
“Será simplesmente delicioso observar o cho-
que do Batman quando encontrar o cadáver
de Grayson!”
“Isso é horrível, exclamou Sue-Hellen.
“Você é um monstro! Nunca vai me obrigar a
fazer tal...”
A voz dela falhou. O Coringa estava em
pé na sua frente, olhando em seus olhos. O
tom de sua voz era suave, hipnótico: “Você
vai obedecer ao seu pai em todas as coisas...
Vai fazer exatamente como eu ordenar...
Você é a garota do Papai... a garota do Pa-
pai... a garota do Papai...” E seus olhos quei-
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mavam como carvões incandescentes na pa-
lidez mortal de seu rosto.
“Eu... sou... a garota... do Papai...”, mur-
murou Sue-Hellen numa voz drogada. Suas
mãos caíram para os lados. Ela tinha os
olhos parados e embaçados, uma vítima de
poderes sombrios.
Foi então que eu saltei nele, colocando
meu punho direto naquele rosto branco e
sorridente — mas antes de conseguir desferir
meu segundo golpe, fui atirado violentamen-
te para trás. Dois robôs caseiros de pele cin-
zenta seguravam meus braços num aperto
de aço. Eu estava indefeso.
“Não tente lutar contra eles”, disse o pa-
lhaço. “Eles são muito mais poderosos do
que qualquer ser humano.” Depois, enfiou a
mão no casaco listrado e retirou uma peque-
na cápsula gelatinosa. “Quando ela usar a
faca”, falou, “você não vai sentir nada”. E
partiu a cápsula em duas debaixo do meu
nariz. Uma onda de gás anestésico me jogou
na escuridão.
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Do diário de anotações de Batman:

Eu tinha acabado de voltar de Washington


— mais furioso do que nunca com o Coringa.
Seu terrível atentado contra a vida do presi-
dente era mais um ato de loucura total. Eu
estava firmemente determinado a encerrar
sua carreira em Gotham City.
Quando não encontrei nenhuma mensa-
gem de Robin esperando em minha volta, fi-
quei preocupado com seu paradeiro. Patru-
lhando o West Side no batmóvel, examinei
toda a avenida, mas não encontrei sinal dele.
Onde Robin poderia estar?
Então, abruptamente, o rosto sorridente
do Coringa surgiu bem à minha frente. A
imagem estava sendo enviada do céu, acima
de mim — do palhaço-cóptero do Coringa.
Pude vê-lo nos controles quando ele pairou
sobre mim com seu sorriso jocoso e demoní-
aco. Ele disparou um laser do seu canhão
frontal, explodindo a estrada e eu guinei
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abruptamente à esquerda para evitar a fu-
megante cratera. (Mais trabalho para o De-
partamento de Obras.)
Foi uma caçada curta. O Coringa desceu
seu aparelho no teto de uma velha mansão
vitoriana na Forest Avenue e eu o segui por
uma claraboia aberta.
A casa estava escura e silenciosa. O
Príncipe Palhaço do Crime estava escondido
em algum lugar dentro da construção e eu
estava determinado a encontrá-lo. O silêncio
parecia se aprofundar enquanto eu me movia
na escuridão, procurando de quarto em
quarto, flanando escada abaixo.
Corri silenciosamente por um corredor
mal iluminado e passei por uma porta aberta
logo à frente. Era o salão principal, imenso e
ornamentado, o luar manchando o assoalho
de carvalho encerado.
Então tomei um susto. Havia alguém es-
tendido numa mesa, no meio da câmera ca-
vernosa. Eu me aproximei.

27
m

Recuei absolutamente chocado. Era o Ro-


bin! Sem máscara e com um pijama de seda
branco — manchado de sangue! A cabeça
dele estava torcida num ângulo agudo — e
sua garganta estava cortada de orelha a ore-
lha!
Um cegante cone de luz disparou subita-
mente no teto e uma risada diabólica e am-
plificada inundou a sala. A risada do Coringa!
Tantalizadora, demoníaca, triunfante...
“Ele está morto, Batman. Dick Grayson,
seu amiguinho intrometido, não existe mais.”
“Maldito seja, Coringa, vou fazer você em
pedaços por isso!” Com uma fúria cega, pu-
nhos cerrados, eu me esgueirei, tentando
avistá-lo na escuridão. Meus dedos estavam
ansiosos para se fechar em sua traqueia, eu
queria sufocar a vida daquele corpo nojento,
ver seus olhos arregalados, sua língua saindo
de lábios inchados...
“Não adianta me procurar, Batman. Estou

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no estúdio do segundo andar, apreciando
esse esplêndido espetáculo na tela do meu
monitor.”
Olhei para cima. Uma câmera protegida
girava com meus movimentos, fornecendo
ao Coringa a imagem da minha agonia. En-
tão, a porta da entrada do salão fechou
como um canhão que explodisse.
“Você não tem saída”, informou o Corin-
ga. “A porta é forrada de aço e as paredes
são de pedra maciça.”
“Qual é o seu jogo, Coringa?”
“Simples. Pretendo deixar você e seu ami-
go morto. Sem comida. Sem água. Só você e
um cadáver em decomposição lenta. Eu vou
facilitar sua morte, Batman. Realmente vou.”
E, novamente, a gargalhada demoníaca
no alto-falante da parede.
Corri para a porta, atirando todo meu
peso contra ela, mas nada aconteceu. O Co-
ringa estava certo, eu estava preso, como
mosca numa teia de aranha.
Arremeti contra a porta, o total horror da
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morte de Robin me assolando. Lágrimas cor-
riam pelo meu rosto debaixo do bat-capuz e
eu esmurrava a parede com dor e frustração.
Realmente, parecia que o Coringa ia assistir
a um bom espetáculo.
Então, logo além do ângulo de visão da
câmera giratória, no canto mais escuro, vi
uma pequena mão branca acenando para
mim.
Eu não queria alertar o Coringa, por isso
agi como ele estava esperando: gemi, girei
em círculos desesperados, depois cambaleei
para o canto e bati com os dois punhos na
parede.
Uma jovem de olhos assustados estava
agachada ali. Olhando para mim, suas pala-
vras jorraram num sussurro desesperado.
“Seu amigo está vivo”, disse. “A figura na
mesa é um robô — para enganar o Papai. Ele
pensou que eu estava hipnotizada, mas eu
só estava fingindo. Gork me ajudou. Ele tam-
bém é um robô. Fizemos a máquina basea-
dos em Dick Grayson. Fui eu que fiz o rosto!”
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O alívio de saber que Robin estava vivo
me confortou. Me aproximei da garota.
“Quem é você?”
“Sue-Hellen, a filha da pessoa que vocês
chamam de Coringa. Ele tentou me forçar a
matar seu amigo, mas eu nunca poderia fa-
zer isso. Eu o amo!”
“Onde você o escondeu?”
“Lá embaixo... no porão. Ele ainda está
inconsciente com o gás hipnótico do Papai.
Mas vocês dois podem fugir por uma passa-
gem secreta que vai até a rua.”
“Mas como vou sair desta sala?”
“Atrás de você... tem um alçapão no
chão. Estava trancado por baixo, mas eu o
abri.”
“Onde está você, Batman?” A tantalizante
voz do Coringa rugia nos alto-falantes. “Ve-
nha, venha, isso não vai funcionar.” O tom fi-
cou mais agudo. “Volte para a luz ou serei
obrigado a mandar alguns dos meus amigos
metálicos para arrancar você desse canto. E
eles não vão fazer isso com delicadeza. Ago-
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ra, trate de me obedecer!”
Sue-Hellen estava gesticulando para mim.
A voz dela era urgente: “Depressa! Se não
sairmos logo daqui, ele vai mandar os ro-
bôs.”
E ela abriu o alçapão, revelando um qua-
drado de luz pálida e amarelada vinda do po-
rão abaixo de nós.
“Por aqui”, sussurrou a garota. “Siga-me.”
Passei pelo alçapão, fechando-o atrás de
mim e a segui rapidamente escada abaixo.

Do diário de anotações de Robin:

Acordei, piscando, sentindo um cheiro


acre no meu nariz. Batman estava inclinado
sobre mim. Ele tinha usado um frasco de seu
cinto de utilidades para me acordar.
“Tudo bem?”
“Tudo... só estou um pouco zonzo.” Agar-
rei o braço dele. “Como chegou aqui, Bat-
man? E onde está Sue-Hellen?”
A garota deu um passo à frente, segurou
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minha mão. Seus dedos eram quentes e for-
tes. “Estou aqui.” Ela estava sorrindo, meu
anjo da guarda pessoal.
“Não entendo. Pensei que o Coringa ti-
nha...”
“Não importa o que pensou”, disse Bat-
man. “Agora o Coringa sabe que sua filha o
enganou. E vai mandar seus robôs assassi-
nos.” Ele estendeu uma mão enluvada. “De
pé. Precisamos sair daqui.”
Levantei-me. Um pouco abalado, mas
fora isso, tudo bem.
Nisso: “BLAM!” — a porta do porão se
abriu com estrondo.
Sue-Hellen gritou: “Eles estão aqui!”
Meia dúzia de robôs gigantes, de caras
cinzentas, vinham pela porta em nossa dire-
ção.
“Talvez isto os atrase”, gritou Batman, ati-
rando um bat-projétil nos homens de lata
que avançavam. Eles recuaram quando o
projétil explodiu com labaredas amarelas.
“Por aqui!”, gritou Sue-Hellen, encami-
33
nhando-se para uma estreita passagem com
paredes de pedra. Era úmida, cheia de teias
de aranha e cheirava a ratos mortos.
O túnel era negro como a alma do Corin-
ga — mas continuamos correndo atrás da
garota. Depois avistamos um brilho pálido no
fim do túnel.
“Aquela é a luz da esquina da Forest com
a Troost”, informou Sue-Hellen. “Vocês estão
quase fora.”
Porém “quase” não era o suficiente, os ro-
bôs estavam ganhando terreno rapidamente.
Em mais alguns segundos eles certamente
nos alcançariam.
“Faça alguma coisa, Batman!”, pedi. “Ou
estamos mortos!”
O Cruzado Encapuzado girou e atirou um
outro frasco do cinto: “BUM!” — o teto todo
atrás de nós desabou, aprisionando os robôs
em rocha e lama.
Pouco depois estávamos na saída do tú-
nel. Sue-Hellen parou. “Vão rápido”, disse.
Eu hesitei. “Mas você vai com a gente.”
34
“Ah, não vai não!”, disse uma voz oleosa
— e o Coringa saltou em nossa direção com
uma Magnum .357, brilhando em sua mão
enluvada.
Batman não disse uma palavra. Era hora
de agir, não de falar. Mergulhou sob a arma
do Coringa e desferiu um potente golpe no
queixo pontudo do palhaço.
O Coringa caiu, soltando a Magnum. Logo
depois, pressionou um botão do casaco — e
o palhaço-cóptero, hélices girando, desceu
como um gato entre nós. Instantaneamente,
o Coringa pulou para os controles, subiu com
o aparelho verticalmente e desapareceu por
cima das árvores.
Minha voz soou intensa: “Será que pode-
mos pegá-lo com o bat-cóptero?”
“Temo que não”, suspirou Batman. “Eu o
deixei no telhado. Sem dúvida nosso amigo
de cabelos verdes o sabotou. Ele não se ar-
riscaria a uma perseguição.”
Voltamo-nos para a garota. Ela estava
agachada dentro do túnel, olhando para nós
35
da escuridão.
“Vamos, Sue-Hellen”, falei. “É hora de ir
embora.”
Ela balançou a cabeça. “Não posso.”
Aproximei-me dela rapidamente. “Mas
porque não? Você... você disse que me
ama.”
“Eu amo... amo mesmo”, declarou.
“Mas...”
Interrompi suas palavras com meus lá-
bios.
“Um beijo!” Ela suspirou de prazer. “Nun-
ca tinha sido beijada antes.”
“Sue-Hellen, quero que fique comigo”, fa-
lei. “Para partilhar da minha vida. Nunca co-
nheci uma garota como você. Quero me ca-
sar com você.”
Lágrimas rolavam dos olhos dela. “Oh,
isso soa... tão maravilhoso. Mas não pode
acontecer. Porque...”
“Por que?”
Ela deu um passo adiante em direção à
luz do poste da rua. “Porque estou morren-
36
do.”
Sue-Hellen estava pálida, suas mãos tre-
miam. Um fio de sangue carmesim corria no
canto de sua boca.
“O Papai garantiu-se de que eu jamais
poderia sair para o mundo”, contou ela. “Ele
me deu... injeções. Enquanto ficasse dentro
de casa, eu estaria bem. Mas... as injeções
mudaram a química do meu corpo. Eu não
posso sobreviver... no lado de fora. Minha
saída... provocou uma espécie de... reação
em cadeia dentro do meu corpo... e nada
pode me salvar agora. Nem mesmo o seu
amor.”
“Mas deve haver um antídoto”, falei.
“Não... tarde demais...” Ela estava mur-
murando as palavras. “O Papai foi brilhante.
Ele quis ter certeza de que eu sempre seria...
a garota dele.”
Ela estendeu o braço lentamente para pe-
gar minha mão. Seus dedos já estavam fi-
cando frios. “Adeus, Dick Grayson”, sussur-
rou. “Adeus, meu amor!”
37
E morreu.
Desci seu corpo até o chão.
Batman segurou meu ombro. “Dick... sin-
to muito.”
Eu tinha perdido a garota mais doce que
conhecera.
Eu a amava. Muito.
E sempre amarei.

38
Solo Neutro
MIKE RESNICK
m

A loja de Kittlemeier era numa zona pobre


da cidade. Dizer que não causava boa im-
pressão seria um eufemismo. As janelas
eram remendadas com madeira compensada
e a maçaneta da porta estava tão enferruja-
da que quase constituía uma ameaça física.
A loja não constava em nenhum catálogo
telefônico. Não havia nenhum número na
porta. Nenhuma placa anunciava o que ven-
dia. Quem espiasse pela porta veria apenas
uma sala mal iluminada com um balcão anti-
go, uma caixa registradora fora de moda, um
calendário obsoleto do posto de gasolina lo-
cal e uma porta cortinada passando para ou-
tra sala que dava para um beco.
Qualquer um pensaria, pela aparência,
que a loja de Kittlemeier não poderia atrair
muitos clientes — e na verdade não atraía.
39
Mas aqueles que precisavam dos serviços es-
pecíficos de Kittlemeier pareciam sempre sa-
ber onde encontrá-lo.
Eram cinco horas da tarde quando uma
elegante limusine estacionou em frente à loja
de Kittlemeier e um homem alto e bem-vesti-
do emergiu do banco traseiro. Leve como um
leopardo selvagem — seu terno sob medida
mal ocultando um corpo bastante musculoso
— ele andou os cinco passos até a porta de
Kittlemeier, parou por apenas um momento
e entrou na loja.
Uma campainha tocou levemente e o ve-
lho Kittlemeier, fita métrica jogada no ombro,
um lápis espetado atrás da orelha, passou
pela cortina e cumprimentou seu cliente.
“Está atrasado”, disse.
O homem alto deu de ombros. “Foi inevi-
tável”, falou e Kittlemeier notou que as jun-
tas dos dedos de sua mão direita estavam
bastante inchadas.
“Temos que ser rápidos”, disse Kittlemei-
er. “Tenho outro compromisso em quinze mi-
40
nutos.”
O homem alto ficou interessado, mas evi-
tou fazer perguntas. Essa era a regra de Kit-
tlemeier e ele a respeitava.
Kittlemeier abaixou-se e retirou um cinto
amarelo com bolsas exteriores debaixo do
balcão.
“Como pode ver”, comentou, mostrando o
cinto para o homem alto, “tive que eliminar a
bolsa dos explosivos para arrumar lugar para
a nova máscara de gás que vai usar. Tem
certeza quanto às dimensões?”
O homem alto anuiu.
“Tomei a liberdade de fazer outra peque-
na mudança”, continuou Kittlemeier, mos-
trando uma seção diferente do cinto. “A rol-
dana miniaturizada da sua corda de seda es-
tava desgastando o couro aqui, por isso in-
verti o ângulo de encaixe.”
“Concordo”, disse o homem alto.
“Uma corda de tungstênio seria igualmen-
te forte e ocuparia menos espaço”, sugeriu
Kittlemeier.
41
O homem alto discordou com a cabeça.
“Prefiro seda. Machuca menos as mãos.”
Kittlemeier deu de ombros. “Talvez queira
pensar sobre isso no futuro. Você poderia
acrescentar vinte metros no comprimento e
eu posso reforçar suas luvas.”
“Talvez no futuro, quando surgir a neces-
sidade de uma corda mais longa”, disse o
homem alto. “Tem mais alguma coisa para
mim?”
O velho Kittlemeier concorda e procurou
embaixo do balcão outra vez, retirando, ago-
ra, um longo par de luvas azul-escuro.
“Onde é a fonte de força?”, perguntou o
homem alto.
“Uma bateria de lítio, presa nas costuras.”
“E essas luvas vão me isolar de uma tem-
peratura de cem graus abaixo de zero Fahre-
nheit?”
“Pelo menos”, respondeu Kittlemeier.
“Ótimo. Vou precisar disso para...”
“Não quero saber”, interrompeu Kittlemei-
er, erguendo a mão. “O que você faz quando
42
sai do meu estabelecimento não é da minha
conta.”
O homem alto concordou e por um mo-
mento percebeu o tique-taque de um relógio
batendo no silêncio empoeirado da loja.
“Eu vou levar”, disse afinal, apontando as
luvas.
“Pensou a respeito das botas?”
“Sim. Gostei muito da sua sugestão.”
“Ótimo”, disse Kittlemeier. “Claro que vou
precisar de moldes dos seus pés para poder
equipá-las com molas para saltar a distância
desejada. Vamos marcar para, digamos,
duas horas na quinta?”
“Por que não agora?”, perguntou o ho-
mem alto.
Kittlemeier balançou a cabeça. “Tenho ou-
tro compromisso. Você deve sair antes do
meu próximo cliente chegar. Você conhece
as regras.”
“Como quiser”, disse o homem alto, indi-
ferente.
Kittlemeier começou a embrulhar o cinto
43
e as luvas, depois colocou-os numa sacola
não-identificável e entregou ao homem alto
do outro lado do balcão.
“Isso vai ficar em...” Ele pensou por um
momento, depois enunciou uma quantia que
não lhe parecia exorbitante demais. “Em di-
nheiro, como sempre.”
O homem alto soltou um grunhido, tirou a
carteira, extraiu dela algumas notas grandes
e colocou-as no balcão.
“Até quinta, então”, disse Kittlemeier.
“Até quinta”, respondeu o homem alto.
Apanhou a sacola, andou até a porta e en-
trou no banco traseiro da limusine, que par-
tiu imediatamente e logo se perdeu de vista
no tráfego da hora do rush.
Kittlemeier colocou o dinheiro na caixa re-
gistradora, depois consultou seu relógio. Ele
estava louco por um cigarro, mas seu próxi-
mo cliente nunca se atrasava e por isso per-
maneceu atrás do balcão.
Precisamente às 5h 15 da tarde, um ho-
mem esguio com escassos cabelos loiros en-
44
trou na loja investigando furtivamente a es-
curidão, antes de se aproximar do balcão.
“E então?”, exigiu. “Estão prontos?”
“Quatro estão”, respondeu Kittlemeier.
“Dois realmente não podem ser consertados.
Vou ter que fazer outros.”
“Então faça. E da última vez você fez só
oitenta pontos de interrogação. Desta vez
quero pelo menos cem e saiba que vou con-
tar um por um.”
Kittlemeier puxou um bloco de notas e co-
meçou a rabiscar numa caligrafia quase inin-
teligível. “Cem pontos de interrogação”, mur-
murou enquanto escrevia.
“E o tecido tem que ser resistente e a cor,
à prova de água.”
“Tintura à prova de água”, disse Kittle-
meier, rabiscando furiosamente.
“Tudo bem?”
“Claro”, respondeu Kittlemeier.
“Preciso deles até a próxima segunda,
porque na terça...” Ele jogou a cabeça para
trás e gargalhou histericamente.
45
“Segunda”, concordou Kittlemeier. “Às
dez horas da manhã?”
“Dez horas”, disse o homem.
Kittlemeier colocou quatro trajes verdes
cuidadosamente dobrados numa sacola de
papel pardo do mercado local. Depois pegou
uma folha de papel em branco e rabiscou um
número.
“Isso é mais do que combinamos.”
“Meu preço original era para o conserto
de seis trajes. Não pensei que iria ter de fa-
zer dois a partir do modelo.”
“Você manteve os antigos dispositivos nos
novos trajes?”, perguntou o homem. “Eu fi-
caria muito infeliz se descobrisse que estou
pagando por novas armas, quando as anti-
gas ainda estavam funcionando perfeitamen-
te.”
“Eu guardei todos”, disse Kittlemeier.
“Pode verificar quando voltar na próxima se-
gunda.”
O homem olhou para ele com desconfian-
ça por um longo tempo, depois tirou um bolo
46
de notas do bolso e colocou no balcão.
Kittlemeier contou as notas cuidadosa-
mente, depois ergueu os olhos. “Por favor,
traga mais seiscentos dólares na segunda e
assim sua conta estará em dia.”
O homem anuiu quase imperceptivelmen-
te, depois apanhou sua sacola, virou-se e
saiu.
Tinha sido um longo dia e o velho Kittle-
meier estava ficando com fome. Deu um sus-
piro, era gratificante ser reconhecido como o
melhor do ramo, mas raramente havia tempo
disponível para assuntos pessoais.
Ele consultou o relógio outra vez e resol-
veu que tinha tempo para sair e comer um
sanduíche antes que Selina chegasse para
buscar seus equipamentos.

47
Jack do Metrô
UMA AVENTURA DE BATMAN
JOE R. LANSDALE
m

VELHO CEMITÉRIO DE GOTHAM CITY


(princípio de outubro)

A lua...
O cemitério era no topo da colina e o tú-
mulo ficava bem no centro dela. Era marcado
por uma cruz de pedra coberta de bolor e
envolta em trepadeiras retorcidas. Havia ou-
tros túmulos, é claro, e todos igualmente
desleixados, mas era este que Jack Barrett
queria.
Ele subiu ao topo da colina, inclinou-se
sobre sua pá com uma mão e segurou a lan-
terna com a outra. O facho de luz passeou
por sobre a cruz de pedra mas não revelou
nada. O tempo, o bolor e as trepadeiras ha-
viam se encarregado de desaparecer com a
48
escrita. Apesar disso, Jack pesquisara o sufi-
ciente para saber que este era o lugar.
Ele apagou a lanterna, colocou-a no bolso
do casaco e olhou ao redor. A colina onde
estava o túmulo era alta o suficiente para fi-
car acima dos muros de pedra do cemitério e
permitia uma vista da cidade, a cidade que
crescera em tomo dele com os anos e agora
piscava seus olhos de neon para este monte
de sujeira, pedras e ossos.
Jack podia ouvir o barulho dos carros ron-
cando pelas ruas da cidade e achou que con-
seguia discernir o som do metrô próximo
dali. À esquerda da colina havia um grande
carvalho com aparência frágil e ele olhou por
entre os galhos para observar a lua passando
pelo céu atrás de um véu de nuvens. Um
vento fresco soprava no cemitério, balançan-
do as árvores, despenteando os cabelos de
Jack e carregando as folhas.
Jack respirou fundo, enfiou a pá na terra
e começou a cavar. Os sons do vento, dos
carros e do metrô desapareceram e tudo o
49
que ele ouvia era o raspar da ferramenta en-
trando na terra úmida.
Ele cavou até chegar a uma laje de pedra
ao redor da qual estavam enroladas umas
correntes enferrujadas presas firmemente
por um cadeado carcomido. Bateu com a pá
nas correntes e elas se partiram com se fos-
sem trepadeiras. Depois, enfiou a ponta da
pá em uma rachadura na laje e levantou
grandes pedaços dela até que surgisse uma
pequena passagem com degraus escuros e
estreitos.
Jack colocou a ferramenta de lado, pegou
sua lanterna e desceu os degraus escorrega-
dios para dentro da tumba úmida. Apontou a
lanterna para uma elevação de pedra empo-
eirada com um crânio caído em uma ponta e
uma pequena caixa de metal retangular na
outra. Havia uns fragmentos que poderiam
ser ossos espalhados por sobre a plataforma.
Ele se aproximou e pegou a caixa. Apesar
da ferrugem que a cobria, parecia firme e
pesada. Segurou-a gentilmente, sentiu e ou-
50
viu algo se mover lá dentro, colocou a caixa
no grande bolso de seu casaco e saiu de
dentro da tumba.
Jack guardou a lanterna no outro bolso do
casaco e, apoiando-se no muro do cemitério,
pulou para o outro lado. Andou apressada-
mente pela estreita trilha de cascalho que
passava por entre os arbustos e as árvores,
voltou para a calçada. Depois, caminhou até
que os sons da cidade enchessem seus ouvi-
dos e as luzes inundassem seus olhos.
Ele caminhava depressa, a mão no bolso
do casaco, acariciando a caixa docemente,
como se fosse a coxa de uma mulher.

