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GNOSTICISMO E

MODERNISMO EM ERIC
VOEGELIN (por
Felipe Coelho)
NOTA: êste artigo era hospedado pelo site da Montfort;
como êles decidiram apagá-lo sem qualquer bom motivo, e
considerando que eu já tinha salvo uma cópia do mesmo no
meu HDD, tomei a liberdade de compartilhá-lo aqui no
medium-dot-com.

2. Apresentação
Eric Voegelin (1901–1985) foi um estudioso alemão que
causou comoção nos meios acadêmicos ao classificar
movimentos políticos modernos — como o positivismo e o
marxismo — como gnósticos, de modo que não passariam de
novas versões de uma velha heresia combatida pela Igreja
Católica. Nascido em Colonha, Voegelin chegou a ser aluno
de Hans Kelsen, mas acabou emigrando até a Louisiana, no
sul dos Estados Unidos, durante a ditadura de Hitler. Foi lá
que escreveu a maioria de seus livros. Sua “demonização” do
marxismo — se não precisa, ao menos justa — lhe garantiu
alguma popularidade junto à direita americana, embora
Voegelin também condenasse o liberalismo e o
protestantismo como movimentos gnósticos. Em grande
parte devido à difusão das teses de Voegelin, teses estas
inspiradas por autores modernistas, tem havido
recentemente uma onda de estudos “revisionistas” sobre
gnose, questionando a validade do termo e buscando
redefinir seu significado. O presente estudo visa mostrar
justamente como Voegelin está envolvido nesta confusão, e
quais as suas razões.

Durante o 2001 Annual Meeting of the American Political


Science Association, realizado em San Francisco entre 30 de
agosto e 2 de setembro de 2001, Stefan Rossbach
apresentou um interessantíssimo estudo intitulado “Gnosis”
in Eric Voegelin’s philosophy, que, como o próprio nome já
diz, trata do uso do termo “gnose” por Eric Voegelin.

É principalmente neste trabalho de Rossbach que nosso


estudo se baseia, reproduzindo várias de suas citações e
descobertas (o autor teve acesso às cartas de Voegelin),
traduzidas para o português. Além disso, foi utilizada
também, para a compreensão geral da filosofia voegeliana,
principalmente a tese de doutorado de Mendo Castro
Henriques, A Filosofia Civil de Eric Voegelin, apresentada à
Universidade Católica de Lisboa.

Como não podia deixar de ser, foram feitas consultas às


obras tanto do próprio Voegelin, como de outros autores,
sobre ele e sobre o tema da gnose, além de certas
contribuições nossas, na medida em que eram pertinentes à
elucidação do problema proposto: o gnosticismo em Eric
Voegelin.

Agradecimentos são devidos ao Prof. Orlando Fedeli, cujos


estudos sobre gnose são nossa principal base, por ensinar a
encarar a questão do único ponto de vista capaz de
compreendê-la sem falhas: o da Santa Igreja Católica.
Dentre seus trabalhos publicados, o recente A Gnose
“Tradicionalista” de René Guénon e Olavo de Carvalho
contém um bom resumo da gnose e indicações de grande
valor, tanto teórico quanto apologético, sobre esta doutrina,
que é o coração de todas as heresias.
Inclusive, foi a polêmica que se seguiu a esse trabalho de
Orlando Fedeli que motivou nosso estudo sobre Voegelin,
pois algo devia estar errado se um gnóstico em sentido
estrito como Olavo de Carvalho podia citar Voegelin em sua
defesa, como foi feito, apenas porque tanto um quanto o
outro se opõem aos movimentos materialistas que Voegelin
condena como “gnose moderna” (positivismo, marxismo,
etc.).

O presente estudo é dedicado ainda a D., um amigo que


gastou todo o seu dinheiro importando as caras obras de
Voegelin, e ainda gasta tempo e dinheiro com um de seus
ecos. Que o que se segue possa lhe ser útil.

3. Gravidade e abrangência
da gnose
Antes de mais nada, para Voegelin, a gnose é um problema
espiritual muito sério, que vai da antigüidade à
modernidade, e cuja gravidade é tamanha que ele a equipara
ao satanismo, como se vê pelo trecho a seguir: “Voegelin
explica que os ‘movimentos gnóstico-satânicos’, com sua
‘revolta contra a realidade’, se tornaram ‘uma força na
história mundial’.” (ROSSBACH, p. 6, negrito nosso).

Mas, quando se fala da presença da gnose no mundo atual,


nunca faltam os ingênuos e pouco estudados que, após uma
visão superficial, acusam os estudiosos da questão de serem
“teóricos da conspiração” e de verem “gnose em todo lugar”.
Rossbach cita uma carta de Voegelin, muito saborosa, em
resposta a essas pretensas objeções, que por isso vale a pena
reproduzir integralmente, apesar de sua extensão:
“Então, há a questão da Gnose. Você atribui a mim a
‘prontidão’ de classificar todo tipo de idéias como gnósticas,
como se isso fosse uma esquisitice minha. Bem, se você
atribui a mim, como freqüentemente se faz, a grande
descoberta do problema da Gnose moderna e sua
continuidade com a antigüidade, devo rejeitar a honra e
humildemente desmentir este lampejo de gênio. Encontrei o
problema pela primeira vez em Prometheus, escrito por
Bathasar em 1936. Então eu verifiquei que ele estava certo,
por meio do estudo de Gnosis, escrito por Jonas em 1937, e
por meio da leitura de montes de material sobre sectarismo
medieval. Para a aplicação moderna, encontrei confirmação
para esta visão nas obras de Lubac. E então eu tomei a
precaução de discutir a questão detalhadamente com Puech,
Quispel e Bultmann, ou seja, com as principais autoridades
vivas sobre Gnose e Cristianismo. Todos eles concordaram
que esta era de fato a questão. Resumindo: todo mundo que
é alguém em questões deste gênero compartilha da minha
opinião. Evidentemente, você está certo em dizer que isso
surpreende os ‘profissionais’. Mas você sabe tanto quanto eu
que os ‘profissionais’ consistem em uma notável
porcentagem de pilantras acadêmicos que embolsam
salários de professor sem fazer o mínimo esforço de sequer
ler os livros escritos por outras pessoas. E quando você fala
das ‘conseqüências perturbadoras’ com relação à
classificação de personalidades contemporâneas, só posso
lhe assegurar de que não são nem um pouco perturbadoras,
mas sim lugar-comum, para os estudiosos que conhecem o
assunto. Novamente, estou pasmo de você, entre todas as
pessoas, tomar o lado dos pilantras contra os estudiosos — e
que estudiosos! — veja novamente os nomes acima.” (Eric
Voegelin, Carta a Carl J. Friedrich, 12 April 1959, Box 13,
File 13.16, Hoover Archives; apud ROSSBACH, p. 4, negritos
nossos, sublinhados do original).
4. Críticas ao uso que Voegelin faz
do termo “gnose”
Porém, embora os maiores especialistas reconheçam a
gravidade e a extensão do problema “gnóstico-satânico” e
concordem com Voegelin que a gnose está muito presente
na modernidade, o mesmo não se pode dizer quanto aos
fenômenos modernos que Voegelin caracteriza como
gnósticos.

Mendo Castro Henriques aponta “a utilização, muito


peculiar por parte de Voegelin, do conceito de gnose”
(HENRIQUES, p. 61). E reconhece que “Voegelin se afastou
da noção erudita de gnose em mais que um sentido”
(HENRIQUES, p. 139).

Conta ainda que também cientistas políticos importantes


criticaram Voegelin: “Entre os political scientists que
dedicaram recensões discordantes contam-se nomes
reputados como os de Hans Kohn, Arnold Brecht e Robert
Dahl. Este, em ‘The Science of Politics; New and Old”, World
Politics, 7(1995), pp. 484–89, afirma mesmo que Voegelin
“has not only un-defined science; he has un-scienced it”
[“não só des-definiu a ciência, como a des-cientifizou”], pois
utiliza pressupostos cuja validade não examina.”
(HENRIQUES, p. 59, nota 17, negritos nossos, itálicos do
original).

O próprio Stefan Rossbach, aliás, conclui exatamente isso de


seu estudo: “…se ‘gnose’ e ‘gnosticismo’ em Voegelin são
entendidos como conceitos empíricos, então precisamos
concordar com os críticos que a obra dele está cheia de
problemas… seu uso de ‘gnosticismo’ violou os princípios
metodológicos mais elementares que ele havia definido para
si mesmo muito tempo antes e, de fato, em (!) A Nova
Ciência da Política” (ROSSBACH, p. 27, exclamação do
original).

Ou seja, Voegelin não seguiu nem seu próprio método, no


seu emprego do termo “gnosticismo”: “O termo
‘Gnosticismo’ não surgiu da autointerpretação de um
cosmo[cosmion] social, nem pode ser considerado o
resultado de um processo de ‘clarificação crítica’ da parte
dos cientistas políticos” (ROSSBACH, p. 28).

Assim, Rossbach conclui taxativamente que “A Nova Ciência


da Política contribuiu para o uso inflacionário do termo
[gnosticismo]…” (ROSSBACH, p. 28).

Stephan Hoeller conta que: “Enquanto isso, pensadores


conservadores respeitáveis abandonaram a questão da
Gnose. Alguns, como o estudioso e ex-senador americano
S.I. Hayakawa, submeteram Voegelin e suas teorias a
críticas severas e ao ridículo.” (HOELLER, [s.p.]).

Voltando a Rossbach, ele conta ainda que nem mesmo


amigos próximos de Voegelin o pouparam, como Alfred
Schütz: “Também o amigo de Voegelin, Alfred Schütz,
expressou reservas [ao uso do termo “gnose” por Voegelin]”.
(ROSSBACH, p. 7).

Por fim, Rossbach diz que: “Como sempre, porém, a crítica


que tinha mais peso e, portanto, era mais dolorosa de
suportar, era a crítica que vinha de especialistas como
Bultmann.” (ROSSBACH, pp. 7–8).

Pois até mesmo Rudolph Bultmann, que Voegelin apontara


como uma das maiores autoridades vivas sobre Gnose e
Cristianismo (v. segunda citação do presente artigo), e que
com ele concorda que a Gnose é a questão central do mundo
moderno, entretanto desaprova a interpretação de Eric
Voegelin:
“Bultmann, por exemplo, considera a caracterização da
Gnose por Voegelin inapropriada. Ele fala de uma
‘secularização’ do termo e se pergunta se este gesto é
‘admissível’. E novamente, comentando Wissenschaft,
Politik und Gnosis, ele desaprova o uso de Voegelin dos
rótulos de ‘gnose’ e ‘gnóstico’.” (ROSSBACH, p. 7, citando:
Cartas de Rudolf Bultmann a Eric Voegelin, 19 July 1954
and 4 March 1960, Box 8, File 8.55).

