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DOI: 10.4025/4cih.pphuem.

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AS SEMENTES DA EXPANSÃO: ESPÉCIES VEGETAIS EXÓTICAS E


ESTRATÉGIAS DE COLONIZAÇÃO NA AMÉRICA PORTUGUESA

Luciana Aparecida Firmino


Jéssica Sereno Peixoto
Fabiano Bracht
10 Christian Fausto Moraes dos Santos
Universidade Estadual de Maringá

INTRODUÇÃO
Comer é uma das necessidades mais básicas do ser humano, mas, além de saciar a
fome, o ato também pode nos apresentar importantes fontes acerca da história de um país. Até
onde vai a herança portuguesa nos hábitos alimentares brasileiros? Comer angu ou mandioca
frita são hábitos que herdamos indiretamente dos portugueses por conta, em grande parte, da
“plasticidade” portuguesa em se adaptar aos hábitos alimentares africanos e indígenas. Mas,
20 por onde poderíamos começar a entender o processo de construção de uma identidade
alimentar brasileira?
No decorrer do século XV os mares além do mediterrâneo ainda eram pouco
explorados pelos europeus, algo a ser desvendado e, sobretudo, uma esperança de controlar as
prosperas rotas comerciais. A localização geográfica de Portugal e o contato com os
mulçumanos através de guerras garantiram ao país um aprimoramento naval e intensos
conhecimentos marítimos como, por exemplo, a vela triangular muçulmana que permitia
navegar contra o vento, portanto, a associação destes fatores foi muito importante para o
lançamento dos portugueses e sua supremacia aos mares desconhecidos. As Grandes
Navegações portuguesas perseguiam as rotas das especiarias.
30 O ramo proveitoso das especiarias representou no século XVI, uma aventura mercantil
de altos lucros. As quatro grandes especiarias: pimenta-do-reino, cravo, canela e noz-
moscada, tinham as mais altas cotações do mercado. Eram moedas de troca, dotes, heranças,
reservas de capital, divisas de um reino. Com a descoberta do Novo Mundo e o enlaçamento
do Oriente com o Ocidente, as Grandes Navegações (com grande relevância a campanha de
Portugal) tornaram-se sem sombra de dúvidas, um acontecimento que viria a modificar a
percepção de territórios, mapas, política e relações culturais de uma maneira surpreendente.
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As maiores novidades obtidas foram as novas informações, os viajantes fizeram


descobertas impressionantes possibilitando aos europeus o contato com uma infinidade de
plantas completamente desconhecidas em suas cores, sabores, odores e formas. Os relatos de
40 escritores e cronistas deste período (século XVI) constitui um importante método de estudos
para compreendermos a relevância das plantas não somente enquanto itens de trocas
comerciais, mas, principalmente, como ferramentas e estratégias colonizatórias
imprescindíveis ao estabelecimento do colonizador português no Novo Mundo. Desse modo,
a abordagem historiográfica aqui adotada, ou seja, a da História das Ciências, mais
especificamente a História da Alimentação e das plantas alimentícias introduzidas na América
Portuguesa do século XVI, privilegia, principalmente, os relatos quinhentistas que dão conta
da introdução de espécies vegetais exóticas na América Portuguesa. Neste sentido, fontes
documentais como o Tratado Descritivo do Brasil em 1587, do senhor de engenho Gabriel
Soares de Souza, representam uma fonte de investigação histórica extremamente relevante.
50 Quando analisamos os processos de colonização da América Portuguesa, vemos que o
assunto é amplamente discutido pela historiografia brasileira, porém, pouco se discute a
respeito da transplantação de valores e de gostos que o português realizou. O colonizador foi
construído na história como o europeu que chegou, se adaptou facilmente aos recursos
alimentares nativos procedendo a um modelo de colonização eminentemente extrativista
barganhando-se das paisagens naturais.
Esta visão simplista de “plasticidade” na conquista portuguesa não abre discussão para
perguntas simples. Será que os portugueses não procuraram trazer consigo os sabores e
costumes não somente de sua casa na Europa, mas também de outras colônias recém-
conquistadas na África e na Ásia? A colonização empreendida por eles foi desenvolvida
60 também nos moldes da adaptação, no trazer consigo o que mais lhe agradava e no que era
imprescindível a sua sobrevivência, inclusive alimentar.
Na verdade os lusos foram únicos, desenvolveram uma verdadeira ciência da
colonização, afinal foram os colonizadores portugueses que mais multiplicaram e difundiram
plantas, animais e formas de comer entre os vários reinos e colônias que possuíam ou
aportaram, entretanto, nem sempre este papel difusor é divulgado entre nós. Analisando os
documentos e relatos dos cronistas do período colonial é possível perceber que os portugueses
se mostraram metódicos, curiosos e, sobretudo, articulosos, levando produtos e
principalmente trocando plantas e sementes de uma terra a outra, entre a América, Europa,
África e Ásia, observando e testando o desenvolvimento e aclimatação das mesmas de acordo
70 com cada região geográfica e climas diferentes. As mudas, rizomas, bubos, colmos e sementes
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de espécies exóticas funcionavam como agentes de domesticação do ambiente, bem como