JAMES W. GORDON, Comissário de Polícia


(meio de outubro)

Era natural que todo esse negócio sujo


acontecesse em Gotham City como um vento
gelado de outubro e acho que poderia se di-
zer que era também natural que um sujeito
de mente sombria com planos sombrios iria
51
para o metrô do jeito que foi e fazer o que
fez.
Assim que aquele vento frio soprou em
Gotham começaram a morrer várias mendi-
gas, daquelas que procuram o calor do metrô
e imploram pelas coisas de que necessitam.
E como se as coisas já não estivessem ru-
ins o suficiente para elas, vem esse sujeito
com um plano e uma faca que sabia como
usar. Ele cortava as mulheres de tal forma
que elas não pareciam mais mulheres, não
pareciam mais nada muito humano. Então,
quando acabava com elas, molhava os dedos
no sangue e escrevia nas paredes do metrô:
COM OS CUMPRIMENTOS DE JACK DO ME-
TRÔ e o número da vítima.
Quando ele escreveu o número 3, fui ver
aquele negócio pessoalmente. Eu estava em
casa, na cama, quando o telefone me arran-
cou de baixo dos cobertores e me fez ir até a
cozinha atender na extensão de lá. Um poli-
cial da ronda noturna chamado LoBrutto fa-
lou: “O detetive Mertz me pediu para ligar.
52
Disse que o senhor queria saber quando
houvesse um outro caso, para ver as coisas
em primeira mão.”
“Mande um carro”, falei.
Tomei um café instantâneo, a viatura che-
gou e me levou até lá. A entrada do metrô
estava isolada e algumas pessoas tentavam
ver o que estava acontecendo, enquanto um
monte de uniformes tentava impedir. Dois
bons detetives, Mertz e Crider, esperavam à
minha frente.
Mertz me pegou pelo cotovelo, descemos
a escada do metrô e andamos pelos corredo-
res. Eu sentia o habitual cheiro de vômito
misturado com urina e um outro cheiro tam-
bém.
Sangue.
Quando chegamos, o corpo estava encos-
tado na parede, coberto por um plástico
amarelo.
“Nós temos fotos e tudo mais”, disse
Mertz. “Você não vai estragar nada se quiser
dar uma olhada. Já tenho tudo o que preci-
53
so.”
Fui até lá, levantei o plástico e prendi a
respiração. É muito ruim ver essas coisas em
fotos, ou no necrotério, mas olhar para aqui-
lo no concreto frio, o sangue ainda secando,
o fedor da morte no ar, bem, incomoda, e
não importa se você já viu a morte mais de
mil vezes. Se você for normal, incomoda.
Por outro lado, eu nunca tinha visto um
cadáver daquele jeito, nunca tinha visto esse
tipo de violência contra um ser humano. Tal-
vez alguém que tivesse passado por dentro
de uma máquina pudesse ficar daquele jeito,
mas... bem, acho que dá para imaginar.
“Todos os cavalos do rei e todos os ho-
mens do rei...’’, disse Crider. Ele estava de
costas, sem olhar o corpo. Mertz fumava um
cigarro ao lado de uma coluna de concreto,
olhando para os trilhos do metrô.
O café me embrulhou o estômago e ame-
açou voltar, mas segurei. Eu já tinha alguma
experiência. Me apoiei num dos joelhos do
lado da poça de sangue seco e examinei o
54
corpo, tentando ser o mais frio e objetivo
possível. Quando acabei, olhei para cima e li
o que estava escrito com sangue na parede
do metrô: COM OS CUMPRIMENTOS DE
JACK DO METRÔ, NÚMERO TRÊS.
Crider olhou para mim por cima do ombro
e disse: “Pena que ele não escreveu o ende-
reço também, não é?”
Cobri o corpo novamente, peguei um cha-
ruto no bolso do paletó e quando acendi o is-
queiro percebi que minhas mãos tremiam.
Aspirei bastante fumaça para diluir o cheiro
de sangue e andei até onde pudesse ver os
trilhos, junto a Mertz. Crider juntou-se a nós,
pegou seu cachimbo e acendeu. Ficamos ali
fumando por uns momentos e eu perguntei:
“Suponho que ninguém viu quando aconte-
ceu?”
“Exatamente como os outros”, respondeu
Crider. “Não havia muita gente para ver
qualquer coisa, mas tinha algumas pessoas.
Parece que, pelo menos, ouviram um grito.
Não dá pra fazer o que esse cara fez, sem le-
55
var um certo tempo. É de se imaginar que
aparecesse alguém.”
“Talvez tenha sido melhor assim”, falei.
“Sim, mas é de se imaginar”, insistiu Cri-
der. “O lugar nem é tão escuro. Quer dizer,
ele não estava tão escondido assim. O cara
deve ser rápido como um foguete e desapa-
rece feito fumaça.”
“Alguém sabe quem é a vítima?”, pergun-
tei.
“Provavelmente uma mendiga”, respon-
deu Mertz. “Mas não dá pra saber ao certo.
Um catador encontrou o corpo. Nós já pren-
demos ele umas duas vezes por vagabunda-
gem e pequenos furtos. O nome é Bud Vin-
cent. Diz que estava andando e achou um
carrinho cheio de coisas e admite que ia rou-
bar, mas não tinha andado muito quando viu
o corpo. Foi então que ligou para nós e acho
que o fato de um cara desses ligar para nós
mostra como o negócio é feio. Esse tipo de
gente normalmente não quer ter nada a ver
conosco, de jeito nenhum. Para eles, nós é
56
que somos os bandidos.”
“Até esse sujeito aparecer”, resmungou
Crider. “Ele meio que deu um outro sentido à
maldade.”
“Vocês acreditam nesse Bud Vincent?”,
perguntei.
“Sim, nós acreditamos nele,” respondeu
Mertz.
Eu não fui para casa. Um carro da polícia
me levou até o escritório. Entrei e sentei
atrás da minha mesa, no escuro, e olhei para
o telefone vermelho do lado esquerdo da
mesa. Fiquei um bom tempo olhando para o
aparelho.
A pasta de arquivos do caso do estripador
estava trancada na minha mesa, peguei as
chaves, abri a gaveta e peguei os papéis. Es-
palhei os arquivos na minha frente e acendi
o abajur. O que eu tinha ali eram informa-
ções sobre as duas primeiras vítimas, é claro,
mas supunha que, quando os dados a respei-
to da terceira vítima fossem reunidos, diriam
a mesma coisa. Que a vítima era mulher, que
57
morava na rua, que havia sido cortada em
pedaços por um instrumento cortante e que
o assassino era muito forte. Por último, as
pistas quanto à identidade do assassino seri-
am mínimas, ou inexistentes. Até o momen-
to, só tínhamos um pouco de barro que
achamos no local do primeiro assassinato,
talvez dos sapatos do assassino, talvez não.
Poderia ser de algum transeunte e em todo
caso não seria muito útil. Era um tipo de bar-
ro muito comum.
Fechei a pasta, apaguei a luz e fiquei
olhando para o telefone vermelho, pensando
que essa história do “Jack do Metrô” era
mais estranha do que o habitual. Eu o sentia
em meus ossos, como se fosse um tipo de
câncer, e ao entrar no território das coisas
estranhas, a gente entra no território do Bat-
man.
Acho que não fiz a ligação por uma ques-
tão de orgulho. Já havia acontecido assassi-
natos em série em Gotham antes e certa-
mente aconteceriam de novo. O departamen-
58
to resolvera a maioria deles e algumas vezes
os crimes tinham simplesmente parado. Tal-
vez o assassino tivesse ido para outro lugar,
talvez ele ou ela tivesse morrido. Mas as mu-
lheres continuavam morrendo e isso tinha de
acabar, e se alguém podia parar com isso,
esse alguém era Batman. Tudo o que eu ti-
nha a fazer era esticar o braço, pegar o apa-
relho e o telefone tocaria, e ele viria, sem se
incomodar em atender.

BRUCE WAYNE (Batman)

A bala.
Avançando.
Brilhava na luz da rua como um foguete
prateado fora de controle.
A bala. A primeira de duas.
Bruce tentou imobilizá-la com sua mente
e conseguiu. Imobilizou-a em pleno ar. Mas
não conseguia segurá-la. Fez um esforço de
vontade mas, desta vez, não importava o
quanto ele tentasse fazer com que recuasse,
59
a bala continuava avançando.
Ia acontecer novamente.
Ele era apenas um garoto e até momen-
tos atrás era feliz, mas agora a bala ia aca-
bar com tudo. Meu Deus, ia acontecer de
novo!
Ele e seus pais haviam saído de um cine-
ma onde tinham visto A Marca do Zorro e, vi-
rando a esquina do cinema, um ladrão esta-
va esperando com um revólver e sem nenhu-
ma paciência. Ele interrompeu a conversa e
o riso e tirou o Zorro da cabeça deles pedin-
do dinheiro.
Mas antes que seus pais pudessem fazer
o que ele pedia, o ladrão ficou nervoso e pu-
xou o gatilho e a bala saltou para fora.
A bala.
Ela tropeçou.
Bruce estava surpreso de conseguir ver a
bala. Estava muito nítido, em câmera lenta.
Ele também estava surpreso por conseguir
pará-la desta vez, mas sua vontade não era
forte o suficiente para manter a situação. A
60
bala começou a se mover de novo. Lenta-
mente se moveu para frente e não importava
o quanto ele tentasse fazê-la parar, ela conti-
nuou inexorável em direção à sua mãe.
Seu pai se jogou na frente dela, levou o
tiro, caiu e não se mexeu mais. E então sua
mãe gritou e o ladrão atirou mais uma vez. A
bala partiu seu colar, e as pérolas voaram
em todas as direções e sua mãe caiu sobre
seu pai.
Bruce olhou para cima e descobriu que
estava sentado em uma sacada, como aque-
la do cinema onde tinham assistido a Marca
do Zorro. Ele estava assistindo ao assassina-
to de seus pais na rua lá em baixo. Ele podia
vê-los mortos e via a si mesmo de pé ali,
perplexo. O ladrão entrou em pânico, virou e
fugiu rua abaixo e foi engolido pela escuridão
como um peixe escorregando para dentro da
garganta de uma baleia.
Bruce percebeu que havia alguém na sa-
cada com ele. Alguém com a respiração
quente em seu pescoço, inclinando-se para a
61
frente para colocar um braço pesado em
seus ombros. Uma voz que parecia vir de
muito longe através de um cano disse: “Você
é meu, e você irá se tornar eu... eu sou o
seu verdadeiro pai... e você é meu filho.”
Com as faces molhadas de lágrimas, Bru-
ce viu que quem falava tinha orelhas pontia-
gudas e um rosto cheio de dentes longos e
afiados. O braço ao redor de seus ombros
afastou-se e estava grudado a uma asa escu-
ra e dentada. Os dedos da coisa tinham
grandes garras nas pontas.
Era um enorme homem-morcego.
Ele bateu as asas e alçou vôo da sacada
em direção às trevas quando Bruce sentou-
se na cama e gritou. As sombras na sacada
deram lugar às silhuetas mais leves de seu
quarto e essas partiram-se por um feixe de
luz dourado, dividido por uma sombra alta e
magra que disse: “O senhor está bem?”
“Alfred?”
“O sonho, senhor?”
“O mesmo. Só que desta vez eu consegui
62
ver as balas saindo do revólver e parecia que
eu ia conseguir congelá-las, impedi-las de
matar meus pais. Mas ainda assim aconte-
ceu. Nem no sonho eu consegui que as coi-
sas acontecessem do jeito que eu queria.”
“O homem-morcego novamente, senhor?”
“Em uma sacada desta vez, olhando para
a rua.”
“Sinto muito, senhor.”
“Estou aprendendo a conviver com isso.
Pelo menos os sonhos variam um pouco.”
“Não apenas os sonhos, senhor. Eu esta-
va vindo acordá-lo quando gritou.”
“O telefone vermelho?”
“Sim, senhor.”
“Bom.”

SÉRIE DE QUADRINHOS, RICOS EM SOM-


BRA E MOVIMENTO

(1) BAT-CAVERNA INTERIOR

Fundo: Preto azulado com estalactites


63
saindo do teto da caverna como dedos de
bruxas. Há luz o suficiente para que se veja
o brilho das caixas de troféus. O interior de-
las, com a exceção de duas, uma contendo
amostra dos guarda-chuvas do Pinguim e ou-
tra com o uniforme aposentado de Robin,
está muito escuro para que se veja seu con-
teúdo. Mas é possível ver os troféus maiores:
uma enorme moeda de um penny com a
efígie de Lincoln do caso do “Ladrão de Pen-
nies”. O dinossauro mecânico tamanho natu-
ral do caso da “Ilha dos Dinossauros” e a gi-
gantesca carta de baralho com o rosto bran-
co e cabelos verdes do arqui-inimigo de Bat-
man, o Coringa.
Frente: O batmóvel, longo e esguio, uma
agulha escura para costurar noite adentro. O
vidro bolha escuro para esconder seu moto-
rista. Uma grande barbatana na traseira.
Uma cabeça de morcego triangular decoran-
do a frente do carro. Os faróis brilhantes
como pequenos sóis. Linhas de movimento
em ambos os lados da máquina para mostrar
64
que ele realmente está em movimento.

(2) BAT-CAVERNA EXTERIOR NOITE

Fundo: Lua cheia acima da cena como um


escudo brilhante. Nuvens escuras ameaçam
cobri-la. Uma visão completa da entrada se-
creta da bat-caverna enquanto a porta mecâ-
nica, com a fachada de pedras e arbustos,
está fechando, o interior da caverna está es-
curo como o coração de uma bruxa.
Frente: Batmóvel (ângulo direito, lado di-
reito do painel) saindo veloz da caverna, pa-
recendo um peixe pré-histórico.

(3) RUAS DE GOTHAM CITY

Fundo: Uma vista nítida da rua, ladeada


por edifícios altos e escuros. A rua está anor-
malmente vazia. A lua está no alto exata-
mente sobre o centro da rua, parecendo um
balão dourado ao invés do escudo brilhante
anterior. Nenhuma nuvem aparece agora.
65
Céu escuro, limpo.
Frente: O batmóvel passa em velocidade
pela rua, fazendo riscos de vento no ar. Um
jornal voou através da rua e prendeu no farol
esquerdo. Visível na parte iluminada, um pe-
daço da manchete: “Jack do Metrô”.

JAMES W. GORDON

Batman entrou pela janela do meu escri-


tório e parou, sua silhueta iluminada pela luz
externa. Sua roupa nunca deixava de me dar
um sentimento de admiração e medo. O ca-
puz escuro com as orelhas pontiagudas liga-
do à capa que dançava em tomo dele como
se estivesse viva. Eu olhei o círculo dourado
com o morcego no centro de seu peito. E ele
próprio. Forte, realmente forte. Musculoso. E,
no entanto, esguio como um ginasta.
Ele não acendeu a luz. Ele gosta de escu-
ro. Atravessou a sala, sentou na cadeira de-
fronte minha mesa e sorriu. Aquele sorriso
dele poderia ser uma careta de cabeça para
66
baixo. Ele disse: “Suponho que seja o “Jack
do Metrô”.
“Bom palpite.”
“Eu ia entrar no caso de toda forma.”
“Eu achei que você era bem capaz disso.”
“Tenho lido a respeito nos jornais e visto
na televisão.” Empurrei a pasta em sua dire-
ção, acendi o abajur e coloquei de forma que
ele pudesse enxergar direito. “Existem outras
informações aí se você quiser”, recostei na
cadeira, peguei um charuto e acendi.
Ele estendeu a mão enluvada e pegou a
pasta, abriu e sem olhar para cima disse:
“Hábito nojento.”
“É esse negócio do “Jack do Metrô”, falei.
“Está me fazendo fumar cachimbo mais do
que de costume, além desses charutos. Es-
tou nervoso como um gato de rabo comprido
numa sala cheia de cadeiras de balanço. Eu
vou acabar bebendo também. Eu vi um nú-
mero três esta noite, pode acreditar, se você
tivesse visto o que eu vi, também começaria
a ter maus hábitos. Essas fotos não mostram
67
todo o horror da coisa.”
“Mesmo assim, Jim, eu preferia não respi-
rar sua fumaça.”
“Você provavelmente ingere a quantia
exata de cereais e ameixas também, não é?”
“É, a quantia exata.”
Eu apaguei o charuto.
Quando ele acabou de ler, eu disse: “E o
número quatro não será muito diferente tam-
bém.”
“Sempre o metrô”, falou. “Sempre mendi-
gas.”
“Um psiquiatra poderia dar uma pista so-
bre isso. Não temos uma avaliação psiquiátri-
ca dele ainda. Pode ser que o metrô seja
perto e as mendigas sejam vítimas fáceis...
Mas vou te dizer uma coisa, tem alguma coi-
sa de diferente nesse caso. Algo estranho.
Eu sinto nos meus ossos.”
“Pode ser reumatismo, Jim.”
“Estranho.” Ele empurrou o abajur de vol-
ta para o lugar, apagou a luz e ficou em pé.
Pegou umas cópias extras dos arquivos e
68
guardou em algum lugar da capa. “Nós o pe-
garemos.”
“É”, eu disse, mas tinha minhas dúvidas.
Eles nunca pegaram Jack, o Estripador. Ain-
da não pegaram o assassino de Green River.
Existem dúvidas se o homem que eles pren-
deram era mesmo o Estrangulador de Bos-
ton.
As vezes eles escapam.
“Eles têm uma amostra do barro para
você lá em baixo na expedição. Se você qui-
ser eles têm ordem de entregar.”
“Obrigado, Jim.” Ele saiu. Senti um forte
impulso de dizer a ele para tomar cuidado.
Levantei, fui até a porta, abri e olhei para os
dois lados do corredor.
Ele tinha ido embora.
Ele sempre se movia como um fantasma.

VELHO CEMITÉRIO DE GOTHAM CITY


(após terceiro assassinato)

Jack foi até lá após cada um dos assassi-


69
natos e tentou colocá-la de volta, mas ela
não deixava. Cada vez que ele entrava na
tumba e punha a caixa, a lâmina cortava o
metal e sua mão também. Ela cantava para
ele, alto e bonito, e ele sabia que não ia con-
seguir colocar de volta. Era a dona dele e
nos poucos momentos em que se pertencia e
conseguia raciocinar claramente, ele pensava
no maldito livro e como o tinha feito vir até
ali.
Ele tinha ido à Biblioteca de Gotham City
para fazer uma pesquisa para sua tese de
criminologia, “O Psicopata e a Sociedade Mo-
derna”, e enquanto procurava o livro Psyco-
pathia Sexualis de Richard Von Krafft-Ebing
na seção de livros de consulta...

FLASHBACK: SÉRIE DE QUADRINHOS,


ESCUROS E AGOURENTOS, ÂNGULOS AGU-
DOS COMO FACAS

(1) BIBLIOTECA DE GOTHAM CITY INTE-


RIOR NO FUNDO DOS CORREDORES DE LI-
70
VROS

Fundos: Não muito. Fileiras e fileiras de li-


vros desaparecendo na escuridão.
Frente: Em primeiro plano Jack (alto e
magro, cabelo loiro cortado curto, vestido
afetadamente de branco, tênis, calça esporte
e uma camisa de manga comprida com lis-
tras vermelhas e brancas) de pé na ponta
dos pés tentando alcançar um livro. Sua mão
está na lombada de um livro, mas o livro do
lado saiu do lugar e está começando a cair.

(2) CHÃO DA BIBLIOTECA

Close: A mão de Jack indo em direção ao


livro que caiu aberto com a lombada para
cima. O livro é velho e de cor cinza. Tem es-
crito na lombada em letras escuras “Seguido-
res da Lâmina”, de David Webb.

(3) BIBLIOTECA

71
Close: Jack de pé, segurando o livro aber-
to. Em um balão de pensamento está escrito:
“Meu Deus, um livro sobre assassinatos com
faca desde 1800. Eu não sabia que esse livro
existia.”

(4) BIBLIOTECA

Visto de cima (lente grande angular): Jack


está sentado em uma mesa de madeira com-
prida, pilhas de livros perto do seu cotovelo
direito, sua cabeça inclinada sobre o que ele
pegou do chão. A imagem dele na mesa é o
centro do quadro, mas à medida que olha-
mos para as bordas do quadro ele vai fican-
do escuro. É possível distinguir as prateleiras
com livros que o cercam, mas elas estão na
sombra e parecem inclinar sobre ele, como
se fossem coisas vivas espiando por sobre
seus ombros. Em uma grande legenda ama-
rela no topo do quadro está escrito: QUAN-
DO O DIA SE DISSOLVIA NA NOITE, JACK
HAVIA FEITO UMA EXTRAORDINÁRIA DES-
72
COBERTA. Dentro do painel em um balão de
pensamento vindo de Jack está escrito: Que
tese incrível essa pesquisa vai gerar!

DO DIÁRIO DE JACK (destruído mais tar-


de por James Gordon)

(anotações escritas no meio de setembro)

Uau, descobri uma coisa que fará o velho


professor Hamrick desmaiar. Essa será uma
tese de pesquisa para acabar com todas as
teses de pesquisa. Ela tem crime real, ela
tem aquele ar místico, ela tem uma lenda es-
tranha que se pode associar com todos os ti-
pos de mitologia e assassinatos famosos. Em
última análise, estamos falando de uma nota
muito alta em pesquisa para este que vos
fala.
Me parece uma boa ideia fazer aqui uma
sinopse do que eu lembro, de modo que eu
possa ter as minhas primeiras impressões,
assim, mais tarde, quando estiver escreven-
73
do a tese eu possa pegar essas anotações e
transcrevê-las para a tese. E, além disso, al-
guma vez eu deixei de escrever nesse diário
as coisas que mais me excitavam? A resposta
é não, senhor.
Eu achei este livro chamado “Seguidores
da Lâmina”, escrito ao redor de 1900 por
esse cara chamado David Webb que havia
pesquisado o assunto a vida inteira. Ele era
um homem à frente de seu tempo com inte-
resse nesse tipo de coisa, mas suas conclu-
sões são um pouco loucas — para dizer o
mínimo. Apesar disso a leitura é fascinante e
ele se apoia em uma bibliografia interessante
de livros, artigos e entrevistas. Eu procurei
algumas dessas referências na biblioteca
desde que achei o livro de Webb e o mais in-
teressante se chamava “O Livro dos Doches”,
escrito em 1600, mas que não podia ser reti-
rado da biblioteca. Eu o peguei emprestado,
levando para casa escondido no casaco.
Quando acabar de escrever a minha tese, eu
devolvo.
74
A teoria de Webb é que o mundo que co-
nhecemos cruza ocasionalmente com outros
mundos ou dimensões e é desse cruzamento
que tiramos algumas das ideias que temos a
respeito de deuses e monstros e explica al-
guns desaparecimentos. Parece que essa di-
mensão a que ele se refere e habitada por
todo o tipo de pessoas e animais horríveis. É
assim que explica o desaparecimento da tri-
pulação do Maria Celeste, sugere que os as-
sassinatos atribuídos a Lizzy Borden foram
cometidos por alguém ou alguma coisa, des-
sa outra dimensão, que a possuiu e a usou.
Ele diz o mesmo sobre Jack, o Estripador.
Mais tarde eu vou voltar a esse assunto.
Deixe-me anotar mais uma de suas ideias in-
teressantes, a ligação entre feitiçaria e a ma-
temática, a geometria e ao movimento dos
planetas e da lua.
Ele fala a respeito desse personagem que
foi chamado através dos séculos de “Deus
das Espadas”, “Deus das Facas” e, quando
ele estava escrevendo, de “Deus da Lâmina”.
75
Ele diz que essa coisa não é realmente um
deus, mas uma criatura poderosa dessa ou-
tra dimensão e, por alguma razão, quando
certos símbolos matemáticos são desenha-
dos, pode abrir os portões do mundo dele e
escapar para possuir alguém e fazê-lo execu-
tar sua vontade.
Existe um desenho grosseiro desse perso-
nagem no livro de Webb e eu vou te contar,
eu não gostaria de encontrá-lo em um beco
escuro, ou em um beco claro. Mas a descri-
ção dada por Webb me dá mais medo ainda.
Ele diz que essa criatura variou um pouco
através dos séculos, mas é mais ou menos
assim: O “Deus da Lâmina” é muito alto e
muito grande e usa um tipo de cartola (um
capacete, de acordo com algumas descri-
ções) com uma tira de metal e seus dentes
são agulhas ou punhais, usa pele e crânios
humanos, como sapatos, possui pequenos
cascos que cabem direitinho dentro de bo-
cas.
Em todo caso, esses símbolos matemáti-
76
cos podem chamá-lo se houver sangue. Ele
também diz que existe uma faca dessa outra
dimensão que pode abrir o portão. Diz que
antes era uma espada, mas que quebrou e
foi transformada em dois punhais e mais tar-
de um dos punhais apareceu transformado
em uma navalha de barbeiro e o cabo de
marfim da espada tinha servido para fazer o
cabo da navalha. Nesse cabo estão inscritos
esses símbolos matemáticos e que se a lâmi-
na provar sangue e não matar a pessoa que
ela cortou, aí essa pessoa é possuída pelo
“Deus da Lâmina” e se toma seu instrumento
de destruição. Ela suga sangue e transforma
qualquer pessoa possuída em um lunático.
(Ele liga isso aos Vikings e a sua loucura nas
batalhas).
Deixe-me ver o que mais. Ah, Webb diz
que a Excalibur, a espada do Rei Artur, era
originalmente da mesma dimensão do “Deus
da Lâmina” e que ela pertencia a ele. Ele diz
que foi essa a espada que se partiu e foi
transformada em uma navalha. (Eu me per-
77
gunto o que aconteceu com o resto da lâmi-
na). Ele fala que eventualmente essa navalha
caiu nas mãos desse barbeiro em Londres e
que ele acidentalmente se cortou com ela. O
deus o teria possuído e obrigado a cometer
os assassinatos em Whitechapel.
Webb sugere que esse homem possuído
pode ter na verdade morrido ou cometido
suicídio, mas antes que a lâmina de alguma
forma passasse para outras mãos. Ele apre-
senta provas de assassinatos semelhantes
através dos Estados Unidos logo após os de
Londres e os últimos assassinatos que ele re-
gistra em seu livro terminam bem aqui em
Gotham City, em 1904.
E veja isto. Sua verificação final é de que
ele viu o “Deus da Lâmina” com seus pró-
prios olhos e que ele e um colega policial
conseguiram dar cabo do sujeito, o que na-
turalmente libertou o possuído, mas também
o levou à morte. Ele conta que eles foram
capazes de derrotar o deus quando o luar es-
tava obstruído por nuvens, uma das poucas
78
coisas que diminuem a força do monstro. Su-
ponho que eu deva acrescentar a isso que
ele menciona que não conseguiu matar o
deus, apenas o mandou de volta à sua pró-
pria dimensão.
A última parte do material é que o assas-
sino, que Webb disse estar possuído pelo
“Deus da Lâmina”, está enterrado bem aqui,
no Velho Cemitério de Gotham. De acordo
com Webb, a navalha foi posta em uma cai-
xa de metal e enterrada com esse sujeito de
modo que fique para sempre longe do alcan-
ce das mãos do homem.
Se o Webb pensou nas coisas direito, se
ele realmente acreditava que essa lâmina ti-
vesse poder, ele não teria mencionado isso
em seu livro. Porque eventualmente alguém
com certeza, tentaria descobrir se existe na
realidade, uma navalha naquele túmulo. Al-
guém como eu. Mas talvez como escritor ele
não tenha conseguido resistir e contar tudo o
que sabia.
Pode ser que a navalha já tenha sido rou-
79
bada do túmulo. Ou talvez o livro tenha sido
considerado de ficção ou as palavras de um
louco como todo autor gótico.
Mas se existe uma navalha, imagine a
apresentação que eu poderia fazer. Minha
tese sobre o “Deus da Lâmina” e um show
para acompanhar.

(Anotação escrita no princípio de outubro)

A partir do livro eu deduzi qual o túmulo


em que estão o homem possuído e a nava-
lha. Webb nunca diz diretamente quem é e
onde está enterrado, mas existem indicações
suficientes e eu acho que tenho uma ideia
precisa de onde está.
Eu vou arrumar uma pá e ir cavar esse tú-
mulo. Eu fiquei um pouco preocupado em
andar com uma pá sem ser notado, já que
eu imagino que violação de túmulos não é
muito bem-vista. Aí, percebi que nessa cida-
de um homem com uma pá pode ser inco-
mum, mas nada comparado com o tipo de
80
coisa que se vê todos os dias. Além disso, se
a polícia perguntar, eu posso dizer que estou
levando para pôr no prego ou alguma coisa
assim. Não é a melhor desculpa do mundo,
mas quem é que vai provar o contrário?

(Anotação no dia seguinte)

Quando eu abri o túmulo, fiquei surpreso


de ver que realmente tinha uma navalha lá.
Era isso que eu queria descobrir, mas acho
que uma parte de mim achava que estava
sendo tolo. Mas quando eu descobri que a
caixa estava onde deveria estar, trouxe ela
para casa, abri e descobri a navalha, eu fi-
quei arrepiado. Não que eu acredite que a
navalha seja uma porta para outra dimensão
e que vá permitir que esse demônio entre no
corpo de quem quer que seja cortado e não
morra do ferimento, mas puxa, Webb achava
isso e realmente existe uma navalha...
Estou tentando descobrir uma maneira de
contornar esse problema de violação de tú-
81
mulo. Se usar isso para um show, não posso
admitir que fui lá e escavei um túmulo para
encontrá-la.
Rapaz, essa navalha é afiada e brilhante.
Ninguém imaginaria isso depois de tanto
tempo. Eu imaginei que estaria enferrujada.
Acho que não a segurei direito, porque quan-
do a abri ela mexeu na minha mão e eu corri
um dedo pela lâmina e me cortei. Nada gra-
ve, mal a toquei. Mas como arde.