5. Voegelin de costas para a


modernidade gnóstica de fato
Já deve ter ficado claro que há um sério problema com o uso
que Eric Voegelin faz do termo “gnosticismo” (ou “gnose”).
Antes de se passar ao principal, que é a definição dada por
Voegelin à “gnose moderna” e o teor das críticas feitas a ela,
será útil a uma melhor compreensão do assunto verificar
onde é que Voegelin vê gnose na modernidade.

Ele mesmo o diz: “Dizendo movimentos gnósticos


entendemos referir-nos a movimentos como o progressismo,
o positivismo, o marxismo, a psicanálise, o comunismo, o
fascismo e o nacional-socialismo (nazismo)” (Eric Voegelin,
II Mito del Mondo Nuovo, Rusconi, Milão, 1976, p.16, apud
Orlando Fedeli, “Gnose: Religião Oculta da História”,
<http://www.montfort.org.br/veritas/gnose.html>).

Mendo Castro Henriques, comentando a evolução da tese de


Voegelin sobre a natureza gnóstica da modernidade entre as
obras As Religiões Políticas e A Nova Ciência da Política,
acrescenta ainda alguns outros elementos: “A novidade é
que agora, a par do bolchevismo e do nacional-socialismo,
também iluminismo, humanismo, liberalismo e positivismo
são considerados etapas de um gigantesco processo que se
iniciou num sectarismo da Antigüidade e que culminou nos
totalitarismos do século XX.” (HENRIQUES, p. 62).

Pois bem, note-se que não são mencionados os movimentos


modernos mais flagrantemente gnósticos, como o
romantismo, o idealismo, a teosofia, o “tradicionalismo”
guénoniano, o modernismo, o espiritualismo, o simbolismo,
o surrealismo, a nova era, etc. Ao invés desses herdeiros
diretos da gnose “antiga” que acabamos de citar, Voegelin
menciona movimentos muitas vezes opostos aos primeiros,
movimentos estes cuja identificação com a gnose é, no
mínimo, indireta e problemática, quando não totalmente
equivocada, como se verá a seguir.

6. A distinção voegeliana entre


gnose “antiga” e “gnose moderna”
Para descobrir onde foi que Voegelin errou, é preciso antes
de mais nada deixar que ele nos explique qual a distinção
que faz entre gnose “antiga” e a suposta “gnose moderna”.
Ele o faz a seguir:

“No extremo da revolta na consciência, a ‘realidade’ e o ‘além’


se tornam duas entidades separadas, duas ‘coisas’, para
serem manipuladas magicamente pelo homem sofredor com
o propósito ou de abolir totalmente a ‘realidade’ e escapar
para o ‘além’, ou de impor a ordem do ‘além’ na ‘realidade’.
A primeira das alternativas mágicas é preferida pelos
gnósticos da antigüidade, a segunda pelos pensadores
gnósticos modernos.” (Eric Voegelin, In Search of Order, p.
37, apud ROSSBACH, pp. 6–7).
Deixando de lado, por ora, a pergunta de qual é a relação
entre “realidade” e “além” que Voegelin consideraria não-
gnóstica, depreende-se do trecho acima que, para o autor:

1. os gnósticos “antigos” buscavam “abolir totalmente a


‘realidade’ e escapar para o ‘além’”;

2. os “gnósticos modernos” buscam “impor a ordem do


‘além’ na ‘realidade’”.

Henriques descreve estas duas correntes da seguinte


maneira: “O que aproxima o gnosticismo radical da
Antigüidade das metamorfoses modernas é uma idêntica
concepção de unicidade do real. O gnóstico helenístico só
conhece Deus e reduz o mundo criado a nada. O moderno
coloca o peso da realidade no mundo: o resto é ficção.
Ambos se reconhecem consubstanciais à plenitude do real e
opostos às massas alienadas.” (HENRIQUES, p. 138)

Esta mesma distinção é precisada ainda, em outros termos,


por Eugene Webb, em seu livro sobre Voegelin: “…o
gnosticismo pode tomar a forma transcendentalizante
(como no caso do movimento gnóstico da antigüidade
tardia) ou a forma imanentizante (como no caso do
marxismo).” (Eugene Webb, Eric Voegelin: Philosopher of
History, University of Washington Press, Seattle,
Washington, 1981, p. 282; apud Bill McCLAIN, “Dictionary
of Voegelian Terminology”,
<http://www.salamander.com/~wmcclain/ev-
dictionary.html>).

7. O erro de Eric Voegelin


Pois bem, de um lado temos a gnose que Voegelin chama de
“antiga”, como se fosse coisa do passado, que é “gnose” no
sentido estrito da palavra, “gnose” como a entendem os
maiores especialistas no assunto. Do outro, temos a “gnose
moderna”, que é como Voegelin chama movimentos muitas
vezes opostos àqueles que, a seu modo, perpetuam hoje a
gnose de sempre, que de “antiga” só tem portanto a origem.
Só de colocar a questão em ordem já deve ter ficado claro
qual o erro de Voegelin. Ele é explicitado na citação a seguir,
o que de mais simples e importante já foi dito sobre o
emprego do termo “gnosticismo” por Eric Voegelin.

Nela, o problema é resolvido por Gregor Sebba, um dos


principais intérpretes e discípulos de Voegelin, favorável ao
mestre e bastante capaz, já que Voegelin dele dizia: “sempre
gosto quando Sebba escreve sobre minha obra” (Carta a
Donald E. Stanford, 24 January 1975, Box 36, file 36.34;
apud ROSSBACH p. 33 nota 92, que menciona ainda 2
outras cartas em que Voegelin faz declarações similares).
Rossbach o cita a seguir, definindo a questão:

“Porém, caso alguém queira se agarrar à noção [de


gnosticismo] e estude historicamente o que é geralmente
considerado como suas manifestações, o tema que pode ser
considerado sua ‘essência’ é o exato oposto do que Voegelin
apresentou como a essência do ‘gnosticismo moderno’. Logo
no início de seu documento, Sebba observa:

‘Alegar, como Voegelin faz, que movimentos políticos e


intelectuais modernos como o positivismo ou o marxismo
são “gnósticos” significa dizer que o gnosticismo antigo se
transformou no seu oposto ao mesmo tempo em que
permaneceu o que é.’” (Gregor Sebba, “History, Modernity
and Gnosticism”, in Peter J. Opitz, Gregor Sebba (eds.), The
Philosophy of Order: Essays on History, Consciousness and
Politics, (Stuttgart: Klett-Cotta, 1981,) p. 191).” (ROSSBACH,
p. 33, negritos nossos).
Foi exatamente esta contradição que permitiu até a um
autonomeado “bispo da igreja gnóstica” (!), o já citado
Stephan A. Hoeller, ironizar a tese de Voegelin da seguinte
forma:

“Voegelin se tornou o profeta de uma nova teoria da história,


na qual o gnosticismo exercia um papel nefando. Todas as
modernas ideologias totalitárias eram de algum modo
espiritualmente relacionadas ao gnosticismo, dizia Voegelin.
Marxistas, nazistas e praticamente todos os outros que o
bom professor julgasse repreensíveis eram na realidade
gnósticos, envolvidos na “imanentização do eschaton”, por
meio da reconstituição da sociedade num paraíso na terra.
Como os gnósticos não aceitavam o eschaton cristão
convencional de céu e inferno, Voegelin concluiu que eles
deviam estar envolvidos em uma revolução milenarista da
existência terrena. Ao mesmo tempo, Voegelin era forçado a
admitir que os gnósticos consideravam o reino terrestre
como totalmente sem esperança e irremível. A gente se
pergunta como é que o irremível reino terrestre poderia ser
transformado no “eschaton imanentizado” de uma utopia
terrena. Que os novos gnósticos de Voegelin não tivessem
nenhum conhecimento ou simpatia pelo gnosticismo
histórico também não o incomodou. Eram gnósticos, e
acabou.” (HOELLER, [s.p.], negrito nosso).

Por fim, Robert Alan Segal, professor da Universidade de


Lancaster, no mais sensato artigo escrito sobre o abuso do
termo “gnose”, por parte de vários autores, para caracterizar
movimentos modernos que não são propriamente gnósticos,
não deixa dúvidas:

“Os aspectos da modernidade que Voegelin chama de


‘gnósticos’ deveriam ser chamados de ‘apocalípticos’ ou
‘milenaristas’, pois o objetivo moderno é aperfeiçoar o
mundo, ao contrário do objetivo do gnosticismo antigo, que
é escapar dele. Ademais, a confiança moderna no
conhecimento é uma confiança mais no conhecimento do
mundo que no conhecimento do eu [self]. Embora a
avaliação da modernidade por Voegelin se baseie em muito
mais reflexão e erudição que a de Satinover, o uso que ele faz
do epíteto ‘gnóstico’ para repreender a modernidade é
igualmente equivocado.” (SEGAL, [s.p.], negrito nosso).

8. Exemplo da confusão de
Voegelin: marxismo e gnosticismo
Tomemos o caso do marxismo como exemplo, para
explicitar a confusão voegeliana. De fato, os marxistas
pensam segundo uma estrutura de pensamento gnóstica, ao
negarem a realidade em prol de um sistema irreal, e ao
sustentarem uma presunção elitista de detenção de um
conhecimento salvador. Isto decorre do fato de Marx ter
aplicado a estrutura do idealismo, que é gnóstica, ao
materialismo.

Em primeiro lugar, lembremos que é ponto pacífico que o


idealismo é gnóstico, e aqui Voegelin apenas repete o que
aprendeu nos estudiosos clássicos do assunto:

“Eu descobri que a continuidade do gnosticismo desde a


antigüidade até o período moderno era uma questão de
consenso entre os melhores estudiosos do século XVIII e
começo do XIX. Gostaria de mencionar a grande obra de
Ferdinand Christian Baur sobre Die christliche Gnosis; oder,
die christliche Religionsphilosophie in ihrer geschichtlichen
Entwicklung de 1835. Baur desvelou a história do
gnosticismo desde a gnose original da antigüidade,
passando pela Idade Média, e indo direto até a filosofia da
religião de Jakob Böhme, Schelling, Schleiermacher e
Hegel.” (Eric Voegelin, Autobiographical Reflections,
Louisiana State University Press, 1989, p. 66, negrito nosso).
Voegelin, aliás, compara Hegel a ninguém menos que o
heresiarca Valentino, e Schelling aos gnósticos atacados por
Santo Irineu:

“No caso prototípico do Gnosticismo moderno, no sistema de


Hegel, o núcleo essencial é o mesmo que nas especulações
de Valentino” (Eric Voegelin, The Ecumenic Age, pp. 18–29;
apud ROSSBACH, p. 6).

