Você está na página 1de 21

GNOSTICISMO E MODERNISMO EM ERIC VOEGELIN (por Felipe Coelho)

Eric Voegelin (1901–1985) foi um estudioso alemão que causou comoção nos meios
acadêmicos ao classificar movimentos políticos modernos — como o positivismo e o
marxismo — como gnósticos, de modo que não passariam de novas versões de uma
velha heresia combatida pela Igreja Católica. Nascido em Colonha, Voegelin chegou a
ser aluno de Hans Kelsen, mas acabou emigrando até a Louisiana, no sul dos Estados
Unidos, durante a ditadura de Hitler. Foi lá que escreveu a maioria de seus livros. Sua
“demonização” do marxismo — se não precisa, ao menos justa — lhe garantiu alguma
popularidade junto à direita americana, embora Voegelin também condenasse o
liberalismo e o protestantismo como movimentos gnósticos. Em grande parte devido à
difusão das teses de Voegelin, teses estas inspiradas por autores modernistas, tem
havido recentemente uma onda de estudos “revisionistas” sobre gnose, questionando a
validade do termo e buscando redefinir seu significado. O presente estudo visa mostrar
justamente como Voegelin está envolvido nesta confusão, e quais as suas razões.
Durante o 2001 Annual Meeting of the American Political Science Association, realizado
em San Francisco entre 30 de agosto e 2 de setembro de 2001, Stefan Rossbach
apresentou um interessantíssimo estudo intitulado “Gnosis” in Eric Voegelin’s
philosophy, que, como o próprio nome já diz, trata do uso do termo “gnose” por Eric
Voegelin.
É principalmente neste trabalho de Rossbach que nosso estudo se baseia, reproduzindo
várias de suas citações e descobertas (o autor teve acesso às cartas de Voegelin),
traduzidas para o português. Além disso, foi utilizada também, para a compreensão
geral da filosofia voegeliana, principalmente a tese de doutorado de Mendo Castro
Henriques, A Filosofia Civil de Eric Voegelin, apresentada à Universidade Católica de
Lisboa.
Como não podia deixar de ser, foram feitas consultas às obras tanto do próprio Voegelin,
como de outros autores, sobre ele e sobre o tema da gnose, além de certas contribuições
nossas, na medida em que eram pertinentes à elucidação do problema proposto: o
gnosticismo em Eric Voegelin.
Agradecimentos são devidos ao Prof. Orlando Fedeli, cujos estudos sobre gnose são
nossa principal base, por ensinar a encarar a questão do único ponto de vista capaz de
compreendê-la sem falhas: o da Santa Igreja Católica. Dentre seus trabalhos publicados,
o recente A Gnose “Tradicionalista” de René Guénon e Olavo de Carvalho contém um
bom resumo da gnose e indicações de grande valor, tanto teórico quanto apologético,
sobre esta doutrina, que é o coração de todas as heresias.
Inclusive, foi a polêmica que se seguiu a esse trabalho de Orlando Fedeli que motivou
nosso estudo sobre Voegelin, pois algo devia estar errado se um gnóstico em sentido
estrito como Olavo de Carvalho podia citar Voegelin em sua defesa, como foi feito,
apenas porque tanto um quanto o outro se opõem aos movimentos materialistas que
Voegelin condena como “gnose moderna” (positivismo, marxismo, etc.).
O presente estudo é dedicado ainda a D., um amigo que gastou todo o seu dinheiro
importando as caras obras de Voegelin, e ainda gasta tempo e dinheiro com um de seus
ecos. Que o que se segue possa lhe ser útil.

3. Gravidade e abrangência da gnose


Antes de mais nada, para Voegelin, a gnose é um problema espiritual muito sério, que
vai da antigüidade à modernidade, e cuja gravidade é tamanha que ele a equipara ao
satanismo, como se vê pelo trecho a seguir: “Voegelin explica que os ‘movimentos
gnóstico-satânicos’, com sua ‘revolta contra a realidade’, se tornaram ‘uma força na
história mundial’.” (ROSSBACH, p. 6, negrito nosso).
Mas, quando se fala da presença da gnose no mundo atual, nunca faltam os ingênuos e
pouco estudados que, após uma visão superficial, acusam os estudiosos da questão de
serem “teóricos da conspiração” e de verem “gnose em todo lugar”. Rossbach cita uma
carta de Voegelin, muito saborosa, em resposta a essas pretensas objeções, que por isso
vale a pena reproduzir integralmente, apesar de sua extensão:
“Então, há a questão da Gnose. Você atribui a mim a ‘prontidão’ de classificar todo tipo
de idéias como gnósticas, como se isso fosse uma esquisitice minha. Bem, se você atribui
a mim, como freqüentemente se faz, a grande descoberta do problema da Gnose
moderna e sua continuidade com a antigüidade, devo rejeitar a honra e humildemente
desmentir este lampejo de gênio. Encontrei o problema pela primeira vez em
Prometheus, escrito por Bathasar em 1936. Então eu verifiquei que ele estava certo, por
meio do estudo de Gnosis, escrito por Jonas em 1937, e por meio da leitura de montes de
material sobre sectarismo medieval. Para a aplicação moderna, encontrei confirmação
para esta visão nas obras de Lubac. E então eu tomei a precaução de discutir a questão
detalhadamente com Puech, Quispel e Bultmann, ou seja, com as principais autoridades
vivas sobre Gnose e Cristianismo. Todos eles concordaram que esta era de fato a
questão. Resumindo: todo mundo que é alguém em questões deste gênero compartilha
da minha opinião. Evidentemente, você está certo em dizer que isso surpreende os
‘profissionais’. Mas você sabe tanto quanto eu que os ‘profissionais’ consistem em uma
notável porcentagem de pilantras acadêmicos que embolsam salários de professor sem
fazer o mínimo esforço de sequer ler os livros escritos por outras pessoas. E quando você
fala das ‘conseqüências perturbadoras’ com relação à classificação de personalidades
contemporâneas, só posso lhe assegurar de que não são nem um pouco perturbadoras,
mas sim lugar-comum, para os estudiosos que conhecem o assunto. Novamente, estou
pasmo de você, entre todas as pessoas, tomar o lado dos pilantras contra os estudiosos
— e que estudiosos! — veja novamente os nomes acima.” (Eric Voegelin, Carta a Carl J.
Friedrich, 12 April 1959, Box 13, File 13.16, Hoover Archives; apud ROSSBACH, p. 4,
negritos nossos, sublinhados do original).

4. Críticas ao uso que Voegelin faz do termo “gnose”


Porém, embora os maiores especialistas reconheçam a gravidade e a extensão do
problema “gnóstico-satânico” e concordem com Voegelin que a gnose está muito
presente na modernidade, o mesmo não se pode dizer quanto aos fenômenos modernos
que Voegelin caracteriza como gnósticos.
Mendo Castro Henriques aponta “a utilização, muito peculiar por parte de Voegelin, do
conceito de gnose” (HENRIQUES, p. 61). E reconhece que “Voegelin se afastou da noção
erudita de gnose em mais que um sentido” (HENRIQUES, p. 139).
Conta ainda que também cientistas políticos importantes criticaram Voegelin: “Entre os
political scientists que dedicaram recensões discordantes contam-se nomes reputados
como os de Hans Kohn, Arnold Brecht e Robert Dahl. Este, em ‘The Science of Politics;
New and Old”, World Politics, 7(1995), pp. 484–89, afirma mesmo que Voegelin “has
not only un-defined science; he has un-scienced it” [“não só des-definiu a ciência, como
a des-cientifizou”], pois utiliza pressupostos cuja validade não examina.” (HENRIQUES,
p. 59, nota 17, negritos nossos, itálicos do original).
O próprio Stefan Rossbach, aliás, conclui exatamente isso de seu estudo: “…se ‘gnose’ e
‘gnosticismo’ em Voegelin são entendidos como conceitos empíricos, então precisamos
concordar com os críticos que a obra dele está cheia de problemas… seu uso de
‘gnosticismo’ violou os princípios metodológicos mais elementares que ele havia
definido para si mesmo muito tempo antes e, de fato, em (!) A Nova Ciência da Política”
(ROSSBACH, p. 27, exclamação do original).
Ou seja, Voegelin não seguiu nem seu próprio método, no seu emprego do termo
“gnosticismo”: “O termo ‘Gnosticismo’ não surgiu da autointerpretação de um
cosmo[cosmion] social, nem pode ser considerado o resultado de um processo de
‘clarificação crítica’ da parte dos cientistas políticos” (ROSSBACH, p. 28).
Assim, Rossbach conclui taxativamente que “A Nova Ciência da Política contribuiu para
o uso inflacionário do termo [gnosticismo]…” (ROSSBACH, p. 28).
Stephan Hoeller conta que: “Enquanto isso, pensadores conservadores respeitáveis
abandonaram a questão da Gnose. Alguns, como o estudioso e ex-senador americano
S.I. Hayakawa, submeteram Voegelin e suas teorias a críticas severas e ao ridículo.”
(HOELLER, [s.p.]).
Voltando a Rossbach, ele conta ainda que nem mesmo amigos próximos de Voegelin o
pouparam, como Alfred Schütz: “Também o amigo de Voegelin, Alfred Schütz,
expressou reservas [ao uso do termo “gnose” por Voegelin]”. (ROSSBACH, p. 7).
Por fim, Rossbach diz que: “Como sempre, porém, a crítica que tinha mais peso e,
portanto, era mais dolorosa de suportar, era a crítica que vinha de especialistas como
Bultmann.” (ROSSBACH, pp. 7–8).
Pois até mesmo Rudolph Bultmann, que Voegelin apontara como uma das maiores
autoridades vivas sobre Gnose e Cristianismo (v. segunda citação do presente artigo), e
que com ele concorda que a Gnose é a questão central do mundo moderno, entretanto
desaprova a interpretação de Eric Voegelin:
“Bultmann, por exemplo, considera a caracterização da Gnose por Voegelin
inapropriada. Ele fala de uma ‘secularização’ do termo e se pergunta se este gesto é
‘admissível’. E novamente, comentando Wissenschaft, Politik und Gnosis, ele desaprova
o uso de Voegelin dos rótulos de ‘gnose’ e ‘gnóstico’.” (ROSSBACH, p. 7, citando: Cartas
de Rudolf Bultmann a Eric Voegelin, 19 July 1954 and 4 March 1960, Box 8, File 8.55).