(Anotação escrita mais tarde no mesmo


dia)

Pensei a respeito da navalha o dia inteiro.


Foi difícil na aula. Não consegui anotar nem
um terço das coisas que o professor Hamrick
falou. Meu dedo doía muito e ainda dói. Cor-
tes de papel e navalha são os piores.
Decidi levar a navalha de volta. Não con-
segui pensar uma maneira satisfatória de ex-
plicar a sua posse. Além disso não gosto
dela. Acho que o livro de Webb está me im-
82
pressionando. Eu ainda vou escrever a tese,
mas sem o show. Quanto mais cedo me li-
vrar dessa navalha, melhor.

(Anotação posterior, na noite do mesmo


dia)

Levei a navalha comigo dentro da caixa.


Eu andei parte do caminho e depois peguei o
metrô para Estação Central, já que não é do
cemitério. Quando desci na Central, vi todas
aquelas pessoas que vivem na rua e ficam
por ali. Eu sempre senti pena delas, especial-
mente das mendigas. Mas hoje eu comecei a
pensar diferente. Não há nada que possa ser
feito por elas. Não deviam deixar que ocu-
passem as ruas. Elas deveriam ser presas, ou
sacrificadas, como um cachorro doente ou
algo assim. Não é isso que a gente faz quan-
do a população animal foge de controle? A
gente elimina os vira-latas. Eu fico pensando
em como seria... Bem, todos nós temos esse
tipo de pensamento de vez em quando, não
83
temos?
Quando eu cheguei ao cemitério a nava-
lha cantou para mim. Não queria voltar para
o túmulo. Ela me cortou através da caixa. Eu
voltei de metrô para casa e ela cantou para
mim durante todo o caminho. Acho que nin-
guém consegue ouvir. Só eu. Ela canta muito
bem. É sugestivo. Meu dedo cortado dói tan-
to que mal consigo escrever, lateja como
uma bolha e de vez em quando abre e san-
gra.
Preciso dormir. Por enquanto é só.

(Última anotação, meio de outubro)

Webb tinha razão. Eu não sou eu mesmo.


A cantoria está cada vez mais alta e mais fre-
quente, as canções me mandam fazer coisas
que acho que não quero fazer. Não consigo
pensar claramente sobre isso. Meus pensa-
mentos e os dele misturados. Uma confusão
horrível. Um instante atrás, eu peguei uma
folha de papel e passei nas minhas pernas
84
até fazer uns doze cortes. Não consigo en-
tender porquê, a não ser que a cantoria este-
ja me induzindo a fazer isso. Os cortes ma-
chucam muito.
E noite de lua cheia, a cantoria me disse.
Disse também que o fio da lâmina é a boca
do “Deus da Lâmina” e que a boca precisa
ser alimentada.
Eu penso muito sobre as mendigas.

A BAT-CAVERNA (o dia seguinte ao en-


contro no escritório de James Gordon)

“Com licença, senhor, trouxe a sua ban-


deja.”
Bruce Wayne levantou os olhos da tela do
computador. “Obrigado, Alfred, mas não es-
tou com fome.”
“O senhor pediu para preparar o jantar e
trazer para o senhor.”
“Eu disse?”
“Sim senhor. Disse que queria comer aqui
embaixo, que tinha de trabalhar. Agora por
85
favor coma a sopa de ostras antes que eu
quebre o prato em sua cabeça, senhor Bru-
ce.”
“Deixe aí que eu como.”
“Sim, ponha aí. Assim você pode agradar
o velho Alfred, mas vai deixar aí e vai esfriar
e, afinal, você não vai comer. Não importa
que eu tenha escalavrado meus dedos até os
ossos...”
“Você apenas abriu uma lata.”
“Bem, é verdade, senhor, mas eu machu-
quei meu dedo no abridor. Fazendo progres-
sos, senhor Wayne?”
“Talvez. Esse barro que eles acharam.
Testei no meu laboratório, analisei e agora
estou checando, Jim tinha razão.”
“Comum como barro.”
“Uma piadinha, Alfred?”
“É, uma piadinha, senhor.”
“Mas o importante é que, por comum que
seja, não existem muitos lugares na cidade
de onde poderia ter vindo. Eu vou analisar a
informação via computador, achar todos os
86
lugares próximos da cidade de onde o barro
poderia ser e tentar pesquisar a partir daí.
Afinal, foi deixado pelos sapatos do assassi-
no.”
“Obrigado, senhor, achei que talvez ele
pudesse ter trazido num pacote.”
“Não era a minha intenção humilhá-lo, Al-
fred.”
“Claro que não, senhor.”
“É que para pesquisar, para usar o méto-
do de Sherlock Holmes, é preciso determinar
de onde o barro poderia ter vindo e...”
“Este último assassinato, senhor... todos
os assassinatos. Eles ocorreram na Estação
Central, não foi?”
“Sim, mas estou preocupado com o barro.
É isso que...”
“O local dos assassinatos não é muito lon-
ge do velho Cemitério de Gotham, senhor. É
bastante provável que o assassino tenha pi-
sado no barro lá. Parece uma possibilidade
lógica para mim. Ou será que estou sendo
muito presunçoso na minha falta de expe-
87
riência para sugerir essa possibilidade? O que
ele estaria fazendo lá, não tenho a menor
ideia. Um piquenique, talvez... Você está fa-
zendo uma cara horrível, senhor Wayne.”
“Por enquanto é só, Alfred.”
“Sim, senhor. Tome a sua sopa de ostras.
Eu venho buscar a bandeja mais tarde. O se-
nhor quer o chá no seu estúdio mais tarde?”
“Acho que não.”
“Muito bem, senhor.” Alfred foi para o
elevador que levava para a mansão Wayne.
Bruce falou pelas costas do velho mordo-
mo: “Você é um velho metido a espertinho,
Alfred, mas eu não conseguiria viver sem
você.”
Alfred entrou no elevador e juntou as
mãos a sua frente e um pouquinho antes que
a porta do elevador fechasse, disse: “Claro
que não, senhor.”

ARQUIVO DO BATMAN A-4567-C, anota-


ções informais (registro de computador, 20
de outubro)
88
No fim da tarde eu entrei em contato com
Jim e o apanhei em casa para irmos ao velho
Cemitério de Gotham. Nós pulamos o muro
porque o portão estava trancado com corren-
te e cadeado. Não quis abri-lo, pois parecia
muito velho e tive medo que quebrasse. Jim
reclamou quando o empurrei por cima do
muro. Disse que empurrei seu rosto contra o
muro para amassar seu charuto. Expliquei
que tinha sido sem querer. Falei que ele de-
veria olhar fotos tiradas na autópsia de
pulmões de pessoas fumantes. Disse que a
nicotina estava manchando seu bigode. Ele
mandou ir para o inferno.
Nós procuramos e achamos uma pá e um
túmulo aberto. Eu não pude ler o que estava
escrito no túmulo, mas o barro era do mes-
mo tipo encontrado no local dos crimes, veri-
fiquei no laboratório quando voltei. Aposto
que a suposição de Alfred está correta, que o
barro veio do cemitério. A proximidade à
área dos assassinatos era muita coincidência.
89
Acrescente-se a isso o túmulo aberto e acho
que podemos fazer umas conexões interes-
santes.
Eu limpei a cruz com um ácido fraco do
meu cinto de utilidades, enquanto Jim segu-
rava a lanterna e resmungava. A paciência
não é uma das suas virtudes. Eu esfreguei a
cruz até conseguir ler um nome: Rufus Jef-
ferson.
Jim prometeu verificar nos computadores
da polícia e eu vim para cá fazer o mesmo. O
que nós dois descobrimos é que Rufus Jef-
ferson morreu em 1904, nas mãos de um po-
licial de Gotham City, após cometer o quarto
de uma série de assassinatos, todos muito
semelhantes aos cometidos agora pelo “Jack
do Metrô”.
Jim disse que depois de verificar no com-
putador, ele desceu e foi verificar nos velhos
arquivos que não foram colocados no com-
putador. Ele descobriu que Jefferson foi pego
por um sargento Griffith e por um escritor
chamado David Webb, que mais tarde escre-
90
veu um livro narrando sua experiência. O
nome do livro era “Seguidores da Lâmina”.
Eu verifiquei na biblioteca pública, bem
como em outras bibliotecas menores na cida-
de. A biblioteca de Gotham City disse que ti-
nha um exemplar registrado nos arquivos, na
seção reservada, mas que havia desapareci-
do, roubado, talvez.
Cada vez mais estranho.
Voltei ao computador e entrei em contato
com bibliotecas no país inteiro e descobri que
na biblioteca da Universidade Stephen F.
Austin, em Nacogdoches, Texas, eles tinham
um exemplar na seção de livros raros. Eu
consegui que Jim providenciasse o envio
para nós pelo correio da noite.
Talvez haja alguma coisa no livro que
possa nos ajudar, algo que explique a cone-
xão do nosso assassino com aquele velho tú-
mulo e Rufus Jefferson.

(Excertos de anotações feitas mais tarde


no arquivo A-4567-C outubro)
91
...livro é fascinante, e apesar do assunto
inacreditável, é convincente. Até um certo
ponto. Não consigo aceitar muito bem um
assassinato dimensional, mas já vi coisas
muito estranhas na vida e é possível haver
alguma ligação psicológica com...
...a bibliotecária disse que depois da mi-
nha ligação ela começou uma pequena inves-
tigação por conta própria. De acordo com ela
um jovem chamado Jack Barrett retirou mui-
tos livros daquela seção e disse estar procu-
rando material para uma tese sobre assassi-
nos psicopatas. Ela disse que não queria acu-
sar ninguém, mas que eu poderia querer dar
uma verificada...
...uma pesquisa discreta revelou que Jack
Barrett era um excelente aluno até o mês
passado. Seu professor de criminologia me
disse, confidencialmente, que ele estava
agindo de modo estranho e tinha começado
a faltar às aulas subitamente. Ele achaque
talvez sejam problemas em casa ou uma ga-
92
rota...
...a universidade me forneceu o endereço
de Jack Barrett e eu vou entrar em contato
com Jim para verificarmos...

JAMES W. GORDON (uma semana de-


pois)

Eu sinto que estamos ao mesmo tempo


certos e errados a respeito desse tal de Bar-
rett, mas não sei explicar por quê. Há algu-
ma coisa de esquisito nesse caso desde o
princípio.
Nós colocamos homens vigiando o aparta-
mento de Barrett e ele foi seguido a semana
inteira. Batman está trabalhando nos telha-
dos.
Quando o Barrett sai, Batman anda pelo
topo dos edifícios como uma sombra, como
uma aranha... bem, como um morcego.
O que temos aqui é um rapaz não muito
ativo. Ele largou a universidade e a única coi-
sa que ele faz o dia inteiro é andar de metrô
93
o dia inteiro. Ele vai até a Estação Central e
fica por ali olhando as pessoas, especialmen-
te as mendigas.
Essa parte é interessante, é claro. Mas al-
guma coisa nesse rapaz dá a impressão de
que não quer estar ali, que é contra a vonta-
de dele. Barrett anda como se fosse uma
marionete e alguém estivesse puxando os
barbantes e até o momento que chega na
porta do metrô parece não estar prestando
atenção em nada.
Aí presta muita atenção nas mendigas.
Ele tem essa coisa com a lua. Está sempre
escuro quando ele volta para casa, e às ve-
zes ele para e olha para a lua. Ou o que dá
para ver dela. Tem estado nublado ultima-
mente e as nuvens a cobrem na maior parte
do tempo. Ela parece um risco de tão fina,
mas ele olha como se a odiasse. Ele está
sempre com uma mão no bolso.
Batman acha que Barrett espera uma noi-
te clara. A ideia de uma lua clara tem uma
relação com o que Webb escreveu no “Segui-
94
dores da Lâmina”. De acordo com Batman a
previsão é de tempo um pouco melhor ama-
nhã, especialmente de madrugada, alguns
momentos de céu claro com uma pequena
ameaça de chuva. Ele acha que as coisas po-
dem acontecer amanhã.
Eu não entendo esse negócio da lua, mas
tenho um pressentimento de que Batman
está certo. Se Barrett fizer alguma coisa
amanhã se ele for mesmo o “Jack do Metrô”,
espero que estejamos preparados.

RUAS DE GOTHAM CITY (2 da manhã, 31


de outubro)

Jack Barrett saiu de seu apartamento e


desceu até a rua. Estava tenso como uma
corda de violino. Ele apertou a navalha com
a mão dentro do bolso do casaco e olhou
como estava a lua tão tarde da noite (de ma-
drugada). A lua estava mais brilhante e nes-
sa noite as nuvens mostravam-se bem finas,
embora a previsão dissesse chuva. O ar esta-
95
va meio friozinho como a sensação da loção
após a barba.
Ele desceu a rua, com passos rápidos,
sem olhar para nada, a não ser para a lua de
vez em quando. Ele ouviu uma buzina. Um
táxi passava vagarosamente e a janela do
passageiro estava aberta. O motorista abai-
xou para olhar por essa janela e perguntou:
“Quer ir para algum lugar?”
Barrett balançou a cabeça.
“Noite ruim para andar a pé. Você pode
se molhar. Vai acabar pegando um resfria-
do.”
“Estou duro”, disse Barrett, e andou mais
depressa.
O táxi continuou acompanhando e o mo-
torista falou: “Deixa pra lá. Não gosto de ver
um cara a pé numa noite assim e eu não es-
tou arrumando passageiro mesmo. Essa cor-
rida é por minha conta se você quiser. Eu
sou um trouxa mesmo.”
Barrett parou e o táxi parou também. Bar-
rett olhou para a lua. Ela estava clara e ele
96
sentiu aquela vontade ficando forte dentro
dele. Seria melhor ir de táxi do que pegar o
metrô na Rua Maynard e ir até a Central. E a
Maynard ainda estava longe. Ele olhou para
o motorista e disse:
“Tudo bem.” Entrou no banco de trás do
carro e deu uma olhada lateral para o moto-
rista. Era um velho grande com os cabelos
brancos, uma boca que parecia de borracha
e rugas tão fundas que pareciam sulcos. “Se
não fosse problema, eu gostaria de ir para a
Estação Central.”
“Fui eu que convidei”, disse o motorista, e
saiu com o carro. Ele olhou pelo espelho e
disse: “Você não parece bem. Você está do-
ente?”
“Estou doente sim”, respondeu Barrett.
“Você não ia acreditar se eu dissesse como
estou doente.”
“Mais um motivo para não andar a pé.
Noites assim são um horror.”
“Fale-me a respeito”, disse Barrett en-
quanto se recostava no banco e fechava os
97
olhos febris.
“Se você está com problemas, pode pro-
curar alguém. E se não for problema físico,
existe gente que cuida disso.”
Barrett não estava ouvindo. Ele estava
pensando nas coisas ruins que tinha de fazer
e sobre a escuridão total do outro lado, uma
escuridão rasgada pelo brilho de uma nava-
lha.

“Estação Central”, disse o motorista. “Ei,


Estação Central.”
Barrett abriu os olhos. Ele não se sentia
descansado. Seu coração estava batendo
mais depressa. Ele estava com calor e sua
cabeça parecia cheia de ar. Pôs a mão no
bolso e sentiu a navalha. Ela estava quente.
Ela estava começando a cantar. Ele sabia
que o motorista não conseguia ouvir. Ela só
cantava para Barrett.
Ele queria tirar a navalha do bolso e jogar

98
fora. Queria pegar a navalha e cortar al-
guém, talvez o motorista. Ele queria fazer es-
sas coisas todas e ao mesmo tempo não
queria fazer nenhuma.
Ele disse: “Obrigado”, e saiu do táxi. Des-
ceu os degraus da estação do metrô e sumiu
de vista.
O motorista de táxi virou a esquina,
achou um lugar cheio de sombras e estacio-
nou. Arrancou seu rosto pegando pelo cabelo
e puxando. A máscara saiu com um som de
sucção igual a alguém desentupindo uma
pia. Ele passou a mão pelos cabelos escuros
e pelo rosto bem-feito, a máscara tinha ma-
chucado um pouco seu rosto. Tirou a jaque-
ta, as calças e chutou os sapatos. Pôs o ca-
puz sobre a cabeça. Recostou-se no assento,
abriu o porta-luvas, pegou o walkie-talkie,
apertou um botão e disse: “Ele está aqui,
Jim. E parece mal. Eu tentei fazê-lo falar.
Achei que ele podia contar tudo e eu podia
convencê-lo a desistir. Nem pensar. Quase
dá para sentir o calor vindo do cara e eu es-
99
tou achando que vai ser hoje a noite. Se for
ele, e eu acho que é, e se for fazer a barbari-
dade, eu acabei de jogá-lo em suas mãos.”
“Estamos esperando”, respondeu Gordon.
Batman prendeu o walkie-talkie no cinto,
saiu do táxi e encostou na carroceria. Ele
queria ir atrás de Barrett, mas tinha prometi-
do a Gordon que tentaria ficar de fora. Se
desse, era uma promessa que ele queria
cumprir.

JAMES W. GORDON

Eu estava vestido de mendigo. Tinha fica-


do sem fazer a barba alguns dias, meu cabe-
lo estava duro e o casaco que usava tinha fi-
cado anos guardado no depósito da polícia.
Para ficar ainda melhor, eu tinha derrubado
vinho vagabundo nele. O fedor do vinho me
dava inspiração para o papel. Talvez eu pos-
sa começar uma nova carreira no cinema. Eu
podia fazer papel de bêbado. O horário de
trabalho não haveria de ser pior.
100
Coloquei o walkie-talkie no bolso, tirei um
charuto e acendi. Talvez um mendigo não
devesse ter um bom charuto inteirinho, mas
as coisas têm um limite também. Ou eu fu-
mava o meu charuto ou começava a andar
pra lá e pra cá.
Eu pensei em Batman lá em cima, e me
bateu um arrependimento de ter feito um
acordo para ele não se envolver, só para o
departamento ter o mérito de resolver o
caso. De vez em quando, vinha pressão lá de
cima dizendo que agente se apoiava demais
no Batman. Pode ser.
Em todo caso, eu tinha acabado de acen-
der o charuto quando vi o Barrett descendo
as escadas. Ele estava fraco e cansado, pare-
cia doente. O suor na testa dele parecia uma
tiara de pérolas. Ele cambaleava um pouco e
olhava pra o chão praticamente o tempo
todo.
Eu encostei na parede e fiz cara de bêba-
do. Ele passou por mim sem olhar. Eu o dei-
xei se afastar um pouco antes de espiar e
101
vê-lo andando na beira da plataforma. Eu
achei que ele acabaria caindo nos trilhos.
Tinha alguma coisa nele, uma coisa estra-
nha no ar que me fez pôr a mão no bolso e
sentir meu .38 só para dar sorte. Eu sussur-
rei no walkie-talkie avisando meu pessoal lá
na frente e comecei a segui-lo a distância,
andando o mais macio e silenciosamente
possível.
Finalmente vi a mendiga empurrando o
carrinho, chegando perto de Barrett, cantan-
do baixinho. Mertz estava bem no disfarce,
talvez com os ombros largos demais para
uma mendiga. Ele estava de cabeça baixa e
a peruca cinza cobria seu rosto.
Fiquei atrás de uma coluna de concreto,
encostei nela, cuspi meu charuto e pisei nele.
Dei uma olhada detrás da coluna e pus a
mão no bolso para sentir o .38. Esperei.
Barrett passou direto pelo Mertz.
Bem, nós tínhamos outra mendiga mais
adiante e Crider tinha o extremo da platafor-
ma coberto com três policiais à paisana para
102
o caso das coisas ficarem desagradáveis. Te-
nho de admitir que fiquei desapontado. Eu
não fazia muito trabalho de rua atualmente
e, quando fazia, queria ver as coisas aconte-
cendo. Comecei a achar que aquilo que eu ti-
nha sentido no ar era velhice.
Eu ia sair detrás da coluna para ir na dire-
ção de Mertz, quando Barrett se virou de re-
pente e começou a voltar.
Mertz fingiu não perceber, mas eu sabia
que tinha notado porque ele parou o carrinho
e enfiou a cara lá dentro. Achei que tinha
pego o revólver.
Eu ia me esconder de novo atrás da colu-
na quando vi uma coisa que me impediu, al-
guma coisa que me deixou gelado olhando
para Barrett e sua sombra.
Sua sombra se projetou longa e espessa
para a sua direita e de repente Barrett caiu
para a esquerda, como um saco vazio. A
sombra ficou ereta e tomou seu lugar, só
que não era mais uma sombra. Era uma figu-
ra enorme, com uma cartola e o rosto escuro
103
como piche, olhos que brilhavam como faís-
cas e a boca cheia de dentes afiados como
agulhas.
Seu casaco e calças pareciam frouxos e
eram cor de camurça clara. Seus sapatos
eram crânios e seus calcanhares eram finos
como pés de bode e entravam nas bocas
quando ele andava. O som dos passos era
como frutas maduras caindo no chão. À sua
esquerda, deitada no cimento, estava uma
sombra pálida parecida com Jack Barrett que
se mexia num arremedo dos movimentos do
homem escuro.
Seu braço levantou e eu vi um brilho de
metal vindo de seu punho. O braço desceu
na mesma hora em que Mertz tirava o revól-
ver do carrinho, virava e atirava.
O homem escuro absorveu a bala e conti-
nuou vindo. A navalha brilhou e eu vi a mão
de Mertz voar em direção aos trilhos. Ela se
mexeu por alguns momentos como uma ara-
nha tentando rastejar.
Nesse momento o mundo ficou quente e
104
parecendo um caleidoscópio. Parecia que a
realidade estava implodindo, parecia que um
universo maligno estava entrando no nosso,
como uma enguia oleosa num túnel aperta-
do.
O sangue jorrou do pulso de Mertz, des-
creveu um arco, se contorceu no ar como um
tubo de neon vermelho. As sombras se mexi-
am e a luz oscilou como mel fervendo. Os tri-
lhos do metrô tremiam, a coluna onde eu me
apoiava ficou esponjosa. Eu sentia um fogo
na cabeça e comecei a derreter. O ar rangia.
De repente tudo acabou e o mundo ficou
sólido novamente. Os trilhos pararam de se
mexer. As sombras deixaram de tremer. A
luz ficou forte e clara. O sangue de Mertz
caiu no cimento e se espalhou em poças cor-
de-rosa.
A navalha dançou no ar como a batuta de
um maestro. Mertz, sem tempo nem para
gemer, caiu no chão aos pedaços.
O homem escuro veio em minha direção.
Eu saquei o revólver e dei seis tiros. Ele não
105
se incomodou. Recarreguei e dei mais seis.
Eu atirei na cara dele, todos os seis, um
atrás do outro. Conseguia ver o lugar que as
balas atingiam, nas bochechas, no queixo e
abaixo do nariz, mas os buracos fechavam
rapidamente, como se a carne fosse feita de
areia movediça e minhas balas fossem ape-
nas pobres vítimas que tivessem pisado ali
por engano.
Ele estava tão perto que eu podia sentir
seu cheiro. Um cheiro de escapamento, de
chaminé de fábrica, de esgoto a céu aberto.
A navalha subiu e brilhou novamente. Eu
me abaixei e pulei, caindo na beira da plata-
forma e depois batendo com minhas costas
no trilho. O impacto me deu um choque na
espinha e fiquei paralisado por um instante.
Achei que ia olhar para cima e ver aquele
rosto me olhando e mostrando a navalha.
Não foi isso que aconteceu. Eu senti uma
vibração nos trilhos que me avisou da proxi-
midade de um trem. Eu consegui levantar e
me arrastar para o outro lado, onde me abri-
106
guei numa reentrância com minhas costas
contra o muro.
Ainda tinha meu .38, mas estava sem ba-
las, e além do mais, que diferença fazia? Por
força de hábito botei o revólver de volta no
coldre.
Crider e os três à paisana tinham ouvido
os tiros e vinham correndo. Eles estavam
quase em cima do assassino. Atiravam com a
mesma ausência de resultados que eu.
Eu gritei: “Fujam!”, mas eles não me ou-
viram por causa dos tiros e do trem que se
aproximava. No momento em que o homem
agarrava Crider pela garganta e o levantava
acima da cabeça e esfaqueava um dos caras
à paisana, o trem entrou na estação. A única
coisa que eu via era sua lateral de metal
cheia de janelas acesas e um barulho rápido
tac-tac-tac de vidro e metal.
Apertei-me o mais que pude contra a pa-
rede e senti o vento do trem e o barulho de
metal contra metal, tentando imaginar os
horrores que estavam acontecendo do outro
107
lado.
Pareceu um século, mas o trem finalmen-
te foi embora e eu vi que o homem tinha dei-
xado a estação. Crider e os policiais à paisa-
na estavam espalhados por toda a platafor-
ma. Parecia o chão de um matadouro. Na
parede, aparecia escrito em letras enormes e
sangrentas: CUMPRIMENTOS DE JACK DO
METRÔ MAIS 5 E AGORA SÃO 8 EU NÃO
PEGO APENAS MULHERES. Mais longe um
pouco, subindo as escadas eu vi Barrett. Ele
estava tropeçando. A navalha balançava em
sua mão como se fosse um longo dedo pra-
teado.
Eu peguei o walkie-talkie e tentei falar
com uma voz firme.
“Batman. Ele está subindo. Ele é Barrett
agora. É como está no livro. E verdade. Ele
se transforma.”
“Eu o peguei, Jim.”
Na maior parte das vezes eu teria acredi-
tado. Eu já vi o Batman pegar uns tipos es-
tranhos. Mas desta vez... talvez nem o Bat-
108
man conseguisse.
Eu levantei, atravessei os trilhos, subi na
plataforma e fui em direção à escada atrás
de Barrett.