“Schelling não pode ser totalmente absolvido da acusação


levantada por Sto. Irineu contra os gnósticos do século II
d.C.: ‘Eles abrem Deus como se fosse um livro’ e ‘Eles
colocam a salvação na gnose [conhecimento] daquilo que é a
majestade inefável’.” (Eric Voegelin, Plato, University of
Missouri Press, 2000, p. 193).

Porém, evidentemente, é preciso distingui-los: dizer sem


mais nem menos que o marxismo é gnóstico — como
Voegelin faz — é semelhante a dizer que o marxismo é
idealista! De fato, o marxismo tem a estrutura do idealismo,
que é gnóstica, mas, quando Marx faz a transposição do
sistema idealista de Hegel para a matéria, este deixa de ser
gnóstico para se tornar panteísta.

Esse tipo de confusão entre panteísmo e gnose é freqüente,


pois ambos se encontram misturados na maioria dos casos.
Hans Jonas cita o exemplo do hermetismo:

“Nem todo o Corpus [Hermeticum] pode ser considerado


como uma fonte gnóstica: grandes partes dele respiram o
espírito de um panteísmo cósmico muito distante da
denúncia violenta do universo físico tão característica dos
gnósticos.” (Hans JONAS, “The Poimandres of Hermes
Trismegistus”, in The Gnostic Religion, Boston, Beacon
Press, 2nd edition, 1991, p. 147).
Ademais, é preciso notar que, como Marx dizia (e
demonstrou), idealismo e materialismo são perfeitamente
reversíveis. Isso deriva diretamente do princípio gnóstico de
que matéria é espírito solidificado, e espírito é matéria
sublimada.

Assim, enquanto, por um lado, não se pode negar a distinção


entre gnose e panteísmo (da mesma forma que é preciso
distinguir idealismo de materialismo), por outro lado, há
uma relação dialética entre os dois, de modo que se pode
afirmar que o panteísmo é a antecâmara da gnose. Como
afirma o Prof. Orlando Fedeli, “o panteísmo é irmão gêmeo e
dialético da gnose”.

Há duas pontes entre panteísmo e gnose: a intelectual e a


moral. Simplificando muito, digamos apenas que, no plano
intelectual, extremos de racionalismo levam dialeticamente
ao irracionalismo, e vice-versa; enquanto que, no plano
moral, extremos de ascese levam a extremos de libertinismo,
e vice-versa.

Quando há a união destes dois movimentos antagônicos,


agradando assim a todas as tendências más do ser humano,
irrompem as revoluções. Nos termos do Prof. Orlando
Fedeli, trata-se dos pólos negativo e positivo do erro, que, ao
se unirem, causam um curto-circuito (a revolução),
repelindo-se logo depois. É o caso da heresia modernista,
por exemplo, que uniu o agnosticismo ao imanentismo. É
por esta última característica que o modernismo é gnóstico.

Aliás, que o modernismo seja gnóstico é algo que até o


prefaciador da edição brasileira de A Nova Ciência da
Política reconhece:

“O movimento gnóstico remonta a Simão Mago, cuja história


nos foi transmitida pelos Atos dos Apóstolos. Desenvolveu-
se no século II, mas, longe de desaparecer ante a refutação
de seus erros por [Santo] Irineu, Tertuliano, Clemente de
Alexandria e outros, ficou sendo uma vegetação religiosa
parasitária ao longo da história da Igreja, corroendo a
doutrina cristã e suscitando outras tantas heresias.
Extraordinariamente reavivado em nosso século, palpita no
fundo da heresia modernista e do chamado ‘progressismo’.
(O modernismo foi condenado por São Pio X na memorável
encíclica Pascendi Dominici Gregis de 8 de setembro de
1907, à qual deve ser acrescentada a Carta do mesmo
Pontífice sobre Le Sillon (25 de agosto de 1910)).”

(Prof. José Pedro Galvão de Sousa, “Apresentação” de A


Nova Ciência da Política, de Eric Voegelin. Brasília, Editora
Universidade de Brasília, 1982, 2ª edição, pp. 8–9, negritos
nossos, itálicos e parênteses do original).

Porém, embora a conclusão seja verdadeira, possivelmente é


pelas razões erradas que o Prof. Galvão de Sousa diz que o
modernismo é gnóstico (ou seja, por seu a-gnosticismo), já
que fala também do progressismo, que é marxista e,
portanto, mais propriamente panteísta, pelas razões
mostradas acima. Nisto, o Prof. Galvão de Sousa segue o
erro do autor que prefacia.

Acrescente-se ainda que Voegelin afirma claramente (tanto


na segunda citação deste trabalho como em suas
Autobiographical Reflections) que suas maiores influências
no estudo da gnose foram justamente os teólogos
modernistas Henry de Lubac e Hans Urs von Balthasar, da
“nouvelle theologie” condenada pelo Papa Pio XII na
encíclica Humani Generis.

9. Conseqüência da contradição: a
caricatura da gnose
Certamente foram abusos terminológicos como este de Eric
Voegelin que levaram à célebre caricatura de Ioan P.
Couliano, citada tanto por Rossbach quanto por Hoeller, e
que reproduzimos a seguir:

“Houve um tempo em que eu acreditei que o gnosticismo era


um fenômeno bem identificado pertencente à história
religiosa da antigüidade tardia. Evidentemente, eu estava
pronto a aceitar a idéia de diferentes prolongamentos da
gnose antiga, e mesmo a idéia da geração espontânea de
visões de mundo nas quais, em épocas diferentes, as
características distintivas do gnosticismo ocorrem
novamente.”

Até aqui, o consenso dos especialistas: a gnose é um


fenômeno antigo, com características bem identificadas, que
surge, por vezes, pelo contato histórico com pessoas
pertencentes a movimentos gnósticos, mas que pode surgir
também por um posicionamento pessoal errôneo diante do
problema do ser, da contingência e do mal. Porém…

“Eu logo aprenderia, porém, que eu era de fato um ingênuo.


Não só a gnose era gnóstica, mas os autores católicos eram
gnósticos, os neoplatônicos também, a Reforma era
gnóstica, o comunismo era gnóstico, o nazismo era gnóstico,
o liberalismo, o existencialismo e a psicanálise eram
gnósticos também, a biologia moderna era gnóstica, Blake,
Yeats e Kafka eram gnósticos… Eu aprendi a seguir que a
ciência é gnóstica e a superstição é gnóstica… Hegel é
gnóstico e Marx é gnóstico; todas as coisas e seus opostos
são igualmente gnósticos.”

(Ioan P. Couliano, “The Gnostic Revenge: Gnosticism and


Romantic Literature”, in Gnosis und Politik, Jacob Taubes,
ed. (Munich: W. Fink, 1984), p. 290; apud HOELLER, [s.p.],
negrito nosso).
Assim, não é de surpreender que o já citado Robert Segal,
em seu artigo “Gnosticism, Ancient and Modern”, aponte a
mesma confusão de Voegelin exatamente em Ioan Couliano,
cuja conclusão absurda acaba de ser citada. Segal mostra de
modo claro e breve como apenas Hans Jonas, dentre os
autores que analisa, faz um paralelo adequado entre
gnosticismo e modernidade, ao falar dos traços
marcadamente gnósticos do existencialismo.

Segal mostra ainda que, além de Voegelin e Couliano,


também outros autores cometem o mesmo abuso no
emprego do termo “gnose”, usando-o para caracterizar
movimentos modernos panteístas, como é o caso de
Giovanni Filoramo, que cita Voegelin nominalmente em seu
A History of Gnosticism. Por isso, Segal conclui: “Singer,
Filoramo, Couliano e seus predecessores [Jung e Voegelin]
pinçam aspectos diferentes do gnosticismo e da
modernidade. Ao avaliarem os antigos com olhos modernos,
eles estão projetando no gnosticismo suas próprias
esperanças, ansiedades e convicções.” (SEGAL, [s.p.]).
(Parece-nos que a relação entre Jung e a gnose, proposta por
Singer, é um pouco mais complexa que uma mera repetição
do erro de Voegelin e seus sucessores, mas deixaremos esta
questão para outra ocasião.)

Também é este o caso de Stephen McKnight, cujo breve


estudo Gnosticism and Modernity: Voegelin’s
Reconsiderations in 1976, apresentado no mesmo local e
data que o de Rossbach, termina dizendo: “acho que
Voegelin percebeu que o termo gnosticismo já fora usado de
tantas maneiras diferentes e aplicado a tantos fenômenos
diferentes que estava perdendo seu valor teórico”
(McKNIGHT, pp. 6–7). Ora, vimos que Voegelin foi
justamente um dos maiores colaboradores a este uso
abusivo do termo, talvez mesmo visando obscurecer seu
valor teórico, por razões que serão analisadas adiante.
Mendo Castro Henriques conta que nem mesmo o Colóquio
de Messina, de 1966, que reuniu vários especialistas sobre o
tema da gnose, escapou ileso da confusão voegeliana: “Esta
preocupação [do Colóquio] evidencia que a definição e
localização do gnosticismo deixara de ser pacífica, em
virtude da acumulação de investigações sobre novas
vertentes do fênomeno, mormente o relacionamento com a
política e a modernidade.” (HENRIQUES, p. 137, negrito
nosso).

Por fim, é interessante mencionar a conclusão de Edward


Moore, autor do verbete “Gnosticism” para a Internet
Encyclopedia of Philosophy, após considerar as tentativas de
desqualificar o termo “gnose” por parte de Michael Allen
Williams, autor de Rethinking Gnosticism: Arguments for
Dismantling a Dubious Category. (Basta olhar o nome dos
capítulos do livro de Williams, quase sempre em forma de
pergunta, para constatar que se trata da mesma confusão
dos autores acima. Pois, tentando impugnar a validade
teórica do termo “gnose”, Williams dá os seguintes títulos
aos capítulos de seu livro: “Rejeição anticósmica do mundo
ou acomodação sócio-cultural?”, “Ódio do corpo ou
perfeição do ser humano?”, “Elitismo determinista ou
teorias inclusivas de conversão?”, etc. Evidentemente, só os
primeiros elementos destas perguntas são propriamente
gnósticos, podendo ser os segundos panteístas.). Assim,
Moore conclui, contra Williams e os demais:

“Deve ser observado, entretanto, que os Padres da Igreja,


como Clemente de Alexandria, Irineu, Orígenes, Hipólito,
Epifânio, e mesmo filósofos pagãos como Plotino e Porfírio,
que nos preservaram relatos e ocasionalmente alguns
documentos originais dos filósofos e teólogos que eles
classificavam como ‘gnósticos’, eram também
contemporâneos ou quase contemporâneos de muitas das
figuras e escolas que eles criticam e interpretam. Os insights
destes escritores, portanto, que viviam e trabalhavam lado a
lado e quase sempre em conflito com membros de seitas
gnósticas, devem ter prioridade sobre quaisquer tentativas
modernas de revisar nosso entendimento do que é o
gnosticismo.” (MOORE, [s.p.], negrito nosso).