disseminadores da tradição expansionista da cultura portuguesa.
Poderíamos aqui elencar, rapidamente, uma lista de plantas que dão origem à frutas,
verduras e legumes das mais diferentes origens que foram aclimatados no Brasil em grande
parte pelos colonizadores portugueses: jaca da Índia; laranja da Ásia; quiabo da África; café
da Etiópia; carambola de Molucas (Ásia); manga da Índia; gengibre da Ásia; canela do Sri-
Lanka; cana de Açúcar do Sudeste Asiático; arroz da Ásia. Em 1553 chega o coco, este iria
dar “água” fresca, leite, óleo, comida, palha e frescor à costa. As mudas vieram de Cabo
Verde, uma das ilhas atlânticas transformadas pelos lusos em hortos experimentais de plantas
80 asiáticas. O coco da Bahia é mais um daqueles exemplos de que o colonizador português
plantou muitas árvores para colher seus frutos .
Um outro exemplo botânico de como a adaptabilidade alimentar portuguesa estava
muito mais ligada a uma questão de sobrevivência e tenacidade do que plasticidade pode ser
encontrada na história do cultivo do arroz na América Portuguesa. Até os paulistas
descobrirem terras agricultáveis ao arroz branco (Oryza sativa) de origem asiática em fins do
século XVII, o arroz vermelho (Oryza mutica) , nativo, hoje quase extinto, era uma das
principais fontes de carboidrato dos descendentes de europeus na América Portuguesa. Ou
seja, o arroz nativo, encontrado nos campos e charcos só foi incorporado à dieta do
colonizador enquanto não se descobriram campos propícios ao cultivo do arroz branco.
90 Ora, estas espécies citadas estão hoje tão arraigadas na dieta e no gosto do brasileiro,
que muitos acreditam que a maioria destes alimentos são nativos do Brasil. Desse modo, até
que ponto tem fundamento a teoria da plasticidade portuguesa, tão propalada em clássicos da
historiografia brasileira afirmando que o colonizador se acostuma com relativa rapidez a dieta
e hábitos do nativo americano? A migração e aclimatação destas espécies de vegetais já no
século XVI têm algo a nos dizer com referência ao processo de colonização e antropização
promovido pelo colonizador da América Portuguesa. Sempre nos dispomos a pensar que o
colonizador se acomodou a paisagem natural da conquista preocupando-se apenas com a
exploração dos produtos naturais, mas a história que estas plantas nos contam é outra. No caso
português tivemos um modelo de colonizador europeu que como Crosby afirma carregava
100 toda sua biota de plantas debaixo do braço (1993), pois também, não seria possível pensar que
houve certo estranhamento com a comida dos nossos Tupis? Nem só de mandioca (Manihot
esculenta), a “raiz diabólica” que fomentava a preguiça, contentou-se o português mesmo
porque, uma dieta baseada exclusivamente em carboidratos (um dos principais componentes
da mandioca) pode causar desde anemia até desnutrição.
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METODOLOGIA
Através de uma discussão bibliográfica procurou-se estabelecer os aspectos históricos
das descrições acerca da introdução de espécies vegetais exóticas à flora americana no século
XVI. Utilizando o Tratado Descritivo do Brasil (1587) procurou-se estabelecer um estudo
sobre a aclimatação de plantas olerículas no período colonial brasileiro a partir das espécies
110 contidas e descritas na obra. A partir destas informações foi estabelecida a importância
nutricional dessas plantas para a sobrevivência do colonizador e como elas se prestaram
favoráveis a um elaborado processo da colonização portuguesa na América.