5. Voegelin de costas para a modernidade gnóstica de fato


Já deve ter ficado claro que há um sério problema com o uso que Eric Voegelin faz do
termo “gnosticismo” (ou “gnose”). Antes de se passar ao principal, que é a definição
dada por Voegelin à “gnose moderna” e o teor das críticas feitas a ela, será útil a uma
melhor compreensão do assunto verificar onde é que Voegelin vê gnose na
modernidade.
Ele mesmo o diz: “Dizendo movimentos gnósticos entendemos referir-nos a
movimentos como o progressismo, o positivismo, o marxismo, a psicanálise, o
comunismo, o fascismo e o nacional-socialismo (nazismo)” (Eric Voegelin, II Mito del
Mondo Nuovo, Rusconi, Milão, 1976, p.16, apud Orlando Fedeli, “Gnose: Religião Oculta
da História”, <http://www.montfort.org.br/veritas/gnose.html>).
Mendo Castro Henriques, comentando a evolução da tese de Voegelin sobre a natureza
gnóstica da modernidade entre as obras As Religiões Políticas e A Nova Ciência da
Política, acrescenta ainda alguns outros elementos: “A novidade é que agora, a par do
bolchevismo e do nacional-socialismo, também iluminismo, humanismo, liberalismo e
positivismo são considerados etapas de um gigantesco processo que se iniciou num
sectarismo da Antigüidade e que culminou nos totalitarismos do século XX.”
(HENRIQUES, p. 62).
Pois bem, note-se que não são mencionados os movimentos modernos mais
flagrantemente gnósticos, como o romantismo, o idealismo, a teosofia, o
“tradicionalismo” guénoniano, o modernismo, o espiritualismo, o simbolismo, o
surrealismo, a nova era, etc. Ao invés desses herdeiros diretos da gnose “antiga” que
acabamos de citar, Voegelin menciona movimentos muitas vezes opostos aos primeiros,
movimentos estes cuja identificação com a gnose é, no mínimo, indireta e problemática,
quando não totalmente equivocada, como se verá a seguir.

6. A distinção voegeliana entre gnose “antiga” e “gnose moderna”


Para descobrir onde foi que Voegelin errou, é preciso antes de mais nada deixar que ele
nos explique qual a distinção que faz entre gnose “antiga” e a suposta “gnose moderna”.
Ele o faz a seguir:
“No extremo da revolta na consciência, a ‘realidade’ e o ‘além’ se tornam duas entidades
separadas, duas ‘coisas’, para serem manipuladas magicamente pelo homem sofredor
com o propósito ou de abolir totalmente a ‘realidade’ e escapar para o ‘além’, ou de
impor a ordem do ‘além’ na ‘realidade’. A primeira das alternativas mágicas é preferida
pelos gnósticos da antigüidade, a segunda pelos pensadores gnósticos modernos.” (Eric
Voegelin, In Search of Order, p. 37, apud ROSSBACH, pp. 6–7).
Deixando de lado, por ora, a pergunta de qual é a relação entre “realidade” e “além” que
Voegelin consideraria não-gnóstica, depreende-se do trecho acima que, para o autor:
1. os gnósticos “antigos” buscavam “abolir totalmente a ‘realidade’ e escapar para o
‘além’”;
2. os “gnósticos modernos” buscam “impor a ordem do ‘além’ na ‘realidade’”.
Henriques descreve estas duas correntes da seguinte maneira: “O que aproxima o
gnosticismo radical da Antigüidade das metamorfoses modernas é uma idêntica
concepção de unicidade do real. O gnóstico helenístico só conhece Deus e reduz o
mundo criado a nada. O moderno coloca o peso da realidade no mundo: o resto é ficção.
Ambos se reconhecem consubstanciais à plenitude do real e opostos às massas
alienadas.” (HENRIQUES, p. 138)
Esta mesma distinção é precisada ainda, em outros termos, por Eugene Webb, em seu
livro sobre Voegelin: “…o gnosticismo pode tomar a forma transcendentalizante (como
no caso do movimento gnóstico da antigüidade tardia) ou a forma imanentizante (como
no caso do marxismo).” (Eugene Webb, Eric Voegelin: Philosopher of History,
University of Washington Press, Seattle, Washington, 1981, p. 282; apud Bill McCLAIN,
“Dictionary of Voegelian Terminology”, <http://www.salamander.com/~wmcclain/ev-
dictionary.html>).

7. O erro de Eric Voegelin


Pois bem, de um lado temos a gnose que Voegelin chama de “antiga”, como se fosse
coisa do passado, que é “gnose” no sentido estrito da palavra, “gnose” como a entendem
os maiores especialistas no assunto. Do outro, temos a “gnose moderna”, que é como
Voegelin chama movimentos muitas vezes opostos àqueles que, a seu modo, perpetuam
hoje a gnose de sempre, que de “antiga” só tem portanto a origem. Só de colocar a
questão em ordem já deve ter ficado claro qual o erro de Voegelin. Ele é explicitado na
citação a seguir, o que de mais simples e importante já foi dito sobre o emprego do
termo “gnosticismo” por Eric Voegelin.
Nela, o problema é resolvido por Gregor Sebba, um dos principais intérpretes e
discípulos de Voegelin, favorável ao mestre e bastante capaz, já que Voegelin dele dizia:
“sempre gosto quando Sebba escreve sobre minha obra” (Carta a Donald E. Stanford, 24
January 1975, Box 36, file 36.34; apud ROSSBACH p. 33 nota 92, que menciona ainda 2
outras cartas em que Voegelin faz declarações similares). Rossbach o cita a seguir,
definindo a questão:
“Porém, caso alguém queira se agarrar à noção [de gnosticismo] e estude historicamente
o que é geralmente considerado como suas manifestações, o tema que pode ser
considerado sua ‘essência’ é o exato oposto do que Voegelin apresentou como a essência
do ‘gnosticismo moderno’. Logo no início de seu documento, Sebba observa:
‘Alegar, como Voegelin faz, que movimentos políticos e intelectuais modernos como o
positivismo ou o marxismo são “gnósticos” significa dizer que o gnosticismo antigo se
transformou no seu oposto ao mesmo tempo em que permaneceu o que é.’” (Gregor
Sebba, “History, Modernity and Gnosticism”, in Peter J. Opitz, Gregor Sebba (eds.), The
Philosophy of Order: Essays on History, Consciousness and Politics, (Stuttgart: Klett-
Cotta, 1981,) p. 191).” (ROSSBACH, p. 33, negritos nossos).
Foi exatamente esta contradição que permitiu até a um autonomeado “bispo da igreja
gnóstica” (!), o já citado Stephan A. Hoeller, ironizar a tese de Voegelin da seguinte
forma:
“Voegelin se tornou o profeta de uma nova teoria da história, na qual o gnosticismo
exercia um papel nefando. Todas as modernas ideologias totalitárias eram de algum
modo espiritualmente relacionadas ao gnosticismo, dizia Voegelin. Marxistas, nazistas e
praticamente todos os outros que o bom professor julgasse repreensíveis eram na
realidade gnósticos, envolvidos na “imanentização do eschaton”, por meio da
reconstituição da sociedade num paraíso na terra. Como os gnósticos não aceitavam o
eschaton cristão convencional de céu e inferno, Voegelin concluiu que eles deviam estar
envolvidos em uma revolução milenarista da existência terrena. Ao mesmo tempo,
Voegelin era forçado a admitir que os gnósticos consideravam o reino terrestre como
totalmente sem esperança e irremível. A gente se pergunta como é que o irremível reino
terrestre poderia ser transformado no “eschaton imanentizado” de uma utopia terrena.
Que os novos gnósticos de Voegelin não tivessem nenhum conhecimento ou simpatia
pelo gnosticismo histórico também não o incomodou. Eram gnósticos, e acabou.”
(HOELLER, [s.p.], negrito nosso).
Por fim, Robert Alan Segal, professor da Universidade de Lancaster, no mais sensato
artigo escrito sobre o abuso do termo “gnose”, por parte de vários autores, para
caracterizar movimentos modernos que não são propriamente gnósticos, não deixa
dúvidas:
“Os aspectos da modernidade que Voegelin chama de ‘gnósticos’ deveriam ser chamados
de ‘apocalípticos’ ou ‘milenaristas’, pois o objetivo moderno é aperfeiçoar o mundo, ao
contrário do objetivo do gnosticismo antigo, que é escapar dele. Ademais, a confiança
moderna no conhecimento é uma confiança mais no conhecimento do mundo que no
conhecimento do eu [self]. Embora a avaliação da modernidade por Voegelin se baseie
em muito mais reflexão e erudição que a de Satinover, o uso que ele faz do epíteto
‘gnóstico’ para repreender a modernidade é igualmente equivocado.” (SEGAL, [s.p.],
negrito nosso).