BATMAN (lado de cima)

Batman está pensando a respeito do que


o Jim falou, sobre o modo como o Barrett
muda, sobre aquele livro “Seguidores da Lâ-
mina” e sobre o “Deus da Lâmina”. Ele está
pensando que se o Jim diz que é assim, en-
tão é assim mesmo. Ele sente algo raro, algo
que combina com os momentos de seus so-
nhos em que vê seus pais morrerem e sente
a presença do homem-morcego às suas cos-
tas, e este sentimento raro é de difícil identi-
ficação — é o medo. Um breve arrepio sobe
a sua espinha e bate no cérebro. Desaparece
quando toda a sua experiência e treino to-
mam conta dele. Barrett sai da estação de
metrô, com os olhos esbugalhados, olhando
para cima tentando ver a lua.
109
Instintivamente, Batman vira o pescoço e
vê que a lua está atrás daquelas nuvens de
chuva anunciadas na previsão do tempo. Ele
olha de novo para Barrett que está atraves-
sando a rua correndo, daquele jeito trôpego
que o faz parecer uma marionete sendo ma-
nipulada por alguém.
Não existe trânsito a esta hora da manhã.
Batman atravessa a rua facilmente e começa
a alcançar Barrett. Nesse momento tudo fica
mais claro, com um toque prateado e Bat-
man sabe que a lua sai detrás das nuvens.
Quando Barrett avança o pé direito, não está
calçado com um sapato, mas com uma cabe-
ça, e quando põe o pé esquerdo à frente é a
mesma coisa. O homem que está correndo à
frente de Batman, cada vez mais rápido, não
é Barrett, mas a criatura dimensional que
Webb chamou de “Deus da Lâmina”.
O “Deus da Lâmina” salta mais do que
corre. Batman se esforça e acelera, pergun-
tando-se, lá no fundo, o que vai fazer com
essa coisa se conseguir pegá-la.
110
E lá vão eles, o “Deus da Lâmina” condu-
zindo Batman através de caminhos estreitos
e sinuosos de arbustos e árvores. Batman
sabe que eles estão se aproximando muito
rápido do topo da colina, onde estão os mu-
ros do velho Cemitério de Gotham.
O deus está realmente indo depressa.
Quando chega ao muro, pula por cima dele
com uma flexão de suas pernas finas, como
se fosse um canguru e a pobre e fraca som-
bra de Barrett escorrega como um lençol mo-
lhado.
Batman alcança o muro, agarra as bordas
e salta sobre ele. E as nuvens se movem no-
vamente. De pé ao lado da cruz de pedra,
que marca o túmulo de Rufus Jefferson, a
negra tumba aberta à sua direita, está Bar-
rett, a cabeça baixa, a navalha segura sem
muita força encostada na sua perna.
“Não sou eu”, diz Barrett, sua voz fraca
como um sinal vindo do espaço. “Eu não te-
nho controle. Nada impede o poder da lua, a
não ser as nuvens. Somente as nuvens. En-
111
quanto ele tiver a lua e a necessidade, ele
tem o controle. Você precisa saber que não
sou eu. É ele.”
Barrett balança a navalha na direção da
sombra do deus que está fraca e aguada, in-
clinada, e parcialmente invisível dentro do tú-
mulo aberto.
“Eu sei, meu filho”, diz Batman, e se
move rapidamente em direção a Barrett.
“Dê-me a navalha e você ficará livre.”
“Não é assim”, responde Barrett. “Não
posso dar. Não do jeito que você quer. Nem
como eu quero. Só do jeito que ele quer.
Eu...”
As nuvens saem de frente da lua.

JAMES W. GORDON

Eu vi Batman atravessar a rua e ir em di-


reção às árvores e arbustos aglomerados no
sopé da colina do cemitério. Fui atrás dele.
Eu não conseguia acompanhar, ele estava
indo muito depressa. A fumaça de charuto
112
que morava nos meus pulmões também não
ajudava. Quando cheguei ao cemitério, notei
o capuz de Batman desaparecendo atrás do
muro. Nessa hora, observei Barrett chegando
ao topo da colina dentro do cemitério, a coli-
na que era mais alta do que os muros do ce-
mitério.
Minhas costas estavam me matando. Sen-
tia os lados do meu corpo como se eu esti-
vesse preso num espeto para churrasco. Não
consegui evitar, caí de joelhos e tentei recu-
perar o fôlego.
Quando o espeto parou de se mexer den-
tro de mim, fiquei de pé e me arrastei por
cima do muro.
Quando eu caí do outro lado, não era
mais o Barrett que estava de pé na colina,
era o monstro de cartola. A pálida sombra de
Barrett estava ficando mais fininha, como lei-
te magro. Acho que o “Deus da Lâmina” es-
tava se tomando cada vez mais forte e Bar-
rett, mais fraco a cada transformação.
Batman atacava colina acima com a cabe-
113
ça abaixada, como uma locomotiva. Sua
capa estava aberta e alta atrás dele como
um leque japonês. Ele se abaixou e eu con-
segui ver a cara do monstro e o brilho da na-
valha, quando cortou um pedaço da capa.
Batman deu um pulo alto e o cara se abaixou
e puxou seus pés. Quando Batman caiu, ele
bateu com os dois punhos atrás da cabeça
do sujeito.
Não pareceu fazer muito efeito. Talvez o
tenha deixado nervoso. O monstro esticou o
corpo e sua cartola nem balançou. Ele levan-
tou o braço acima da cabeça e desceu a mão
com a navalha como se fosse um martelo.
Batman lançou a mão à frente e pegou no
enorme pulso impedindo o golpe. O sujeito
usou sua outra mão para pegar Batman pela
garganta e...

QUADRINHO SPLASH

Vista Lateral Completa. Tomadas de Cor-


po de Batman e “Deus da Lâmina”: A cena é
114
escura, mas não muito. (Não esqueça daque-
la fatia fria de lua.) A cabeça de Batman está
sendo puxada para trás e seus dentes estão
rangendo. É possível ver os músculos tensos
na mandíbula. Seus músculos estão saltados
dentro do uniforme, nos ombros, braços e
pernas. Sua mão está para cima segurando a
mão com a navalha e ele está usando a ou-
tra mão para empurrar o outro punho do
deus que está apertando sua garganta. A
capa está torcida e nós podemos vê-la en-
costando no chão, já que seus joelhos estão
dobrados e ele está sendo forçado para trás.
O “Deus da Lâmina” parece feliz como um
político recém-eleito. O seu sorriso é tão ras-
gado, que quase encosta na ponta das ore-
lhas. Seu olho esquerdo (o único visível para
nós) parece aceso como se tivesse uma lâm-
pada vermelha e quente dentro. O seu casa-
co está inchado pelos músculos. Suas pernas
finas também e seu sapato de crânio está ra-
chando na testa e os dentes saltam para fora
da boca, por causa da pressão da sua perna
115
arqueada para a frente. A sombra patética
de Barrett, quase sem cor, flutua solta e dis-
torcida para dentro da escuridão do túmulo.
Atrás, vemos um grande carvalho. Através
de seus galhos, podemos ver a curva pratea-
da da lua e a direita dela, uma nuvem escu-
ra.
Uma tira amarela embaixo do quadrinho
nos avisa o que Batman está vendo, enquan-
to sua cabeça é lentamente puxada para
trás:
NO QUE PARECIAM SER OS SEUS MO-
MENTOS FINAIS, BATMAN VIU UMA NUVEM
ESCURA DE CHUVA ESCORRER PARA A
FRENTE DO PEDAÇO DE LUA COMO UMA
MÁSCARA DE LÃ.

JAMES W. GORDON

Subi a colina em direção a eles e me atirei


na perna do sujeito, agarrando um pouco
acima do joelho.
Eu poderia muito bem ter sido uma pulga.
116
Ele me chutou e eu rolei de volta.
Estava de quatro e ia tentar novamente,
quando ficou tudo escuro. Naquele mesmo
segundo, Batman, ainda pendurado no sujei-
to, caiu para a direita e meteu o pé no joelho
dele e o arremessou em direção ao túmulo
aberto.
Um momento antes de desaparecer na
escuridão, eu vi que era Barrett caindo, a
sombra do enorme sujeito atrás como uma
seda deslizando sobre um osso.
De dentro do túmulo veio um som de al-
guma coisa se partindo, Batman girou e,
agachado, pegou uma pequena lanterna do
cinto de utilidades. Ele apontou para dentro
do túmulo. Eu subi, fiquei atrás dele e olhei
para o círculo de luz. E fiquei olhando, en-
quanto Batman iluminava o corpo de Barrett
de alto abaixo.
Barrett estava com o rosto para cima,
com as costas nos degraus. Sua cabeça
apontava para dentro e suas pernas tinham
girado tanto, que a bunda estava para cima.
117
Não era preciso ser um médico para saber
que sua espinha tinha quebrado.
Sua mão direita estava aberta e esticada.
Com o cabo da navalha na palma da mão, a
lâmina brilhava contra um degrau de pedra
coberto de mofo.
Começou a chover.

ARQUIVO DO BATMAN A-4567-C, última


das anotações informais

(registro de computador 1º de novembro)

Barrett foi posto em um caixão e enviado


para seus pais. Eu não sei o que Jim disse
para eles, algum tipo de acidente, acho. Seja
o que for que disse, não é o suficiente. Nin-
guém poderia dizer o suficiente, mas pelo
menos Barrett não será acusado por seus cri-
mes. Não vai ficar bem na ficha de Jim, que
o “Jack do Metrô” escapou. Vai estar escrito
CASO ABERTO, mas isso é razoável para Bar-
rett. Os assassinatos pararam e o Barrett não
118
era o culpado, de qualquer forma. Foi o
“Deus da Lâmina”, que voltou para sua di-
mensão, para esperar que um outro tolo o li-
berte.
Não será tão fácil na próxima vez.
Jim e eu guardamos a navalha, cuidado-
samente, em uma caixa de metal e esconde-
mos. Depois que Barrett e o que sobrou dos
policiais de Jim foram levados embora, nós
pegamos a caixa, colocamos em um tambor
e o enchemos de concreto. Esperamos que
ele secasse e endurecesse. Na noite seguin-
te, nos encontramos no cais, seguimos numa
lancha da polícia até o meio da Baía de Go-
tham e jogamos o tambor na água.
Está lá no fundo. Me agrada pensar que é
o fim das coisas ruins que a navalha pode
aprontar. Isso não vai trazer os policiais,
aquelas pedintes nem Jack Barrett de volta,
mas, pelo menos, está fora da vista e do al-
cance dos outros.
Quando nós terminamos, ficamos senta-
dos no barco e olhamos para a água, vendo
119
as gotas de chuva que caíam na baía. Eu
pensei em meus pais e em como a morte de-
les havia me levado a me tomar o Batman.
Pensei em meus casos mais estranhos. Pen-
sei a respeito do “Deus da Lâmina” lá embai-
xo, seguro e feliz em sua dimensão enlou-
quecida. Pensei a respeito de um monte de
coisas.
Um pouco antes de amanhecer, a chuva
fina parou e eu olhei para a água onde haví-
amos jogado o tambor e ali na superfície da
água trêmula, eu vi o reflexo...
...da...
...lua.

Esta história é para Keith Lansdale

120
Ídolo
ED GORMAN
m

Toc.
“Oi, querido. Só queria dizer que...”
Sua mãe espia pela moldura da porta do
quarto dele e diz: “Puxa, querido! Você já
passou da idade pra isso, não?”
Sua voz e seus olhos dizem que ela gosta-
ria de não ter visto seu filho de dezessete
anos fazendo o que está fazendo.
Pausa, depois: “Você está bem, querido?”
“Por que não estaria?”
“Bem...”
“Tá tudo bem. Agora se manda daqui.”
“Querido, eu já pedi pra não falar assim
comigo. Sou sua mãe e...”
“Você me ouviu.”
Ela conhece esse tom. Sente medo dele.
Sente medo desde que ele tinha sete ou oito
anos de idade.
121
Ele não é como os outros garotos. Nunca
foi.
“Sim, querido”, ela diz, já começando a
chorar lágrimas inúteis. “Sim, querido.”

eles não conhecem minha solidão, eles


veem apenas minha força, eles não conhe-
cem minha solidão.

1986

Janela aberta. Outono. Cheiro de folhas


queimando. A distância, uma fanfarra ensai-
ando perto da Universidade. Cheiro de fo-
lhas, rico como fumaça de marijuana.
Ele está deitado de cuecas na cama do
seu pequeno apartamento perto do campus.
Perto dele uma garota está coçando o peito.
Está nua, com exceção da calcinha rosa.
“Tudo bem? Mesmo?”
“Claro”, ele diz.
“Já me aconteceu muito. Provavelmente
você tá apenas cansado.”
122
“Cala a boca.”
“Por favor”, diz ela. “Eu realmente gosto
de você. Não é isso que importa?”
Ele a esbofeteia, deixando-a tão assusta-
da quanto machucada.
Assustada.

estou começando a entender meu proble-


ma, não sou eu a causa das dores de cabe-
ça, é ele. o impostor.
o impostor.

1987

“Então, como se sente a respeito desse


homem?”
“Sabe como me sinto, doutor.”
“Furioso? Ressentido?”
“É claro. Você não se sentiria?”
Pausa. “Fale-me sobre suas dores de ca-
beça.”
“Que horas são?”
“Como?”
123
“As horas, doutor. As horas. Esqueci meu
relógio.”
Suspiro. “Duas e dez. Por quê?”
“Estou com um pouco de pressa hoje.”
“Nós só terminamos às três.”
“Você, talvez. Eu estou com pressa.”
“Você sabe que sua mãe quer que fique
aqui a sessão toda.”
“Minha mãe que se dane.”
“Por favor. Fale-me sobre suas dores de
cabeça.”
“O que têm elas?”
“Sabe o que as provoca?”
“Não.”
“Pense a respeito um minuto. Por favor.”
Suspiro. “Ele.”
“Ele?”
“O impostor.”
“Ah.”
“Sempre que o vejo na TV ou no jornal,
começam minhas dores de cabeça.”
Escreve rapidamente no bloco de anota-
ções. “O que você sente quando o vê?”
124
“Nada.”
“Nada?”
“Literalmente, nada. As pessoas pensam
que ele sou eu. É como se eu não existisse.”
Ele pensa: o quanto se pode levar a sério
um analista que tem três grandes verrugas
no rosto e que usa meias caídas com chine-
los enfeitados?
De qualquer forma, ele está começando a
desconfiar que o analista pode muito bem
ser amigo do impostor.
Sim. É claro.
Meu Deus, por que não pensou nisso an-
tes?
Ele se levanta.
“São apenas duas e quinze. São
apenas...”
Mas ele já está saindo pela porta. “Até
logo, doutor.”

1988

Ele está no quarto com a gatinha branca


125
que sua mãe comprou para animá-lo, quan-
do desistiu da faculdade alguns meses atrás.
Está descansando ao sol suave de maio da
mesma forma que a gatinha branca com o
nariz escuro e úmido e a rápida língua cor-
de-rosa.
“Gatinha”, ele diz, acariciando-a. “Você é
minha única amiga. Minha única amiga.”
Então começa a chorar, realmente a solu-
çar. Ele não sabe porquê.

eu o vi na TV ontem à noite, acenando,


aceitando os aplausos, agora ele convenceu
a todos, todos, eles realmente pensam que
ele sou eu. eles realmente acreditam.

1989

“Gostaria de falar com você.”


“Estou com pressa.”
“É um assunto sério.”
Ele nunca viu sua mãe desse jeito. Sem
“querido”. Sem recuos. Quase zangada.
126
“Tá bom.”
“Lá em cima.”
“Por quê?”
“No seu quarto, vamos.”
O que está acontecendo? Ela parece qua-
se... enlouquecida.
Então vamos subir.
Então vamos passar pelo lugar onde a ga-
tinha branca com o nariz preto e úmido e lín-
gua rosa e rápida está deitada ao sol.
Até o quarto dele.
Abrindo a porta.
Apontando.
Voz semi-histérica.
“Você me disse que ia se livrar desse ne-
gócio.”
Sentindo-se corar. “Isso não é da sua
conta. Você não tem o direito de...”
“Tenho todo o direito. Estou aguentando
isso desde que você tinha oito anos e não
aguento mais. Agora você é um homem, ou
deveria ser. Livre-se dessa porcaria agora
mesmo!”
127
Em vez de ficar zangado, ele fica parado,
permitindo-se compreender a verdade desse
momento. A verdadeira verdade.
Então o impostor chegou até ela, tam-
bém.
Sua própria mãe.
Sentindo essa mudança nele, ela parece
menos segura de si. Sai de perto do armário.
“Qual é o seu problema?”, pergunta.
“Deixou ele tocar em você?”
“Quem? Do que você está falando?”
“Você sabe, mãe. Sabe muito bem do que
estou falando.” Pausa. Olha para ela. É bas-
tante atraente para uma mulher de quarenta
e dois anos. Todas aquelas aeróbicas mos-
tradas durante o dia na TV. Todas aquelas
refeições de frutas e carnes magras e quase
nenhum pão. Certamente sem sobremesas.
“Você deixou que ele a tocasse, não é?”
“Meu Deus, você está...”
Mas então ela se detém, obviamente per-
cebendo que seria a coisa errada a dizer. A
coisa mais errada a dizer. (Você... está... lou-
128
co?)
Então ele a agarra.
Pela garganta.
Estrangulando-a antes que tenha tempo
de gritar e alertar os vizinhos.
É tão fácil!
Seus dedos pressionam sua traqueia.
Os olhos dela reviram.
Saliva prateada corre inutilmente pelos la-
dos de sua boca, enquanto ela tenta formar
palavras inúteis.
Ele observa a forma como seus seios se
movem graciosamente dentro do vestido de
algodão caseiro.
Mais forte, mais forte.
“Por favor”, ela consegue dizer.
Depois cai no chão.
Ele não tem dúvida de que está morta.

o impostor tomou conta de todos os as-


pectos da minha vida. não tenho amigos (às
vezes desconfio que foi ele que realmente
botou a gatinha branca aqui) não tenho
129
perspectivas de uma carreira, porque acredi-
ta em mim quando digo quem sou, não te-
nho...
ele não me deixa outra escolha
nenhuma outra escolha.

Mesmo dia (À tarde)

Ele nunca voou antes. Sente medo na de-


colagem, tendo ouvido que os dois momen-
tos mais difíceis a bordo são a decolagem e a
aterrissagem.
Uma vez no ar — com exceção dos breves
e aterrorizantes momentos de turbulência —
ele começa a se divertir.
Ele nunca tinha percebido a carga que ela
era, a sua mãe.
Ele pensa nela em seu quarto, amontoada
e morta num canto. Imagina quantos dias se
passarão até ela ser encontrada. Será que
ela estará preta? Será que terá vermes sobre
seu corpo inteiro? Ele espera que sim. Isso
vai ensinar o impostor a se meter com ele.
130
Ele passa o resto do vôo observando uma
aeromoça morena abrir uma boca vermelha
e excitante ao sorrir para vários passageiros.
Muito vermelha.
Muito excitante.

Mesmo dia (Noite)

A cidade o aterroriza. Ele se hospedou


num bom hotel. Trigésimo sexto andar. As
pessoas abaixo são formigas.
Fedor e escuridão de cidade.
Todas essas pessoas são escravas do im-
postor.
Ele veio aqui sem um plano específico,
mas enquanto está na cama do hotel comen-
do rosquinhas e bebendo leite, as últimas
notícias chegam e a primeira reportagem lhe
dá um lindo plano. Um plano maravilhoso.
Amanhã o impostor vai receber um prê-
mio do prefeito.
Tão fácil de...
Tão fácil.
131
amanhã o mundo saberá, minha longa
batalha estará terminada e serei capaz de
assumir meu lugar de direito. amanhã.

Dia seguinte (De manhã)

Dia quente de primavera. Parte de trás da


prisão para onde o impostor frequentemente
traz os criminosos que prende.
Cheiro de cidade — gasolina, fumaça, su-
jeira e solidão — visão de cidade: os indefe-
sos, os arrogantes, os predadores.
Seu quarto, ele quer voltar para o quar-
to... (a arma suada na mão enquanto ele se
esconde atrás de um carro estacionado)
mas de repente agora o impostor está
aqui...
...conduzindo um prisioneiro pela porta
traseira de metal...
...o impostor, aparentemente tão auto-
confiante...
...com o uniforme completo...
132
...entrando pela porta como...
...os disparos começam...
Dois estampidos secos no suave ar para-
do. Dois estampidos secos.
(seu canalha — meu pai — já enganou
muita gente por tempo demais, agora eu
existo e você não)
estampido de pistola...
(e você não...)

Algum dia (À tarde)

Por volta do meio-dia a notícia está em


todos os veículos de comunicação, boletins e
até nas redes de televisão.
E o ex-futuro assassino (morto a tiros
pela polícia) foi identificado.
Então um vizinho veio ver como a mãe
dele estava depois de ter ouvido tão horríveis
notícias.
e bateu e bateu
e foi e chamou a polícia
e
133
Eles encontraram o corpo sem problemas.
Mulher quarentona, atraente, estrangulada
até a morte, amontoada no canto do quarto.
Um tira, do tipo sensível, balança a cabeça.
Que desperdício.
Ele vê a porta do armário parcialmente
aberta e, sendo um policial, curioso e tudo o
mais, abre-a com um lápis (é preciso ter
muito cuidado numa cena de crime, é tão
fácil destruir provas).
Ele olha dentro.
“Que diabo”, diz.
Seu parceiro, que esteve orientando o ho-
mem do laboratório, o legista e os auxiliares
da ambulância, chega perto dele. “O quê?”
“Olhe aí dentro.”
Então o segundo tira olha lá dentro. E as-
sobia. “Todos esses trajes. São exatamente
iguais aos...”
“Exatamente iguais aos do cara que ele
tentou matar.”
“Mas com todos esse trajes você imagina-
ria que ele respeitasse o não que quisesse
134
matá-lo.”
O primeiro tira balança a cabeça. “É um
mundo estranho. Um mundo muito estra-
nho.”

Mesmo dia (Mais tarde)

“Ei, olha isso aqui”, diz o primeiro tira.


“O quê?”
“Uma espécie de diário.”
“Vamos ver.”
Eles folheiam as páginas. Abrem numa
delas e leem.
“não é mais tolerável, o impostor deve
ser morto porque não podem existir dois de
nós. um é real, outro é falso. e depois de
hoje, o real vai assumir o trono do poder.”
“Afinal o que ele queria dizer com isso?”
O segundo tira dá de ombros. “Agora
você me pegou, parceiro. Me pegou mesmo.”

135
A Morte do Mestre do Sonho
ROBERT SHECKLEY
m

Bruce Wayne jamais esqueceria aquela


cena. Ele ainda a via em sua mente, no som-
brio moinho implantado nos charcos próxi-
mos à paróquia de Nova Caridade. O próprio
Bruce, como Batman, estava preso a uma
pesada porta, braços e pernas imobilizados
por abraçadeiras de aço presas na madeira
com pinos de mais de um centímetro. Os
corpos das vítimas mais recentes do Coringa
estavam empilhados perto de uma parede
como montes de lenha ensanguentados. Os
torsos estavam em uma pilha, os braços e
pernas em outro, as cabeças numa terceira.
O próprio Coringa, com seu sorriso de lábios
finos mais horrível que nunca, um avental
duro de sangue ressecado, uma boina san-
guinolenta amontoada em sua cabeça de ca-
belos verdes, tinha acabado de erguer a últi-
136
ma de suas vítimas, a pequena Mônica Elroy.
A criança ainda estava viva, porém desmaia-
da. O Coringa esbofeteou-a para que recupe-
rasse a consciência, pois a morte era muito
mais agradável quando a vítima estava acor-
dada para apreciá-la. Misericordiosamente, a
criança não respondeu.
“Ora, ela não está colaborando comigo”,
disse. “Acho que vou acabar logo com isso e
cuidar de você, Batman.”
O Coringa carregou a criança até o centro
da grande sala de teto alto. O local era domi-
nado por duas enormes mós de pedra, pre-
sas em eixos que ladeavam um cadafalso
aberto. As grandes rodas giravam lentamen-
te, movidas pelas grandes pás exteriores do
moinho e estavam manchadas de sangue.
Sangue das vítimas que haviam sido trans-
formadas numa pasta de carne e ossos e que
agora estava entranhado no granito poroso.
“Vamos começar pondo um dedo de cada
vez”, disse o Coringa. “Talvez ela acorde a
tempo de dizer adeus.”
137
Batman vinha puxando a braçadeira que
prendia seu braço direito na porta, que cede-
ra um pouco. Não muito, mas talvez o sufici-
ente. Suficiente para lhe dar uma chance,
ainda que tênue.
Em anos passados, Batman aprendera a
controlar músculos e nervos com precisão
em seus estudos avançados no Tibete. Agora
se lembrava desses estudos e apelava para
seu poder de concentração, ignorando o in-
suportável cheiro de sangue e as cenas de
horror ao seu redor. Toda sua energia tinha
de ir para aquele braço, para aquele pulso,
no exato ponto de contato que prendia a
braçadeira. Ele dirigia sua força para fora de
uma forna rítmica, sincronizando-a com sua
pulsação e, quando viu o Coringa, com a cri-
ança inconsciente nos braços, subindo os
três degraus até a plataforma onde as gran-
des mós encostavam suas ásperas superfíci-
es, Batman puxou a braçadeira com cada re-
serva de energia física e mental disponível.
Por um momento, nada aconteceu. Em
138
seguida, a braçadeira soltou-se da porta com
um estalido alto e o pino que a segurava
voou através do quarto como se tivesse sido
disparado de uma atiradeira.
O Coringa, que estava descendo a garota
inconsciente em direção às mós, foi atingido
na nuca. Embora o golpe não o tenha ferido,
ele se assustou violentamente, mais com o
choque do que com a dor e a menina caiu de
seus braços. Desequilibrado, ele cambaleou,
tentando manter-se em pé.
Uma de suas mãos, gesticulando selvage-
mente com a luva branca ensanguentada,
encostou no ponto de contato entre as duas
mós. A mão foi puxada instantaneamente. O
Coringa uivou e tentou se libertar. As mós gi-
ravam inexoravelmente. O criminoso louco
gritava e puxava o braço com movimentos
tão violentos que davam a impressão que o
membro poderia ser arrancado do ombro.
Mas ele não teve esta sorte. As mós continu-
aram a devorá-lo e, à medida que seu ante-
braço desaparecia entre as pedras e puxava
139
o resto do corpo, o Coringa, enlouquecido de
dor, começou a rir, dando gargalhadas inu-
manas de absoluta insanidade e continuou a
fazê-lo enquanto seu corpo era puxado entre
as mós de pedra, parando apenas quando
sua cabeça se partiu como uma melancia
numa prensa hidráulica.
E assim, o Coringa estava morto.
Mas será que estava mesmo?
Se estava, quem era aquela criatura ex-
cêntrica e medonha que Bruce continuava
vislumbrando na periferia de sua visão?
Quem Bruce Wayne estava vendo agora,
enquanto andava pelo centro de Gotham
City, para fazer uma visita a seu velho amigo
dr. Edwin Walthan?
Bruce Wayne estremeceu levemente e re-
sistiu à tentação de olhar para trás. A figura
nunca estava lá quando se virava.
Mas ele continuava a vê-la.
Desta vez, porém, foi diferente.
Ele estava na esquina da Quinta com a
Concord, no coração de Gotham City. Do ou-
140
tro lado da rua, erguia-se a imensa torre com
a famosa fachada policromática do Hotel
Nova Era, o mais novo e suntuoso hotel da
cidade, construído, dizia-se, por um consór-
cio de investidores estrangeiros. Era um lu-
gar onde os ricos do mundo todo vinham
para ver e ser vistos, as mulheres desfilando
suas peles e sedas, os homens fumando seus
excelentes charutos Havana.
De pé em frente ao hotel, esperando o si-
nal abrir, ele viu claramente a figura que ha-
via avistado pouco antes. O homem era alto
e magro, usava um fraque verde-garrafa e
calças que lembravam um dândi do século
passado. Mas não foi isso que chamou a
atenção de Wayne. Foi o cabelo do homem,
verde-musgo, em cima de um rosto fino, de
nariz comprido e queixo longo. O rosto olhou
para Wayne por uma fração de segundo, a
boca vermelha, rasgada e de lábios finos, se
abriu num esgar. Não poderia haver dúvidas:
era o Coringa.
Mas isso era impossível. O Coringa estava
141
morto. O próprio Bruce o havia visto morrer,
tivera inclusive uma participação em sua
morte.
O Coringa, ou seu sósia, virou-se abrupta-
mente, atravessou com rapidez a rua e en-
trou no Hotel Nova Era.
Bruce Wayne chegou logo a uma decisão
e atravessou rapidamente a rua. Carros bre-
caram, desviaram-se de seu caminho. Cru-
zando a ampla avenida como um velocista,
Wayne chegou até a calçada, abriu caminho
bruscamente no meio de um grupo de mu-
lheres de sociedade que tagarelava perto da
porta e entrou no saguão do hotel.
Era como entrar em um outro mundo.
Fora, existia o trânsito sujo de Gotham City.
Dentro, seus pés afundaram num espesso ta-
pete oriental feito especialmente para o Nova
Era. Acima, o domo central do teto era bem
alto. Candelabros, suspensos em fios de aço
inoxidável, vidros lapidados e explodiam em
luz. As altas janelas do saguão eram feitas
de vidro colorido, dando ao lugar aparência
142
de uma igreja para a adoração do sucesso.
Examinando acena, Bruce avistou muitos
homens usando turbantes e trajes árabes
longos esvoaçantes. Algumas mulheres usa-
vam pesados véus, denotando alguma forma
de atitude religiosa. Espalhados aqui e ali ha-
via mensageiros, em vistosos e elegantes
uniformes.
Mas em parte alguma havia alguém que
se parecesse minimamente com a figura sor-
ridente que Bruce avistara poucos segundos
atrás.
Ele hesitou por um momento, depois ca-
minhou até a recepção. O gerente, um ho-
mem grande e de aparência digna, vestido
em traje de noite, de suíças, com a cabeça
calva e reluzente, perguntou em que poderia
ser útil.
Bruce descreveu o homem que procurava.
O gerente apertou os lábios como se esti-
vesse pensando.
“Ninguém correspondendo a essa descri-
ção entrou aqui, senhor. Nem agora, nem
143
nunca.”
“Ele pode ter entrado sem ser notado”,
sugeriu Bruce.
“Oh, creio que não, senhor”, respondeu o
gerente, que sorriu de forma jocosa. “Uma
pessoa como a que descreveu dificilmente
passaria despercebida num lugar como o
Nova Era. Cabelos verdes e fraque verde-
garrafa, o senhor disse? Não, senhor, não no
Nova Era.”
Bruce sentiu-se um idiota. O homem
olhava-o como se achasse que estava bêba-
do ou louco. Bruce sabia muito bem que não
estava bêbado. Quanto a louco... Bem, isso
era uma das coisas que ele ia perguntar ao
dr. Walthan.