DISCUSSÃO
No Tratado Descritivo do Brasil em 1587 o senhor de engenho e cronista português,
Gabriel Soares de Souza, descreve de forma sistematizada um trabalho de aclimatação de
plantas olerículasi (hortaliças) e frutos exóticos, desenvolvido acima de tudo com critérios de
observação, curiosidade e minúcia quanto à adaptação no solo de Mata Atlântica da capitania
da Bahia, Gabriel afirma que “Não é razão que deixemos de tratar das sementes de Espanha
120 que se dão na Bahia, e de como frutificam” (1971, pág. 169). Como afirma Câmara Cascudo
“os portugueses, essa gente que por onde andaram, fizeram hortas” instalaram um pouco da
cozinha e do gosto português no Brasil. O colonizador sentia a necessidade do plantio de
plantas hortenses que eram tão indispensáveis a sua alimentação no dia-a-dia, não somente
porque culturalmente, era um grande comedor de verduras, portanto, não era simplesmente
comer mandioca, farinha de guerra ou beiju indígena, a história da alimentação na América
Portuguesa não foi tão frugal assim. O português carregou a sua horta para onde vivia,
disseminou espécies vegetais durante o período das Grandes navegações de uma forma
incomparável (CASCUDO, 1983, pág.146).
Seria possível uma colonização baseada na plasticidade preocupar-se tanto com a
130 aclimatação de plantas provenientes de diferentes lugares do mundo? Pensemos ainda mais no
caso das hortaliças, que não possuíam quaisquer valores mercantis e exigiam tratos, cuidados
e pequenos plantios. Ora, no clássico da historiografia, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque
de Holanda, temos a visão de um colonizador português meramente aventureiro “Essa
exploração dos trópicos não se processou, em verdade, em empreendimento metódico e
racional, não emanou de uma vontade construtora e enérgica: fez-se antes com desleixo e
certo abandono” (HOLANDA, 2008, pág. 043). Podemos contrapor estas idéias, pois, fontes
documentais como o Tratado Descritivo do Brasil servem de testemunho do engenho, ciência,
sofisticação e meticulosidade do português no processo de expansão que se inicia no século
4451

XV. O entendimento das plantas como importantes instrumentos deste processo já é


140 percebido no trânsito e na escrita de homens como Gabriel Soares de Souza na América
Portuguesa e Garcia da Orta na colônia portuguesa de Goa na Índia.
Construindo uma idealização entre o trabalhador e o aventureiro, Holanda vê no
português “o espírito de aventura como elemento orquestrador por excelência”, em uma terra
onde era possível colher os frutos se preocupar com o plantio das sementes.

“Procurando recriar aqui o meio de sua origem, fizeram-no com uma facilidade
que ainda não encontrou, talvez, exemplo na história. Onde lhes faltasse o pão do
trigo, aprendiam a comer o da terra, e com tal requinte que, afirmava Gabriel
Soares – a gente de tratamento só consumia a farinha de mandioca fresca, feita no
150 dia” (HOLANDA, 2008 pág. 047).