8. Exemplo da confusão de Voegelin: marxismo e gnosticismo


Tomemos o caso do marxismo como exemplo, para explicitar a confusão voegeliana. De
fato, os marxistas pensam segundo uma estrutura de pensamento gnóstica, ao negarem
a realidade em prol de um sistema irreal, e ao sustentarem uma presunção elitista de
detenção de um conhecimento salvador. Isto decorre do fato de Marx ter aplicado a
estrutura do idealismo, que é gnóstica, ao materialismo.
Em primeiro lugar, lembremos que é ponto pacífico que o idealismo é gnóstico, e aqui
Voegelin apenas repete o que aprendeu nos estudiosos clássicos do assunto:
“Eu descobri que a continuidade do gnosticismo desde a antigüidade até o período
moderno era uma questão de consenso entre os melhores estudiosos do século XVIII e
começo do XIX. Gostaria de mencionar a grande obra de Ferdinand Christian Baur
sobre Die christliche Gnosis; oder, die christliche Religionsphilosophie in ihrer
geschichtlichen Entwicklung de 1835. Baur desvelou a história do gnosticismo desde a
gnose original da antigüidade, passando pela Idade Média, e indo direto até a filosofia
da religião de Jakob Böhme, Schelling, Schleiermacher e Hegel.” (Eric Voegelin,
Autobiographical Reflections, Louisiana State University Press, 1989, p. 66, negrito
nosso).
Voegelin, aliás, compara Hegel a ninguém menos que o heresiarca Valentino, e Schelling
aos gnósticos atacados por Santo Irineu:
“No caso prototípico do Gnosticismo moderno, no sistema de Hegel, o núcleo essencial é
o mesmo que nas especulações de Valentino” (Eric Voegelin, The Ecumenic Age, pp. 18–
29; apud ROSSBACH, p. 6).
“Schelling não pode ser totalmente absolvido da acusação levantada por Sto. Irineu
contra os gnósticos do século II d.C.: ‘Eles abrem Deus como se fosse um livro’ e ‘Eles
colocam a salvação na gnose [conhecimento] daquilo que é a majestade inefável’.” (Eric
Voegelin, Plato, University of Missouri Press, 2000, p. 193).
Porém, evidentemente, é preciso distingui-los: dizer sem mais nem menos que o
marxismo é gnóstico — como Voegelin faz — é semelhante a dizer que o marxismo é
idealista! De fato, o marxismo tem a estrutura do idealismo, que é gnóstica, mas, quando
Marx faz a transposição do sistema idealista de Hegel para a matéria, este deixa de ser
gnóstico para se tornar panteísta.
Esse tipo de confusão entre panteísmo e gnose é freqüente, pois ambos se encontram
misturados na maioria dos casos. Hans Jonas cita o exemplo do hermetismo:
“Nem todo o Corpus [Hermeticum] pode ser considerado como uma fonte gnóstica:
grandes partes dele respiram o espírito de um panteísmo cósmico muito distante da
denúncia violenta do universo físico tão característica dos gnósticos.” (Hans JONAS,
“The Poimandres of Hermes Trismegistus”, in The Gnostic Religion, Boston, Beacon
Press, 2nd edition, 1991, p. 147).
Ademais, é preciso notar que, como Marx dizia (e demonstrou), idealismo e
materialismo são perfeitamente reversíveis. Isso deriva diretamente do princípio
gnóstico de que matéria é espírito solidificado, e espírito é matéria sublimada.
Assim, enquanto, por um lado, não se pode negar a distinção entre gnose e panteísmo
(da mesma forma que é preciso distinguir idealismo de materialismo), por outro lado,
há uma relação dialética entre os dois, de modo que se pode afirmar que o panteísmo é a
antecâmara da gnose. Como afirma o Prof. Orlando Fedeli, “o panteísmo é irmão gêmeo
e dialético da gnose”.
Há duas pontes entre panteísmo e gnose: a intelectual e a moral. Simplificando muito,
digamos apenas que, no plano intelectual, extremos de racionalismo levam
dialeticamente ao irracionalismo, e vice-versa; enquanto que, no plano moral, extremos
de ascese levam a extremos de libertinismo, e vice-versa.
Quando há a união destes dois movimentos antagônicos, agradando assim a todas as
tendências más do ser humano, irrompem as revoluções. Nos termos do Prof. Orlando
Fedeli, trata-se dos pólos negativo e positivo do erro, que, ao se unirem, causam um
curto-circuito (a revolução), repelindo-se logo depois. É o caso da heresia modernista,
por exemplo, que uniu o agnosticismo ao imanentismo. É por esta última característica
que o modernismo é gnóstico.
Aliás, que o modernismo seja gnóstico é algo que até o prefaciador da edição brasileira
de A Nova Ciência da Política reconhece:
“O movimento gnóstico remonta a Simão Mago, cuja história nos foi transmitida pelos
Atos dos Apóstolos. Desenvolveu-se no século II, mas, longe de desaparecer ante a
refutação de seus erros por [Santo] Irineu, Tertuliano, Clemente de Alexandria e outros,
ficou sendo uma vegetação religiosa parasitária ao longo da história da Igreja, corroendo
a doutrina cristã e suscitando outras tantas heresias. Extraordinariamente reavivado em
nosso século, palpita no fundo da heresia modernista e do chamado ‘progressismo’. (O
modernismo foi condenado por São Pio X na memorável encíclica Pascendi Dominici
Gregis de 8 de setembro de 1907, à qual deve ser acrescentada a Carta do mesmo
Pontífice sobre Le Sillon (25 de agosto de 1910)).”
(Prof. José Pedro Galvão de Sousa, “Apresentação” de A Nova Ciência da Política, de
Eric Voegelin. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1982, 2ª edição, pp. 8–9,
negritos nossos, itálicos e parênteses do original).
Porém, embora a conclusão seja verdadeira, possivelmente é pelas razões erradas que o
Prof. Galvão de Sousa diz que o modernismo é gnóstico (ou seja, por seu a-gnosticismo),
já que fala também do progressismo, que é marxista e, portanto, mais propriamente
panteísta, pelas razões mostradas acima. Nisto, o Prof. Galvão de Sousa segue o erro do
autor que prefacia.
Acrescente-se ainda que Voegelin afirma claramente (tanto na segunda citação deste
trabalho como em suas Autobiographical Reflections) que suas maiores influências no
estudo da gnose foram justamente os teólogos modernistas Henry de Lubac e Hans Urs
von Balthasar, da “nouvelle theologie” condenada pelo Papa Pio XII na encíclica
Humani Generis.

9. Conseqüência da contradição: a caricatura da gnose


Certamente foram abusos terminológicos como este de Eric Voegelin que levaram à
célebre caricatura de Ioan P. Couliano, citada tanto por Rossbach quanto por Hoeller, e
que reproduzimos a seguir:
“Houve um tempo em que eu acreditei que o gnosticismo era um fenômeno bem
identificado pertencente à história religiosa da antigüidade tardia. Evidentemente, eu
estava pronto a aceitar a idéia de diferentes prolongamentos da gnose antiga, e mesmo a
idéia da geração espontânea de visões de mundo nas quais, em épocas diferentes, as
características distintivas do gnosticismo ocorrem novamente.”
Até aqui, o consenso dos especialistas: a gnose é um fenômeno antigo, com
características bem identificadas, que surge, por vezes, pelo contato histórico com
pessoas pertencentes a movimentos gnósticos, mas que pode surgir também por um
posicionamento pessoal errôneo diante do problema do ser, da contingência e do mal.
Porém…
“Eu logo aprenderia, porém, que eu era de fato um ingênuo. Não só a gnose era gnóstica,
mas os autores católicos eram gnósticos, os neoplatônicos também, a Reforma era
gnóstica, o comunismo era gnóstico, o nazismo era gnóstico, o liberalismo, o
existencialismo e a psicanálise eram gnósticos também, a biologia moderna era gnóstica,
Blake, Yeats e Kafka eram gnósticos… Eu aprendi a seguir que a ciência é gnóstica e a
superstição é gnóstica… Hegel é gnóstico e Marx é gnóstico; todas as coisas e seus
opostos são igualmente gnósticos.”
(Ioan P. Couliano, “The Gnostic Revenge: Gnosticism and Romantic Literature”, in
Gnosis und Politik, Jacob Taubes, ed. (Munich: W. Fink, 1984), p. 290; apud HOELLER,
[s.p.], negrito nosso).
Assim, não é de surpreender que o já citado Robert Segal, em seu artigo “Gnosticism,
Ancient and Modern”, aponte a mesma confusão de Voegelin exatamente em Ioan
Couliano, cuja conclusão absurda acaba de ser citada. Segal mostra de modo claro e
breve como apenas Hans Jonas, dentre os autores que analisa, faz um paralelo adequado
entre gnosticismo e modernidade, ao falar dos traços marcadamente gnósticos do
existencialismo.
Segal mostra ainda que, além de Voegelin e Couliano, também outros autores cometem
o mesmo abuso no emprego do termo “gnose”, usando-o para caracterizar movimentos
modernos panteístas, como é o caso de Giovanni Filoramo, que cita Voegelin
nominalmente em seu A History of Gnosticism. Por isso, Segal conclui: “Singer,
Filoramo, Couliano e seus predecessores [Jung e Voegelin] pinçam aspectos diferentes
do gnosticismo e da modernidade. Ao avaliarem os antigos com olhos modernos, eles
estão projetando no gnosticismo suas próprias esperanças, ansiedades e convicções.”
(SEGAL, [s.p.]). (Parece-nos que a relação entre Jung e a gnose, proposta por Singer, é
um pouco mais complexa que uma mera repetição do erro de Voegelin e seus sucessores,
mas deixaremos esta questão para outra ocasião.)
Também é este o caso de Stephen McKnight, cujo breve estudo Gnosticism and
Modernity: Voegelin’s Reconsiderations in 1976, apresentado no mesmo local e data que
o de Rossbach, termina dizendo: “acho que Voegelin percebeu que o termo gnosticismo
já fora usado de tantas maneiras diferentes e aplicado a tantos fenômenos diferentes que
estava perdendo seu valor teórico” (McKNIGHT, pp. 6–7). Ora, vimos que Voegelin foi
justamente um dos maiores colaboradores a este uso abusivo do termo, talvez mesmo
visando obscurecer seu valor teórico, por razões que serão analisadas adiante.
Mendo Castro Henriques conta que nem mesmo o Colóquio de Messina, de 1966, que
reuniu vários especialistas sobre o tema da gnose, escapou ileso da confusão voegeliana:
“Esta preocupação [do Colóquio] evidencia que a definição e localização do gnosticismo
deixara de ser pacífica, em virtude da acumulação de investigações sobre novas
vertentes do fênomeno, mormente o relacionamento com a política e a modernidade.”
(HENRIQUES, p. 137, negrito nosso).
Por fim, é interessante mencionar a conclusão de Edward Moore, autor do verbete
“Gnosticism” para a Internet Encyclopedia of Philosophy, após considerar as tentativas
de desqualificar o termo “gnose” por parte de Michael Allen Williams, autor de
Rethinking Gnosticism: Arguments for Dismantling a Dubious Category. (Basta olhar o
nome dos capítulos do livro de Williams, quase sempre em forma de pergunta, para
constatar que se trata da mesma confusão dos autores acima. Pois, tentando impugnar a
validade teórica do termo “gnose”, Williams dá os seguintes títulos aos capítulos de seu
livro: “Rejeição anticósmica do mundo ou acomodação sócio-cultural?”, “Ódio do corpo
ou perfeição do ser humano?”, “Elitismo determinista ou teorias inclusivas de
conversão?”, etc. Evidentemente, só os primeiros elementos destas perguntas são
propriamente gnósticos, podendo ser os segundos panteístas.). Assim, Moore conclui,
contra Williams e os demais:
“Deve ser observado, entretanto, que os Padres da Igreja, como Clemente de Alexandria,
Irineu, Orígenes, Hipólito, Epifânio, e mesmo filósofos pagãos como Plotino e Porfírio,
que nos preservaram relatos e ocasionalmente alguns documentos originais dos filósofos
e teólogos que eles classificavam como ‘gnósticos’, eram também contemporâneos ou
quase contemporâneos de muitas das figuras e escolas que eles criticam e interpretam.
Os insights destes escritores, portanto, que viviam e trabalhavam lado a lado e quase
sempre em conflito com membros de seitas gnósticas, devem ter prioridade sobre
quaisquer tentativas modernas de revisar nosso entendimento do que é o gnosticismo.”
(MOORE, [s.p.], negrito nosso).