6h 15 da noite. O dr. Walthan consultou o


relógio. Batman estava atrasado para sua
consulta. Walthan era o médico do Cavaleiro
das Trevas há muitos anos. Batman nunca

144
havia se atrasado tanto.
O médico estava pronto para fechar o
consultório, ia começar a baixar as cortinas
quando ouviu um riso grave atrás de si e vi-
rou-se.
“Desculpe o atraso”, disse Batman. “En-
contrei alguém que pensei conhecer. Espero
que não tenha desistido de mim.”
“Sem problema, Batman”, disse o dr. Wal-
than, fitando o homem alto, mascarado e en-
capuzado. Como de hábito, Batman surgira
aparentemente do nada. Walthan já se acos-
tumara com aquilo — era como esperar pelo
inesperado. “Alguém que eu conheça?”
“Não mais.”
“Como?”
“Nada, doutor. Vamos fazer o exame?”
Era o dia do exame médico anual de Bruce
Wayne. Em seu papel de Batman, era neces-
sário estar na mais absoluta forma física. Ele
tinha seus programas de exercícios e passa-
va várias horas por semana aperfeiçoando
suas habilidades em artes marciais. Embora
145
se mantivesse nas mais perfeitas condições,
sabia que sempre poderia haver surpresas.
Por isso esse exame anual com um velho
amigo da família, Edwin Walthan, um dos
melhores médicos de Gotham City. Walthan
era um homem rico e independente, que
mantinha seu consultório e apartamento em
Starcross Boulevard, um dos melhores bair-
ros da cidade. Era pequeno e corpulento, de
cabelos cinzentos e encaracolados, com um
rosto que refletia sua boa vida e pequenos
olhos alertas que, atrás dos óculos redondos,
brilhavam de inteligência. Mas apesar de sua
esperteza, nunca lhe havia ocorrido que seu
velho amigo Batman e Bruce Wayne, o ami-
go de seu pai, eram a mesma pessoa.
“Você está em grande forma, Batman,
como sempre”, disse Walthan ao concluir seu
exame e enquanto Batman ajustava a capa.
“Seu coração parece uma locomotiva a va-
por. E tem de ser assim mesmo, conside-
rando-se as coisas que faz.”
Batman anuiu, com a expressão levemen-
146
te carregada. Walthan, que fora o médico de
seus pais, era como a maioria das pessoas
de Gotham City e o conhecia apenas como
Batman, o terror de criminosos e malfeitores
da cidade. O médico estava sempre queren-
do ouvir sobre seus casos e não havia ne-
nhum mal nisso, mas também não havia ne-
cessidade. Bruce Wayne lidava com a porção
Batman de sua vida como um estado secre-
to.
Como ele esperava, o médico perguntou:
“Está trabalhando em algum caso agora, Bat-
man?”
“Não, ainda estou tranquilo.”
“Não tenho visto você com Vera ultima-
mente.” Ele estava se referindo a Vera St.
Clair, uma linda mulher da sociedade com
quem Batman havia sido visto algumas ve-
zes.
“Ela está no Rio. Para o carnaval.”
“Sorte dela! Você também deveria ter
ido.”
“Eu considerei a ideia.” Batman não sabia
147
como dizer a Walthan, mas seus sentidos ha-
viam sido invadidos por uma espécie de le-
targia nos últimos meses. Tudo tinha come-
çado na época em que começara a ter aluci-
nações.
Ele não queria falar sobre isso, mas este
era um dos motivos pelos quais viera ao
médico.
Percebendo sua hesitação, Walthan per-
guntou: “Qual é o problema, Batman?”
Batman resolveu aproveitara deixa. “Dou-
tor, estou começando a ver coisas.”
O médico manteve sua postura profissio-
nal, mas uma sombra de preocupação pas-
sou pelos seus olhos. “Fale-me a respeito.”
O homem alto e mascarado descreveu
suas recentes alucinações. Haviam se repeti-
do três vezes em três meses. Geralmente
surgiam como lampejos, nada mais do que
rápidas visões de algum velho inimigo do
passado, agora já vencido e enterrado.
Mais recentemente havia sido o Coringa.
Morto, porém Bruce o vira entrando no sa-
148
guão do Hotel Nova Era.
Dr. Walthan ouviu suas palavras com
atenção. “Batman, eu fiz um exame comple-
to e não há nenhum problema físico em
você.”
“Mas, e mentalmente?”
“Eu poderia quase apostar minha vida que
você é o homem mais são que conheço.”
“Quase?”
“É só uma maneira de falar. Tem tido al-
gumas preocupações inusitadas ultimamen-
te?”
Batman balançou a cabeça. Ele não podia
contar a Walthan que estava pensando bas-
tante sobre o passado, recentemente. Sobre
amigos que conhecera, agora mortos. Robin,
Batwoman, Batgirl... E inimigos mortos, tam-
bém: o Coringa, Charada, Pinguim. Todos
eles, amigos e inimigos, eram sua família, os
que partilharam seus feitos quando o mundo
era mais jovem.
Agora ele estava mais velho. Ainda perfei-
tamente em forma, um espécime raro. Po-
149
rém mais velho.
“Não, nenhuma preocupação específica.”
Walthan tirou os óculos e limpou-os cui-
dadosamente. Antes de colocá-los de volta,
fitou Batman com seus olhos suaves, míopes
e azuis. “Fale sobre a mais recente.”
“Quando estava vindo para cá, pensei ter
visto o Coringa”
“Talvez alguém na multidão, uma seme-
lhança superficial...”
“Não, era ele. Eu o segui até o Hotel Nova
Era. Mas ele não estava lá. O gerente disse
que ninguém correspondendo à sua descri-
ção havia entrado.”
“Não deveria se preocupar com algumas
alucinações”, disse o dr. Walthan. “Afinal
você passou por algumas das mais difíceis e
terríveis experiências que um homem pode
experimentar. Essas pequenas consequências
psicomotoras não deveriam surpreender. Mas
diga... existe alguma possibilidade do Corin-
ga estar vivo?”
“Absolutamente nenhuma.”
150
“Não conheço os detalhes de seu faleci-
mento, mas gostaria de lembrá-lo que o Co-
ringa escapou de várias situações em que a
morte parecia inevitável. Por que não desta
vez?”
“Tenho certeza de que ele está morto”,
respondeu Batman.
“Bem, então não sei o que dizer”, comen-
tou o médico. “O melhor a fazer seria ir ao
Rio encontrar-se com Vera. Você precisa se
afastar, esquecer essas preocupações.”
“Obrigado pelo conselho”, disse Batman.
“Vou pensar a respeito.”

“Chá, senhor?”, ofereceu Alfred


Pennyworth, o mordomo de Bruce Wayne. “É
o Darjeeling especial de que gosta muito.”
“Agora não”, respondeu Bruce. Ele estive-
ra examinando relatórios de crimes numa
mesa antiga, que funcionava como escrivani-
nha. A velha mansão, situada numa colina

151
com vista para Gotham City, era decorada
com antiguidades caríssimas.
“Deseja mais alguma coisa antes que eu
me retire, senhor?”, perguntou Alfred.
“Na verdade, sim”, respondeu Bruce. Ele
havia refletido a noite toda sobre os aconte-
cimentos do dia e sobre sua visita ao dr.
Walthan. Agora tinha resolvido fazer alguma
coisa. “Quero que me prepare uma mala
imediatamente.”
“Certamente, senhor”, disse Alfred. Sua
expressão severa se iluminou. “Vou preparar
suas bermudas, senhor, e novos ternos le-
ves. Talvez a máscara e o snorkel? Dizem
que há bons lugares para mergulho por lá.”
“Perdão, Alfred?”
“No Rio de Janeiro, senhor. Suponho que
seja sua destinação. Para se encontrar com a
senhorita Vera no carnaval. E, se me permi-
te, é exatamente o que precisa, senhor. Uma
mudança e um pouco de diversão em sua
vida. Tem estado muito soturno ultimamen-
te, senhor, se me permite a observação.”
152
Bruce sorriu. “Sinto-me comovido com
sua preocupação, Alfred, mas creio que está
enganado em sua conclusão. Não vou preci-
sar de fantasias de carnaval no lugar para
onde vou.”
“Peço desculpas por minha suposição in-
correta, senhor. Posso perguntar para onde
está indo?”
“Para o Hotel Nova Era, aqui em Gotham
City.”
“Realmente, senhor?” A postura de Alfred
era imperturbável. Bruce poderia ter dito que
ia para o Polo
Norte e o fiel serviçal teria meramente
perguntado se deveria colocar patins de gelo
na bagagem.
“Vou precisar de uns seis trajes de noite,
algumas roupas simples para usar durante o
dia e as camisas e meias habituais.”
“Um guarda-roupa como o descrito já
está emalado e pronto para partir, patrão
Bruce. Já preparei as roupas de Charlie Mor-
rison para o senhor.”
153
“Alfred, você é bom em previsões.”
“Sim senhor. Mas uma coisa eu não sei,
senhor. Vai querer o traje de Batman?”
Bruce ergueu os olhos rapidamente. Por
alguma razão, ele não havia considerado le-
var o traje de Batman. Não chegara nem a
pensar que havia, pelo menos, duas interpre-
tações para suas alucinações. Uma, a de que
estava ficando louco. Outra, a de que alguém
estava planejando algum crime e que estava
tentando assustá-lo.
“Sim, prepare o traje de Batman”, respon-
deu. “E acrescente a bolsa de couro marcada
como OPS 12. E um cinto de utilidades pa-
drão.”
“Imediatamente, senhor”, disse Alfred. Ele
não quis mencionar que já se havia antecipa-
do e preparado todas aquelas coisas. Não se
permanece sendo o valete de Batman por
muito tempo sem se antecipar em suas ne-
cessidades.

154
A despeito de todas as vantagens da per-
sona de Batman, havia também algumas
desvantagens. Para bandidos e criminosos
assustados, o valor do choque era enorme.
Mas para uso cotidiano, era visível demais.
Quando tinha necessidade de ir a algum lu-
gar, era melhor parecer um cidadão comum.
Mas era problemático ir como Bruce Wayne e
de repente aparecer depois como Batman.
Alguém poderia achar que o fato de Bruce
estar sempre por perto quando Batman apa-
recia era mais do que uma simples coinci-
dência.
Por isso, adotara várias outras personas,
para serem usadas quando a ocasião exigis-
se. A mais recente, que ele chamava de
Charlie Morrison, havia sido muito útil quan-
do Bruce fora à Europa, para detectar e des-
mantelar uma rede de falsificadores que agia
em várias cidades ao norte do continente.
Ele lembrava-se de como o próprio Comissá-
rio Gordon o cumprimentara no final do epi-
155
sódio, ao se encontrarem no gabinete do
prefeito em Hamburgo. Gordon pode ter sus-
peitado que Charlie Morrison era o Batman,
mas até aí tudo bem. Era bom que pensasse
assim.
Ajudava a afastar as suspeitas de Bruce
Wayne, o progenitor de ambas as personas.
Trabalhando com Lafayette Boyent, um
mestre do teatro clássico, Bruce dominara a
técnica de maquiagem, voz e postura. Suas
interpretações poderiam ter lhe garantido
uma carreira nos palcos, se a direção de sua
vida não houvesse sido decidida muito tempo
atrás.
Quando Charlie Morrison se registrou no
Hotel Nova Era, o gerente o recebeu sem as-
sociá-lo absolutamente à recente visita de
Bruce Wayne, naquele mesmo dia.
O gerente foi delicado e atencioso. Afinal,
Charlie Morrison era um homem que dispu-
nha de cartões especiais do American Ex-
press capazes de garantir luxos desconheci-
dos para qualquer cidadão comum. Mesmo
156
entre multidões de sheiks do petróleo e dire-
tores de grandes parques industriais, ele era
um hóspede bem-vindo: alto, boa aparência,
bem-educado e conhecido por suas genero-
sas gorjetas.
O gerente cofiou suas suíças esbranquiça-
das, um gesto habitual, pegou de uma ban-
deja um plástico brilhante um pouco maior
que um cartão de crédito e entregou-o a
Bruce.
“Sua suíte é na cobertura A2 sr. Morrison.
É um de nossos melhores aposentos e tenho
certeza que vai achar totalmente satisfatório.
Este cartão lhe facultará a entrada em todas
as dependências do Nova Era: o ginásio, os
bares e restaurantes, o solário e tudo o mais.
Há uma lista completa de nossos serviços em
sua suíte. Meu nome é Blithely e servi-lo bem
é a minha ambição. Qualquer queixa, por fa-
vor, não hesite em me chamar, dia ou noite.”
Bruce agradeceu a Blithely, pegou sua
chave e foi para os elevadores. Havia um
elevador especial para as coberturas e sua
157
bagagem já havia subido. Ele apertou o bo-
tão e entrou assim que a pesada porta, de-
corada em bronze, se abriu. A porta já esta-
va para se fechar quando uma mulher es-
gueirou-se junto com ele.
Ela era alta, esbelta, atraente e usava um
vestido cuja simplicidade acentuava ainda
mais o preço da etiqueta. Seus cabelos escu-
ros estavam presos atrás por uma fita sim-
ples e ela levava uma pequena bolsa com ri-
cos brocados que deveria ter custado bem
caro, mesmo em Hincheng, na China, o lugar
de que Bruce se lembrava como sendo a ori-
gem daqueles objetos.
“Sim, é de Hincheng”, ela disse, seguindo
seu olhar. “Gosta?”
Bruce deu de ombros. “É muito bonita.”
Ela o olhou com ousadia. Ele não gostou
da intensidade daquela inspeção. Mesmo as-
sim, havia algo de excitante naquela mulher,
algo proeminente e, no entanto, sutil e desa-
vergonhadamente feminino.
“Também está numa das coberturas?”,
158
ela perguntou.
“Estou. E você?”
“Claro. Eu sempre fico aqui quando estou
em Gotham City.” Ele detectou um leve sota-
que estrangeiro. Mas de onde? Não da Ale-
manha. Algum lugar mais ao leste... Romê-
nia, talvez. “Minha querida cobertura A1 tor-
nou-se uma espécie de lar para mim. Você
fica sempre aqui?”
“Esta é a primeira vez”, respondeu Bruce.
“Vai gostar muito”, comentou, quando o
elevador parou e a porta se abriu.
Os dois andaram juntos pelo corredor. As
coberturas A1 e A2 eram uma em frente a
outra, os únicos apartamentos do andar. Am-
bos abriram as portas com seus cartões.
“A propósito”, disse Bruce, “meu nome é
Charlie Morrison.”
“Talvez nos encontremos de novo”, ela
respondeu. “Eu sou Illona”, e fechou suave-
mente sua porta.
As roupas de Bruce já haviam sido guar-
dadas pelos empregados do hotel, todas me-
159
nos as da grande maleta de couro, para a
qual ele tinha a única chave. Era o equipa-
mento de Batman, que logo poderia precisar,
caso seus instintos se provassem corretos.
A suíte era realmente bonita, com terraço
e uma linda vista de Gotham. A cidade pare-
cia magnífica àquela hora, um gigante ador-
mecido composto pelos corpos e mentes de
seus milhões de habitantes.
Será que um desses habitantes era o Co-
ringa? Impossível. Mesmo assim, havia uma
dúvida.
Ou não havia?
Bruce suspirou e saiu do terraço. A sala
da suíte era mobiliada com antiguidades da
Europa Oriental e do Oriente Médio. Havia
um mosaico turco pendurado numa parede,
um Picasso na outra. Um rápido exame reve-
lou a Bruce que o Picasso era original, talvez
avaliado em vários milhões de dólares. A te-
levisão era tecnologia de ponta. O aparelho
de videocassete era equipado com uma vide-
oteca completa, além de um catálogo de ou-
160
tros itens que poderiam ser requisitados. O
sistema de som era igualmente impressio-
nante.
Todas essas coisas eram pouco importan-
tes para Bruce. Era o tipo de equipamento
que havia em sua casa. E ele sabia, por ex-
periência própria, da dificuldade de conseguir
comprar alguma coisa realmente especial
quando se é muito rico.
Sentou-se numa cadeira Ames e folheou
uma revista. Sentia-se preocupado, moroso.
Afinal, o que estava fazendo ali? O que pode-
ria acontecer num lugar como esse? O Nova
Era era um dos grandes bastiões de luxo
com segurança. Era uma perda de tempo.
Ligou para o refeitório e pediu um jantar
leve: ovos fritos em manteiga da Normandia,
torradas, uma fatia de presunto parisiense,
coquetel de frutas e demitasse. Tomou ba-
nho, fez a barba e vestiu um terno leve. Ti-
nha acabado de pentear o cabelo, quando
ouviu uma discreta batida na porta indicando
que a refeição havia chegado.
161
O garçom empurrou o carrinho, com sua
bandeja de prata coberta, até a pequena
mesa perto da sacada. Bruce sentou-se e
abriu o jornal trazido pelo empregado. O gar-
çom dispôs habilmente os talheres de prata,
retirou a cobertura da bandeja e colocou o
prato em frente a Bruce. Inclinou-se e falou:
“Se desejar alguma coisa, me chame, se-
nhor”, e andou em direção à porta.
Bruce dobrou o jornal e olhou para a
mesa. Sua expressão imobilizou-se. Ali, sobre
o delicado prato de porcelana, havia uma
massa de serpentes vivas, algumas verdes e
outras vermelhas. Havia também inúmeros
sapinhos, e todos olhavam para ele com seus
malignos olhos saltados.
“Garçom”, chamou Bruce quando o em-
pregado estava saindo.
“Senhor?”
“O que significa isto?”
“Como assim, senhor?”
“Venha cá e me dê uma explicação para
isto.”
162
O homem voltou. Bruce percebeu agora
que o garçom era quase calvo e havia mar-
cas de tatuagem em seu crânio reluzente.
“Qual seria o problema, senhor?”
“Olhe isto aqui e me explique”, falou Bru-
ce, apontando o prato.
“Sim, senhor. Estou olhando, mas não
vejo nada demais.”
Bruce olhou para o prato. As serpentes e
os sapos não estavam mais lá. O que havia
agora era o que ele pedira: ovos com pre-
sunto, só que com outro nome.
“As torradas”, disse Bruce, recuperando-
se rapidamente. “Estão engorduradas.”
“Não me parecem, sr. Morrison”, disse o
garçom, inclinando-se para ver os pedaços
de pão dourados.
“Pode-se ver a gordura brilhando. E os
ovos estão praticamente cozidos, não fritos.”
Bruce fitou o garçom, desafiando-o a re-
trucar, mas o serviçal não estava lá para
isso.
“Sim, senhor. É claro, senhor”, falou, seu
163
tom de voz indicando estar considerando a
atitude de Bruce um tanto peculiar, mas, ao
mesmo tempo, se mostrando preparado para
isso. “Vou mandar fazer outro prato imedia-
tamente.”
Empurrou o carro para fora, fechando si-
lenciosamente a porta atrás de si.
Não demorou muito para substituírem o
jantar e desta vez não houve problemas.
Bruce comeu rapidamente e deixou o carri-
nho no corredor. Quando ia voltando para o
quarto, viu uma figura desaparecer num can-
to, no fim do longo corredor. Uma figura co-
nhecida. Alta, esquálida, com cabelos verdes
e um sorriso de louco...
Bruce Wayne partiu em direção à figura
de seu velho inimigo, que parecia estranha-
mente saudável para quem estava bem mor-
to.

O corredor estava vazio. Não havia suítes

164
desse lado do hotel, nem portas. O Coringa,
ou fosse quem fosse, tinha desaparecido.
Bruce examinou minunciosamente as pa-
redes. Debaixo de uma tomada de luz, en-
controu uma fenda estreita e metálica e inse-
riu o cartão que recebera do hotel. Um painel
do corredor se abriu. Retirando seu cartão,
Bruce entrou correndo, ouvindo ao longe o
som de passos à sua frente. Vinte metros
adiante o caminho se bifurcou. Uma tênue
nuvem de poeira à esquerda indicou-lhe qual
a direção a seguir e ele começou a descer. O
corredor era a princípio iluminado por painéis
de luz fluorescente instalados no teto. À me-
dida que prosseguia, tornava- se mais som-
brio. Alguns dos painéis não estavam funcio-
nando e a escuridão era tanta, que era difícil
prosseguir sem perder o equilíbrio. Ele en-
controu uma janela fechada à sua frente,
quase imperceptível na falta de luz. Era uma
questão de atravessar a janela ou voltar.
Bruce ganhou velocidade e arremeteu com o
ombro, atravessando-a e chegando a um sa-
165
lão iluminado.
O ambiente era revestido de azulejos
brancos, iluminado por luzes fluorescentes
no teto. Era também quente e vaporoso.
Quando conseguiu se erguer, Bruce perce-
beu muitos homens no local, alguns usando
calções, outros toalhas e uns poucos sem
nada no corpo. Havia máquinas espalhadas
pelo local e Bruce as conhecia. Eram máqui-
nas de exercícios iguais às que tinha em seu
ginásio.
Ele estava na sauna do hotel.
Se ainda houvesse alguma dúvida, tudo
teria sido esclarecido assim que um homem
baixo e musculoso, usando calça de abrigo e
uma camiseta branco onde se lia HOTEL
NOVA ERA - INSTRUTOR, andou até ele e fa-
lou: “Escuta aqui cara, qual é a sua de entrar
aqui pelo sistema de ventilação?” Logo de-
pois, percebeu o cartão na mão de Bruce.
“Oh, desculpe, senhor, não sabia que era
hóspede. Nossos clientes geralmente entram
pela porta.”
166
O instrutor esboçou um sorriso. Bruce
apertou seu bíceps com a mão. Parecia um
gesto amigável, um aperto suave. Mas o ins-
trutor empalideceu, tentou se desvencilhar,
percebeu que era inútil e virou-se com uma
expressão assustada para Bruce.
“Você viu alguém entrar aqui agora há
pouco?”, perguntou Bruce. “Um homem alto,
muito magro, de cabelos verdes?”
“Cabelos verdes?!”, disse o instrutor, que
parecia prestes a rir. Um leve aumento na
pressão no seu braço convenceu-o que não,
o assunto não era nada engraçado.
“Não, senhor. Realmente. Eu diria se ti-
vesse visto.” Bruce soltou o homem. Uma
rápida olhada ao redor revelou que ninguém
com a descrição do Coringa poderia ter en-
trado ali.
“Por favor, me arrume uma toalha”, pediu
Bruce. “Acho que vou dar um mergulho an-
tes de voltar para o quarto.”
“Sim, senhor”, respondeu o instrutor. “E
por onde vai sair, senhor? Pela ventilação ou-
167
tra vez?”
“Não”, replicou Bruce, “a ventilação é
mais fácil só para entrar.”

Bruce sentiu-se melhor depois de umas


braçadas em seu explosivo nado livre austra-
liano e voltou para a suíte.
O sr. Blithely veio visitá-lo pouco depois.
Queria saber se havia algum problema. Pela
sua expressão, Bruce percebeu que estava
realmente preocupado e simplesmente enca-
rou-o. Blithely explicou que, embora não es-
tivesse explícito, a gerência recomendava
que os hóspedes se mantivessem afastados
do sistema de ventilação. Bruce conseguiu
manter a calma. Não era o momento para se
mostrar indignado.
Quando o gerente saiu, foi até o terraço,
onde permaneceu por um bom tempo. Ouviu
música vinda da suíte ao lado, assim como
sons de risadas e tinir de copos. Parecia que

168
alguém estava se divertindo.
Bruce começava a desconfiar que havia
algo errado no Hotel Nova Era. Até aqui, pa-
recia algo preparado especialmente para ele.
Era bem tarde da noite quando foi des-
pertado por um ruído. Sentou-se com rapi-
dez, passando instantaneamente do sono
profundo ao estado de alerta. O que era
aquilo? Um som abafado vindo da suíte ao
lado. Talvez algo atirado contra a parede,
mas com força suficiente para que o som pe-
netrasse no isolamento acústico. Bruce ves-
tiu-se rapidamente, no escuro. Estava total-
mente em silêncio, escutando, seus sentidos
em alerta total. Logo depois, ouviu um grito.
Vinha da suíte A1.
Ele correu até o terraço. Era um salto de
mais ou menos uns cinco metros até a suíte
ao lado. Em condições ideais, Bruce conse-
guiria saltar bem mais do que isso. Porém,
nesse caso teria de se agachar na beirada da
sacada e pular sem a ajuda dos braços. E ti-
nha de tomar cuidado para que seus pés não
169
escorregassem na superfície.
Bruce saltou, seus dedos se fecharam no
corrimão da cobertura ao lado e ele usou o
impulso do salto para alcançara sacada.
As portas do terraço estavam abertas, po-
rém suas cortinas obscureciam a visão do in-
terior. Ele entrou no aposento às escuras,
mas sentiu uma coisa macia sob seus pés e
recuou rapidamente. Depois, encontrou o in-
terruptor e acendeu as luzes.
Ela fora bonita em vida, mas a morte ha-
via mudado as coisas. Tinha um braço joga-
do para cima, o outro sob o corpo. Seus
olhos estavam abertos e pareciam sorrir. E
isso era surpreendente, uma vez que sua
garganta havia sido cortada de orelha a ore-
lha.