Esta passagem de Holanda utilizando a descrição de Gabriel Soares nos dá entender


que a ração diária portuguesa na Colônia americana é restrita aos carboidratos fornecidos pela
mandioca(Manihot sp).Hoje, através de uma relação interdisciplinar entre História e Nutrição,
podemos afirmar que, dificilmente, uma dieta baseada exclusivamente em carboidratos era
suficiente para suprir todas as necessidades calóricas de homens que tinham de se submeter a
uma rotina bem menos idílica do que os clássicos da historiografia sugerem. Na verdade, o
mesmo tratado de Gabriel Soares de Souza como já afirmamos, nos ajuda a revisar e ampliar a
diversidade de ingredientes que compunham o prato do colonizador na América Portuguesa,
160 bem como nos apresentar um comportamento bem mais agrícola de que coletor.Afinal, Souza
descreve o cultivo de plantas olerículas de origem européia e asiática , indispensáveis à
permanência portuguesa na terra conquistada. Também nos é relatado a existência de muitas
hortas que circundavam Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro (CASCUDO, 1983, pág. 148).
Trazer consigo frutos, legumes e verduras foi uma estratégia de colonização, obtenção de
nutrientes específicos e também uma maneira de levar a sua cultura alimentar dentro de
bolsos, bornais e aforjes na forma de sementes, o que também podemos definir como mais
uma forma de colonizar: “O português manteve, quanto pôde no Brasil, a tradição natal das
quintas, hortas e passais. Não podia viver sem as hortaliças e semeou-as ao redor das casas,
criando o cinturão verde dos mantimentos vegetais circundando vilas, como Olinda, ou
170 cidades, como a de Salvador” (op. cit., pág. 150). A tradição da alimentação com verduras e
legumes e o estabelecimento das hortas (palavra proveniente de horto) são uma herança
portuguesa de grande aceitação e importância na história da alimentação brasileira .
Durante a instalação da cozinha portuguesa no Brasil (e poucas dietas na Europa
incluem tantas hortaliças tais como couves, cebolas e nabos) houve plantios regulares das
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plantas hortenses que lhes eram tão tradicionais afinal, como bem afirmou Cascudo, a
predileção portuguesa por estes vegetais sempre foi grande “o português sempre possuiu uma
predileção hortense” sem nos esquecermos também da importância nutricional destas plantas
hortenses para a sobrevivência e fixação do colonizador europeu que desembarcava no Novo
Mundo (1983, pág. 145). Aquele sentimento de saudades da terra natal, que o geógrafo chinês
180 Yi-Fu Tuan, denomina de Topofilia, ou seja, amor ao lugar de origem, também está entre um
dos motivos que levaram os portugueses a carregarem consigo parte dos ingredientes que
compunham sua alimentação diária.
O viajante trouxe consigo sua bagagem vegetal e animal. Uma vez que se instalou na
América Portuguesa para ficar, buscou recriar o seu ambiente familiar com animais e plantas
por ele já conhecidos. “A ciência colonizadora do português atingiu o seu esplendor na
transmissão do seu paladar, [...] o que não era brasileiro e vinha de Portugal tornou-se
brasileiro pela continuidade do uso normal; toucinho; lingüiça, presunto, vinho, hortaliçasii,
saladas, azeite, vinagre” (CASCUDO, 1983, pág. 268).
Alfred Crosby desenvolveu a idéia de um “imperialismo ecológico”. Ele demonstra
190 que o sucesso dos europeus nas regiões onde eles conseguiram implantar suas colônias foi
devido à rápida e fácil reprodução de suas plantas, animais e parasitas, que colonizavam os
ecossistemas invadidos mais efetivamente do que os próprios conquistadores. Devemos
lembrar que a capacidade dos portugueses de determinar a transferência de plantas e animais
domesticados entre Portugal, o Brasil e as suas outras Colônias foi uma das mais poderosas
armas do imperialismo lusitano. Contrariando algumas interpretações mais clássicas de que o
machado representaria bem o simbolismo da incursão portuguesa na América, as sementes,
grãos, mudas e colmos trazidos pelos portugueses foram ferramentas de colonização muito
mais eficientes do que podemos pensar. A questão é nos munirmos de uma historiografia
interdisciplinar o suficiente para que possamos vislumbrar esse fenômeno biogeográfico e
200 ecológico na história da América Portuguesa do século XVI . As espécies vivas – da fauna ou
da flora – do clima tropical americano, sempre encontraram dificuldades de adaptação
climática ao serem transportadas de uma região tropical para uma região temperada. No
processo inverso, das regiões temperadas para as tropicais a adaptabilidade comumente nunca
se fez de rogada.
A introdução de Espécies exóticas, ou seja, em lugares de onde as mesmas não são
nativas, acaba modificando o ecossistema onde a mesma se aloja. Um dos resultados de tais
alterações é o extermínio de várias espécies nativas e a redução de muitas outras. Isso por que
os predadores co-evoluídos dessas plantas estrangeiras não foram levados com elas, ou ainda
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devido ao fato de que, paralelamente ao aumento da comunicação entre os diferentes