10. Outra conseqüência absurda: a


ortodoxia é gnóstica, e a gnose é
ortodoxa?!
Como disse sabiamente São Pio X, ao condenar a gnose
modernista na encíclica Pascendi
<http://www.montfort.org.br/documentos/pascendi.html>:
“As conseqüências deviam fazê-los recuar; mas, como a
audácia é uma das características desses inimigos da Igreja,
não há conseqüências de que se amedrontem e que não
aceitem com obstinação e sem escrúpulos.” Veja-se a seguir
a que absurdos será levado Voegelin.

Pois não se trata aqui somente de uma mera confusão de


definições, sem maiores conseqüências. Voegelin levará ao
extremo a inversão de conteúdo do termo “gnosticismo”,
chegando ao absurdo flagrante de acusar a Igreja e seu
maior Doutor de gnose, ao mesmo tempo em que, como
veremos adiante, defende posições e autores gnósticos no
sentido clássico — e, a bem dizer, único — do termo!

Ao definir a tal “gnose moderna” como “imposição da ordem


do além na realidade”, Voegelin não se limita a aplicá-la ao
marxismo, por exemplo, que visa estabelecer a utopia
comunista, criar o que entende ser o “paraíso na Terra” (em
outras palavras, “o além na realidade”). Não, Voegelin vai
além e acusa a escolástica de gnose, por interpretar com a
razão os mistérios da fé:
“É uma impossibilidade teórica submeter um mistério ritual,
como a conversão, a uma ‘interpretação’ em termos de
metafísica aristotélica, como foi feito na doutrina da
transubstanciação. Uma vez que este caminho falacioso
tenha sido tomado, é apenas uma questão de tempo e
circunstância até que metafísicos indignados se rebelem
contra uma substância sem acidentes e acidentes sem
substância… [A] ascendência [deste caminho] remonta a
antes da Reforma, até a invasão metafísica do período
escolástico. A confusão iluminista dos símbolos, a inclinação
gnóstica de estender a operação do intelecto ao domínio da
fé e do mito, começa em problemas específicos do século
doze, e entre os pecadores encontramos, talvez
inesperadamente, até mesmo Santo Tomás.” (Eric Voegelin,
History of Political Ideas: vol. IV, pp. 226–228, apud
MITCHELL, [s.p.]).

Voegelin ataca a doutrina da transubstanciação, e diz que ela


causa indignação! Não vamos entrar na questão de mostrar
a relação entre razão e fé, e a legitimidade da explicação
tomista dos termos dos mistérios da fé, cujo conteúdo não
deixa de ser misterioso por causa disso.

O que interessa aqui é verificar que, para Voegelin, há uma


“inclinação gnóstica de estender a operação do intelecto ao
domínio da fé e do mito”. Ora, tal coisa não existe; mais uma
vez, é bem o contrário o que acontece na gnose. Como
explica Hans Jonas: “Embora a relação entre fé e
conhecimento (pistis e gnosis) tenha se tornado um
problema importante na Igreja entre os hereges gnósticos e
os ortodoxos, não se tratava do problema atual entre fé e
razão com o qual estamos acostumados; pois o
‘conhecimento’ dos gnósticos que contrastava com a fé
simples dos cristãos, seja a favor ou contra, não era de tipo
racional.” (JONAS, pp. 34–37, negrito nosso, itálicos do
original).
Isso porque a inteligência, assim como a vontade, são
potências da alma. E, como Jonas mostra adiante, segundo
os gnósticos: “A alma é parte da ordem natural, criada pelo
demiurgo para prender o espírito estrangeiro…” (ibid., p.
333) E em outra parte: “Mas o dualismo gnóstico vai além
desta posição de indiferença. Pois considera a própria
‘alma’, o órgão espiritual pelo qual o homem pertence ao
mundo, como — não menos que o seu corpo — originada
pelos poderes cósmicos e portanto como um instrumento do
domínio destes sobre seu verdadeiro, mas submerso, eu. (…)
O desprezo pelo cosmos entendido radicalmente inclui o
desprezo pela psyche.” (ibid., p. 269).

O que não poderia ser diferente, já que é por meio da razão


que o homem compreende o mundo, cuja ordem e
cognoscibilidade são consideradas prisões pelos gnósticos:
“A falha da natureza não está em alguma deficiência da
ordem, mas sim na completude penetrante desta ordem.
Longe de ser caos, a criação do demiurgo, o antípoda do
conhecimento, é um sistema compreensível governado por
leis. Mas a lei cósmica, antes considerada [pelos gregos]
como a expressão de uma razão com a qual a razão do
homem pode se comunicar no ato cognitivo e que ele pode
tornar sua na emolduração de sua conduta, é vista agora
[pelos gnósticos] apenas em seu aspecto de compulsão que
frustra a liberdade do homem. O logos cósmico dos estóicos
é substituído por heirmamene, o opressivo destino
cósmico.” (ibid., p. 253).

Quem explica essas coisas é Hans Jonas, um dos maiores


especialistas em gnose, conforme o próprio Voegelin
reconhece, como foi visto na segunda citação do presente
trabalho. De tudo isso se vê o quanto é absurdo afirmar que
a gnose queira recuperar o mundo, e ainda por cima por
meio da razão, como pretende Eric Voegelin. Como “reforma
do mundo”, a gnose pode apenas pretender a destruição da
ordem cósmica como tal, já que esta é obra de de um
demiurgo mau.
Toda essa questão ficará ainda mais clara pela seguinte
explicação de Jonas sobre em que consiste o conhecimento
gnóstico: “Gnose significava antes de tudo conhecimento de
Deus, e pelo que já dissemos a respeito da transcendência
radical da divindade, segue-se que o “conhecimento de
Deus” é o conhecimento de algo naturalmente incognoscível
e portanto não se trata de uma condição natural. (…) [Na
gnose] o conhecimento como um ato mental é imensamente
diferente da cognição racional da filosofia. Por um lado, é
intimamente ligado à experiência revelatória, de modo que a
recepção da verdade, por meio de lendas sagradas e secretas
ou por meio de uma iluminação interior, substitui o
argumento racional e a teoria (embora esta base extra-
racional possa depois dar oportunidade à especulação
independente)…” (ibid., pp. 34–35, negritos meus).

Acima, Jonas explica que o gnóstico tem uma “experiência


revelatória”, pela qual obtém o conhecimento do que lhe é
naturalmente incognoscível (a gnose). Disso se segue que as
várias doutrinas, credos e dogmas são meras formulações
que vêm depois desta “iluminação interior”. E, por isso,
servem no máximo como referência para que uma outra
pessoa refaça a tal “experiência revelatória” que deu origem
a estas fórmulas religiosas, apreendendo assim seu sentido
profundo, esotérico e inefável.

Negando a razão ou, quando muito, subordinando-a a esta


pretensa “intuição”, dita “supra-racional”, a gnose também
nega ou relativiza o valor das formulações lógicas (logo,
racionais), em palavras e conceitos, dessa suposta
experiência direta com a divindade inefável que os gnósticos
alegam ter.

É também por tudo isso que a gnose é sempre sincrética,


considerando as religiões como diferentes formulações,
necessariamente insuficientes, de uma mesma revelação
interior. Como os místicos seriam aqueles que atingem esta
“experiência” (a gnose), todas as religiões — para os
gnósticos — coincidiriam na mística. Falar em Igreja só faria
sentido se este termo designasse uma “Igreja Espiritual”,
que abrangesse os gnósticos de todas as religiões, os
“místicos” ou “pneumáticos”, que é como são chamados
classicamente.

O que acaba de ser descrito, sucintamente, a partir de


observações de Jonas sobre a natureza do conhecimento
gnóstico e explicitando algumas das conseqüências lógicas
destas observações, se aplica perfeitamente não só aos
movimentos gnósticos dos primeiros séculos, como também
à teologia de Lutero, dos idealistas alemães, da heresia
modernista condenada por São Pio X e também de muitos —
 senão todos — autores ditos “espiritualistas”, opostos aos
materialistas acusados de gnose por Voegelin. Daí que
possam todos ser chamados adequadamente de gnósticos,
no sentido estrito do termo, o que se aplica também… à
filosofia do próprio Eric Voegelin.

11. Eric Voegelin contra o


Catolicismo
Vai além dos propósitos deste estudo expor as diferenças
radicais que existem entre a mística católica e as pseudo-
místicas das seitas, vulgarmente conhecidas como
“religiões”. Limitemo-nos a constatar que as teses acima
foram condenadas repetidamente pela Igreja Católica.

Por isso, não é de estranhar que Eric Voegelin se oponha à


Igreja de Roma, algo que todos os estudiosos de sua obra
testemunham.
Bill McClain mostra como Voegelin entendia a história da
religião cristã: “Neste ponto, todos se perguntarão sobre o
caráter da fé religiosa de Voegelin. Ele se intitulava um
‘Cristão pré-Reforma’ e um ‘humanista Cristão’, mas ele não
era membro de nenhuma congregação. Ele dizia que, assim
como a história da filosofia era a história de seu
descarrilamento, o mesmo acontecia com a religião Cristã.”
(Bill McCLAIN, “Advice for those who want to read Eric
Voegelin”, <http://www.salamander.com/~wmcclain/ev-
advice.html>).

Ou seja, a Igreja Católica seria para Voegelin uma corrupção


do Cristianismo. (O mesmo, aliás, que sempre disseram
todos os hereges). Isso porque, para Voegelin, a intuição
“degenera” em dogma, alegação esta que Voegelin
compartilha justamente com os gnósticos de todos os
tempos, e com os modernistas atuais.

Também Mendo Castro Henriques, que dedica todo um


capítulo de sua tese sobre Voegelin à relação deste com o
Cristianismo, conclui: “Avaliado por critérios de obediência
a qualquer confissão cristã, [Voegelin] seria heterodoxo,
dada a sua visão da Igreja visível e a sua afirmação de que os
dogmas são uma forma secundária de fé… não participava
da vida sacramental de qualquer Igreja; e talvez
considerasse que o discurso filosófico se deve calar acerca da
fé íntima.” (Mendo Castro HENRIQUES, “Ser ou Não Ser
Cristão”, in A Filosofia Civil de Eric Voegelin, Lisboa,
Universidade Católica Editora, 1994, p. 170).