Não havia nada a fazer ali. A mulher, úni-


ca habitante da suíte, estava morta. O fio do
telefone havia sido cortado.

170
Sua bolsa de brocados aparentemente de-
saparecera, mas ele não dispunha de tempo
para uma busca completa. E nem sabia o
que procurar.
Bruce voltou para a sua suíte. Lá fez duas
ligações, uma para o comissário James Gor-
don, outra para o gerente Blithely. E ficou
esperando as consequências.
Pouco depois, recebeu um telefonema do
gerente. Será que o sr. Morrison poderia vir
até o seu escritório?
Bruce já estava vestido e desceu para o
saguão. Embora fosse madrugada, ainda ha-
via muita gente por lá. As diversões iam até
tarde em Gotham City.
Blithely cumprimentou-o tão delicadamen-
te quanto antes, mas seu rosto rosado tinha
uma expressão curiosa quando olhou para
Bruce. Poderia ser piedade?
O comissário de polícia James Gordon es-
tava também no escritório, o tira durão que
já havia cooperado secretamente com Bat-
man em mais de uma ocasião. Apesar do ce-
171
ticismo de Gordon, os dois frequentemente
se aliavam na luta contra o crime.
“Olá, Morrison”, disse James Gordon. “Faz
um bom tempo.”
“Hamburgo, mais ou menos três anos
atrás”, respondeu Bruce.
“Diga-me o que viu esta noite, Charlie”,
pediu Gordon.
“Mas agora você mesmo já viu.’’
“Não tem importância. Descreva para
mim, por favor.” Bruce descreveu a cena da
suíte.
“OK”, disse Gordon. “Vamos dar uma
olhada.”
Bruce, Gordon e Blithely subiram até o úl-
timo andar. Lá estava o mesmo corredor,
com a suíte de Bruce de um lado, e a outra,
da mulher que subira no elevador com ele.
“Esse é o local?”, perguntou Gordon, indi-
cando a porta pela qual a mulher havia en-
trado.
“Claro que é”, respondeu Bruce. “Qual o
problema?”
172
Blithely abriu a porta com seu cartão mes-
tre, entrou e acendeu a luz. A primeira coisa
que Bruce notou ao entrar foi o cheiro de tin-
ta fresca. Sob a forte luz do teto, ele pode
ver que toda a suíte fora recentemente pin-
tada. Antes de ser pintada, toda a mobília
havia sido removida. Havia uma pilha de tra-
pos empilhada num canto. Fora isso, o apo-
sento estava vazio.
Gordon e Blithely esperaram enquanto
Bruce inspecionava o apartamento, verifican-
do todos os quartos. Em nenhum deles havia
qualquer sinal de ocupação recente e muito
menos evidência de um assassinato brutal
cometido há menos de uma hora.
Os dois homens esperaram até que Bruce
se aproximasse.
“Senhores, me desculpem”, disse. “Parece
que cometi um engano.”
Gordon lançou-lhe um olhar curioso e su-
gou um cachimbo apagado. Com seu temo
de gabardine marrom e capa bege, parecia
mais um detetive particular dos velhos tem-
173
pos, do que o comissário de polícia de Go-
tham City.
O gerente perguntou: “Está se sentindo
bem, senhor? O incidente que descreveu foi
muito assustador. Não quero ser indiscreto,
mas será que está sob a influência de álcool
ou de alguma droga ilegal?”
“Claro que não”, replicou Bruce, com a
voz cortante.
“Quer prestar queixa contra mim, sr. Bli-
thely?”
“Pelo amor de Deus, não!”, respondeu.
“Estou pensando apenas na reputação do
hotel. Quando um hóspede começa a descre-
ver cenas de um crime que não ocorreu...
Bem, faz com que se tenha um pouco de
medo pela segurança dos outros hóspedes.
Isso, juntamente com o outro incidente...”
“Que incidente?”, perguntou Gordon, in-
terrompendo-o abruptamente.
Blithely descreveu então a desconcertante
entrada de Bruce na sauna.
Gordon anuiu quando Blithely terminou.
174
Tirou seus pesados óculos de aros de chifre
e limpou-os com um lenço amassado. Colo-
cou os óculos novamente, depois abriu um
sorriso.
“Bem, Charlie”, falou, “você ganhou a
aposta.” E tirou uma nota de dez dólares do
bolso e entregou-a a Bruce.
“Obrigado”, respondeu Bruce, seguindo a
dica de Gordon e embolsando o dinheiro.
“Não compreendo”, disse Blithely.
“Eu costumo dizer ao sr. Morrison que ele
é muito formal, tenso demais. Disse que era
muito educado para provocar qualquer co-
moção. Charlie apostou dez dólares comigo,
que poderia fazer o melhor gerente de hotel
da cidade me chamar para se queixar de sua
loucura. Nunca pensei que conseguisse,
Charlie.”
“Bem, você me desafiou”, disse Bruce.
“Então, foi tudo uma piada?”, perguntou
Blithely.
“Claro que foi”, respondeu Gordon. “Ou
será que o sr. Morrison lhe parece louco?”
175
“Absolutamente”, respondeu Blithely. Mas
ainda havia uma sombra de dúvida em sua
voz.
“Obrigado por aceitar tudo de maneira tão
elegante”, observou Bruce. “Haverá uma
bela gratificação para o senhor na sua conta,
pessoalmente, por aceitar isso com tanto
bom humor.”
“Ora, sr. Morrison, não há necessidade...”
Bruce dispensou-o com um gesto nobre.
Quando saiu, até Blithely estava rindo da pia-
da.
Quando ficaram sozinhos, Bruce foi até o
bar, despejou uma dose de bourbon para
Gordon, acompanhada de um copo de água
e serviu-se de água mineral. Os dois senta-
ram-se em um dos sofás e Gordon bebericou
seu bourbon.
“Belo bourbon, Charlie”, falou.
“Aqui eles só têm do melhor”, disse Bru-
ce.
“Estou vendo. Charlie, afinal o que acon-
teceu aqui?”
176
“Aparentemente, nada.”, respondeu Bru-
ce. “Você devia ter me prendido. Eu estou
obviamente pirado.”
Gordon só respondeu depois de acender o
cachimbo. Quando a fumaça invadiu o ambi-
ente, falou:
“Mesmo que estivesse louco, eu jamais
admitiria isso para um cara como aquele.”
Bruce concordou. “Blithely não é um tipo
muito simpático.” Gordon balançou a cabeça.
“Eu daria um jeito de prender você sozi-
nho, se fosse necessário. Charlie, você está
louco?”
“Não adianta me perguntar”, respondeu
Bruce. “Como eu saberia?”
“Acabei conhecendo você bem ao longo
dos anos”, disse Gordon. “Estivemos envolvi-
dos num dos casos mais difíceis deste século.
Charlie, já perdi a crença em religiões organi-
zadas há muito tempo e acho que já perdi a
fé na justiça também. Mas uma coisa em que
ainda acredito é no Batman.”
Gordon ergueu os olhos de sua bebida, e
177
viu que “Charlie Morrison” estava sorrindo.
“Qual é a graça?”
“Você. É o comissário de polícia de Go-
tham City e não sabe reconhecer um lunático
quando vê um. Mas sabe de uma coisa, Jim?
Eu estou igual. Não acredito que estou louco
e esta noite me provou isso.”
“Como assim, Charlie?”
“Vi o Coringa diversas vezes nos últimos
meses. Apenas rápidos vislumbres, depois
ele desaparece. Isso me preocupou. Eu o se-
gui até este hotel, ou, pelo menos, assim
pensei, e achei que valia a pena me hospe-
dar aqui e ver o que estava acontecendo. To-
dos esses incidentes, numa noite só, me con-
venceram que alguém está tentando armar
alguma coisa para mim. Não sei como, nem
porque... ainda não... mas vou descobrir.”
“Sinceramente, fico contente por estar fa-
zendo isso”, disse Gordon. “Temos ouvido
muitos boatos ultimamente, nada definido,
porém muito insistentes. Sobre alguma coisa
criminosa com consequências políticas. Algo
178
envolvendo pessoas importantes. Algo envol-
vendo o Hotel Nova Era.”
“Interessante”, observou Bruce. “Mais al-
guma coisa?”
“Nada específico, apenas boatos. A gente
sempre ouve essas histórias loucas sobre no-
vos criminosos vindos de outros países. Des-
ta vez pode haver alguma verdade.”
“Vou ver o que acontece”, disse Bruce.
“Fico contente. Do meu ponto de vista,
apenas uma coisa me preocupa.”
“E o que é?”
“Sei que você não é louco e você sabe
que não é louco. Mas e se nós dois estiver-
mos enganados?”
Passaram-se dois dias sem nenhum inci-
dente. Charlie Morrison fez todas as coisas
que um solteirão faria num hotel como o
Nova Era. Frequentou todos os bares, assis-
tiu aos espetáculos, viu peças humorísticas e
riu das piadas como qualquer um. Experi-
mentou especialidades gastronômicas em vá-
rios restaurantes exóticos. Bebeu moderada-
179
mente e recusou ofertas de drogas e mulhe-
res por parte dos empregados.
Na tarde do terceiro dia ele a viu nova-
mente, saindo do alão de beleza do Nova
Era. Era ela, sem dúvida. Illona, a mulher
com quem havia subido no elevador e depois
vira assassinada em sua suíte.
Usava um vestido de seda preto e tinha
um lenço turquesa amarrado displicentemen-
te no pescoço.
“Com licença, Illona”, disse Bruce. Mas ela
o ignorou e correu para o saguão, entrando
por uma porta com uma placa onde estava
escrito PARTICULAR. Bruce a seguiu, entran-
do num corredor que parecia levar à cozinha.
A iluminação era fraca e a poeira no chão,
espessa: a aparência suntuosa do Nova Era
não se estendia às suas áreas ocultas. Bruce
decidiu que não comeria mais no restaurante
do hotel. Quando virou a esquina, viu Illona.
“Pare de me seguir!”, disse ela.
“Só algumas perguntas”, falou Bruce.
“Bem, se é só isso...”, ela sorriu, depois
180
abriu a bolsa e pegou um cigarro e um pe-
queno isqueiro dourado.
Acionou-o uma vez e uma nuvem de gás
amarelo se espalhou pelo rosto de Bruce.
Depois, largou o isqueiro e fugiu assim que
Bruce caiu no chão.
Pode-se enganar todos os super-heróis
por algum tempo, mas não se pode enganar
nenhum deles o tempo todo. Principalmente
Batman. Sem a invulnerabilidade do Super-
Homem, Batman tinha de confiar em sua pe-
rícia e capacidade de dedução. Por isso, per-
cebera instantaneamente que o objeto retira-
do da bolsa de Illona não era um isqueiro co-
mum. Até mesmo sua atitude, aparentemen-
te despreocupada, a havia denunciado. Ele
imaginou o que poderia ser e não deixou
transparecer, mas prendeu a respiração
quando foi atingido pelo gás. E, ao cair no
chão, ficou contente por ouvir o ruído do pe-
queno cilindro de gás ao seu lado.
Quando se levantou, pegou o pequeno
frasco de metal. Era esmeradamente confec-
181
cionado, ostentando a precisão de um joa-
lheiro. As curvas de sua superfície mostra-
vam-se profundas e complexas. No todo, era
uma das mais sofisticadas máquinas que já
vira. E ele conhecia o assunto: Bruce Wayne,
o Batman, tinha uma oficina muito bem equi-
pada. E sabia reconhecer um bom trabalho.
Bom trabalho, sim. Mas de quem?
Ele não sabia. Mas achava que sabia onde
descobrir.
Antes, porém, uma mudança de roupa.

Caía a noite, profunda e perigosa, em Go-


tham City.
A escuridão envolvia as docas ao norte da
cidade, onde marinheiros de dezenas de paí-
ses negociavam com prostitutas de meio
continente. Os bares de Gotham City eram
conhecidos de Montreal a Valparaíso, e re-
centes contratos de defesa no condado de
Subiuz, próximo de Gotham, haviam trazido

182
muita gente para trabalhar nas fábricas de
armamentos do local. E à noite, depois do
trabalho, essas pessoas queriam diversão e
ninguém era muito exigente quanto à forma
de consegui-la.
Os divertimentos tendiam a ser mais peri-
gosos nas regiões mais ruidosas de Gotham
City, como Limehouse. Lá, um homem pode-
ria ser facilmente golpeado na cabeça e as-
saltado. Se fosse esperto, trataria seus feri-
mentos e iria embora, mais triste, porém
mais sábio. Se tentasse fazer algo a respeito,
poderia ter uma surpresa mais desagradável,
como acordar com sapatos de chumbo afun-
dando nas águas poluídas do rio Limehouse,
em companhia de enguias e caranguejos.
Limehouse era uma velha favela industri-
al, um lugar sombrio perigoso. Os habitantes
mais honestos vinham há muito tentando re-
cuperar a iluminação nas ruas, mas sem su-
cesso, porque a corrupta administração da
cidade entregara a manutenção a uma em-
presa mexicana.
183
A escuridão acalentava o crime nas vísce-
ras da cidade.
A escuridão acalentava todas as criaturas
da noite.
Principalmente os morcegos.
Era quase meia-noite e Limehouse estava
chegando ao seu auge. Os bêbados e os
bandos de marinheiros que desfilavam nas
ruas não perceberam quando uma sombra
passou rapidamente na frente de uma enor-
me lua cheia, antes de aterrissar num beco
escuro e estreito.
Batman, de máscara e uniforme comple-
to, dobrou sua pequena asa delta e guardou-
a numa sacola compacta. Com uma minúscu-
la porém potente lanterna, consultou um
mapa feito por ele mesmo. Era um tablete do
tamanho de uma folha de papel, com pouco
mais de um centímetro de espessura que,
iluminado por baixo, podia ser desdobrado e
revelar mapas altamente detalhados de qual-
quer região de Gotham City.
Batman verificou suas coordenadas nova-
184
mente. Sim, ele estava no lugar certo. Fazia
quase dois anos que estivera nesse endereço
pela última vez, mas esperava que Tony Mar-
rotti continuasse no negócio.
Movendo-se como uma sombra, Batman
aproximou-se silenciosamente da porta tra-
seira de uma decadente casa térrea.
A lua cheia destacava o brilho branco de
seus olhos atrás da máscara negra, a única
coisa visível quando abriu a fechadura e des-
lizou para dentro.
A casa era dividida em vários aposentos,
exatamente como se lembrava. Ele estava na
parte de trás, na despensa. Ali, cuidadosa-
mente acondicionada em prateleiras recober-
tas com papel impermeável, havia uma gran-
de variedade de tubos de metal, engrena-
gens, latas cheias de porcas e parafusos, ro-
los de fios elétricos, vários tipos de mostra-
dores e outras coisas do gênero. A porta que
levava aos outros cômodos estava fechada,
mas do outro lado brilhava uma luz amarela-
da. Batman encostou o rosto na porta e ou-
185
viu um rádio tocando jazz, bem como o ruído
de pés se arrastando pela sala.
Depois de alguns minutos, estava conven-
cido de que havia apenas um homem lá den-
tro. Abriu a porta e entrou no aposento.
O homem estava trabalhando num peque-
no torno mecânico. Ele ergueu os olhos
abruptamente, a mão mergulhando no bolso
traseiro. Mas antes que conseguisse sacar a
arma, Batman havia atravessado a sala e ti-
rado a arma de sua mão.
“Vamos com calma, Marrotti”, falou.
“Você não quer apagar seu velho amigo Bat-
man, quer?”
“Desculpe, Batman”, disse Marrotti. “Não
sabia que era você. Reagi antes de saber
quem era.”
“Costuma sempre atirar antes de saber
quem é?”
“Quando alguém chega por trás, depois
da meia-noite, sim. Mas seja bem-vindo, Bat-
man. Quer tomar alguma coisa?”
“Não quando estou trabalhando”, respon-
186
deu.
“Mas isso é especial. Meu tio Lou, você se
lembra dele, me mandou essa garrafa do ve-
lho mundo. Tome um trago comigo pelos ve-
lhos tempos.”
“Só um golinho”, concordou Batman.
Marrotti atravessou a sala, abriu o armá-
rio e pegou uma garrafa de gargalo longo
com um rótulo italiano florido.
Era um homem baixo, com tórax largo e
pescoço grosso.
Tinha uma cabeça redonda, coberta de
cabelos ondulados e quebradiços. A boca era
larga e generosa e seus olhos eram espertos
e agitados. Marrotti mancava de uma perna,
lembrança de alguns anos atrás, quando Bat-
man conseguira salvá-lo de uma gangue que
o acertara no joelho.
“É bom ver você, Batman”, disse. “O que
tem feito? Faz tempo que não leio nada so-
bre você nos jornais.”
Batman ignorou a observação. “Como tem
passado, Marrotti?”
187
“Tudo bem, tudo bem.”
“O crime ainda compensa?”
“Ora, vamos. Você sabe que não faço
mais isso.”
“Sei que não é verdade”, replicou Bat-
man. “Mas não estou aqui por causa disso.
Você é peixe pequeno demais para me preo-
cupar. Sem querer ofendê-lo, preciso reser-
var meu tempo para peixes maiores.”
“Eu sei”, disse Marrotti, “e respeito isso.”
“Preciso de uma informação.”
“Claro”, respondeu. “Pode falar.”
Batman retirou de seu cinto de utilidades
o pequeno cilindro com o qual Illona havia
tentado usar o gás e entregou-o ao dono da
casa.
Marrotti examinou o objeto e parecia
prestes a fazer uma pergunta. Depois mudou
de ideia, retirou um par de óculos de leitura
do bolso do colete e inspecionou o cilindro
atentamente.
“Onde arranjou isso?”, perguntou.
“Não importa. Diga-me quem construiu e
188
para quem. Achei que poderia ser trabalho
seu.”
Marrotti balançou a cabeça. “É um apare-
lho de última geração, eu nem tenho equipa-
mento pra isso. Está vendo este filete? É pre-
ciso brocas e prensas especiais para fazer
isso. Eu não teria condições para produzir
um equipamento como esse.”
“Pode identificá-lo para mim?”, perguntou
Batman.
“Talvez. Posso abrir?”
“Vá em frente.”
Marrotti atravessou a sala mancando e
ajustou as luzes de forma a poder enxergar
melhor o que estava fazendo. Colocou o in-
vólucro numa morsa, depois cortou-o com
uma serra de diamante. Examinou o interior
dos dois hemisférios e inspecionou-os nova-
mente com uma lupa. Após estudar os dois
cuidadosamente, descartou um deles e vol-
tou sua atenção para o outro. Soltou um gru-
nhido quando encontrou o que procurava.
“Olhe aqui, Batman. Está vendo este sím-
189
bolo?”
Batman olhou pela lupa e viu um minús-
culo V cortado por uma linha horizontal gra-
vado no metal.
“É a marca de fabricação”, observou Mar-
rotti.
“Você sabe de quem?”
“Já vi isso em algum lugar, não lembro
onde.”
Ele caminhou até uma prateleira e puxou
um grosso volume. “Símbolos de fabrican-
tes”, explicou, folheando o livro rapidamente,
seus dedos rápidos procurando a página cer-
ta. “Achei. É um dos símbolos registrados da
ARDC, Armadillo Rex Development Corporati-
on. Aqui diz que a matriz é em Ogdensville,
Texas. O diretor e maior acionista é Rufus
“Red” Murphy.”
“Sabe alguma coisa a respeito dessa gen-
te?”, perguntou Batman.
“A ARDC projeta e vende armas especiais.
São experts em coisas exóticas e às vezes
entram no mercado. Constroem desde equi-
190
pamentos miniaturizados para espionagem
até sistemas de lançamento de mísseis.”
Marrotti tirou os óculos e guardou-os num
velho estojo. Depois voltou-se para Batman e
perguntou:
“O que havia neste cilindro? Algum tipo
de gás lacrimejante?”
Batman balançou a cabeça. “Claramente
um gás para fazer um homem dormir. Ou
talvez matar. Não inalei para descobrir.”
“Fez muito bem.”
“Sabe algo a respeito disso?”
Marrotti andou até onde estava seu pale-
tó, pendurado num cabide de madeira, e pe-
gou um cigarro. Acendeu-o e disse: “Tenho
ouvido rumores sobre novos desenvolvimen-
tos em gases de ação individual. Alguns com-
ponentes podem fazer um homem dormir
vinte e quatro horas sem consequências.
Mude um pouco a fórmula e o homem mor-
re. Tudo isso sem nenhum odor detectável.
Em outras fórmulas, extratos de LSD são
usados para fazer um gás alucinógeno e de-
191
sorientar o inimigo.”
“Interessante”, observou Batman. “Isso é
de interesse elementos criminosos?”
“Claro que sim. Pode imaginar uma me-
lhor forma de planejar um roubo de banco?
Ponha todo mundo viajando e tendo visões
horrorosas e enquanto isso você foge com o
roubo. Mas ninguém ainda conseguiu essa
substância. Se não já teríamos ouvido a res-
peito.”
Batman sabia que, pelo menos, uma pes-
soa dispunha de um pouco desse gás. Mas
não havia necessidade de contar isso a Mar-
rotti.

Bruce Wayne, disfarçado de Charlie Morri-


son, estava no Aeroporto Municipal de Go-
tham City às nove horas da manhã do dia se-
guinte, com passagem de primeira classe
para Ogdensville, Texas, com apenas uma
pequena escala em Atlanta.

192
Suas duas malas de equipamentos eram
excessivamente pesadas, mas conseguiu co-
locá-las no mesmo vôo. Não havia inspeção
alfandegária em vôos domésticos mas mes-
mo que um fiscal examinasse sua bagagem,
veria apenas amostras industriais. Só quando
fossem montadas, as peças formariam o
equipamento essencial utilizado por Batman
em muitos de seus casos.
Atlanta estava quente e luminosa. Bruce
teve tempo para um café e uma olhada no
jornal no saguão da primeira classe. Depois
teve de embarcar novamente. Milagrosamen-
te o vôo partiu quase no horário.
A viagem não teve contratempos e no
meio da tarde o grande Boeing 747 aterris-
sou no Aeroporto de Staked Plains, que ser-
via Ogdensville e Amarillo. Um fax enviado
previamente havia alertado Finley Lopez, um
consultor de investimentos em assuntos de
defesa e energia com escritório em Houston.
Era um dos mais destacados consultores do
sudoeste e Bruce trabalhara muito com ele
193
na persona de Morrison. Lopez havia embar-
cado num vôo local para Ogdensville e esta-
va esperando no aeroporto.
“Prazer em vê-lo, sr. Morrison!”, Finley
Lopez era um homem grande, suave e deli-
cado, com a pele de uma tonalidade verde-
oliva. Tinha um bigode escuro fino e olhos
castanhos claros com olheiras. Uma pequena
cicatriz acima de seu olho esquerdo era a úl-
tima lembrança de uma infância difícil nos
bairros de Brownsville.
“Você parece muito bem, Finley. Não está
deixando as senõritas tomarem todo o seu
tempo, está?”
Lopez sorriu. Sua reputação de conquista-
dor era conhecida desde Bayou City, Louisia-
na, até o oeste de Albuquerque.
“Não. sr. Morrison. Primeiro os negócios.
Mas poderia levá-lo a lugares incríveis, se
quisesse.”
“Uma proposta tentadora”, disse Bruce,
“mas infelizmente estou aqui a trabalho des-
ta vez.”
194
“Então vamos trabalhar, depois vamos co-
nhecer a cidade. Ou talvez prefira um au-
têntico churrasco texano no meu rancho. Es-
meralda, minha esposa, faz um bife muito
especial.”
“Lembro de Esmeralda como uma ótima
cozinheira”, disse Bruce. “Por favor, mande
lembranças, mas vou ficar aqui só hoje. Volto
para Gotham City à noite.”
“Ora, que pena!”, disse Lopez, jocosa-
mente aborrecido. “Não consigo fazer com
que se divirta. Em que posso ajudá-lo, sr.
Morrison?”
“Estou interessado na companhia ARDC.”
Lopez anuiu. “Altíssimo faturamento, com
uma reputação de primeira classe. Red
Murphy é presidente da empresa, sr. Morri-
son. Ia gostar dele. Meio parecido com Spen-
cer Tracy, só que não tão bonito.”
“Gostaria de conhecê-lo. Hoje.”
“Vamos procurar um telefone”, replicou
Lopez.
Lopez encontrou um telefone no aeropor-
195
to e fez uma ligação, mas saiu da cabina ba-
lançando a cabeça.
“Não sei o que está acontecendo com
Murphy”, falou. “Deve estar ficando velho.”
“Qual é o problema?”, perguntou Bruce.
“Falei com sua secretária e ela disse que
Murphy não está recebendo ninguém no mo-
mento.”
“Por quanto tempo?”
“Ela não soube dizer. Só falou que estava
muito ocupado com assuntos importantes.”
Lopez coçou o queixo, pensativo. “Vou fazer
outra ligação.”
Dez minutos depois, ele tinha outras notí-
cias.
“Telefonei para Ben Braxton. Acho que
não o conhece, sr. Morrison, mas é o editor-
chefe do Ogdensville Bugle, o principal jornal
daqui. Ele me deve alguns favores e falou
sobre Murphy. Agora é tudo de conhecimen-
to público, mas evita que tenhamos de pes-
quisar os arquivos do jornal. Parece que
Murphy tem agido de forma estranha nas úl-
196
timas semanas. Ele tem uma suíte na fábrica,
sabe, e recentemente se mudou para lá com
a esposa. O nome dela é Lavínia e é uma
mulher muito decente, sr. Morrison.”
“Então os dois estão morando na fábrica
da ARDC?”
“Exatamente. E não estão saindo de lá.
Falam com a família por telefone de vez em
quando, mas não têm sido vistos em lugar
nenhum. Nem mesmo Dennis, o filho deles,
que passou por aqui recentemente a cami-
nho da América do Sul. Ele é um especialista
em armas de fogo e passa a maior parte do
tempo viajando. Mas Murphy também não o
recebeu, o que é muito estranho.”
“Estranho mesmo”, concordou Bruce.
“Bem, Finley, vamos almoçar, pois logo de-
pois tenho que pegar o vôo da tarde para
Gotham City.”
“Vai voltar assim, de repente? Vamos, sr.
Morrison, porque não me diz o que está
acontecendo?”
“Não está acontecendo nada”, respondeu
197
Bruce. “Tive informações sobre a ARDC e es-
tava pensando em investir pesado na empre-
sa. Achei melhor falar com Murphy, conhecê-
lo bem antes de investir capital. Mas se não
pode ser desta vez, vou esperar. Conhece al-
gum lugar onde comer por aqui?”
“Claro que conheço!”, respondeu Lopez.
“Espero que goste de churrasco, sr. Morri-
son, porque um dos melhores restaurantes
do Estado fica a alguns quilômetros da cida-
de.”
O restaurante Las Angelitas de Tejas, era
uma linda construção restaurada em estilo
colonial. Os dois comeram num amplo terra-
ço, com visão para um jardim cuja manuten-
ção custava bem caro para o restaurante.
Bruce comeu o suficiente para satisfazer seu
anfitrião, pois preferia uma dieta de fibras e
grãos, acompanhados de saladas e legumes.
Mas não queria insultar a cozinha nativa.
Lopez levou-o até o aeroporto e acompa-
nhou-o até o vôo das quatro da tarde para
Gotham City, com escala em Kansas City.
198
Quando o avião chegou a Kansas City,
Bruce desembarcou e fretou um avião parti-
cular para levá-lo de volta a Ogdensville,
onde chegou logo depois do crepúsculo. Sua
bagagem ainda estava lá, no compartimento
onde a havia deixado.