210 continentes, houve um aumento também das doenças e pragas entre as plantas, em alguns
casos, mais avassaladores no Novo Mundo de que no ambiente antigo.
Corroborando com a teoria de um Imperialismo Ecológico, como exemplifica Gabriel
Soares de Souza é que muitas plantas invasoras domésticas se adaptavam melhor aqui no
Brasil do que em Portugual: “Pepinos se dão melhor que nas hortas de Lisboa, e duram
quatro a cinco meses os pepineiros, e dão novidade que é infinita, sem serem regados, nem
estercados”. (SOUZA, 1971, pág. 169) Aqui nos chama a atenção alguns fatores, o primeiro
deles como já observado, é o da curiosidade e cuidado em se comparar o desenvolvimento da
planta no Brasil e em Portugal, desconstruindo assim a idéia daquela colonização por
abandono. Podemos ainda refletir acerca da ótima adaptabilidade desta espécie ao solo da
220 mata atlântica baiana que, ao que indica o cronista no século XVI, em se plantando tudo dava
não carecendo de secas. Seguindo o exemplo do pepino (Cucumis sativus), as melancias
(Citrullus vulgares) e berinjelas (Solanum melongena) também se adaptaram muito bem:
“Melancias se dão maiores e melhores do que onde se podem dar na Espanha [...] berinjelas
se dão na Bahia maiores e melhores que em nenhuma parte, as quais fazem grandes árvores,
e torna a nascer sua semente muito bem.” (Souza, 1971 pág. 170).
Entretanto, nem todas as plantas exóticas introduzidas pelo colonizador português
vicejaram tão bem quanto se poderia esperar. Devemos lembrar que processos de introdução
de espécies vegetais em ambientes da qual as mesmas não são nativas, estão sujeitos a
variáveis de ordem geológica, climática, biogeográfica, pluviométrica e ecológica. O estudo
230 de tais variáveis pode, e muito, nos ajudar a entender as dificuldades encontradas pelo
colonizador luso, pois cada planta introduzida na América Portuguesa tem um histórico único
de sucesso ou fracasso quando de sua adaptação, aclimatação e disseminação no novo
ambiente. Gabriel Soares mesmo, conta-nos que alguns legumes, como o Pepino não
encontraram maiores dificuldades de aclimatação e reprodução na nova Colônia portuguesa,
porém, frutos como os melões (Cucumis melo) “Se dão em algumas partes muito bem, e são
mui arrazoados, mas não chegam todos a maduros, porque lhes corta um bicho o pé, cujas
pevides tornam a nascer se as semeiam”. (SOUZA, 1971, pág. 169.) A ampla diversidade
entomológica de regiões com clima tropical é um importante fator a considerarmos na
compreensão das dificuldades em se estabelecer Colônias abaixo da linha do Equador, a partir
240 do século XVI.
O aguçado senso investigativo de Gabriel Soares, mais uma vez, nos dá provas de um
colonizador português atento e meticuloso e, ao mesmo tempo, fornece-nos pistas para a
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compreensão dos obstáculos enfrentados na introdução, na Colônia Americana, do melão, esta