10. Outra conseqüência absurda: a ortodoxia é gnóstica, e a gnose é ortodoxa?!


Como disse sabiamente São Pio X, ao condenar a gnose modernista na encíclica
Pascendi <http://www.montfort.org.br/documentos/pascendi.html>: “As
conseqüências deviam fazê-los recuar; mas, como a audácia é uma das características
desses inimigos da Igreja, não há conseqüências de que se amedrontem e que não
aceitem com obstinação e sem escrúpulos.” Veja-se a seguir a que absurdos será levado
Voegelin.
Pois não se trata aqui somente de uma mera confusão de definições, sem maiores
conseqüências. Voegelin levará ao extremo a inversão de conteúdo do termo
“gnosticismo”, chegando ao absurdo flagrante de acusar a Igreja e seu maior Doutor de
gnose, ao mesmo tempo em que, como veremos adiante, defende posições e autores
gnósticos no sentido clássico — e, a bem dizer, único — do termo!
Ao definir a tal “gnose moderna” como “imposição da ordem do além na realidade”,
Voegelin não se limita a aplicá-la ao marxismo, por exemplo, que visa estabelecer a
utopia comunista, criar o que entende ser o “paraíso na Terra” (em outras palavras, “o
além na realidade”). Não, Voegelin vai além e acusa a escolástica de gnose, por
interpretar com a razão os mistérios da fé:
“É uma impossibilidade teórica submeter um mistério ritual, como a conversão, a uma
‘interpretação’ em termos de metafísica aristotélica, como foi feito na doutrina da
transubstanciação. Uma vez que este caminho falacioso tenha sido tomado, é apenas
uma questão de tempo e circunstância até que metafísicos indignados se rebelem contra
uma substância sem acidentes e acidentes sem substância… [A] ascendência [deste
caminho] remonta a antes da Reforma, até a invasão metafísica do período escolástico.
A confusão iluminista dos símbolos, a inclinação gnóstica de estender a operação do
intelecto ao domínio da fé e do mito, começa em problemas específicos do século doze, e
entre os pecadores encontramos, talvez inesperadamente, até mesmo Santo Tomás.”
(Eric Voegelin, History of Political Ideas: vol. IV, pp. 226–228, apud MITCHELL, [s.p.]).
Voegelin ataca a doutrina da transubstanciação, e diz que ela causa indignação! Não
vamos entrar na questão de mostrar a relação entre razão e fé, e a legitimidade da
explicação tomista dos termos dos mistérios da fé, cujo conteúdo não deixa de ser
misterioso por causa disso.
O que interessa aqui é verificar que, para Voegelin, há uma “inclinação gnóstica de
estender a operação do intelecto ao domínio da fé e do mito”. Ora, tal coisa não existe;
mais uma vez, é bem o contrário o que acontece na gnose. Como explica Hans Jonas:
“Embora a relação entre fé e conhecimento (pistis e gnosis) tenha se tornado um
problema importante na Igreja entre os hereges gnósticos e os ortodoxos, não se tratava
do problema atual entre fé e razão com o qual estamos acostumados; pois o
‘conhecimento’ dos gnósticos que contrastava com a fé simples dos cristãos, seja a favor
ou contra, não era de tipo racional.” (JONAS, pp. 34–37, negrito nosso, itálicos do
original).
Isso porque a inteligência, assim como a vontade, são potências da alma. E, como Jonas
mostra adiante, segundo os gnósticos: “A alma é parte da ordem natural, criada pelo
demiurgo para prender o espírito estrangeiro…” (ibid., p. 333) E em outra parte: “Mas o
dualismo gnóstico vai além desta posição de indiferença. Pois considera a própria ‘alma’,
o órgão espiritual pelo qual o homem pertence ao mundo, como — não menos que o seu
corpo — originada pelos poderes cósmicos e portanto como um instrumento do domínio
destes sobre seu verdadeiro, mas submerso, eu. (…) O desprezo pelo cosmos entendido
radicalmente inclui o desprezo pela psyche.” (ibid., p. 269).
O que não poderia ser diferente, já que é por meio da razão que o homem compreende o
mundo, cuja ordem e cognoscibilidade são consideradas prisões pelos gnósticos: “A
falha da natureza não está em alguma deficiência da ordem, mas sim na completude
penetrante desta ordem. Longe de ser caos, a criação do demiurgo, o antípoda do
conhecimento, é um sistema compreensível governado por leis. Mas a lei cósmica, antes
considerada [pelos gregos] como a expressão de uma razão com a qual a razão do
homem pode se comunicar no ato cognitivo e que ele pode tornar sua na emolduração
de sua conduta, é vista agora [pelos gnósticos] apenas em seu aspecto de compulsão que
frustra a liberdade do homem. O logos cósmico dos estóicos é substituído por
heirmamene, o opressivo destino cósmico.” (ibid., p. 253).
Quem explica essas coisas é Hans Jonas, um dos maiores especialistas em gnose,
conforme o próprio Voegelin reconhece, como foi visto na segunda citação do presente
trabalho. De tudo isso se vê o quanto é absurdo afirmar que a gnose queira recuperar o
mundo, e ainda por cima por meio da razão, como pretende Eric Voegelin. Como
“reforma do mundo”, a gnose pode apenas pretender a destruição da ordem cósmica
como tal, já que esta é obra de de um demiurgo mau.
Toda essa questão ficará ainda mais clara pela seguinte explicação de Jonas sobre em
que consiste o conhecimento gnóstico: “Gnose significava antes de tudo conhecimento
de Deus, e pelo que já dissemos a respeito da transcendência radical da divindade,
segue-se que o “conhecimento de Deus” é o conhecimento de algo naturalmente
incognoscível e portanto não se trata de uma condição natural. (…) [Na gnose] o
conhecimento como um ato mental é imensamente diferente da cognição racional da
filosofia. Por um lado, é intimamente ligado à experiência revelatória, de modo que a
recepção da verdade, por meio de lendas sagradas e secretas ou por meio de uma
iluminação interior, substitui o argumento racional e a teoria (embora esta base extra-
racional possa depois dar oportunidade à especulação independente)…” (ibid., pp. 34–
35, negritos meus).
Acima, Jonas explica que o gnóstico tem uma “experiência revelatória”, pela qual obtém
o conhecimento do que lhe é naturalmente incognoscível (a gnose). Disso se segue que
as várias doutrinas, credos e dogmas são meras formulações que vêm depois desta
“iluminação interior”. E, por isso, servem no máximo como referência para que uma
outra pessoa refaça a tal “experiência revelatória” que deu origem a estas fórmulas
religiosas, apreendendo assim seu sentido profundo, esotérico e inefável.
Negando a razão ou, quando muito, subordinando-a a esta pretensa “intuição”, dita
“supra-racional”, a gnose também nega ou relativiza o valor das formulações lógicas
(logo, racionais), em palavras e conceitos, dessa suposta experiência direta com a
divindade inefável que os gnósticos alegam ter.
É também por tudo isso que a gnose é sempre sincrética, considerando as religiões como
diferentes formulações, necessariamente insuficientes, de uma mesma revelação
interior. Como os místicos seriam aqueles que atingem esta “experiência” (a gnose),
todas as religiões — para os gnósticos — coincidiriam na mística. Falar em Igreja só faria
sentido se este termo designasse uma “Igreja Espiritual”, que abrangesse os gnósticos de
todas as religiões, os “místicos” ou “pneumáticos”, que é como são chamados
classicamente.
O que acaba de ser descrito, sucintamente, a partir de observações de Jonas sobre a
natureza do conhecimento gnóstico e explicitando algumas das conseqüências lógicas
destas observações, se aplica perfeitamente não só aos movimentos gnósticos dos
primeiros séculos, como também à teologia de Lutero, dos idealistas alemães, da heresia
modernista condenada por São Pio X e também de muitos — senão todos — autores
ditos “espiritualistas”, opostos aos materialistas acusados de gnose por Voegelin. Daí
que possam todos ser chamados adequadamente de gnósticos, no sentido estrito do
termo, o que se aplica também… à filosofia do próprio Eric Voegelin.