As instalações da ARDC ocupavam vários


acres de uma planície deserta perto de Og-
densville e eram rodeadas por uma cerca du-
pla eletrificada. Guardas armados vigiavam o
perímetro vinte e quatro horas por dia.
À noite, o local parecia estranho, com
suas torres de vigia postadas a cada cem
metros, todas iluminadas com potentes holo-
fotes. Parecia um campo de concentração
num deserto americano.
Bruce Wayne, que havia sido Charlie Mor-
rison e agora era Batman, não parecia muito
impressionado.
Em seu trabalho, lutando contra os mais

199
engenhosos e bem financiados criminosos
que o mundo conhecera, ele já tinha pene-
trado em lugares muito bem guardados, lu-
gares cujos proprietários haviam gastado
muito para torná-los à prova de Batman.
A ARDC não seria fácil, mas estava longe
do impossível.
Sua primeira tentativa deveria ser no lado
norte do complexo, onde vários dos holofo-
tes estavam apagados: um sinal de negligên-
cia que por si só significava alguma coisa.
Carregando uma pesada sacola de equipa-
mentos, Batman observou a rotina dos guar-
das por algum tempo. Mesclando-se perfeita-
mente com a noite e com o dom da imobili-
dade total, Batman examinou a situação du-
rante quase duas horas.
Afinal, concluiu que seria difícil passar
pela cerca sem ser notado. As rondas dos
guardas eram bem sincronizadas e não lhe
dariam os dez minutos ou mais necessários
para neutralizar a corrente elétrica e entrar.
Assim, voltou sua atenção para as funda-
200
ções. Retirando um pequeno mas poderoso
detector de massa de sua sacola, registrou o
perfil subterrâneo das cercanias até uma pro-
fundidade de trinta metros.
Como havia previsto, o pessoal da segu-
rança da ARDC investira num sistema de
alarme capaz de detectar movimentos no
solo a uma profundidade de até dezessete
metros. Não seria possível passar sob a cer-
ca, a não ser que dispusesse de equipamen-
tos que o levassem abaixo do nível dos de-
tectores.
Batman concluiu que sua invasão não se-
ria tão fácil quanto imaginara.
Parou na escuridão e pensou por um mo-
mento, uma figura alta e assustadora, vesti-
da de negro dos pés à cabeça. Até mesmo as
orelhas pontudas de seu traje pareciam estar
atentas e concentradas.
Finalmente tomou uma decisão. Era arris-
cada, mas ele já havia passado por situações
piores.

201
m

Billy-Joe Namon e Steve Kingston esta-


vam no quadrante nordeste naquela noite.
Mesmo vestindo uniformes, eles revelavam o
que eram: vaqueiros desempregados traba-
lhando no que podiam entre os rodeios. Vigi-
ar o lugar do velho Murphy não era tão mau.
Murphy era um bom homem e pagava bons
salários. O único problema é que o trabalho
era chato. O sistema de proteção em torno
da fábrica era tão aperfeiçoado que ninguém
tentava entrar. Assim, noite após noite era a
mesma coisa: o ruído suave do vento do de-
serto, o eventual uivo de um coiote e nada
mais. Nunca.
Exceto esta noite.
Esta noite foi diferente. Começou com um
chiado alto que parecia vir do deserto.
“Já tinha ouvido algo assim?”, perguntou
Billy-Joe.
“Pode ser um urso ferido”, respondeu Ste-
ve.

202
“Duvido. Não tão ao sul.”
Os dois ficaram atentos. O som aumentou
de intensidade. Em seguida, uma luz brilhou
no céu à frente deles. Pulsou num violeta
elétrico e brilhante, algo que nenhum dos
dois jamais havia visto antes.
“Sabe de uma coisa?”, disse Billy-Joe.
“Não estou gostando nada disso.”
“O que tá acontecendo?” Perguntou Ste-
ve.
A luz violeta tinha começado a se mover,
fazendo circunvoluções no céu, aproxi-
mando-se cada vez mais do perímetro da
cerca.
“Acha que devemos atirar?”, perguntou
Steve, empunhando sua arma.
“Não fique nervoso”, respondeu Billy-Joe.
“Nem há nada em que atirar. Vamos esperar
que chegue mais perto.”
Eles ficaram observando a brilhante luz vi-
oleta se aproximar. Billy-Joe engatilhou sua
submetralhadora.
Pouco depois, a luz espoucou como o bri-
203
lho simultâneo de um milhão de flashes, ao
mesmo tempo em que produziu um ruído en-
surdecedor, como um obus explodindo a um
metro de distância.
Os dois homens caíram, cegos e estontea-
dos. Levantaram-se rapidamente, esfregando
os olhos e tentando recuperar a visão.
Um intercomunicador estava tocando, era
o do posto do quadrante sul, a vários quilô-
metros de distância, do outro lado da cerca.
Os guardas haviam percebido o brilho e o ru-
ído e queriam saber o que estava acontecen-
do.
Billy-Joe aprumou-se o suficiente para
responder.
“Cal”, transmitiu para o posto do qua-
drante sul, “detesto admitir isso, porque vai
me chamar de mentiroso, mas acho que aca-
bo de ver um OVNI passar.”
“Minha tia May viu uma dessas coisas no
ano passado”, respondeu Cal. “São umas coi-
sas estranhas, não?”
“Cal, eu estou falando, foi isso que vi-
204
mos.”
“Ah, acredito”, respondeu Cal. “Mas acho
melhor entrarmos em alerta total no caso de
vocês terem tomado umas e outras, ou te-
rem mascado erva do diabo.”
Quatro jipes carregados de homens arma-
dos saíram da garagem e percorreram o perí-
metro com faróis acesos, mas não encontra-
ram nada.
Quer dizer, nada que pudessem localizar.
Escuridão e silêncio outra vez. Nenhum
som, exceto o gemido do vento do deserto e
o ocasional uivo de um coiote.
Nenhum movimento no terreno cercado
do perímetro interno, a não ser o vento ro-
çando a grama que a ARDC mantinha a altos
custos.
O vento roçando a grama na escuridão.
Alguma coisa planando através da grama
escura.
Algo grande, sem forma, movendo-se em
zigue-zague, aproximando-se do edifício
principal.
205
Na alta torre de vigia, Steve observava a
grama. Havia algo estranho com ela hoje.
Mas era o vento, indo e voltando em lufadas
súbitas, dando a impressão de que havia
algo se movendo lá embaixo.
Mas isso era loucura.
Nada poderia passar pela cerca.
“O que está olhando?” perguntou Billy-
Joe, ao seu lado.
“Estou só olhando a grama”, respondeu
Steve.
“Companheiro”, retrucou Billy-Joe, “nós
somos pagos para olhar para fora do períme-
tro, não dentro. Já sabemos que não há
nada aqui dentro.”
“Nada a não ser nós”, observou Steve,
sorrindo. “Nós... E um grande morcego.”

Exatamente à meia-noite, Blaise Connell,


um texas ranger aposentado e capitão da
guarda da ARDC, apresentou-se a Red

206
Murphy em sua suíte.
“Está tudo bem, sr. Murphy.”
“Obrigado, Blaise. O que foi aquela lumi-
nosidade algumas horas atrás?”
Embora a suíte de Murphy fosse bem no
meio do complexo da ARDC e não tivesse ne-
nhuma janela para o exterior, Red Murphy
havia percebido o lampejo em um dos moni-
tores de TV, que funcionavam como os olhos
do sistema de vigilância do perímetro.
“Alguns dos rapazes acham que foi um
disco voador”, disse Connell. “Mas isso é lou-
cura. Eu realmente não sei o que foi, se-
nhor.”
“A cerca do perímetro mostra algum sinal
de ruptura?”
Connell balançou a cabeça. “Absoluta-
mente intacta.”
“Acho melhor não se preocupar muito
com isso”, falou Murphy. “Boa noite, Blaise.”
Quando o capitão de sua guarda saiu,
Red Murphy foi até o bar e serviu-se de uma
bebida. Ele andava procurando a garrafa um
207
tanto demais ultimamente, e sabia disso,
mas estava sob grande tensão. E o pior era
ter de guardar tudo para si mesmo.
Assim, pelo menos podia partilhar com a
garrafa, mesmo que isso não fosse uma
grande ideia.
O apartamento era todo decorado com te-
mas do Velho Oeste, com peles de bois co-
brindo as cadeiras. Os sofás e as mesas
eram simples, porém bem-feitos. Havia duas
pinturas originais de Remington na parede, o
único toque de ostentação no local. Fora
isso, tudo o mais era simples e funcional,
embora a suíte fosse maior do que o normal.
Red Murphy era um homem que não gostava
de se sentir cercado. Por isso, os quadros de
Remington, com suas paisagens amplas e te-
mas do Oeste, o ajudavam a esquecer o con-
creto reforçado por todos os lados.
Segurou o copo contra a luz e examinou-
o. Red tinha um rosto quadrado e duro,
bronzeado da cor de couro de sela e marca-
do por muitas horas sob sol e ventos ferozes.
208
Murphy era baixo e tinha os ombros e tórax
tão largos que parecia quase deformado. Já
havia trabalhado em tudo que fosse relacio-
nado com campos de petróleo: pesquisa,
prospecção, escavação, limpeza de válvulas.
Durante anos, seu passatempo era andar pe-
los campos áridos de Ogdensville em seu ve-
lho jipe. As pessoas achavam que ele era um
pouco louco por passar todo aquele tempo
dirigindo sem destino, numa terra tão deso-
lada. E acharam que era realmente louco
quando investiu tudo o que tinha num con-
trato de prospecção no velho campo Duplo
“O”, que havia secado dez anos atrás.
Red Murphy arranjou dinheiro para alugar
uma perfuratriz e surpreendeu a todos ao co-
meçar derrubando a cabana e os currais que
haviam marcado o início da construção da
Empreendimentos Duplo “O”. Em seguida,
enterrou sua broca num ponto a não mais de
três metros de onde era a sala de estar.
O jorro resultante foi uma beleza.
Ele tinha encontrado uma bacia. Exata-
209
mente como seus estudos do terreno, condu-
zidos durante suas viagens de jipe, haviam
previsto. O petróleo estava lá, em quantida-
de suficiente para começar a construir uma
fortuna que logo seria lendária, mesmo nes-
sa terra de grandes homens e imensas con-
tas bancárias.
Quando os negócios de petróleo no Texas
começaram a se reduzir, Murphy já havia se
retirado há quase seis meses. Pegou todo o
dinheiro que tinha e comprou a cambaleante
corporação ARDC.
A empresa tinha uma lista de dívidas tão
longa quanto um arranha-céu, como se dizia
em Ogdensville. Sua maquinaria estava ultra-
passada e quase toda caindo aos pedaços e
seus principais empregados haviam há muito
desistido da companhia, mantendo seus em-
pregos apenas para receberem o pagamento,
sempre procurando ao redor por alguma coi-
sa mais interessante.
Contra todas essas probabilidades a em-
presa tinha apenas dois bens: um conjunto
210
de contratos de defesa potencialmente lucra-
tivos e os melhores especialistas em sistemas
bélicos do país. Murphy achou que podia
transformar aquilo em algo interessante. Re-
construiu a fábrica, substituiu a maquinaria
usada, demitiu os funcionários negligentes e
aumentou os salários e benefícios dos que fi-
caram. E quando contratava novos emprega-
dos, eram sempre os melhores.
Logo, a ARDC, sob sua nova e dinâmica
direção, estava fabricando alguns dos melho-
res sistemas de armas do serviço secreto bri-
tânico e francês. O Departamento de Defesa
também estava muito interessado. Assim
como as delegacias de polícia da América,
que viam na ARDC uma esperança na guerra
contra o crime.
Red Murphy era aceito e respeitado por
homens de negócio de todo o país e sempre
bem recebido nos altos círculos de Washing-
ton, que visitava frequentemente.
Nos últimos meses, porém, não vinha
mais sendo visto em suas habituais viagens,
211
preferindo permanecer em sua suíte na fábri-
ca, falando com associados comerciais, ami-
gos e parentes apenas por telefone. Somente
Blaise Connell, o chefe da segurança, encon-
trava-se com ele. As pessoas se espantavam,
mas a excentricidade faz parte da tradição
do Texas. Desde que não machuque nin-
guém e não ande nu, um homem pode agir
tão estranhamente quanto desejar. Ninguém
vai prestar atenção.
Praticamente ninguém.
Murphy terminou sua bebida e rapida-
mente serviu-se de outra. Ergueu o copo e
observou o aposento através de sua transpa-
rência cor de âmbar. A sala parecia distorci-
da. Murphy riu e engoliu metade da dose.
Em seguida ouviu um som atrás dele e se
enrijeceu.
Não havia nada ali além de seu grande
armário, sua coleção de chapéus e seus ta-
cos de golfe.
“Tem alguém aí?”
Não houve resposta.
212
Murphy descansou o copo, levou a mão
às costas e sacou uma automática Magnum .
44 cromada, com cabo de roseira. Engati-
lhou-a e se aproximou do armário.
“Saia daí”, falou. “É a última vez que eu
aviso.”
Sem resposta.
Ele ergueu a arma e puxou o gatilho. As
balas racharam a madeira fina da porta do
armário.
Uma pilha de chapéus caiu para fora, al-
guns rasgados por terem sido atingidos.
Murphy praguejou em voz baixa quando
viu o que tinha feito.
E ficou ainda mais zangado quando per-
cebeu que acertara uma bala em sua coleção
de estátuas de madeira.
“Maldição!”, falou.
“Não se preocupe”, disse uma voz atrás
dele. “Foram só alguns furos.”
Os poucos cabelos da grande cabeça de
Murphy se arrepiaram ao ou vir uma voz vin-
da de um lugar onde nenhum homem pode-
213
ria estar. Foi acometido por um tremor con-
vulsivo, fez um esforço para se virar, mas
não chegou a se surpreender quando a auto-
mática foi arrancada de sua mão.
Seu segundo choque aconteceu quando
encarou o dono da voz. Era um homem alto
e vestido de negro e cinza.
Uma ampla capa, com muitas pontas, caía
de seus ombros largos. O homem usava um
capuz e meia máscara. Em cima do capuz,
duas pequenas orelhas pontudas.
“Batman!”, gritou Murphy, levando a mão
ao peito. A dor o havia atingido, a dor quase
esquecida no peito e no pescoço que costu-
mava ter antes da cirurgia no coração, o ata-
que súbito provocado pelo choque de ver ali
aquela figura lendária, no meio de suas forti-
ficações, a dor provocada por um longo perí-
odo de ansiedade e consciência culpada.
Murphy desmaiou repentinamente, sem
perceber que duas mãos enluvadas o segura-
ram antes que chegasse ao chão.

214
m

Os olhos de Murphy estremeceram, de-


pois se arregalaram. “Ainda está aqui?”, per-
guntou.
Ele estava estendido na cama. Sua grava-
ta fora afrouxada, seus sapatos haviam sido
retirados e a figura alta de Batman postava-
se ao seu lado.
“Sim, ainda estou aqui”, respondeu Bat-
man. “Como está se sentindo?”
“Não tão mal, para um homem que não
esperava abrir mais os olhos neste lado da
vida. O que você fez?”
“Apliquei uma injeção de hectomorfinato
em você. É um dos antídotos que trago em
meu cinto de utilidades. Eu não sabia ao cer-
to, mas achei que estava tendo um ataque
cardíaco.”
“E o que esse hecto-qualquer-coisa faz?”
“Atua nas paredes dos vasos sanguíneos,
eliminando os espasmos que precedem a
morte.”

215
“Meu médico nunca me falou sobre isso.”
“Ele vai falar. Vai chegar ao mercado no
outono.”
Murphy sentou-se com cuidado. “Acho
que não preciso perguntar quem é. Ouço fa-
lar de você há anos, mas nunca pensei que o
encontraria. Uma vez conheci o Super-
Homem, numa campanha para arrecadar
fundos para crianças paralíticas em Washing-
ton. Pareceu-me um cara legal.”
“O Super-Homem é legal”, disse Batman.
“Mas não vim aqui discutir super-heróis com
você.”
“Penso que não. Acha que posso andar
sem problema? Não, não me ajude. Se não
conseguir chegar até o bar, estou definitiva-
mente acabado.”
Ele caminhou de uma forma levemente
cambaleante até o bar e serviu-se de uma
dose dupla de bourbon. Foi tão relaxante,
que imediatamente serviu outra dose.
“Está bebendo um pouco demais, não?”,
observou Batman.
216
“E você é agente dos AA ou coisa pareci-
da?”
“Apenas alguém preocupado”, respondeu.
“Preciso de algumas explicações suas, sr.
Murphy.”
“Sobre o quê?”
“Sobre isto” e Batman mostrou as duas
metades do pequeno hemisfério como qual
Illona tentara desacordá-lo.
Murphy o examinou. “Sim, tem a nossa
marca. Onde arranjou isto?”
“Alguém tentou usar contra mim.”
“E daí? Será que a Colt é responsável por
todos os revólveres usados contra alguém?”
“Isso não vem ao caso”, retrucou Batman.
“Sei que sabe alguma coisa sobre isso, por-
que outras armas semelhantes têm surgido
por aí. E todas vêm da sua fábrica.”
“Você não pode provar nada”, respondeu
Murphy.
“Talvez não”, concordou. “Ainda não, mas
vou conseguir.”
“Então vá em frente”, disse Murphy, e en-
217
goliu metade da dose de bourbon, assus-
tando-se quando Batman tirou com um tapa
o copo da sua mão.
“Qual é a sua?”
“Controle-se, Murphy”, recomendou Bat-
man. “Você tem uma bela reputação neste
país. As pessoas o consideram um executivo
brilhante e honesto. Sempre teve fama de
ser sincero e acessível. Agora, de repente,
está se escondendo dentro da fábrica, um lu-
gar vigiado como se fosse o esconderijo de
Hitler e anda bebendo muito. Você está com
problemas, Murphy, alguma coisa mudou sua
vida e quero que me fale a respeito.”
“E por que eu deveria?”
“Porque precisa contar a alguém se não
quiser explodir. E por que não a mim? Se
não puder contar seus problemas para um
super-herói, a quem vai contar?”
Murphy olhou para ele, a boca aberta.
“E de qualquer maneira, Red”, disse Bat-
man, “talvez eu possa ajudar. Gostaria de
tentar.”
218
Murphy continuou a olhar para ele. De re-
pente havia lágrimas em seus olhos.
“Quando era garoto” começou a falar, “eu
adorava super-heróis, queria ser igual a eles.
Tarzan foi o primeiro, depois vieram muitos
outros. Você sempre foi especial para mim,
Batman. Gostava de você porque era mais
humano do que os outros. Durante um tem-
po eu tentei ser como você... E engraçado,
não? Deve achar isso muito engraçado.”
“Eu não estou rindo”, retrucou Batman. “E
não me sinto superior a você. Fale comigo,
Red. Diga o que está acontecendo.” Murphy
parecia inseguro. “Eu posso ser morto por fa-
lar com você.”
“Você já está se matando sem falar comi-
go.”
“Acho que tem razão”, disse Murphy.
“Sim, estou encrencado, Batman. Tudo co-
meçou um ano atrás...”
Murphy contou como, há um ano, quando
a ARDC abriu o capital pela primeira vez, a
Teufel Corporation, uma grande empresa
219
com base na Suíça, comprou ações através
de várias pessoas em todo o mundo e aca-
bou conseguindo o controle acionário da
companhia. E como detinha o controle da
empresa, poderia destituir Murphy, se assim
desejasse. Ele demorou muito tempo para
perceber o que havia acontecido e tudo
aconteceu tão rapidamente que deixou-o
chocado e apático num momento em que
precisaria estar totalmente alerta. Os novos
proprietários nunca se revelaram. Operando
por trás de uma cortina de advogados, os
novos proprietários disseram que permitiriam
que Murphy continuasse dirigindo a ARDC.
Chegaram inclusive a dizer que poderia
comprar de volta a maioria das ações da em-
presa e recuperar seu controle acionário. Po-
rém, durante algum tempo, teria que fazer
as coisas do jeito deles.
“Muitos de meus funcionários me alerta-
ram sobre esse esquema”, continuou
Murphy. “Eu devia ter atendido. Especial-
mente quando eles começaram a torpedear
220
as divisões de pesquisa e produção. Mas
achei que se fizesse o jogo deles recuperaria
o controle mais depressa. Achei que não so-
breviveriam com seus métodos morosos e
inadequados de controle de qualidade. Na
época, eu não sabia o que eles queriam.”
Murphy procurou a garrafa de bourbon.
Batman empurrou-a delicadamente para
além do seu alcance.
“Seria melhor parar agora, Red. Você não
pode ficar aqui bebendo e se escondendo
para sempre. Não vai achar oportunidade
melhor do que esta.”
Murphy olhou para Batman e soube que o
mascarado dizia a verdade, não é todo dia
que um super-herói lhe diz que deve parar
de beber. Pegou a garrafa e atirou-a contra a
parede, com toda força, e gostou muito do
som que fez ao quebrar.
Logo a seguir seu telefone tocou. Murphy
atendeu. “Blaise? Sim, tudo bem. Sim, fui eu
que disparei a pistola. E agora quebrei uma
garrafa. Eu estava comemorando. Sim, claro,
221
sozinho. Eu e meus morcegos. Não, é manei-
ra de dizer. Claro, tudo bem, vejo você de
manhã.”
Desligou e olhou para Batman. “Acho que
vou fazer um café para nós. Temos muito
que conversar e pouco tempo para isso.”
“Como assim?”, perguntou Batman.
“O Estado-Maior está para assinar um
contrato com a ARDC para um novo sistema
de armas computadorizado.”
“E qual é o problema?”, perguntou Bat-
man.
“Vamos tomar aquele café e eu digo tudo
a respeito.”

Na manhã seguinte, Red Murphy sur-


preendeu seu pessoal ao anunciar que iria ao
Lago Sarmatian, criado artificialmente pela
recente barragem do rio North Pecos. Ele pe-
diu também que colocassem seu novo veleiro
portátil na traseira da picape e quando os

222
portões se abriram, saiu acenando para os
guardas.
Trinta quilômetros à frente havia um aglo-
merado de árvores, usado pela escola local
em churrascos e festas religiosas, mas que
agora estava deserto. Murphy subiu a ladeira
de terra e estacionou fora da estrada. Saiu,
foi até a traseira da picape e abriu o estojo.
Batman, que estava escondido no estojo,
já havia saído e lia um plano de ação com
uma pequena lanterna.
“Espero que não tenha sido muito des-
confortável”, disse Murphy.
“Já estive em situações piores”, comentou
Batman, “Foi mais fácil do que ter de sair se-
cretamente da sua fábrica.”
“O que quer que eu faça agora?”
“Gostaria que ficasse aqui por enquanto”,
respondeu Batman. “Vou sozinho com sua pi-
cape até o aeroporto, e arranjo alguém para
trazê-la de volta a você.”
“Por mim, tudo bem”, concordou Murphy.
“Ainda bem que eu trouxe um jornal. Mas
223
porque não posso levar você até o aeropor-
to?”
“Porque quando chegar ao aeroporto”,
disse Batman, “já terei trocado de roupa e
serei outra pessoa.”
“E não quer que eu saiba quem é essa
outra pessoa?”
“Exatamente. Por favor, entenda, não é
que eu não confie em você. Simplesmente
não faz sentido ser uma pessoa anônima se
todo mundo souber quem você é na vida
real.”
“Faz sentido”, concordou Murphy.
“Às vezes”, observou Batman “é mais di-
fícil trocar o uniforme do que resolver o
caso.”
“Posso imaginar”, disse Murphy. “Aqui
está, Batman” e entregou as chaves do car-
ro. “Posso fazer algo mais por você?”
“Só uma. Você disse que o Estado-Maior
está para assinar o contrato com a ARDC?”
“Isso me foi confirmado ontem. O contra-
to deve ser assinado hoje à noite.”
224
Batman anuiu. “Acho que ainda dá tempo
para fazer algo. Ainda bem que me deu a có-
pia dos planos para a produção dos seus mo-
delos. Vou poder estudá-los no avião para
Washington.”
“Meus concorrentes pagariam muito para
pôr as mãos nessas cópias.”
“Não se preocupe, eu vou destruir tudo.
Agora, sobre essas pessoas que se apossa-
ram da sua empresa. Você realmente não
tem ideia de quem está no comando?”
“Absolutamente. Mas sejam quem forem,
devem ter amigos em altos postos. Nunca vi
um contrato sair tão rapidamente.”
“Mais uma pergunta. Algum de seus siste-
mas de armamentos faz uso de alucinóge-
nos?”
Murphy pareceu surpreso. “Como soube?
Esse é o maior segredo do século.”
“Um homem de cabelos verdes me con-
tou”, disse Batman.
“Como?”
“Esqueça o que eu disse. Adeus, Murphy.”
225
“Boa sorte, Batman.”
“Obrigado. Acho que vou precisar.”

Batman dirigiu mais sete quilômetros pela


rodovia. Não encontrou nenhum carro, o que
foi ótimo, qualquer vaqueiro comum poderia
ficar curioso se encontrasse uma picape ver-
melha dirigida por um homem vestido como
morcego. Não que isso fosse provável. Ele
tomara a precaução de revestir os vidros do
veículo com um composto que não impedia a
visão de dentro do carro, porém tornava-os
opacos pelo lado de fora. Havia se esquecido
de dizer ao Murphy que a substância podia
ser removida com água e sabão, mas, sem
dúvida, ele descobriria isso sozinho.
Batman encostou a picape no acostamen-
to e rapidamente se transformou no sóbrio e
bem-vestido Charlie Morrison. Depois, guar-
dou seu equipamento numa valise e partiu
para o aeroporto.

226
Bruce resolveu não embarcar num vôo co-
mercial, uma vez que nenhum deles partia
num horário adequado e preferiu fretar um
avião para Washington. Embora fosse um pi-
loto experiente, contratou alguém para con-
duzir o avião. Era mais fácil assim.
O equipamento de Batman, mais as duas
valises com equipamentos especiais e o cinto
de utilidades, couberam bem no jatinho alu-
gado.
Bruce teve tempo para um rápido desje-
jum, enquanto o piloto abastecia e traçava o
plano de vôo. Comeu uma salada e tomou
um café e quando pagou a conta lembrou
que tinha de dar um telefonema. Ligou para
o comissário James Gordon, em Gotham City,
e disse para onde estava indo. Isso era ne-
cessário, caso algo acontecesse com ele. Se
Robin podia ser morto, Batman podia ser
morto também. Mas o combate ao crime ti-
nha que continuar.
Depois, foi até um guichê de serviços tu-
rísticos e arranjou um motorista para levar a
227
picape de Red Murphy até o local onde esta-
va esperando, lendo o jornal. Logo depois,
entrou no avião.

O jatinho aterrissou no aeroporto de


Washington ao cair da noite. A cidade come-
çava a se iluminar, mas não revelava as tra-
paças que aconteciam na capital do país.
No aeroporto, depois de alugar uma cabi-
ne no reservado da primeira classe, Bruce
vestiu novamente o traje de Batman. Desta
vez, dispensou a máscara e o capuz, escon-
dendo o traje debaixo de um longo sobretu-
do. Ele precisaria de suas duas identidades,
se quisesse completar esse trabalho.
Quando saiu, parecia um cidadão normal
bem-vestido.
O sobretudo era largo o suficiente para
esconder seu cinto de utilidades. Era difícil
saber antecipadamente quais os equipamen-
tos que seriam necessários.