Bruce Douglass acrescenta que “o que falta [no pensamento


de Voegelin] é o sentido do Evangelho no sentido
especificamente Cristão” (Bruce Douglass, “A Diminished
Gospel: A Critique of Voegelin’s Interpretation of
Christianity”, in Eric Voegelin’s Search for Order in History,
Stephen A. McKnight ed. (Baton Rouge: Louisiana State
University Press, 1978), p. 146, itálicos do original; apud
MITCHELL, nota 25).

Também David Gordon, do Mises Institute, ao tratar da


visão que Voegelin tinha tanto do Cristianismo quanto do
judaísmo, afirma: “ele apresenta o que a meu ver é uma
descrição distorcida destas religiões.” (GORDON, [s.p.],
negrito nosso).

Se Voegelin às vezes parece ter o Cristianismo em alta


estima, é pelas razões mais estapafúrdias: “É indubitável
que Voegelin elege o cristianismo como o mais excelente
simbolismo de revelação. Em rigor, considera-o uma
concepção trinitária e não monoteísta, porquanto combina
em um único símbolo experiências diferentes de teofania.”
(HENRIQUES, p. 169, negritos nossos). Um modernista não
diria diferentemente.

Nos escritos do próprio Voegelin, ademais, ele não esconde


sua posição. Voegelin zomba da Religião Católica
abertamente, mostrando como ele engana os religiosos que
procuram sua orientação, e tratando Nossa Senhora e a
Santa Igreja com a maior irreverência:

“O ‘cristão pré-Reforma’ é uma piada. Eu nunca escrevi algo


assim. Estas brincadeiras aparecem porque eu
freqüentemente tenho de afastar pessoas que querem me
‘classificar’. Quando alguém quer que eu seja um católico ou
um protestante, eu lhe digo que sou um ‘cristão pré-
Reforma’. Se quiser me definir como um tomista ou
agostiniano, eu lhe respondo que sou um ‘cristão pré-
Nicéia’. E se quiser me definir ainda antes, eu lhe digo que
até a Virgem Maria não era membro da Igreja Católica. Eu
tenho uma boa quantidade de respostas prontas para
pessoas que me chateiam após uma palestra; e assim elas
são persuadidas de que tem informação autêntica sobre
minha ‘posição’.” (Eric Voegelin, Carta a John East, 18 July
1977, Box 10, File 10.23, apud ROSSBACH, p. 36).

Como se isso não bastasse, veja-se a seguinte afirmação que


Voegelin faz num de seus livros, com a qual não há herege
que discorde, desde os gnósticos da antigüidade, até os
modernistas que, hoje em dia, dizem exprimir o espírito do
Concílio Vaticano II: “a liderança da Igreja encara a tarefa
de espiritualizar a idéia da igreja universal de tal maneira
que seja independente do acidente romano” (Eric Voegelin,
History of Political Ideas: vol. IV, p. 224, negrito nosso,
apud MITCHELL, [s.p.]).

O próprio Henriques, favorável a Voegelin, não pode evitar


notar a semelhança entre a posição gnóstica e a de Voegelin:

“O gnóstico supõe que a natureza humana é inerentemente


paradoxal e desordenada; mas a tensão entre verdade e
inverdade [defendida por Voegelin] não colocará também o
homem num paradoxo inerente? É ortodoxo insistir que a
revelação divina é um mistério cuja verdade não pode ser
compreendida nesta vida pelo homem; mas é polêmico
descrever [como Voegelin faz] o caráter incontornável da
tensão entre a verdade e a inverdade, como se a tentativa de
encontrar a verdade e separá-la da inverdade destruísse a
existência humana. Voegelin… escreve sobre a posse
assassina da verdade, como se houvesse mal em livrar-se do
erro através de dogmas que se opõem às falsas certezas que
desafiam a verdade divina.” (HENRIQUES, p. 168)

Há outros dois estudiosos, porém, que são mais diretos. O já


citado David Gordon, do Mises Institute, encerra sua breve
resenha sobre Voegelin afirmando taxativamente: “A gente
se pergunta se, para Voegelin, o Deus de que ele tanto fala é
um ser pessoal. R.J. Rushdoony acertou na mosca quando
caracterizou o próprio Voegelin como um gnóstico.”
(GORDON, [s.p.], negrito nosso).
12. Eric Voegelin contra o
Deus pessoal
Quanto a esta questão de Deus ser ou não pessoal para
Voegelin, há algumas passagens de seus escritos que a
elucidam bastante. Na primeira que citaremos, Voegelin
abusa totalmente e sem qualquer fundamento das
afirmações de Santo Tomás sobre a legitimidade da teologia
negativa (ou apofática), e afirma o absurdo de que o Doutor
Angélico defenderia a existência de um Deus impessoal e —
 pasmem! — “tetragramático”. Será que, para Voegelin, Santo
Tomás seria um cabalista? É claro que o erudito Voegelin,
aqui, não cita fonte alguma para esta sua afirmação, tão
ousada quanto descabida.

A apofase é facilmente exagerada, o que leva a cair na


distinção gnóstica entre Deus e Divindade, respectivamente
Ser e Não-Ser, de modo que o Ser (o demiurgo, que o Antigo
Testamento chama de Javé e que é o Criador do mundo)
teria emanado do Não-Ser, o Deus desconhecido, o Deus
absconditus do qual Voegelin fala favoravelmente a seguir:

“Na análise de Santo Tomás, por exemplo, aparece o Deus


pessoal que é apropriadamente chamado de ‘Deus’, mas
atrás do Deus que pronuncia seu Verbo e ouve a palavra da
oração, paira o Deus tetragramático, sem nome e
impessoal.” (Eric Voegelin, Order and History vol. V: In
Search of Order, The Collected Works of Eric Voegelin,
Volume XI, Ed. Ellis Sandoz (University of Missouri Press,
2000), p. 83, negrito nosso.)

Um dos frutos desta concepção errônea e gnóstica de Deus é


a negação da Providência. Isso explica como Voegelin pode
chamar o Profeta Isaías de feiticeiro, dizendo que sua
recomendação ao rei de que confiasse em Deus é um ato de
magia! É ver para crer:
“Na profecia de Isaías encontramos a esquisitice [sic!] de que
Isaías aconselhou o rei de Judá a não confiar nas
fortificações de Jerusalém e na força de seu exército, mas
sim em sua fé em Javé. Se o rei tivesse fé verdadeira, Deus
faria o resto e produziria uma epidemia ou pânico entre os
inimigos, e o perigo à cidade seria dissolvido. O rei teve bom
senso o suficiente para não seguir o conselho do profeta, e
sim confiar nas fortificações e nos equipamentos militares.
Mesmo assim, havia a afirmação do profeta de que por meio
de um ato de fé a estrutura da realidade poderia ser
efetivamente mudada. Ao estudar este problema e tentar
entendê-lo, minha primeira idéia, é claro, foi que o profeta
entregou-se à magia, ou ao menos acreditava em magia. Isto
não seria surpreendente, pois na história de Israel era a
função dos profetas, por exemplo, guiar a mão do rei para
atirar uma flecha contra o inimigo numa operação mágica
que resultaria em vitória. (…) Eu não usei o termo magia
para a prática aconselhada por Isaías, mas inventei um novo
termo para caracterizar a peculiar crença mágica sublimada
numa transformação da realidade por meio de um ato de fé.
(…) Não estou certo de que hoje eu faria essa concessão, pois
este tipo de fé é de fato magia, embora tenha-se que
distinguir esta variedade ‘sublimada’ de uma operação
mágica mais primitiva.” (Eric Voegelin, Autobiographical
Reflections, pp. 68–69, negritos nossos, itálico do original).

A crença num Deus impessoal explica também a simpatia de


Voegelin pelo hinduísmo: “É interessante notar, neste
contexto, que Voegelin comentou em pelo menos duas
ocasiões que seu interesse por ‘problemas de compreensão
religiosa’ foi provocado pela primeira vez pelas conferências
de Paul Deussen sobre as Upanixades, em Viena, em
1918/19. Deussen, um amigo de Nietzsche, foi tradutor das
upanixades e um dos maiores especialistas em filosofia
indiana. O texto favorito de Voegelin das upanixades era o
Brihadaranyaka, pois era um belo exemplo da via negativa
do ‘misticismo intelectual’.” (ROSSBACH, p. 25).
Um exemplo prático do “misticismo” defendido por Eric
Voegelin será visto logo mais, no capítulo 14.

13. Voegelin mudou de opinião


sobre a gnose?
Há quem diga que Voegelin mudou de opinião, mais tarde,
sobre o gnosticismo. Rossbach, porém, que dedicou seu
trabalho a analisar justamente esta questão, nega que
Voegelin tenha mudado:

“O tema do ‘gnosticismo’ perpassa a obra de Eric Voegelin


desde A Nova Ciência da Política até In Search of Order [o
último livro de Voegelin]. Claro que houve qualificações,
revisões e ajustes… Mas Voegelin jamais renunciou à sua
crença de que por trás da noção de gnose, ou gnosticismo,
havia um problema espiritual muito sério, perene, que de
algum modo, na era moderna, se elevara ao nível de
fenômenos de massa sociais e políticos.” (ROSSBACH, p.
12).

O que aconteceu foi que Voegelin passou a acrescentar


outros elementos, além do gnosticismo, como componentes
da desordem moderna. São todos elementos que já eram
mencionados nos primeiros livros de Voegelin, nos quais
entretanto eram vistos como variantes da gnose. A questão
aparece nitidamente num diálogo epistolar entre Voegelin e
Bishirjian:

“(…) ‘E hoje eu teria de dizer que o Gnosticismo é um


componente na estrutura histórica da modernidade, mas
não mais do que um. De igual importância, no fim das
contas, são os apocalípticos, o neoplatonismo, o
hermetismo, a alquimia e a magia. (…)’
(Voegelin, Carta a Robert J. Bishirjian, 8 September 1976,
Box 8, File 8.18).