11. Eric Voegelin contra o Catolicismo


Vai além dos propósitos deste estudo expor as diferenças radicais que existem entre a
mística católica e as pseudo-místicas das seitas, vulgarmente conhecidas como
“religiões”. Limitemo-nos a constatar que as teses acima foram condenadas
repetidamente pela Igreja Católica.
Por isso, não é de estranhar que Eric Voegelin se oponha à Igreja de Roma, algo que
todos os estudiosos de sua obra testemunham.
Bill McClain mostra como Voegelin entendia a história da religião cristã: “Neste ponto,
todos se perguntarão sobre o caráter da fé religiosa de Voegelin. Ele se intitulava um
‘Cristão pré-Reforma’ e um ‘humanista Cristão’, mas ele não era membro de nenhuma
congregação. Ele dizia que, assim como a história da filosofia era a história de seu
descarrilamento, o mesmo acontecia com a religião Cristã.” (Bill McCLAIN, “Advice for
those who want to read Eric Voegelin”, <http://www.salamander.com/~wmcclain/ev-
advice.html>).
Ou seja, a Igreja Católica seria para Voegelin uma corrupção do Cristianismo. (O
mesmo, aliás, que sempre disseram todos os hereges). Isso porque, para Voegelin, a
intuição “degenera” em dogma, alegação esta que Voegelin compartilha justamente com
os gnósticos de todos os tempos, e com os modernistas atuais.
Também Mendo Castro Henriques, que dedica todo um capítulo de sua tese sobre
Voegelin à relação deste com o Cristianismo, conclui: “Avaliado por critérios de
obediência a qualquer confissão cristã, [Voegelin] seria heterodoxo, dada a sua visão da
Igreja visível e a sua afirmação de que os dogmas são uma forma secundária de fé… não
participava da vida sacramental de qualquer Igreja; e talvez considerasse que o discurso
filosófico se deve calar acerca da fé íntima.” (Mendo Castro HENRIQUES, “Ser ou Não
Ser Cristão”, in A Filosofia Civil de Eric Voegelin, Lisboa, Universidade Católica Editora,
1994, p. 170).
Bruce Douglass acrescenta que “o que falta [no pensamento de Voegelin] é o sentido do
Evangelho no sentido especificamente Cristão” (Bruce Douglass, “A Diminished Gospel:
A Critique of Voegelin’s Interpretation of Christianity”, in Eric Voegelin’s Search for
Order in History, Stephen A. McKnight ed. (Baton Rouge: Louisiana State University
Press, 1978), p. 146, itálicos do original; apud MITCHELL, nota 25).
Também David Gordon, do Mises Institute, ao tratar da visão que Voegelin tinha tanto
do Cristianismo quanto do judaísmo, afirma: “ele apresenta o que a meu ver é uma
descrição distorcida destas religiões.” (GORDON, [s.p.], negrito nosso).
Se Voegelin às vezes parece ter o Cristianismo em alta estima, é pelas razões mais
estapafúrdias: “É indubitável que Voegelin elege o cristianismo como o mais excelente
simbolismo de revelação. Em rigor, considera-o uma concepção trinitária e não
monoteísta, porquanto combina em um único símbolo experiências diferentes de
teofania.” (HENRIQUES, p. 169, negritos nossos). Um modernista não diria
diferentemente.
Nos escritos do próprio Voegelin, ademais, ele não esconde sua posição. Voegelin zomba
da Religião Católica abertamente, mostrando como ele engana os religiosos que
procuram sua orientação, e tratando Nossa Senhora e a Santa Igreja com a maior
irreverência:
“O ‘cristão pré-Reforma’ é uma piada. Eu nunca escrevi algo assim. Estas brincadeiras
aparecem porque eu freqüentemente tenho de afastar pessoas que querem me
‘classificar’. Quando alguém quer que eu seja um católico ou um protestante, eu lhe digo
que sou um ‘cristão pré-Reforma’. Se quiser me definir como um tomista ou agostiniano,
eu lhe respondo que sou um ‘cristão pré-Nicéia’. E se quiser me definir ainda antes, eu
lhe digo que até a Virgem Maria não era membro da Igreja Católica. Eu tenho uma boa
quantidade de respostas prontas para pessoas que me chateiam após uma palestra; e
assim elas são persuadidas de que tem informação autêntica sobre minha ‘posição’.”
(Eric Voegelin, Carta a John East, 18 July 1977, Box 10, File 10.23, apud ROSSBACH, p.
36).
Como se isso não bastasse, veja-se a seguinte afirmação que Voegelin faz num de seus
livros, com a qual não há herege que discorde, desde os gnósticos da antigüidade, até os
modernistas que, hoje em dia, dizem exprimir o espírito do Concílio Vaticano II: “a
liderança da Igreja encara a tarefa de espiritualizar a idéia da igreja universal de tal
maneira que seja independente do acidente romano” (Eric Voegelin, History of Political
Ideas: vol. IV, p. 224, negrito nosso, apud MITCHELL, [s.p.]).
O próprio Henriques, favorável a Voegelin, não pode evitar notar a semelhança entre a
posição gnóstica e a de Voegelin:
“O gnóstico supõe que a natureza humana é inerentemente paradoxal e desordenada;
mas a tensão entre verdade e inverdade [defendida por Voegelin] não colocará também
o homem num paradoxo inerente? É ortodoxo insistir que a revelação divina é um
mistério cuja verdade não pode ser compreendida nesta vida pelo homem; mas é
polêmico descrever [como Voegelin faz] o caráter incontornável da tensão entre a
verdade e a inverdade, como se a tentativa de encontrar a verdade e separá-la da
inverdade destruísse a existência humana. Voegelin… escreve sobre a posse assassina da
verdade, como se houvesse mal em livrar-se do erro através de dogmas que se opõem às
falsas certezas que desafiam a verdade divina.” (HENRIQUES, p. 168)
Há outros dois estudiosos, porém, que são mais diretos. O já citado David Gordon, do
Mises Institute, encerra sua breve resenha sobre Voegelin afirmando taxativamente: “A
gente se pergunta se, para Voegelin, o Deus de que ele tanto fala é um ser pessoal. R.J.
Rushdoony acertou na mosca quando caracterizou o próprio Voegelin como um
gnóstico.” (GORDON, [s.p.], negrito nosso).

12. Eric Voegelin contra o Deus pessoal


Quanto a esta questão de Deus ser ou não pessoal para Voegelin, há algumas passagens
de seus escritos que a elucidam bastante. Na primeira que citaremos, Voegelin abusa
totalmente e sem qualquer fundamento das afirmações de Santo Tomás sobre a
legitimidade da teologia negativa (ou apofática), e afirma o absurdo de que o Doutor
Angélico defenderia a existência de um Deus impessoal e — pasmem! —
“tetragramático”. Será que, para Voegelin, Santo Tomás seria um cabalista? É claro que
o erudito Voegelin, aqui, não cita fonte alguma para esta sua afirmação, tão ousada
quanto descabida.
A apofase é facilmente exagerada, o que leva a cair na distinção gnóstica entre Deus e
Divindade, respectivamente Ser e Não-Ser, de modo que o Ser (o demiurgo, que o
Antigo Testamento chama de Javé e que é o Criador do mundo) teria emanado do Não-
Ser, o Deus desconhecido, o Deus absconditus do qual Voegelin fala favoravelmente a
seguir:
“Na análise de Santo Tomás, por exemplo, aparece o Deus pessoal que é
apropriadamente chamado de ‘Deus’, mas atrás do Deus que pronuncia seu Verbo e
ouve a palavra da oração, paira o Deus tetragramático, sem nome e impessoal.” (Eric
Voegelin, Order and History vol. V: In Search of Order, The Collected Works of Eric
Voegelin, Volume XI, Ed. Ellis Sandoz (University of Missouri Press, 2000), p. 83,
negrito nosso.)
Um dos frutos desta concepção errônea e gnóstica de Deus é a negação da Providência.
Isso explica como Voegelin pode chamar o Profeta Isaías de feiticeiro, dizendo que sua
recomendação ao rei de que confiasse em Deus é um ato de magia! É ver para crer:
“Na profecia de Isaías encontramos a esquisitice [sic!] de que Isaías aconselhou o rei de
Judá a não confiar nas fortificações de Jerusalém e na força de seu exército, mas sim em
sua fé em Javé. Se o rei tivesse fé verdadeira, Deus faria o resto e produziria uma
epidemia ou pânico entre os inimigos, e o perigo à cidade seria dissolvido. O rei teve
bom senso o suficiente para não seguir o conselho do profeta, e sim confiar nas
fortificações e nos equipamentos militares. Mesmo assim, havia a afirmação do profeta
de que por meio de um ato de fé a estrutura da realidade poderia ser efetivamente
mudada. Ao estudar este problema e tentar entendê-lo, minha primeira idéia, é claro, foi
que o profeta entregou-se à magia, ou ao menos acreditava em magia. Isto não seria
surpreendente, pois na história de Israel era a função dos profetas, por exemplo, guiar a
mão do rei para atirar uma flecha contra o inimigo numa operação mágica que resultaria
em vitória. (…) Eu não usei o termo magia para a prática aconselhada por Isaías, mas
inventei um novo termo para caracterizar a peculiar crença mágica sublimada numa
transformação da realidade por meio de um ato de fé. (…) Não estou certo de que hoje
eu faria essa concessão, pois este tipo de fé é de fato magia, embora tenha-se que
distinguir esta variedade ‘sublimada’ de uma operação mágica mais primitiva.” (Eric
Voegelin, Autobiographical Reflections, pp. 68–69, negritos nossos, itálico do original).
A crença num Deus impessoal explica também a simpatia de Voegelin pelo hinduísmo:
“É interessante notar, neste contexto, que Voegelin comentou em pelo menos duas
ocasiões que seu interesse por ‘problemas de compreensão religiosa’ foi provocado pela
primeira vez pelas conferências de Paul Deussen sobre as Upanixades, em Viena, em
1918/19. Deussen, um amigo de Nietzsche, foi tradutor das upanixades e um dos
maiores especialistas em filosofia indiana. O texto favorito de Voegelin das upanixades
era o Brihadaranyaka, pois era um belo exemplo da via negativa do ‘misticismo
intelectual’.” (ROSSBACH, p. 25).
Um exemplo prático do “misticismo” defendido por Eric Voegelin será visto logo mais,
no capítulo 14.