228
Tomou um táxi e pediu ao motorista para
ir à churrascaria Old Edward's, na Quinta
com Ohio. Era um restaurante popular em
Washington e ficava em frente ao Edifício
Gaudi, onde, nos escritórios da Procuradoria-
Geral do quadragésimo andar, os contratos
da ARDC iriam ser assinados.

O Edifício Gaudi era diferente das simples


torres de vidro construídas recentemente em
Washington e fora erguido num estilo vistoso
e neobarroco, ornamentado com gárgulas e
apresentando curvas estranhas em ângulos
inesperados. O arquiteto, Nino de Talaveres,
de Barcelona, o excêntrico místico espanhol
ganhador do “Prix de Rome” de arquitetura
durante dois anos seguidos, havia previsto,
com precisão, que o Edifício Gaudi introduzi-
ria um novo estilo na arquitetura estéril da
capital do país.
Muitos gostavam daquele surpreendente

229
edifício.
Batman não estava entre eles.
Mas seu julgamento não era estético, e
sim puramente funcional. Já há algum tempo
ele desenvolvera um sistema, bem como os
equipamentos necessários, para escalar tor-
res de vidro com rapidez e segurança. Agora,
diante desta nova versão de uma arquitetura
fora de moda, percebeu que teria de impro-
visar.
A superfície de granito poroso não se
mostrava confiável para as ventosas de suc-
ção que usava normalmente.
O cortador laser de vidro que costumava
usar para entrar não seria útil em janelas
protegidas por barras de ferro.
Batman suspirou. Já era bastante difícil se
manter atualizado com as novas tecnologias
de construção, mas ter que reinventar novos
métodos para escalar edifícios antigos...
Ele poderia tentar a entrada por uma das
portas, é claro. A ideia era atraente, porém
impraticável, pois nesta noite era grande o
230
movimento em tomo do prédio e as ruas es-
tavam coalhadas de equipes da SWAT. Havia
também inúmeros homens vestidos à paisa-
na, mas com volumes aparecendo por baixo
das roupas. Esses, Batman sabia por expe-
riências anteriores, eram homens do Serviço
Secreto.
Será que Murphy o havia denunciado?
Ele achava que não. Mas o pessoal da se-
gurança poderia ter desconfiado das atitudes
da noite anterior, dos disparos da Magnum,
do passeio com a picape na manhã seguinte.
Era preciso ser muito desatento para não no-
tar essas discrepâncias, mas será que tive-
ram tempo para fazer algo a respeito? Só o
tempo diria.
Batman tivera oportunidade de estudar os
planos da ARDC no vôo até Washington, es-
condendo-os atrás do jornal para que o pilo-
to, um tipo simpático do Tennessee chamado
Cohen, não ficasse curioso.
Bruce Wayne tinha uma boa formação
técnica e aumentara em muito seus conheci-
231
mentos com estudos avançados de ciência e
matemática. E tivera a oportunidade de com-
plementar suas conclusões em um computa-
dor laptop, construído de acordo com suas
especificações por um preço alto, mas com a
capacidade de um equipamento de última
geração.
E o que havia concluído a partir das có-
pias era surpreendente, para dizer o mínimo.
Se aquele contrato fosse assinado...
Ele examinou o edifício outra vez. Entrar
lá seria muito difícil.
Terminou sua refeição, pagou a conta, foi
até ao toalete e saiu pelos fundos.
Era um beco ruidoso, com gatos passean-
do por latas de lixo transbordantes. A combi-
nação de luzes fortes e sombras impenetrá-
veis faziam o ambiente perfeito para um ho-
mem em fuga ou para o vôo de um morce-
go.
Dentro do Edifício Gaudi, no quadragési-
mo andar, num anfiteatro iluminado com luz
indireta, o Estado-Maior estava reunido para
232
examinar o contrato da ARDC. O almirante
William Fenton presidia a sessão desta noite.
Era um velho lobo-do-mar, de rosto quadra-
do e cabelos cinzentos. O general Phil “Voa-
dor” Kowalski, comandante da Força Aérea,
estava ao seu lado direito. Kowalski era alto
e magro, e seu rosto infantil, de cabelos loi-
ros e riso fácil, não parecia pertencer ao ás
da aviação que abatera quatro jatos de Trini-
dade, num recente incidente no Caribe, an-
tes de descobrir que os Estados Unidos não
estavam em guerra com aquele país. Ao seu
lado estava o general Chuck Rohort, do
exército, com seu corpo pequeno e pesado
demonstrando toda a atenção e concentra-
ção necessárias para um bom comandante
de tanques.
“Bem”, disse o almirante, “podemos co-
meçar a reunião. Proponho que dispensemos
a leitura das minutas da última reunião, pois
as decisões a serem tomadas hoje são muito
importantes para serem atrasadas por dis-
cursos antigos. Alguma objeção? Ótimo, va-
233
mos continuar. Creio que o general Kowalski
tem uma requisição pouco comum a fazer.”
Phil Voador levantou-se, sorrindo prazei-
rosamente, manuseando seu quepe numa
atitude muito bem ensaiada.
“No meu entendimento, esta reunião vai
decidir a questão do contrato com a ARDC,
registrado com o número 123341-A-2.”
“Exatamente”, observou o almirante Fen-
ton. “E você saberia disso se tivesse compa-
recido à reunião de ontem, onde os presen-
tes pesaram os prós e contras do novo siste-
ma da ARDC. Uma vez que forneceremos es-
sas armas tanto para nossas tropas como
para os nossos aliados, não preciso ressaltar
a importância deste contrato.”
“Sei que as armas são boas”, disse o ge-
neral Rohort, colocando seu corpo pesado
em posição de alerta. “Mas será que a ARDC
poderá cumprir o combinado?”
“Acho que não precisamos ter dúvidas a
esse respeito”, observou Fenton. “Mas como
testemunha final, tomei a liberdade de con-
234
vocar James Nelson, diretor da CIA.”
Fenton fez um gesto e um soldado abriu a
porta do anfiteatro. Um homem alto, vestido
em tons bronzeados, entrou. Até suas unhas
eram bronzeadas, muito levemente, porém
bronzeadas.
Apenas seus dentes eram brancos, os
dentes e o branco dos olhos.
“Boa noite, senhores”, disse Nelson. “Des-
culpem meu bronzeado. Acabei de voltar da
Flórida, onde estive supervisionando nosso
programa de contraespionagem, para enqua-
drar os traficantes colombianos na nossa po-
litica atual relativa aos preços de drogas
clandestinas.”
“Eles estão sabotando o programa de su-
primento de drogas de novo?”, perguntou o
general Rohort, com uma expressão preocu-
pada.
“Na verdade, estão”, respondeu Nelson.
“A perda na receita nos diversos serviços
clandestinos do governo tem sido alta. Sem
falar da perda de qualidade por parte dos
235
usuários.”
“Esse produto estrangeiro não se encaixa
nas especificações do PDA”, rugiu o almiran-
te Fenton. “Deveria haver uma lei contra
isso.”
“O presidente acredita no livre comércio”,
disse Nelson. “Dentro dos limites, é claro.”
Ele ignorou o sinal de Proibido Fumar e acen-
deu um cigarro.
“Bem, não tem importância”, disse
Kowalski. “Não é da nossa conta o que as
pessoas fazem com as drogas. Estamos aqui
para resolver este contrato. E devo dizer,
Nelson, que tenho dúvidas quanto a alguns
detalhes.”
“Fique tranquilo”, respondeu Nelson.
“Este é um dos melhores contratos feitos en-
tre o governo dos Estados Unidos e uma em-
presa privada. E o melhor de tudo é que di-
versos aliados nossos também se beneficia-
rão do acordo, o que resultará numa boa pu-
blicidade.”
Uma cópia do contrato foi passada por to-
236
dos. Os militares a examinaram.
“Bem”, disse Kowalski, “eu ainda tenho
dúvidas.”
“Vou tranquilizá-lo”, replicou Nelson. “O
próprio presidente quer este contrato assina-
do.”
“Então por que ele não diz isso para
nós?”, perguntou Kowalski.
“Senhores, é isso que ele vai fazer. O pre-
sidente está vindo para presenciar suas assi-
naturas e congratulá-los por cumprir seu de-
ver patriótico.”
“O presidente? Aqui?”, perguntou Chuck
Rohort.
“Isso mesmo, Chuck”, respondeu Fenton.
“Então não vamos perder tempo”, disse
Nelson. “Senhores, o presidente!”
Ele gesticulou para o ordenança, que en-
goliu em seco e abriu a porta, por onde en-
trou Marshall Seldon, o homem alto, curvado
e de cabelos cinzentos conhecido por todos
como o presidente dos Estados Unidos.
Os membros do Estado-Maior se levanta-
237
ram para cercar o presidente. Nelson fez com
que recuassem.
O presidente ergueu amão. Em seguida,
todos ouviram sua conhecida voz de tenor.
“Senhores, tenho muitos assuntos impor-
tantes para cuidar. Por favor, assinem o con-
trato, e vamos tratar desse negócio de con-
fundir nossos inimigos e confortar nossos
amigos.”
Os membros do Estado-Maior se agrupa-
ram, cada um deles querendo ser o primeiro.
Mas foram interrompidos por uma voz grave
entrando pela porta, desta vez sem a ajuda
do ordenança.
“Senhores, antes de assinarem esse peda-
ço de papel, gostaria de fazer uma observa-
ção.”
Todos ficaram em silêncio. Até mesmo
homens importantes como generais e almi-
rantes não podiam deixar de dar a Batman
uma oportunidade de falar.
Nelson era uma exceção a esta regra, por
conta de sua posição específica. Era seu de-
238
ver não ser seduzido por discursos alheios e
sabia que Batman não fazia parte daquilo.
Assim, fingiu escutar, mas o tempo todo sua
mão direita esgueirou-se em direção ao cin-
to, onde escondia uma pistola Derringer de
dois tiros.
A princípio, as dificuldades encontradas
por Batman para escalar o Edifício Gaudi não
foram insuperáveis. Ele não pôde usar os re-
cursos que o levaram para dentro da ARDC.
Naquela ocasião, usara um dispositivo sim-
ples, projetado para produzir brilhos de luz e
estranhos ruídos e continuar fazendo isso
tempo suficiente para permitirem ataque
pelo outro lado. O atacante tinha sido o pró-
prio Batman, escalando a cerca protegido da
corrente elétrica por luvas e botas isolantes.
Por um breve momento, enquanto saltava
acerca, havia encoberto a luz das estrelas.
Porém, durante esse tempo, Billy-Joe e Steve
estavam distraídos pela luz e os sons do apa-
relho, o que deu a Batman o tempo necessá-
rio para pousar secreta e seguramente no
239
outro lado da cerca.
Desta vez, não foi possível usar esse tipo
de distração nos longos minutos necessários
para escalar o Gaudi e nada na sacola de tru-
ques do Batman poderia levá-lo até o qua-
dragésimo andar.
Por sorte, era uma noite de lua cheia cuja
luminosidade banhava um dos lados do edifí-
cio com uma luz branca e brilhante, porém
deixava as outras partes na escuridão. Usan-
do grampos de alpinista adequados para gra-
nito, o Homem-Morcego escalou o lado do
edifício. Quando chegou ao quinto andar,
onde havia uma fileira de gárgulas, surgiu
um atalho. O próximo nível de gárgulas era
no décimo andar e continuava a cada cinco
andares, o que viabilizava ouso do bat-ran-
gue atado a uma corda leve. Batman era pe-
rito em lançar o estranho objeto, semelhante
a um bumerangue, porém infinitamente mais
útil em termos de ângulos de onde poderia
ser projetado.
Escalar quarenta andares por uma corda
240
é um feito espetacular e felizmente Batman
havia trazido uma roldana para ajudar sua
subida. O dispositivo, alimentado por um pe-
queno motor atômico, era capaz de erguer o
peso de um homem a seis quilômetros por
hora.
Quando chegou ao quadragésimo andar,
usou uma gazua para abrir as fechaduras da
janela e entrar. E ainda teve o cuidado de fe-
chá-las por dentro. Depois disso, foi fácil en-
contrar a sala de conferências onde o Es-
tado-Maior estava reunido.
“O que é isso?”, perguntou o almirante
Fenton. “Já ouvi falar de você, Batman. Di-
zem que defende boas causas. Mas se acha
que sua reputação vai me intimidar, está en-
ganado.”
“Não é esta a minha intenção”, respondeu
Batman. “Só gostaria de apresentar alguns
fatos a respeito do sistema das armas da
ARDC com que está querendo equipar nossas
forças.”
“Como se atreve a interferir na nossa es-
241
pecialidade?”, disse Fenton. “Nós verificamos
essas armas minuciosamente e são as me-
lhores que se pode obter.”
“Talvez”, retrucou Batman. “Mas será que
verificaram também seus sistemas computa-
dorizados de apoio?”
“É um sistema novo”, observou o general
Rohort. “E o melhor que a mente humana
poderia criar.”
“Sugiro que o examinem novamente”, dis-
se Batman. “Tenho documentos que poderão
interessá-los.”
“Aonde está querendo chegar, Batman?”,
perguntou Fenton. “Não está querendo nos
deter, está?”
O mascarado não respondeu.
“Este lugar está cheio de agentes”, conti-
nuou Fenton. “Você não pode nos impedir de
assinar. Isso sem falar na presença do presi-
dente.”
O presidente Marshall Seldon permanece-
ra no canto mais distante da sala todo esse
tempo. Agora, sorrindo levemente, disse:
242
“Vamos deixá-lo mostrar os documentos. Vai
ser divertido.”
Batman puxou sua capa e tirou de um
bolso escondido uma listagem de computa-
dor mostrando um circuito complexo coalha-
do de pequenos números e letras gregas.
“Senhores”, disse Batman, “por favor exa-
minem isto.”
Kowalski foi o primeiro a pegar o papel.
“O que é isto?”
“Os mapas do computador principal das
armas da ARDC.”
Kowalski examinou os papéis, seus cabe-
los loiros e encaracolados caindo sobre a tes-
ta. “Sim... sim, tudo bem por enquanto...
Sim, é um circuito padrão Sliger... Mas o que
é isso? Está ligado a um circuito de resso-
nância espelhado... Ei, agora entendi!”
“O quê?”, perguntaram os outros milita-
res, menos familiarizados com computadores
do que o jovem oficial da Força Aérea.
Kowalski ergueu os olhos com uma ex-
pressão preocupada.
243
“Diga a eles, Batman.”
“Imagino que todos aqui já ouviram falar
de vírus de computador”, disse.
“Claro”, respondeu Fenton. “São progra-
mas elaborados por malucos ou desconten-
tes para tomar os computadores inoperantes,
às vezes por longos períodos de tempo, até
que outro programa possa ser elaborado
para livrá-los do vírus. Mas ninguém vai in-
troduzir nenhum vírus nesses programas,
Batman. São programas de última geração,
resistentes a vírus.”
“É verdade”, concordou Batman. “Mas
você ainda não entendeu.”
“O quê?”
“Os programas da ARDC foram projetados
para criar seu próprio vírus, que primeiro vai
alterar o funcionamento dos computadores e
em seguida destruí-los.”
“Criar seus próprios vírus?”, perguntou o
general Rohort. “Como girinos se reproduzin-
do num pântano?”
Kowalski concordou, pesaroso. “Está nas
244
especificações, general. Nós é que não per-
cebemos.”
Rohort dirigiu-se a Kowalski. “Você enten-
de dessas coisas, Voador, mas eu mal posso
acreditar. Será que o mascarado está dizen-
do a verdade?”
“É verdade, sim”, respondeu Kowalski. “É
exatamente isso.”
“Senhores!” Era a voz do presidente Sel-
don e chamou a atenção de todos na sala.
“Sim, sr. presidente?”, perguntou o almi-
rante Fenton. “Em primeiro lugar, quero
agradecer ao Batman”, disse. “por ter trazido
esta matéria à nossa atenção. Na verdade,
nós já corrigimos o defeito do projeto e ago-
ra nada pode impedir o Estado-Maior de assi-
nar o contrato.”
“Esse documento não deve ser assinado”,
falou Batman. “E esses homens não devem
mais receber ordens suas.”
“Por que diz isso?”, perguntou o presiden-
te. “Pare com isso, Batman, e acho que pos-
so arranjar uma medalha para você. Gostaria
245
de ter uma posição oficial em meu gabinete?
Assessor presidencial para assuntos de su-
per-heróis? Que tal?”
“Seria ótimo, sr. presidente”, falou Bat-
man. “Mas existe um problema.” De repente,
ele deu um passo à frente, andando direta-
mente em direção ao presidente. Até mesmo
Nelson, da CIA, foi pego de surpresa por um
momento. Logo depois, sacou sua arma rapi-
damente, não o Derringer, mas uma pesada
automática Browning reservada para emer-
gências. Mas a essa altura Batman já tinha
chegado até o presidente... e passado atra-
vés dele.
E o presidente continuava sorrindo.
Os membros do Estado-Maior olharam
para Batman, perplexos. Nelson manteve a
arma na mão, temporariamente imóvel.
“O problema”, começou Batman, “é que
não vejo como pode fazer qualquer coisa, sr.
presidente. Porque você não é o presidente.”
“Em nome de Deus, o que é isso?”, per-
guntou Fenton. “Um fantasma?”
246
“Não é bem isso”, respondeu Batman. “É
um holograma.” Fenton estava tentando en-
tender. “Como você sabia?”
“Porque a pessoa que fez isso”, disse,
apontando um dedo enluvado em direção ao
ainda sorridente holograma do presidente
Seldon, “tem usado hologramas com outras
pessoas.”
“E quem são essas pessoas?”, perguntou
Kowalski.
“Acho que o diretor James Nelson tem a
resposta para isso”, respondeu Batman.
Nelson olhou-o com ódio profundo.
James Nelson havia alcançado certa proe-
minência seis meses atrás, quando James
Tolliver, respeitado diretor da CIA, adoecera
devido a um vírus ainda não identificado e
que nem mesmo os melhores especialistas
foram capazes de curar. Acamado e privado
de toda sua força e vitalidade, Tolliver, man-
tido vivo por aparelhos, fora forçado a passar
suas tarefas cotidianas para Nelson, seu as-
sistente.
247
Nelson era conhecido como um homem
extremamente capaz, porém dotado de uma
personalidade grandiosa, de uma autoconfi-
ança quase paranoica. Era conhecido como
alguém capaz de fazer justiça com as pró-
prias mãos se considerasse seu julgamento
melhor do que o de seus superiores. E isto
Tolliver não podia tolerar.
Correram boatos de que Tolliver demitiria
Nelson ou forçá-lo a se aposentar. Mas agora
Tolliver só podia ficar deitado numa tenda de
oxigênio lutando para sobreviver.
Nos círculos de Washington, algumas pes-
soas consideravam Nelson mais ou menos
perigoso e mais ou menos louco.
A exemplo de muitos outros homens lou-
cos e perigosos, havia reunido um pequeno
círculo de agentes da CIA ao seu redor. To-
dos eram fanáticos em sua devoção e segui-
riam qualquer ordem sua.
Eram estes os homens que agora entra-
vam na sala de reunião, movendo-se lenta-
mente, as mãos próximas de suas armas
248
ocultas.
“Esse contrato vai ser assinado”, disse
Nelson.
“Você deve estar louco”, disse o almirante
Fenton. “Não pode querer que assinemos
isso.”
“Posso e vocês vão assinar. Mas não pre-
cisam fazer isso pessoalmente, pois tenho
peritos que podem assinar seus nomes me-
lhor do que vocês.”
“E o que vai fazer conosco?”, perguntou
Rohort.
“Vocês serão enterrados como heróis”,
respondeu Nelson. “Sabemos que Batman
tem sofrido alucinações. Suas desventuras
com Illona e outras pessoas no Hotel Nova
Era foram filmadas. O público vai acreditar
quando dissermos que ele massacrou todos
vocês antes que o matássemos.”
“E quanto a mim?”, perguntou Batman.
Nelson riu com amargura. “Tentei deixar
você fora disso, Batman, mas resolvi inves-
tigá-lo. Com a ajuda de minha organização,
249
descobri sua verdadeira identidade. Você é
Charlie Morrison!”
A alta e encapuzada figura moveu-se le-
vemente e um sorriso surgiu em seus lábios.
“Foi por isso que mostrou aqueles holo-
gramas a Charlie Morrison no Hotel Nova
Era”, concluiu Batman.
“Eu estava tentando convencê-lo a ficar
fora disso.”
“Sua noção de psicologia é tão furada
quanto seu sentido de estratégia”, observou
Batman. “Como eu poderia resistir a um de-
safio como este? Você preparou sua própria
derrota, Nelson.”
“Mas, Nelson, por que está fazendo
isso?”, perguntou o general Kowalski. “Por
que quer que assinemos esse contrato? Os
armamentos da ARDC estão obviamente de-
feituosos e vulneráveis à infiltração pelos
computadores inimigos. Assim que souberem
disso, nossos inimigos podem atacar nossos
sistemas bélicos com facilidade. E quando
tentarmos reagir, nossas próprias armas es-
250
tarão programadas para atuar contra nós.”
“Foi o que Tolliver disse quando mostrei a
ele meus planos”, respondeu Nelson. “Ele
não conseguiu ver que esta fraqueza era
apenas a camada externa de um esquema
mais amplo. Sim, nossos inimigos certamente
descobrirão nossas deficiências e tentarão ti-
rar vantagem delas. Mas temos também ou-
tro programa, este sim realmente secreto,
que coloca a aparente vantagem de nosso
inimigo a nosso favor. E um programa mata-
dor de computadores, que será iniciado as-
sim que tentarem quebrar nossos códigos.
Quando nossos inimigos tentarem nos esfa-
quear pelas costas, reprogramando nossos
sistemas bélicos, descobrirão que introduzi-
mos as sementes da destruição em seus pró-
prios sistemas.”
“Interessante”, disse Batman. “E Illona
era uma isca, não?”
“Claro”, disse Nelson. “Nós encenamos a
morte dela.”
Os membros do Estado-Maior se entreo-
251
lharam, atônitos. Finamente, Fenton falou:
“Nelson, tudo isso é loucura! Seu plano é
maluco! E se nossos inimigos descobrirem
seu esquema?”
“Nós temos outros segredos!”, bradou
Nelson. Seus olhos estavam enlouquecidos.
“Vocês não sabem quantos segredos nós te-
mos! Apenas eu e meus comandados esta-
mos cientes do poder que podemos exercer
sobre os acontecimentos!”
“O que eu sei é que você e sua turma
querem ganhar um bocado de dinheiro com
esse contrato”, disse Batman. “Você é o acio-
nista secreto atrás do grupo que comprou as
ações da ARDC, não é?”
Nelson deu de ombros. “Não importa que
você saiba disso agora, Não há nada que
possa fazer a respeito. Este contrato vai ser
efetivado.”
“Ah, acho que não”, disse Batman.
James Nelson olhou para a figura masca-
rada e riu. “Vai nos impedir? De acordo com
seu material biográfico, você é vulnerável a
252
armas humanas ao contrário do Super-
Homem, seu amigo à prova de balas.”
“Posso ser perfurado como qualquer outro
homem”, disse Batman. “Mas primeiro vai ter
que me acertar.”
Nelson ergueu a arma. Batman abriu a
mão e um enxame de partículas foi lançado
da ponta de seu dedo mínimo. As partículas
voaram em direção às fontes de luz, que pis-
caram, diminuíram e se apagaram.
“Aspiradores de luz chineses!”, exclamou
Nelson. “Você é esperto, Batman, mas não
vai adiantar. Atirem, homens!” Os homens
da CIA entraram em ação. Tiros foram dispa-
rados, ricocheteando em fichários de aço, ra-
chando paredes de plástico como um enxa-
me de abelhas selvagens. Porém Batman já
estava em movimento, uma sombra apagada
na sala escura. Os militares também já havi-
am mergulhado para baixo das mesas e res-
pondiam ao fogo da CIA com suas armas
portáteis.
O resultado do confronto já estava decidi-
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do, mas foi muito bom ver James Gordon,
comandando um pelotão de elite da polícia
de Gotham, entrar na sala naquele momen-
to, pois os habilidosos rapazes de uniformes
azuis venceram rapidamente os inexperientes
agentes do governo.
“Gordon!”, exclamou Batman. “O que está
fazendo aqui?”
“Depois que me telefonou, achei que po-
deria precisar de alguma ajuda”, respondeu.
“Por isso trouxe um pelotão de meus rapazes
de Gotham City para uma viagem a Washing-
ton.”
“Não matem Nelson!”, bradou Batman.
“Esse rato merece”, disse Gordon, mas
não atirou.
“Eu sei que merece”, concordou Batman.
“Mas ele precisa nos levar ao local onde es-
condeu o presidente.”

Nelson, algemado, levou-os a um peque-

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no depósito no porão, onde encontraram o
abatido presidente Marshall Seldon.
“Batman”, disse Seldon. “Eu devia saber
que era você.”
“Achei que tinha cuidado de você, Bat-
man”, comentou Nelson. “Mas acho que es-
tava enganado.” O homem bronzeado trin-
cou os dentes, fez um esgar e caiu no chão.
O odor acre de amêndoas amargas encheu o
aposento.
“Uma cápsula de cianureto”, observou
Batman. “Pobre-diabo. Agora está tudo aca-
bado, sr. presidente. Mas acho que vai preci-
sar de um novo diretor para a CIA.”

De volta em sua casa a Gotham City, Bru-


ce Wayne estava lendo o jornal na sala de
estar quando Alfred entrou, trazendo uma
carta numa bandeja de prata. “É para o se-
nhor, da senhorita Vera.”
Bruce abriu a carta e leu-a rapidamente.

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“Ela diz que está se divertindo bastante, mas
que sente minha falta e gostaria que fosse
me encontrar com ela.”
“Uma ótima ideia, senhor”, comentou Al-
fred.
Bruce Wayne precisou de menos de um
segundo para chegar a uma conclusão. “Al-
fred, prepare uma mala com roupas tropicais
e reserve passagem no próximo vôo para o
Rio.”
“Certamente, senhor!”, respondeu o mor-
domo, sorrindo, embora tentasse manter
uma expressão séria. “E o traje de Batman,
senhor?”
“Não vou precisar. Desta vez vou mesmo
sair de férias.”

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“Criminosos são uma espécie supersticio-
sa e covarde. Então, devo usar um disfarce
que leve o terror ao fundo de seus corações!
Preciso ser uma criatura da noite, como
um… um… morcego!”
— Bruce Wayne.

Estas palavras, pronunciadas há mais de


meio século, deram origem a uma lenda
mundial. Desde que presenciou o assassina-
to dos pais, quando ainda era criança, o mili-
onário Bruce Wayne vem dedicado sua vida
a uma vingança pessoal contra o crime —
tornando-se a sombria figura mascarada que
vasculha a noite de Gotham City.

Agora, alguns dos maiores nomes da fic-


ção fantástica colocam seus talentos à dispo-
sição do herói, narrando histórias totalmente
inéditas de mistério, terror, suspense e até
com ingredientes sobrenaturais!
Seja bem-vindo aos CONTOS DE BAT-
MAN.
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