Em sua resposta Bishirjian perguntou se ‘estes vários


movimentos [poderiam] ser espécies do gênero
Gnosticismo’ (Carta de Robert J. Bishirjian to Voegelin, 14
September 1976, Box 8, File 8.18). Mas Voegelin discordou:

‘A literatura sobre magia, neoplatonismo, apocalípticos,


cabala, hermetismo e alquimia está crescendo
prodigiosamente e pode ser lida por quem quer que se
interesse. Todos estes fatores são componentes da atual
desordem intelectual, assim como o Gnosticismo. […] Eu
seria cuidadoso quanto a usar o termo “Gnosticismo” como
um gênero, abrangendo os outros movimentos.’ (Voegelin,
Carta a Robert J. Bishirjian, 21 October 1976, Box 8, File
8.18).” (ROSSBACH, p. 11)

Três constatações devem ser feitas a partir das citações


acima.

Primeiro, que Voegelin cita todos estes novos elementos


como “componentes da atual desordem intelectual”, ou seja,
sua influência é vista como tão perniciosa quanto à da gnose.
Isso deve ser enfatizado porque sempre há aqueles prontos a
defender uma suposta “boa alquimia”, “cabala cristã”,
“astrologia escolástica”, assim como uma “boa gnose”.

Em segundo lugar, Voegelin limita-se a recomendar


cuidado, e de fato não afirma que o Gnosticismo não seja um
gênero que abrange os outros movimentos citados.

Em terceiro lugar, é no mínimo curiosa a displicência com


que Voegelin cita estes “novos elementos”, pois mesmo no
curto intervalo entre a primeira e a segunda cartas a
Bishirjian, já há um elemento que só aparece na segunda: a
cabala.
(Não cabe aqui demonstrar até que ponto cada uma destas
correntes é gnóstica. Gershom Scholem afirma em diversos
livros que a cabala é o gnosticismo judaico; sobre o
neoplatonismo, Puech tem um ensaio sobre os pontos de
encontro entre Plotino e os gnósticos, não obstante serem
eles criticados por este neoplatônico; sobre o hermetismo e a
gnose, tratam Jonas e Puech, baseando-se principalmente
na obra clássica de Festugière; sobre os “apocalípticos”,
distinguindo precisamente entre milenarismo e utopia, e
mostrando sua relação com o gnosticismo, o Prof. Orlando
Fedeli tem o trabalho definitivo, Conceituação, Causas e
Classificação das Utopias, que se encontra no site da
Associação Cultural Montfort
(http://www.montfort.org.br/cadernos/utopia1.html); o
mesmo trabalho tem referências sobre a magia e a gnose,
relação esta que se encontra em todos os livros sobre o
assunto; finalmente, sobre os pressupostos gnósticos em que
se baseiam tanto a alquimia como as demais pseudociências
esotéricas (astrologia, numerologia, etc.), são seus próprios
defensores que o afirmam, como os guénonianos Titus
Burckhart e Serge Hutin, nos livros que dedicam ao assunto.
O livro do Prof. Orlando Fedeli mencionado na apresentação
deste trabalho contém um capítulo revelador sobre esta
questão.)

Mas esta mudança de enfoque, sem maiores explicações,


não é difícil de entender, ao se verificar as posições gnósticas
que o próprio Voegelin adotou, como vimos brevemente e
como qualquer análise de sua filosofia mostra com clareza, e
também tendo em mente uma constatação importante de
Rossbach sobre o caráter de Voegelin: “É verdadeiramente
notável como Voegelin, durante a vida, e com muito sucesso,
tentou se esconder por trás de uma cortina de fumaça de
declarações nas quais ele nega a responsabilidade da
autoria.” (ROSSBACH, p. 34)
14. A pseudomística de
Eric Voegelin
Para este trabalho não ficar teórico demais, encerremos
mostrando com exemplos qual é afinal a mística defendida
por Voegelin.

Rossbach diz ser útil, para entender Voegelin, “compará-lo à


personagem principal e ao título de um de seus romances
prediletos, O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil. A
admiração de Voegelin por Musil é bastante conhecida. (…)
Voegelin respeitava Musil como um ‘observador da
realidade incrivelmente cuidadoso’ e como um ‘mestre dos
problemas intelectuais envolvidos’. Musil, por sua vez, tinha
grande respeito pela obra de Voegelin; os dois se
encontraram muitas vezes em Viena.” (ROSSBACH, p. 36).

Assim, Rossbach mostra a semelhança entre Voegelin e


Ulrich, protagonista do romance O Homem Sem
Qualidades, de Robert Musil:

“Ulrich identifica aqui, sob as realidades secundárias que


dominam seu cenário social e, de fato, sob os simbolismo
religiosos, a verdade e a realidade primeira do misticismo.
(…) Ulrich teria poucas dificuldades de entender os escritos
de Voegelin sobre as equivalências de experiências. Por
conseguinte, os dois também compartilham de uma peculiar
‘falta de qualidades’… Ulrich, como Voegelin, é um ‘homem
sem qualidades’ porque, para usar as palavras de Voegelin
citadas acima, ele não insiste em ‘achar suas coordenadas
absolutas em sua nação, como um marxista, um liberal, etc.’.
Ambos não prendem suas identidades ao que não passa das
‘últimas palavras de cada religião histórica’. Ambos sabem
que a ‘realidade da fé’ está além dos símbolos. Um
comentador caracterizou Ulrich como ‘um homem de fé que
por acaso não acredita em nada’, e nós sugerimos que a via
negativa de Voegelin foi dirigida pelo mesmo problema.”
(ROSSBACH, p. 37, negrito nosso).

Como se o que foi dito não fosse suficiente, Rossbach ainda


conta que a inspiração do livro de Musil é ninguém menos
que o famoso escritor judeu Martin Buber, especialista em
hassidismo (sistema gnóstico baseado na cabala luriânica):
“O romance de Musil é entremeado com mais de trezentas
citações da coletânea de Martin Buber intitulada Ecstatic
Confessions: The Heart of Mysticism, publicada em 1909. A
biblioteca de Ulrich, na verdade, vem das Ecstatic
Confessions de Buber.” (ROSSBACH, p. 37).

Ainda mais interessante é o fato de Voegelin citar Henri


Bergson e Jean Bodin como os dois grandes místicos da
modernidade: “Nos tempos modernos, explica Voegelin, o
misticismo se tornou duas vezes a fonte de tentativas de
encontrar o caminho de volta do dogmatismo para a
racionalidade do pensamento: primeiro por Bodin, no
século 16, ‘numa situação de dogmatomaquia teológica’; a
segunda vez por Bergson no século 20, ‘numa situação de
dogmatomaquia ideológica’. O misticismo de Bodin evita o
descarrilamento num ‘dogma literalista’ pela manutenção do
equilíbrio entre o conhecimento dos símbolos e o
conhecimento do que está além deles. Este balanço entre os
domínios do silêncio e da expressão caracteriza a natureza
da ‘tolerância’. (Eric Voegelin, Was ist politische Realität?,
pp. 333–340)” (ROSSBACH, pp. 24–25).

Assim, Voegelin supõe um conhecimento que está além dos


dogmas e que seria superior a eles. Isto é modernismo. Esse
conhecimento seria superior a qualquer credo histórico
concreto, inclusive o da Igreja Católica. Esse conhecimento
seria então comum a todas as religiões. Estas idéias fazem
de Voegelin não só um gnóstico, mas também um
modernista. O que não é de surpreender num homem que
admite ter sido muito influenciado por padres modernistas
como Balthasar e Lubac.

Voltemos a Bergson e Bodin. Já que Voegelin afirma ser


Bodin superior, concentremo-nos nele, para não tornar este
trabalho mais longo do que já está, embora houvesse muito
o que dizer sobre Bergson: “Eu duvido que Bergson tenha a
mesma estatura de Bodin como místico, mas esses dois
espiritualistas franceses são para mim as figuras
representativas para a compreensão da ordem em tempos de
desordem intelectual.” (Eric Voegelin, Autobiographical
Reflections, p. 114).

Voegelin afirma ter estudado Bodin cuidadosamente, e


repete a seguir por que o “místico” lhe pareceu tão bom (e os
modernistas aplaudem…): “No século dezesseis, quando
havia oito guerras civis religiosas na França, Jean Bodin
reconheceu que o conflito entre as várias verdades teológicas
no campo de batalha só poderia ser apaziguado pela
compreensão da importância secundária da verdade
doutrinária em relação ao insight místico. (…) Meu estudo
cuidadoso da obra de Bodin no começo dos anos trinta me
deu minha primeira compreensão total da função do
misticismo numa época de desordem social.” (Eric Voegelin,
Autobiographical Reflections, p. 113, negrito nosso).

Rossbach cita a última obra de Bodin como fonte deste


“insight” admirado por Voegelin: “No final do Colloquium
Heptaplomeres, de Jean Bodin, Voegelin encontra refletido
o insight de que ‘o simbolismo não passa da última palavra
de cada religião histórica; a realidade da fé através da
conversio está além dos símbolos’. (Eric Voegelin, Was ist
politische Realität?, pp. 337)” (ROSSBACH, p. 16).

Vejamos então, para entender melhor a tal “tolerância” que


Voegelin atribui à “alta estatura mística” de Bodin, quem foi
ele e, mais especificamente, qual o conteúdo deste seu
último livro. Para isso, recorreremos ao capítulo dedicado a
Jean Bodin pelo estudioso D.P. Walker, em sua obra clássica
sobre a magia na Renascença, Spiritual & Demonic Magic —
 from Ficino to Campanella:

Para começar, Bodin foi um apóstata: “No final de sua vida,


Bodin já deixara de ser um cristão e acreditava num tipo de
judaismo arcaico e simplificado.” (WALKER, p. 171)

Walker resume a última obra de Bodin, da qual Voegelin


tirou o tal “insight” citado acima: “Heptaplomeres é uma
busca conduzida por um católico, um luterano, um
calvinista, um pagão, um judeu, um maometano e um
naturalista pela Urreligion, o núcleo arcaico da verdade
religiosa, que está incluído em todas as religiões deles, e que,
restaurado à sua simplicidade original, reunirá a todas. Este
núcleo é finalmente encontrado no decálogo, que é
‘ipsissima lex naturae’ (1). Os princípios pelos quais esta
busca é dirigida, assim como sua conclusão, são judaicos: a
verdadeira religião deve ser absolutamente monoteísta e
deve fornecer uma Lei, um sistema ético rígido e preciso
baseado em recompensas e punições. O cristianismo
fracassa nas duas coisas e é rejeitado. (2)” (WALKER, p. 172,
negritos nossos)

Na nota (1), Walker conta que, a partir deste momento da


narrativa, este livro de Bodin “é uma defesa do judaísmo
como a verdadeira religião natural”, o que confirma que ele
de fato apostatou para o judaísmo.