13. Voegelin mudou de opinião sobre a gnose?


Há quem diga que Voegelin mudou de opinião, mais tarde, sobre o gnosticismo.
Rossbach, porém, que dedicou seu trabalho a analisar justamente esta questão, nega que
Voegelin tenha mudado:
“O tema do ‘gnosticismo’ perpassa a obra de Eric Voegelin desde A Nova Ciência da
Política até In Search of Order [o último livro de Voegelin]. Claro que houve
qualificações, revisões e ajustes… Mas Voegelin jamais renunciou à sua crença de que
por trás da noção de gnose, ou gnosticismo, havia um problema espiritual muito sério,
perene, que de algum modo, na era moderna, se elevara ao nível de fenômenos de massa
sociais e políticos.” (ROSSBACH, p. 12).
O que aconteceu foi que Voegelin passou a acrescentar outros elementos, além do
gnosticismo, como componentes da desordem moderna. São todos elementos que já
eram mencionados nos primeiros livros de Voegelin, nos quais entretanto eram vistos
como variantes da gnose. A questão aparece nitidamente num diálogo epistolar entre
Voegelin e Bishirjian:
“(…) ‘E hoje eu teria de dizer que o Gnosticismo é um componente na estrutura histórica
da modernidade, mas não mais do que um. De igual importância, no fim das contas, são
os apocalípticos, o neoplatonismo, o hermetismo, a alquimia e a magia. (…)’
(Voegelin, Carta a Robert J. Bishirjian, 8 September 1976, Box 8, File 8.18).
Em sua resposta Bishirjian perguntou se ‘estes vários movimentos [poderiam] ser
espécies do gênero Gnosticismo’ (Carta de Robert J. Bishirjian to Voegelin, 14
September 1976, Box 8, File 8.18). Mas Voegelin discordou:
‘A literatura sobre magia, neoplatonismo, apocalípticos, cabala, hermetismo e alquimia
está crescendo prodigiosamente e pode ser lida por quem quer que se interesse. Todos
estes fatores são componentes da atual desordem intelectual, assim como o
Gnosticismo. […] Eu seria cuidadoso quanto a usar o termo “Gnosticismo” como um
gênero, abrangendo os outros movimentos.’ (Voegelin, Carta a Robert J. Bishirjian, 21
October 1976, Box 8, File 8.18).” (ROSSBACH, p. 11)
Três constatações devem ser feitas a partir das citações acima.
Primeiro, que Voegelin cita todos estes novos elementos como “componentes da atual
desordem intelectual”, ou seja, sua influência é vista como tão perniciosa quanto à da
gnose. Isso deve ser enfatizado porque sempre há aqueles prontos a defender uma
suposta “boa alquimia”, “cabala cristã”, “astrologia escolástica”, assim como uma “boa
gnose”.
Em segundo lugar, Voegelin limita-se a recomendar cuidado, e de fato não afirma que o
Gnosticismo não seja um gênero que abrange os outros movimentos citados.
Em terceiro lugar, é no mínimo curiosa a displicência com que Voegelin cita estes “novos
elementos”, pois mesmo no curto intervalo entre a primeira e a segunda cartas a
Bishirjian, já há um elemento que só aparece na segunda: a cabala.
(Não cabe aqui demonstrar até que ponto cada uma destas correntes é gnóstica.
Gershom Scholem afirma em diversos livros que a cabala é o gnosticismo judaico; sobre
o neoplatonismo, Puech tem um ensaio sobre os pontos de encontro entre Plotino e os
gnósticos, não obstante serem eles criticados por este neoplatônico; sobre o hermetismo
e a gnose, tratam Jonas e Puech, baseando-se principalmente na obra clássica de
Festugière; sobre os “apocalípticos”, distinguindo precisamente entre milenarismo e
utopia, e mostrando sua relação com o gnosticismo, o Prof. Orlando Fedeli tem o
trabalho definitivo, Conceituação, Causas e Classificação das Utopias, que se encontra
no site da Associação Cultural Montfort
(http://www.montfort.org.br/cadernos/utopia1.html); o mesmo trabalho tem
referências sobre a magia e a gnose, relação esta que se encontra em todos os livros
sobre o assunto; finalmente, sobre os pressupostos gnósticos em que se baseiam tanto a
alquimia como as demais pseudociências esotéricas (astrologia, numerologia, etc.), são
seus próprios defensores que o afirmam, como os guénonianos Titus Burckhart e Serge
Hutin, nos livros que dedicam ao assunto. O livro do Prof. Orlando Fedeli mencionado
na apresentação deste trabalho contém um capítulo revelador sobre esta questão.)
Mas esta mudança de enfoque, sem maiores explicações, não é difícil de entender, ao se
verificar as posições gnósticas que o próprio Voegelin adotou, como vimos brevemente e
como qualquer análise de sua filosofia mostra com clareza, e também tendo em mente
uma constatação importante de Rossbach sobre o caráter de Voegelin: “É
verdadeiramente notável como Voegelin, durante a vida, e com muito sucesso, tentou se
esconder por trás de uma cortina de fumaça de declarações nas quais ele nega a
responsabilidade da autoria.” (ROSSBACH, p. 34)

14. A pseudomística de Eric Voegelin


Para este trabalho não ficar teórico demais, encerremos mostrando com exemplos qual é
afinal a mística defendida por Voegelin.
Rossbach diz ser útil, para entender Voegelin, “compará-lo à personagem principal e ao
título de um de seus romances prediletos, O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil.
A admiração de Voegelin por Musil é bastante conhecida. (…) Voegelin respeitava Musil
como um ‘observador da realidade incrivelmente cuidadoso’ e como um ‘mestre dos
problemas intelectuais envolvidos’. Musil, por sua vez, tinha grande respeito pela obra
de Voegelin; os dois se encontraram muitas vezes em Viena.” (ROSSBACH, p. 36).
Assim, Rossbach mostra a semelhança entre Voegelin e Ulrich, protagonista do romance
O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil:
“Ulrich identifica aqui, sob as realidades secundárias que dominam seu cenário social e,
de fato, sob os simbolismo religiosos, a verdade e a realidade primeira do misticismo.
(…) Ulrich teria poucas dificuldades de entender os escritos de Voegelin sobre as
equivalências de experiências. Por conseguinte, os dois também compartilham de uma
peculiar ‘falta de qualidades’… Ulrich, como Voegelin, é um ‘homem sem qualidades’
porque, para usar as palavras de Voegelin citadas acima, ele não insiste em ‘achar suas
coordenadas absolutas em sua nação, como um marxista, um liberal, etc.’. Ambos não
prendem suas identidades ao que não passa das ‘últimas palavras de cada religião
histórica’. Ambos sabem que a ‘realidade da fé’ está além dos símbolos. Um comentador
caracterizou Ulrich como ‘um homem de fé que por acaso não acredita em nada’, e nós
sugerimos que a via negativa de Voegelin foi dirigida pelo mesmo problema.”
(ROSSBACH, p. 37, negrito nosso).
Como se o que foi dito não fosse suficiente, Rossbach ainda conta que a inspiração do
livro de Musil é ninguém menos que o famoso escritor judeu Martin Buber, especialista
em hassidismo (sistema gnóstico baseado na cabala luriânica): “O romance de Musil é
entremeado com mais de trezentas citações da coletânea de Martin Buber intitulada
Ecstatic Confessions: The Heart of Mysticism, publicada em 1909. A biblioteca de
Ulrich, na verdade, vem das Ecstatic Confessions de Buber.” (ROSSBACH, p. 37).
Ainda mais interessante é o fato de Voegelin citar Henri Bergson e Jean Bodin como os
dois grandes místicos da modernidade: “Nos tempos modernos, explica Voegelin, o
misticismo se tornou duas vezes a fonte de tentativas de encontrar o caminho de volta
do dogmatismo para a racionalidade do pensamento: primeiro por Bodin, no século 16,
‘numa situação de dogmatomaquia teológica’; a segunda vez por Bergson no século 20,
‘numa situação de dogmatomaquia ideológica’. O misticismo de Bodin evita o
descarrilamento num ‘dogma literalista’ pela manutenção do equilíbrio entre o
conhecimento dos símbolos e o conhecimento do que está além deles. Este balanço entre
os domínios do silêncio e da expressão caracteriza a natureza da ‘tolerância’. (Eric
Voegelin, Was ist politische Realität?, pp. 333–340)” (ROSSBACH, pp. 24–25).
Assim, Voegelin supõe um conhecimento que está além dos dogmas e que seria superior
a eles. Isto é modernismo. Esse conhecimento seria superior a qualquer credo histórico
concreto, inclusive o da Igreja Católica. Esse conhecimento seria então comum a todas
as religiões. Estas idéias fazem de Voegelin não só um gnóstico, mas também um
modernista. O que não é de surpreender num homem que admite ter sido muito
influenciado por padres modernistas como Balthasar e Lubac.
Voltemos a Bergson e Bodin. Já que Voegelin afirma ser Bodin superior, concentremo-
nos nele, para não tornar este trabalho mais longo do que já está, embora houvesse
muito o que dizer sobre Bergson: “Eu duvido que Bergson tenha a mesma estatura de
Bodin como místico, mas esses dois espiritualistas franceses são para mim as figuras
representativas para a compreensão da ordem em tempos de desordem intelectual.”
(Eric Voegelin, Autobiographical Reflections, p. 114).
Voegelin afirma ter estudado Bodin cuidadosamente, e repete a seguir por que o
“místico” lhe pareceu tão bom (e os modernistas aplaudem…): “No século dezesseis,
quando havia oito guerras civis religiosas na França, Jean Bodin reconheceu que o
conflito entre as várias verdades teológicas no campo de batalha só poderia ser
apaziguado pela compreensão da importância secundária da verdade doutrinária em
relação ao insight místico. (…) Meu estudo cuidadoso da obra de Bodin no começo dos
anos trinta me deu minha primeira compreensão total da função do misticismo numa
época de desordem social.” (Eric Voegelin, Autobiographical Reflections, p. 113, negrito
nosso).
Rossbach cita a última obra de Bodin como fonte deste “insight” admirado por Voegelin:
“No final do Colloquium Heptaplomeres, de Jean Bodin, Voegelin encontra refletido o
insight de que ‘o simbolismo não passa da última palavra de cada religião histórica; a
realidade da fé através da conversio está além dos símbolos’. (Eric Voegelin, Was ist
politische Realität?, pp. 337)” (ROSSBACH, p. 16).
Vejamos então, para entender melhor a tal “tolerância” que Voegelin atribui à “alta
estatura mística” de Bodin, quem foi ele e, mais especificamente, qual o conteúdo deste
seu último livro. Para isso, recorreremos ao capítulo dedicado a Jean Bodin pelo
estudioso D.P. Walker, em sua obra clássica sobre a magia na Renascença, Spiritual &
Demonic Magic — from Ficino to Campanella:
Para começar, Bodin foi um apóstata: “No final de sua vida, Bodin já deixara de ser um
cristão e acreditava num tipo de judaismo arcaico e simplificado.” (WALKER, p. 171)
Walker resume a última obra de Bodin, da qual Voegelin tirou o tal “insight” citado
acima: “Heptaplomeres é uma busca conduzida por um católico, um luterano, um
calvinista, um pagão, um judeu, um maometano e um naturalista pela Urreligion, o
núcleo arcaico da verdade religiosa, que está incluído em todas as religiões deles, e que,
restaurado à sua simplicidade original, reunirá a todas. Este núcleo é finalmente
encontrado no decálogo, que é ‘ipsissima lex naturae’ (1). Os princípios pelos quais esta
busca é dirigida, assim como sua conclusão, são judaicos: a verdadeira religião deve ser
absolutamente monoteísta e deve fornecer uma Lei, um sistema ético rígido e preciso
baseado em recompensas e punições. O cristianismo fracassa nas duas coisas e é
rejeitado. (2)” (WALKER, p. 172, negritos nossos)
Na nota (1), Walker conta que, a partir deste momento da narrativa, este livro de Bodin
“é uma defesa do judaísmo como a verdadeira religião natural”, o que confirma que ele
de fato apostatou para o judaísmo.
Mais reveladora ainda é a nota (2), na qual Walker conta que, neste livro, Jean Bodin
simplesmente:
- defende a impossibilidade da Encarnação,
- ataca a Santíssima Trindade,
- nega o pecado original,
- nega a Redenção,
- opõe-se à ética dos Evangelhos,
- ataca a autenticidade destes, baseando-se em Marcion, herege do séc. III condenado
pelos Santos Padres (S. Irineu, S. Justino, S. Hipólito, S. Jerônimo, etc.), cujo sistema
gnóstico, aliás, é descrito por Hans Jonas no capítulo 6 de seu The Gnostic Religion.
Encerremos com a seguinte passagem, ainda sobre a mesma obra e o mesmo autor, que
fala por si só:
“Os salmos hebreus são os únicos hinos antigos bons; todos os falantes em
Heptaplomeres conseguem se unir nestes cantos de louvor ao Deus Único, enquanto
todos os outros hinos são endereçados a ‘deuses’ inferiores, que na verdade são criaturas
— e aqui Bodin dá uma lista de deuses pagãos, mas terminando com Jesus, Maria e os
santos.” (WALKER, p. 175, negrito nosso).
Após esta citação, nada mais resta a dizer sobre Jean Bodin… ou sobre Eric Voegelin.