importante fonte de Cálcio, Fósforo, Ferro, Vitamina C e Niacina. O relato que Gabriel Soares
faz do bicho que corta os pés de melão é, provavelmente, uma das primeiras descrições da
broca-das-curcubitáceas (Diaphania nitidalis e Diaphania byalinata). Este inseto que, em sua
fase larval, se alimenta de praticamente todas as partes da planta e que, até hoje, é uma das
maiores pragas da cultura do melão no nordeste brasileiro.
Haviam ainda outros problemas a serem enfrentados além daqueles causados por
250 insetos com as mesmas preferências gastronômicas que o colonizador. Tomemos os exemplos
das couves, (Brassica oleracea) e salsas (Petroseluim sativum) que segundo Gabriel Soares:
“As couves tronchudas e murcianas se dão tão boas como em Alvalade, mas não dão semente
[...] a salsa se dá muito formosa, e se no verão tem conta com ela, deitando-lhe em pouca de
água, nunca se seca, mas não dá semente nem espiga.” (SOUZA, 1971, Pág. 170), ou das
cenouras (Dacus corola), acelgas (Beta vulgaris) e espinafres (Spinacea oleracia)“ Se dão
muito bem mas não espigam, nem dão sementes” (SOUZA, 1971, pág. 171-172). Nestes casos
podemos observar que, assim como muitas vezes não havia um predador natural co-evoluído
que ameaçasse algumas espécies, o que lhes garantiam uma adaptação formidável, em outros,
faltavam agentes de polinização especializados para ajudar a promover a propagação sexuada,
260 ou seja, pelos grãos, como no caso das cenouras. Cada espécie de planta encontrava
características diferentes no processo de adaptação.
Algumas obtiveram resultados melhores em regiões e diferentes tipos de clima ao
contrário de outras, de mesma forma seguem os processos de frutificação e formação das
sementes, ao contrário das couves as alfaces (Letuca sativa) e berinjelas (Solanum melogena)
não tiveram o mesmo problema: “Alfaces se dão à maravilha de grandes e doces, as quais
espigam e dão muita semente [...] berinjelas se dão na Bahia maiores e melhores que em
nenhuma parte, as quais fazem grandes árvores, e torna a nascer a sua semente muito bem”.
(SOUZA, 1971, pág. 170-171). Felizes também dos agriões (Nasturtium officinale) “Nascem
pelas ruas onde acertou de cair alguma semente, e pelos quintais quando chove, a qual a
270 semente vai às vezes misturada com a da hortaliça, e fazem-se muito formosos, e dão tanta
semente que não há quem os desince” (SOUZA, 1971, pág. 171).
Em um sentido mais amplo e mais profundo, os portugueses, naqueles seus atos de
transferir plantas e animais economicamente interessantes, estavam acelerando o processo
natural da cosmopolitização das floras e faunas. No caso do Brasil, vacas, porcos, ovelhas,
galinhas, patos e “outros verdes vestiam a terra nova, cana-de-açúcar, trigo” (CASCUDO
1983 pág. 264). Além destes também vieram com os lusos frutas variadas: figo (Fícus
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carica), laranja (Citrus aurantium), romã (Punica granatum), limas (Citrus limetta), limão
(Citrus limonum), cidras (Citrus medica) o coqueiro ornamental (Cocus nucifera) e uma série
de espécies olerículas; alho (Allium sativum), chicórias (Chicorium endivia), mostarda
280 (Brassica nigra), cebolinha (Allium schoenoprasum)
Alimento também é colonizador! Assim como os bichos, notadamente as frutas,
verduras e legumes também tomaram parte entre os instrumentos de colonização português.
Vejamos assim a importância que contem esta informação se comparada à descrição clássica
de Sérgio Buarque de Holanda: “Numa produção de índole semicapitalista, orientada,
sobretudo para o consumo externo, teriam de prevalecer por força critérios grosseiramente