Mais reveladora ainda é a nota (2), na qual Walker conta


que, neste livro, Jean Bodin simplesmente:

- defende a impossibilidade da Encarnação,

- ataca a Santíssima Trindade,


- nega o pecado original,

- nega a Redenção,

- opõe-se à ética dos Evangelhos,

- ataca a autenticidade destes, baseando-se em Marcion,


herege do séc. III condenado pelos Santos Padres (S. Irineu,
S. Justino, S. Hipólito, S. Jerônimo, etc.), cujo sistema
gnóstico, aliás, é descrito por Hans Jonas no capítulo 6 de
seu The Gnostic Religion.

Encerremos com a seguinte passagem, ainda sobre a mesma


obra e o mesmo autor, que fala por si só:

“Os salmos hebreus são os únicos hinos antigos bons; todos


os falantes em Heptaplomeres conseguem se unir nestes
cantos de louvor ao Deus Único, enquanto todos os outros
hinos são endereçados a ‘deuses’ inferiores, que na verdade
são criaturas — e aqui Bodin dá uma lista de deuses pagãos,
mas terminando com Jesus, Maria e os santos.” (WALKER,
p. 175, negrito nosso).

Após esta citação, nada mais resta a dizer sobre Jean


Bodin… ou sobre Eric Voegelin.

15. APÊNDICE: Ecos no Brasil


“Contento-me em não ser um gnóstico
na acepção tradicional e voegeliniana do termo.”

(Olavo de Carvalho, Fé, ciência e ideologia: o fundo da


questão Fedeli, 18.07.2001
apud
<http://www.montfort.org.br/perguntas/olavo7.html#fe>,
negrito nosso.)

Contra-Reforma “gnóstica”?! Santos “idiotas”?!

Aqui no Brasil, um dos principais divulgadores de Eric


Voegelin é o astrólogo-jornalista-escritor Olavo de Carvalho,
que vê influências gnósticas até em Santo Inácio de Loyola e
no Concílio de Trento(!), baseando-se nos mesmos
pressupostos falsos que levaram Voegelin a ver gnose em
ninguém menos que Santo Tomás de Aquino. (O que é uma
conseqüência lógica, já que o Concílio de Trento foi baseado
justamente em Sto. Tomás.)

“Eu acho, e isto é uma teoria minha, eu acho que várias


mudanças que houve na Igreja Católica a partir sobretudo
da Reforma, eu acho que houve uma influência gnóstica. Eu
acho que houve uma influência gnóstica na Companhia
Jesuítica, por exemplo. Mas essa é uma hipótese, eu não
tenho certeza disso. (…) Então, eu sei que, quanto a um
católico atual, um católico conservador atual, você fala:
‘Olha, houve uma influência gnóstica no Concílio de Trento’.
O cara quer te matar, porque isso é o contrário de tudo o que
ele pensa. E ele vai dizer: ‘Olha, eu sou aqui um tridentino,
então…’. E eu digo: ‘Espere aí. Mas tinha negócio gnóstico
lá.’ Eu não estou dizendo que teve, mas que parece que
teve.” (Olavo de Carvalho, Aula de 10.02.2001 do Seminário
de Filosofia de São Paulo, não revisada pelo autor, Fita 1,
Lado B, negritos nossos).

Se cito esta aula assim, transcrevendo-a a partir de sua


gravação, mesmo sem ter sido revisada pelo autor, é por três
motivos: primeiro, porque eu estava presente neste dia,
convidado por Olavo de Carvalho devido à polêmica que se
iniciava, mas ainda não tinha os meios de lhe responder
então, o que faço agora; segundo, porque esta aula foi
gravada, com autorização de Olavo de Carvalho, também
por outras três ou mais pessoas, sem ligação comigo, de
modo que fica fácil aos outros conferi-la, sem contar que
essas coisas já foram ditas também em outras ocasiões e não
são nenhuma novidade a seus alunos; terceiro, porque o
próprio Olavo de Carvalho encoraja seus alunos a se
responsabilizarem pela transcrição de suas aulas, e é isto
que acabo de fazer — como ex-aluno, bem entendido — tendo
certeza de não ter distorcido suas palavras nem as tirado de
contexto: “Ser capaz de assumir a responsabilidade
científica por uma transcrição assinala o término da fase de
absorção passiva e o ingresso no efetivo aprendizado da vida
intelectual.” (Olavo de Carvalho, “Considerações sobre o
Seminário de Filosofia”, 01.01.2000).

Além do mais, tal citação não só mostra o efeito da


influência de Voegelin que é objeto deste estudo, como
também justifica a seguinte declaração de Olavo de
Carvalho, em entrevista reproduzida em seu site, na qual
chama os Bispos do supracitado Concílio dogmático de
“idiotas”, incluindo assim santos como São Carlos
Borromeu, por ter participado do Concílio, e também São
Pio V, por ter sancionado os decretos tridentinos:

“O declínio da intelectualidade católica dominante da época é


terrível — se você compara os intelectuais dos séculos XII e
XIII com aqueles idiotas do Concílio de Trento, é algo
absolutamente deplorável. Há uma queda do nível das
universidades ocasionada pela sua politização, por culpa dos
papas e dos reis. Com a restauração na Alemanha [?], a
universidade conserva uma imensa autonomia,
possibilitando o surgimento do movimento notabilíssimo
que foi o romantismo e o idealismo alemão. Filho direto da
liberdade, da não interferência dos poderes externos na
universidade.” (Entrevista de Olavo de Carvalho à Revista
Digital, 22.03.2001,
<http://www.olavodecarvalho.org/textos/redigital.htm>,
negritos nossos).
E contrapõe aos santos da Contra-Reforma nada menos que
o movimento principal da modernidade gnóstica: o
romantismo alemão! Já vimos citações do próprio Voegelin
confirmando isto, baseando-se no discípulo de Hegel e
especialista em gnose Ferdinand Christian Baur.
Acrescentemos aqui uma declaração de Georges Gusdorf,
cuja autoridade sobre o Romantismo dispensa comentários:

“O Romantismo é uma renascença gnóstica (…) Schelling é


um gnóstico, cujas convicções se desenvolvem à medida que
ele avança em idade, da mesma forma Baader; a
Naturphilosophie impõe à pesquisa científica códigos
gnósticos. Na França, em seqüência à de Saint Martin e de
Fabre D’Olivet, a Gnose triunfa nos escritos de Ballanche;
ela sustenta o gênio poético de Victor Hugo, ela está
presente no Lamartine das Visões e no Nerval dos
Iluminados.” (G. Gusdorf, Le Romantisme, Payot, Paris,
1993, I vol., p. 512; apud Prof. Orlando Fedeli, As Três
Revoluções na Arte,
<http://www.montfort.org.br/cadernos/3revolucoes.html>,
negrito nosso).

Já que Gusdorf menciona Schelling, convém aqui citar


novamente a estima que Olavo de Carvalho tem por este
gnóstico. Em seu livro O Jardim das Aflições, ele chega a
parodiar Nosso Senhor Jesus Cristo para promover o herege
Schelling: “Em verdade vos digo, filhinhos: Schelling era
muito grande, et tenebrae non comprehenderunt eum”
(Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições, 2a. ed., p. 179,
nota 127).

Além de Gusdorf, citemos também Simone de Pétrement,


famosa estudiosa de gnose e ela mesma discípula da
gnóstica Simone Weil, afirmando que o Romantismo é
totalmente gnóstico: “Nós dissemos que os gnósticos são
românticos; nós poderíamos dizer igualmente que o
Romantismo é gnóstico.” (Simone de Pétrement, Le
Dualisme chez Platon, les Gnostiques et Manichéens, PUF,
Paris, 1947, p. 344; apud Prof. Orlando Fedeli, As Três
Revoluções na Arte,
<http://www.montfort.org.br/cadernos/3revolucoes.html>,
negrito nosso).

O panteísmo é gnóstico?!

Mas o eco mais interessante do erro voegeliano se encontra


no principal dentre os livros publicados de Olavo de
Carvalho, O Jardim das Aflições. (Curiosamente, Olavo de
Carvalho diz que escreveu este livro antes de ler a obra de
Eric Voegelin, mas o erro de ambos é idêntico, como se verá
a seguir.) Nele, há um capítulo intitulado “A Revolução
Gnóstica”, em que Olavo de Carvalho, ao se propor a definir
a gnose, acaba definindo o panteísmo:

“Não cabe aqui entrar numa descrição aprofundada do


fenômeno gnóstico, de cuja amplitude e variedade, quase
alucinantes, somente estudos volumosos podem, de longe,
dar conta. Mas não creio errar ao assinalar, como pontos
comuns a uma ampla variedade de escolas gnósticas, a
religião cósmica, de um lado, a sacralização da sociedade (ou
do Estado), por outro.” (Olavo de Carvalho, O Jardim das
Aflições, 2a. ed., É Realizações, p. 195, negrito nosso, itálicos
do original).

Ora, a gnose é justamente a religião anticósmica, que por


isso rejeita tanto a sociedade quanto o Estado. Isso já foi
visto, e é confirmado claramente por Hans Jonas no breve
trecho a seguir, que não custa citar novamente:

“Nem todo o Corpus [Hermeticum] pode ser considerado


como uma fonte gnóstica: grandes partes dele respiram o
espírito de um panteísmo cósmico muito distante da
denúncia violenta do universo físico tão característica dos
gnósticos.” (Hans Jonas, “The Poimandres of Hermes
Trismegistus”, in The Gnostic Religion, p. 147, negrito
nosso).

Assim, fica explicada também a confusão terminológica que


leva Olavo de Carvalho, numa das aulas sobre Aristóteles
publicadas em seu site, a dizer simplesmente que… o
panteísmo é gnóstico! A contradição que vimos em Eric
Voegelin, ao chamar do mesmo nome tanto uma coisa
quanto o seu oposto, aparece aqui de modo indisfarçado:

“Existem duas maneiras de perverter o sentido do real. Uma


é isolando uma parte; outra, empastelando tudo no ‘todo’.
Então, de um lado temos o Panteísmo. A idéia de que tudo é
Deus, sem distinção, é gnóstica. E a idéia da separação
absoluta também é gnóstica.” (Olavo de Carvalho,
Pensamento e Atualidade de Aristóteles, Quarta Aula, 5 de
abril de 1994,
<http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/pensaris4_2.ht
m>, negritos nossos).