15. APÊNDICE: Ecos no Brasil


“Contento-me em não ser um gnóstico
na acepção tradicional e voegeliniana do termo.”
(Olavo de Carvalho, Fé, ciência e ideologia: o fundo da questão Fedeli, 18.07.2001
apud <http://www.montfort.org.br/perguntas/olavo7.html#fe>, negrito nosso.)
Contra-Reforma “gnóstica”?! Santos “idiotas”?!
Aqui no Brasil, um dos principais divulgadores de Eric Voegelin é o astrólogo-jornalista-
escritor Olavo de Carvalho, que vê influências gnósticas até em Santo Inácio de Loyola e
no Concílio de Trento(!), baseando-se nos mesmos pressupostos falsos que levaram
Voegelin a ver gnose em ninguém menos que Santo Tomás de Aquino. (O que é uma
conseqüência lógica, já que o Concílio de Trento foi baseado justamente em Sto. Tomás.)
“Eu acho, e isto é uma teoria minha, eu acho que várias mudanças que houve na Igreja
Católica a partir sobretudo da Reforma, eu acho que houve uma influência gnóstica. Eu
acho que houve uma influência gnóstica na Companhia Jesuítica, por exemplo. Mas essa
é uma hipótese, eu não tenho certeza disso. (…) Então, eu sei que, quanto a um católico
atual, um católico conservador atual, você fala: ‘Olha, houve uma influência gnóstica no
Concílio de Trento’. O cara quer te matar, porque isso é o contrário de tudo o que ele
pensa. E ele vai dizer: ‘Olha, eu sou aqui um tridentino, então…’. E eu digo: ‘Espere aí.
Mas tinha negócio gnóstico lá.’ Eu não estou dizendo que teve, mas que parece que
teve.” (Olavo de Carvalho, Aula de 10.02.2001 do Seminário de Filosofia de São Paulo,
não revisada pelo autor, Fita 1, Lado B, negritos nossos).
Se cito esta aula assim, transcrevendo-a a partir de sua gravação, mesmo sem ter sido
revisada pelo autor, é por três motivos: primeiro, porque eu estava presente neste dia,
convidado por Olavo de Carvalho devido à polêmica que se iniciava, mas ainda não tinha
os meios de lhe responder então, o que faço agora; segundo, porque esta aula foi
gravada, com autorização de Olavo de Carvalho, também por outras três ou mais
pessoas, sem ligação comigo, de modo que fica fácil aos outros conferi-la, sem contar
que essas coisas já foram ditas também em outras ocasiões e não são nenhuma novidade
a seus alunos; terceiro, porque o próprio Olavo de Carvalho encoraja seus alunos a se
responsabilizarem pela transcrição de suas aulas, e é isto que acabo de fazer — como ex-
aluno, bem entendido — tendo certeza de não ter distorcido suas palavras nem as tirado
de contexto: “Ser capaz de assumir a responsabilidade científica por uma transcrição
assinala o término da fase de absorção passiva e o ingresso no efetivo aprendizado da
vida intelectual.” (Olavo de Carvalho, “Considerações sobre o Seminário de Filosofia”,
01.01.2000).
Além do mais, tal citação não só mostra o efeito da influência de Voegelin que é objeto
deste estudo, como também justifica a seguinte declaração de Olavo de Carvalho, em
entrevista reproduzida em seu site, na qual chama os Bispos do supracitado Concílio
dogmático de “idiotas”, incluindo assim santos como São Carlos Borromeu, por ter
participado do Concílio, e também São Pio V, por ter sancionado os decretos tridentinos:
“O declínio da intelectualidade católica dominante da época é terrível — se você
compara os intelectuais dos séculos XII e XIII com aqueles idiotas do Concílio de
Trento, é algo absolutamente deplorável. Há uma queda do nível das universidades
ocasionada pela sua politização, por culpa dos papas e dos reis. Com a restauração na
Alemanha [?], a universidade conserva uma imensa autonomia, possibilitando o
surgimento do movimento notabilíssimo que foi o romantismo e o idealismo alemão.
Filho direto da liberdade, da não interferência dos poderes externos na universidade.”
(Entrevista de Olavo de Carvalho à Revista Digital, 22.03.2001,
<http://www.olavodecarvalho.org/textos/redigital.htm>, negritos nossos).
E contrapõe aos santos da Contra-Reforma nada menos que o movimento principal da
modernidade gnóstica: o romantismo alemão! Já vimos citações do próprio Voegelin
confirmando isto, baseando-se no discípulo de Hegel e especialista em gnose Ferdinand
Christian Baur. Acrescentemos aqui uma declaração de Georges Gusdorf, cuja
autoridade sobre o Romantismo dispensa comentários:
“O Romantismo é uma renascença gnóstica (…) Schelling é um gnóstico, cujas
convicções se desenvolvem à medida que ele avança em idade, da mesma forma Baader;
a Naturphilosophie impõe à pesquisa científica códigos gnósticos. Na França, em
seqüência à de Saint Martin e de Fabre D’Olivet, a Gnose triunfa nos escritos de
Ballanche; ela sustenta o gênio poético de Victor Hugo, ela está presente no Lamartine
das Visões e no Nerval dos Iluminados.” (G. Gusdorf, Le Romantisme, Payot, Paris,
1993, I vol., p. 512; apud Prof. Orlando Fedeli, As Três Revoluções na Arte,
<http://www.montfort.org.br/cadernos/3revolucoes.html>, negrito nosso).
Já que Gusdorf menciona Schelling, convém aqui citar novamente a estima que Olavo de
Carvalho tem por este gnóstico. Em seu livro O Jardim das Aflições, ele chega a parodiar
Nosso Senhor Jesus Cristo para promover o herege Schelling: “Em verdade vos digo,
filhinhos: Schelling era muito grande, et tenebrae non comprehenderunt eum” (Olavo de
Carvalho, O Jardim das Aflições, 2a. ed., p. 179, nota 127).
Além de Gusdorf, citemos também Simone de Pétrement, famosa estudiosa de gnose e
ela mesma discípula da gnóstica Simone Weil, afirmando que o Romantismo é
totalmente gnóstico: “Nós dissemos que os gnósticos são românticos; nós poderíamos
dizer igualmente que o Romantismo é gnóstico.” (Simone de Pétrement, Le Dualisme
chez Platon, les Gnostiques et Manichéens, PUF, Paris, 1947, p. 344; apud Prof. Orlando
Fedeli, As Três Revoluções na Arte,
<http://www.montfort.org.br/cadernos/3revolucoes.html>, negrito nosso).
O panteísmo é gnóstico?!
Mas o eco mais interessante do erro voegeliano se encontra no principal dentre os livros
publicados de Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições. (Curiosamente, Olavo de
Carvalho diz que escreveu este livro antes de ler a obra de Eric Voegelin, mas o erro de
ambos é idêntico, como se verá a seguir.) Nele, há um capítulo intitulado “A Revolução
Gnóstica”, em que Olavo de Carvalho, ao se propor a definir a gnose, acaba definindo o
panteísmo:
“Não cabe aqui entrar numa descrição aprofundada do fenômeno gnóstico, de cuja
amplitude e variedade, quase alucinantes, somente estudos volumosos podem, de longe,
dar conta. Mas não creio errar ao assinalar, como pontos comuns a uma ampla
variedade de escolas gnósticas, a religião cósmica, de um lado, a sacralização da
sociedade (ou do Estado), por outro.” (Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições, 2a. ed.,
É Realizações, p. 195, negrito nosso, itálicos do original).
Ora, a gnose é justamente a religião anticósmica, que por isso rejeita tanto a sociedade
quanto o Estado. Isso já foi visto, e é confirmado claramente por Hans Jonas no breve
trecho a seguir, que não custa citar novamente:
“Nem todo o Corpus [Hermeticum] pode ser considerado como uma fonte gnóstica:
grandes partes dele respiram o espírito de um panteísmo cósmico muito distante da
denúncia violenta do universo físico tão característica dos gnósticos.” (Hans Jonas, “The
Poimandres of Hermes Trismegistus”, in The Gnostic Religion, p. 147, negrito nosso).
Assim, fica explicada também a confusão terminológica que leva Olavo de Carvalho,
numa das aulas sobre Aristóteles publicadas em seu site, a dizer simplesmente que… o
panteísmo é gnóstico! A contradição que vimos em Eric Voegelin, ao chamar do mesmo
nome tanto uma coisa quanto o seu oposto, aparece aqui de modo indisfarçado:
“Existem duas maneiras de perverter o sentido do real. Uma é isolando uma parte;
outra, empastelando tudo no ‘todo’. Então, de um lado temos o Panteísmo. A idéia de
que tudo é Deus, sem distinção, é gnóstica. E a idéia da separação absoluta também é
gnóstica.” (Olavo de Carvalho, Pensamento e Atualidade de Aristóteles, Quarta Aula, 5
de abril de 1994, <http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/pensaris4_2.htm>,
negritos nossos).
E, tanto aqui como no caso de Eric Voegelin, não se trata de uma mera confusão
terminológica sem maiores conseqüências, pois esta confusão é usada pelos autores em
questão para escamotear sua própria gnose, de modo que afetam condenar a gnose ao
mesmo tempo em que, de fato, a defendem, limitando-se a condenar o panteísmo. Isso
quando não incluem a Religião Católica em sua condenação da gnose, como já os vimos
fazer. Pois note-se que a expressão “separação absoluta” é usada, na passagem acima, de
modo equívoco, não podendo ser tomada como uma condenação da gnose por Olavo de
Carvalho; muito pelo contrário, se significa a absoluta transcendência de Deus em
relação ao mundo, que é dogma Católico, então Olavo de Carvalho estaria mais uma vez
dizendo que o Catolicismo é gnóstico, à semelhança de Voegelin.
Antropologia gnóstica… contra a gnose?!
Voltando ao livro O Jardim das Aflições, vemos que Olavo de Carvalho vai mais longe:
no mesmo momento em que alega estar condenando a gnose, defende uma
interpretação da história baseada… nas categorias da antropologia gnóstica clássica!
Pois a gnose prega que o ser humano tem uma natureza tripartida: além de corpo (hylé)
e alma (psyché), o homem teria também uma partícula divina presa no âmago de seu
ser: o “espírito” (pneuma). Por isso, a humanidade se dividiria em três classes de seres:
os “hílicos”, nos quais predomina o corpo, os prazeres sensuais, e que estão todos
condenados; os “psíquicos”, nos quais predomina a razão, que no máximo chegam ao
“exoterismo” das religiões, e que têm por isso alguma chance de “salvação”; e finalmente
os “pneumáticos”, os “libertados pelo conhecimento”, os que se livraram de todo apego à
matéria (para eles a alma também é material, feita de uma suposta “matéria sutil”); estes
últimos são os próprios gnósticos.
Assim, Olavo de Carvalho interpreta a história como uma luta entre duas forças: a da
necessidade cega e a da razão prometéica, ou seja, entre “hílicos” e “psíquicos”! Usando
simbolismo inspirado no gnóstico William Blake, Olavo de Carvalho identifica estas
duas forças, respectivamente, com os demônios Leviathan e Behemoth:
“COSMOS versus HUMANIDADE
LEIS FÍSICAS versus LEIS DA RAZÃO
EXPERIÊNCIA versus PENSAMENTO
NATUREZA versus HISTÓRIA
MECANICISMO versus VITALISMO
Nature versus Nurture
Behemoth versus Leviathan”
(Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições, 2a. ed., p. 199).
Acrescentemos nós, esclarecendo a oposição:
Panteísmo sensual versus Panteísmo racionalista
Hílicos versus Psíquicos
Então, deste duelo interminável, ele propõe uma “saída pelo alto”, que é justamente a
gnose. Isto já foi visto minuciosamente no estudo do Prof. Orlando Fedeli sobre a gnose
de René Guénon e Olavo de Carvalho, citado na apresentação e na bibliografia de nosso
trabalho. Para não sermos redundantes, e sem sairmos do assunto e do livro O Jardim
das Aflições, limitemo-nos a mencionar que Olavo de Carvalho aponta como “núcleo de
resistência” às forças destrutivas citadas acima justamente a escola declaradamente
gnóstica de Frithjof Schuon, discípulo de Guénon:
“É ainda nos Estados Unidos que se encontra hoje o mais poderoso núcleo de resistência
ao avanço do ateísmo oficial — o que abrange desde as comunidadas que se organizam
contra a lei do aborto até a elite espiritual concentrada em torno de figuras como Seyyed
Hossein Nasr — exilado iraniano -, Huston Smith, Victor Danner e outros,
profundamente influenciada pelo pensamento de Frithjof Schuon, homem espiritual de
primeiro plano e formulador do único método válido já concebido para a comparação e
aproximação das religiões.” (Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições, 2a. edição, pág.
308, negritos nossos).
É particularmente curioso que o próprio Schuon se diga não só “gnóstico”, como
também “pneumático”:
“Quanto à Sophia perennis, trata-se do seguinte: há verdades inatas no Espírito
humano, que apesar disso estão em certo sentido enterradas nas profundezas do
‘Coração’ — no puro Intelecto — e são acessíveis apenas a quem for espiritualmente
contemplativo; e essas são as verdades metafísicas fundamentais. O acesso a elas é
possuído pelo ‘gnóstico’, ‘pneumático’ ou ‘teósofo’, — no sentido original e não sectário
destes termos, — e o acesso a elas era também possuído pelos ‘filósofos’ no sentido real e
ainda inocente da palavra: por exemplo, Pitágoras, Platão e em grande parte também
Aristóteles.” (Schuon, “Sophia perennis”: Studies in Comparative Religion; apud Seyyed
Hossein Nasr, Knowledge and the Sacred, State University of New York Press, 1989, pág.
88, nota 18, negritos nossos).
E, como o Prof. Orlando Fedeli observa ao comentar esse trecho: “Embora Schuon,
citado por Nasr, tivesse dito que a palavra gnóstico era aí empregada não no sentido
sectário, mas no sentido ‘inocente’, o que ele, Schuon, afirma sobre o ‘Coração’ ou
‘Intelecto’, como instrumento do Conhecimento, demonstra que ele emprega o termo
exatamente como a Gnose tradicional empregava esses termos: intelecto era, para a
Gnose, a partícula divina no homemo, o Atma, o pneuma divino, o éon.” (Prof. Orlando
Fedeli, A Gnose “Tradicionalista” de René Guénon e Olavo de Carvalho, Cap. II-6,
<http://www.montfort.org.br/cadernos/guenon.html>).
Diga-se de passagem que também Mendo Castro Henriques, em sua tese sobre Eric
Voegelin (ambos autores, aliás, nos quais os termos “gnose” e “gnosticismo” são usados
indistintamente, designando sempre a heresia dos primeiros séculos e suas muitas
variantes), resume de passagem as posições de Guénon e Schuon e, apesar das
ambigüidades e limitações de uma síntese tão compacta quanto a que faz, afirma com
segurança que os guénonianos são variantes dos hereges gnósticos:
“A ligação entre gnose e modernidade é também recusada nas especulações de autores
como Fritjof Schuon, René Guénon, Raymond Abellio e Julius Evola, representantes
notórios de posições que se reclamam de uma tradição expressa pelo termo árabe
ma’arifah e pelo sânscrito jnana e equivalente à gnose ocidental. Estes termos designam
o conhecimento esotérico revelado numa suposta seqüência providencial de
mensageiros divinos que, de Buda a Maomé, manifestariam o verbo de forma cada vez
mais pura, até ao limite de compreensão do intelecto humano; em particular, até
conferir aos eleitos o poder de compreender o absoluto. Tais autores são gnósticos de
uma variante que não admite a dogmatização da transcendência.” (HENRIQUES 1994,
pp. 136–7, negritos nossos).
Resumindo: na mesma ocasião em que, nominalmente, diz condenar a gnose, enquanto
na verdade condena apenas o panteísmo, Olavo de Carvalho adota exatamente a divisão
gnóstica clássica da humanidade — entre hílicos, psíquicos e pneumáticos — para
interpretar a história como uma luta entre o que podemos chamar de “panteísmo
sensual” (hílicos) e “panteísmo racionalista” (psíquicos), aos quais Olavo de Carvalho
opõe a saída da gnose (pneumáticos).
E tudo isso sob o olhar de aprovação dos gnósticos que o próprio Olavo de Carvalho
chama de “gurus”: René Guénon e Eric Voegelin.
In Iesu et Mariae,
Felipe Coelho.
São Paulo, na festa da Purificação de Nossa Senhora, 2 de fevereiro de
2002.