quantitativos. Em realidade, só com alguma reserva se pode aplicar a palavra “ agricultura”
aos processos de exploração da terra a que se introduziram amplamente no país com os
engenhos de cana”. (HOLANDA, 2008, pág. 049). O Brasil colônia foi muito mais do que a
mera e simplista plantation de cana, a agricultura de subsistência também marcou presença
290 forte e construtiva (PRIORE, 2006 pág. 046).
O Tratado descritivo do Brasil é uma fonte que demonstra interesse e uma estratégia
de colonização portuguesa pautada também em uma necessidade nutricional diante de um
ambiente inóspito. Podemos pensar que teria sido economicamente muito proveitosa para o
reino a transferência das especiarias asiáticas para o Brasil: assim teria sido reduzida a
dispendiosa administração e transporte, para não falar do custo em vidas, uma oportunidade
perdida raramente comentada nas histórias do império asiático português. De fato, parece que
ao longo do século XVI sementes destas plantas chegaram ao Brasil várias vezes. A sua
plantação, porém, foi proibida, para manter o monopólio dos mercadores interessados nas
feitorias asiáticas. Por outro lado, do Brasil foram transferidos para Goa o mamão, a
300 mandioca, a pitanga e o caju, e para a África, a mandioca, o cará e a batata doce. Como
compensação parcial, o Brasil recebeu o dendezeiro e o inhame, sob auspícios incertos, mas
possivelmente via São Tomé.
O que podemos nos questionar com estas informações é, porque o intercâmbio e
adaptação de plantas como as olerículas tornava-se mais essencial para o português do que as
especiarias. Do ponto de vista mercantil e econômico, as hortaliças não representavam valor
algum, a domesticação das sementes de tais plantas na realidade torna-se indispensável
enquanto fonte de vitaminas e sobrevivência do ser humano. Elas tinham para o português
colonizador um valor que, em certo sentido, suplantam o das especiarias enquanto luxo na
mesa do nobre europeu, o valor nutricional que promovia um enriquecimento de suas
310 refeições.
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O cultivo de hortaliças exige certa atenção, cuidados manuais, por outro lado, são
culturas reconhecidas como alimentos protetores, de alto valor nutricional e dificilmente
substituíveis. As olerículas não fornecem a energia dos carboidratos e nem proteínas, seu
elemento chefe encontra-se no fornecimento de complementos vitamínico-minerais vamos ver
como isso funciona. A cebolinha, alho e pepino, se consumidos diariamente em quantidades
certas são propícias à prevenção do câncer. Abóbora, mostarda e agrião precursores de
vitamina A, estimulam o crescimento, desenvolvimento, manutenção de tecidos epiteliais e a
reprodução. Os nabos são uma fonte natural de vitamina C e um ótimo antioxidante, já as
couves possuem vitamina K, essa vitamina age no processo de coagulação sanguínea, sendo
320 importante no desenvolvimento precoce do esqueleto e na manutenção sadia dos ossos
maduros. A humilde salsinha das nossas hortas caseiras também é uma das fontes mais ricas
em vitamina C e o que dizer da cenoura que sozinha concentra as vitaminas A,B,C e caroteno
ou do rabanete que além de vitamina C é tão rico em sais minerais que contém mais iodo do
que qualquer outra planta.(Filgueira,1981, pág.041-042)
A acelga é uma verde poderosa , contém grande quantidade de vitamina A, C e a
Niacina. A vitamina A é indispensável para a normalidade da vista, conserva a saúde da pele e
das mucosas além de auxiliar no crescimento e fazer parte da formação do esmalte dos dentes.
A vitamina C dá resistência aos vasos sanguíneos, agindo contra infecções e evitando