E, tanto aqui como no caso de Eric Voegelin, não se trata de


uma mera confusão terminológica sem maiores
conseqüências, pois esta confusão é usada pelos autores em
questão para escamotear sua própria gnose, de modo que
afetam condenar a gnose ao mesmo tempo em que, de fato,
a defendem, limitando-se a condenar o panteísmo. Isso
quando não incluem a Religião Católica em sua condenação
da gnose, como já os vimos fazer. Pois note-se que a
expressão “separação absoluta” é usada, na passagem acima,
de modo equívoco, não podendo ser tomada como uma
condenação da gnose por Olavo de Carvalho; muito pelo
contrário, se significa a absoluta transcendência de Deus em
relação ao mundo, que é dogma Católico, então Olavo de
Carvalho estaria mais uma vez dizendo que o Catolicismo é
gnóstico, à semelhança de Voegelin.

Antropologia gnóstica… contra a gnose?!


Voltando ao livro O Jardim das Aflições, vemos que Olavo
de Carvalho vai mais longe: no mesmo momento em que
alega estar condenando a gnose, defende uma interpretação
da história baseada… nas categorias da antropologia
gnóstica clássica!

Pois a gnose prega que o ser humano tem uma natureza


tripartida: além de corpo (hylé) e alma (psyché), o homem
teria também uma partícula divina presa no âmago de seu
ser: o “espírito” (pneuma). Por isso, a humanidade se
dividiria em três classes de seres: os “hílicos”, nos quais
predomina o corpo, os prazeres sensuais, e que estão todos
condenados; os “psíquicos”, nos quais predomina a razão,
que no máximo chegam ao “exoterismo” das religiões, e que
têm por isso alguma chance de “salvação”; e finalmente os
“pneumáticos”, os “libertados pelo conhecimento”, os que se
livraram de todo apego à matéria (para eles a alma também
é material, feita de uma suposta “matéria sutil”); estes
últimos são os próprios gnósticos.

Assim, Olavo de Carvalho interpreta a história como uma


luta entre duas forças: a da necessidade cega e a da razão
prometéica, ou seja, entre “hílicos” e “psíquicos”! Usando
simbolismo inspirado no gnóstico William Blake, Olavo de
Carvalho identifica estas duas forças, respectivamente, com
os demônios Leviathan e Behemoth:

“COSMOS versus HUMANIDADE


LEIS FÍSICAS versus LEIS DA RAZÃO
EXPERIÊNCIA versus PENSAMENTO
NATUREZA versus HISTÓRIA
MECANICISMO versus VITALISMO
Nature versus Nurture
Behemoth versus Leviathan”

(Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições, 2a. ed., p. 199).


Acrescentemos nós, esclarecendo a oposição:

Panteísmo sensual versus Panteísmo racionalista


Hílicos versus Psíquicos

Então, deste duelo interminável, ele propõe uma “saída pelo


alto”, que é justamente a gnose. Isto já foi visto
minuciosamente no estudo do Prof. Orlando Fedeli sobre a
gnose de René Guénon e Olavo de Carvalho, citado na
apresentação e na bibliografia de nosso trabalho. Para não
sermos redundantes, e sem sairmos do assunto e do livro O
Jardim das Aflições, limitemo-nos a mencionar que Olavo
de Carvalho aponta como “núcleo de resistência” às forças
destrutivas citadas acima justamente a escola
declaradamente gnóstica de Frithjof Schuon, discípulo de
Guénon:

“É ainda nos Estados Unidos que se encontra hoje o mais


poderoso núcleo de resistência ao avanço do ateísmo
oficial — o que abrange desde as comunidadas que se
organizam contra a lei do aborto até a elite espiritual
concentrada em torno de figuras como Seyyed Hossein
Nasr — exilado iraniano -, Huston Smith, Victor Danner e
outros, profundamente influenciada pelo pensamento de
Frithjof Schuon, homem espiritual de primeiro plano e
formulador do único método válido já concebido para a
comparação e aproximação das religiões.” (Olavo de
Carvalho, O Jardim das Aflições, 2a. edição, pág. 308,
negritos nossos).

É particularmente curioso que o próprio Schuon se diga não


só “gnóstico”, como também “pneumático”:

“Quanto à Sophia perennis, trata-se do seguinte: há verdades


inatas no Espírito humano, que apesar disso estão em certo
sentido enterradas nas profundezas do ‘Coração’ — no puro
Intelecto — e são acessíveis apenas a quem for
espiritualmente contemplativo; e essas são as verdades
metafísicas fundamentais. O acesso a elas é possuído pelo
‘gnóstico’, ‘pneumático’ ou ‘teósofo’, — no sentido original e
não sectário destes termos, — e o acesso a elas era também
possuído pelos ‘filósofos’ no sentido real e ainda inocente da
palavra: por exemplo, Pitágoras, Platão e em grande parte
também Aristóteles.” (Schuon, “Sophia perennis”: Studies in
Comparative Religion; apud Seyyed Hossein Nasr,
Knowledge and the Sacred, State University of New York
Press, 1989, pág. 88, nota 18, negritos nossos).

E, como o Prof. Orlando Fedeli observa ao comentar esse


trecho: “Embora Schuon, citado por Nasr, tivesse dito que a
palavra gnóstico era aí empregada não no sentido sectário,
mas no sentido ‘inocente’, o que ele, Schuon, afirma sobre o
‘Coração’ ou ‘Intelecto’, como instrumento do
Conhecimento, demonstra que ele emprega o termo
exatamente como a Gnose tradicional empregava esses
termos: intelecto era, para a Gnose, a partícula divina no
homemo, o Atma, o pneuma divino, o éon.” (Prof. Orlando
Fedeli, A Gnose “Tradicionalista” de René Guénon e Olavo
de Carvalho, Cap. II-6,
<http://www.montfort.org.br/cadernos/guenon.html>).

Diga-se de passagem que também Mendo Castro Henriques,


em sua tese sobre Eric Voegelin (ambos autores, aliás, nos
quais os termos “gnose” e “gnosticismo” são usados
indistintamente, designando sempre a heresia dos primeiros
séculos e suas muitas variantes), resume de passagem as
posições de Guénon e Schuon e, apesar das ambigüidades e
limitações de uma síntese tão compacta quanto a que faz,
afirma com segurança que os guénonianos são variantes dos
hereges gnósticos:

“A ligação entre gnose e modernidade é também recusada


nas especulações de autores como Fritjof Schuon, René
Guénon, Raymond Abellio e Julius Evola, representantes
notórios de posições que se reclamam de uma tradição
expressa pelo termo árabe ma’arifah e pelo sânscrito jnana e
equivalente à gnose ocidental. Estes termos designam o
conhecimento esotérico revelado numa suposta seqüência
providencial de mensageiros divinos que, de Buda a Maomé,
manifestariam o verbo de forma cada vez mais pura, até ao
limite de compreensão do intelecto humano; em particular,
até conferir aos eleitos o poder de compreender o absoluto.
Tais autores são gnósticos de uma variante que não admite a
dogmatização da transcendência.” (HENRIQUES 1994, pp.
136–7, negritos nossos).

Resumindo: na mesma ocasião em que, nominalmente, diz


condenar a gnose, enquanto na verdade condena apenas o
panteísmo, Olavo de Carvalho adota exatamente a divisão
gnóstica clássica da humanidade — entre hílicos, psíquicos e
pneumáticos — para interpretar a história como uma luta
entre o que podemos chamar de “panteísmo sensual”
(hílicos) e “panteísmo racionalista” (psíquicos), aos quais
Olavo de Carvalho opõe a saída da gnose (pneumáticos).

E tudo isso sob o olhar de aprovação dos gnósticos que o


próprio Olavo de Carvalho chama de “gurus”: René Guénon
e Eric Voegelin.

In Iesu et Mariae,
Felipe Coelho.

São Paulo, na festa da Purificação de Nossa


Senhora, 2 de fevereiro de 2002.

16. Bibliografia
Santo AGOSTINHO, A Cidade de Deus (Contra os Pagãos),
Petrópolis: Editora Vozes, 1999, 4a. edição.
Prof. Orlando FEDELI, A Gnose “Tradicionalista” de René
Guénon e Olavo de Carvalho,
<http://www.montfort.org.br/cadernos/guenon.html>.

_________________, “Gnose: Religião Oculta da


História”,
<http://www.montfort.org.br/veritas/gnose.html>.

_________________, Conceituação, Causas e


Classificação das Utopias,
<http://www.montfort.org.br/cadernos/utopia1.html>.

David GORDON, “The Fallacies of Voegelian


Antiliberalism”, Fall 2000,
<http://www.mises.org/misesreview_detail.asp?control=16
6>.

Mendo Castro HENRIQUES, A Filosofia Civil de Eric


Voegelin, Lisboa, Universidade Católica Editora, 1994.

Stephen A. HOELLER, “What is a Gnostic?”,


<http://www.webcom.com/~gnosis/whatisgnostic.htm>.

Hans JONAS, The Gnostic Religion, Beacon Press, Boston,


1991, 2ª edição.

Bill McCLAIN, “Advice for those who want to read Eric


Voegelin”, <http://www.salamander.com/~wmcclain/ev-
advice.html>.

___________, “Dictionary of Voegelian Terminology”,


<http://www.salamander.com/~wmcclain/ev-
dictionary.html>.

Stephen McKNIGHT, Gnosticism and Modernity: Voegelin’s


Reconsiderations in 1976,
<http://pro.harvard.edu/papers/091/091007McKnightSt.p
df>.

Joshua MITCHELL, Voegelin and the Scandal of Luther:


Philosophy, Faith, and the Modern Age, 2000,
<http://www.artsci.lsu.edu/voegelin/EVS/PANEL5.html>.

Edward MOORE, “Gnosticism”, verbete da Internet


Encyclopedia of Philosophy,
<http://www.utm.edu/research/iep/g/gnostic.htm>.

São PIO X, Pascendi Dominici Gregis

Stefan ROSSBACH, ‘Gnosis’ in Eric Voegelin’s Philosophy,


July 2001.

<http://pro.harvard.edu/papers/091/091007RossbachSt.p
df>.

Robert A. SEGAL, “Gnosticism, Ancient and Modern”,


Christian Century, November 1995.

<http://www2.gol.com/users/coynerhm/gnosticism_ancie
nt_and_modern.htm>.

Eric VOEGELIN, Autobiographical Reflections, Louisiana


State University Press, 1989.

_____________, A Nova Ciência da Política, Brasília,


Universidade de Brasília, 1982, 2ª ed.

_____________, Plato, University of Missouri Press,


2000.
_____________, Order and History vol. V: In Search of
Order, The Collected Works of Eric Voegelin, Vol. XI, Ed.
Ellis Sandoz, University of Missouri Press, 2000.

(Nota: Foram citadas também outras obras do autor, a partir


de seus estudiosos.)

D.P. WALKER, Spiritual & Demonic Magic — from Ficino to


Campanella, The Pennsylvania State University Press, 2000.

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