16. Bibliografia
Santo AGOSTINHO, A Cidade de Deus (Contra os Pagãos), Petrópolis: Editora Vozes,
1999, 4a. edição.
Prof. Orlando FEDELI, A Gnose “Tradicionalista” de René Guénon e Olavo de Carvalho,
<http://www.montfort.org.br/cadernos/guenon.html>.
_________________, “Gnose: Religião Oculta da História”,
<http://www.montfort.org.br/veritas/gnose.html>.
_________________, Conceituação, Causas e Classificação das Utopias,
<http://www.montfort.org.br/cadernos/utopia1.html>.
David GORDON, “The Fallacies of Voegelian Antiliberalism”, Fall 2000,
<http://www.mises.org/misesreview_detail.asp?control=166>.
Mendo Castro HENRIQUES, A Filosofia Civil de Eric Voegelin, Lisboa, Universidade
Católica Editora, 1994.
Stephen A. HOELLER, “What is a Gnostic?”,
<http://www.webcom.com/~gnosis/whatisgnostic.htm>.
Hans JONAS, The Gnostic Religion, Beacon Press, Boston, 1991, 2ª edição.
Bill McCLAIN, “Advice for those who want to read Eric Voegelin”,
<http://www.salamander.com/~wmcclain/ev-advice.html>.
___________, “Dictionary of Voegelian Terminology”,
<http://www.salamander.com/~wmcclain/ev-dictionary.html>.
Stephen McKNIGHT, Gnosticism and Modernity: Voegelin’s Reconsiderations in 1976,
<http://pro.harvard.edu/papers/091/091007McKnightSt.pdf>.
Joshua MITCHELL, Voegelin and the Scandal of Luther: Philosophy, Faith, and the
Modern Age, 2000, <http://www.artsci.lsu.edu/voegelin/EVS/PANEL5.html>.
Edward MOORE, “Gnosticism”, verbete da Internet Encyclopedia of Philosophy,
<http://www.utm.edu/research/iep/g/gnostic.htm>.
São PIO X, Pascendi Dominici Gregis
Stefan ROSSBACH, ‘Gnosis’ in Eric Voegelin’s Philosophy, July 2001.
<http://pro.harvard.edu/papers/091/091007RossbachSt.pdf>.
Robert A. SEGAL, “Gnosticism, Ancient and Modern”, Christian Century, November
1995.
<http://www2.gol.com/users/coynerhm/gnosticism_ancient_and_modern.htm>.
Eric VOEGELIN, Autobiographical Reflections, Louisiana State University Press, 1989.
_____________, A Nova Ciência da Política, Brasília, Universidade de Brasília, 1982,
2ª ed.
_____________, Plato, University of Missouri Press, 2000.
_____________, Order and History vol. V: In Search of Order, The Collected Works
of Eric Voegelin, Vol. XI, Ed. Ellis Sandoz, University of Missouri Press, 2000.
(Nota: Foram citadas também outras obras do autor, a partir de seus estudiosos.)
D.P. WALKER, Spiritual & Demonic Magic — from Ficino to Campanella, The
Pennsylvania State University Press, 2000.

Você também pode gostar