problemas da pele, hemorragias e fragilidade dos ossos e dentes. A Niacina, assim como todas
330 as outras vitaminas do Complexo B, evita problemas do aparelho digestivo e do sistema
nervoso contribuindo para manutenção do sistema imunológico.
A alface possui as seguintes vitaminas: A, C e niacina, cálcio, fósforo e ferro, um
conjunto importantíssimo para a ação no sistema imunológico, assim como as berinjelas.
Além destes, melancia, nabo (Brassica napus), rabenete (Raphanus sativus), espinafre,
coentro (Coriandrum sativum), endro (Anthum graveolens), funcho (Foeniculum vulgare),
tanchagem (Plantago tomentosa), manjericão, alfavaca, bedro, chicória, maturço (Lepidum
sativum), cardo (cinicus benedictus) são alimentos indispensáveis para um bom
funcionamento do organismo e foram aclimatados no Brasil ainda no século XVI, como
consta no Tratado Descritivo do Brasil.
340
CONCLUSÃO
Podemos concluir que os portugueses não tem do que se envergonhar do amplo
conhecimento científico que desenvolveram que desenvolveram na América do século XVI.
O processo de colonização promovido pelo colonizador não é coerente como vimos, com uma
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mera plasticidade de uma terra, onde se colhe sem plantar a semente mas sim, com a ciência e
engenhosidade de uma terra em que se plantando, tudo dá. A difusão de espécies exóticas,
seguida dos processos de adaptação e domesticação tornaram possível uma verdadeira viagem
de plantas pelo mundo. No caso das hortaliças aclimatadas pelos portugueses, a iniciativa
representava sobretudo o seguimento de uma tradição cultural da terra natal assim como uma
350 estratégia de sobrevivência.
Como vimos uma dieta que inclua certa variedade de hortaliças (de preferência
diariamente) possibilita uma nutrição corporal muito mais equilibrada e riquíssima em sais
minerais (cálcio, ferro e fósforo) e nos principais complexos vitamínicos (A, B e C), valores
muitos mais altos se comparados à maioria dos alimentos. A cultura das hortaliças no Brasil é
um grande legado da herança portuguesa mas, voltando a pergunta inicial, a identidade
alimentar brasileira foi construída como cita Paula Silva (2005), sob a forma de uma
alimentação simples no seu preparo, mas complexa e rica em seus nutrientes. Supormos que a
refeição diária que compunha o combustível da colonização portuguesa na América foi
baseada, estritamente, em farinha de milho, mandioca e alguma carne é, para além de uma
360 ingenuidade historiográfica, um erro do ponto de vista nutricional. Ao lado e ao redor das
grandes cozinhas da casa-grande enchiam-se as hortas, pomares e quintais que a portuguesa
sentira necessidade de manter para que pudesse se adequar aos hábitos mais íntimos.
Notas

i
A Olericultura, também denominada de cultura das oleráceas é sinônimo de hortaliça segundo os termos
corretos da Agronomia e do emprego da língua portuguesa. Essas plantas também são conhecidas como legumes
e verduras pela população, termos na verdade incorretos. Vale a pena salientar também, que a olericultura e
horticultura não são sinônimos e que entre as culturas oleráceas também são inclusos melancia, melão,
moranguinho, batata-doce, batatinha, inhame, cará, mandioquinha salsa entre outros.
ii
Grifo nosso.

REFERÊNCIAS

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Companhia Editora Nacional, 1968.

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FERRÃO, José E. Mendes A aventura das plantas e os descobrimentos portugueses. - 2ª ed. -


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4458

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