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Eliane Fonseca
Rio de Janeiro State University
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Resumo - Revisão dos conceitos atuais sobre a avaliação urodinâmica não invasiva em Pediatria,
compreendendo a anamnese adequada de pais e pacientes, exame físico completo e mapa de
frequência e volume urinários, associado ao diário miccional. Aborda a seguir os exames subsidiários, a
saber, ultrassonografia do trato urinário e urofluxometria. Neste particular, analisa a técnica do exame
e as características do estudo do fluxo urinário. Descreve a medida do resíduo pós-miccional e a
eletromiografia do assoalho pélvico, finalizando com as indicações da urodinâmica invasiva.
A micção normal envolve a função coordenada da bexiga, uretra e do complexo esfincteriano sob
controle do sistema nervoso autônomo, somático e central (córtex, tronco cerebral e medula espinhal).
A disfunção do trato urinário inferior ocorre quando um dos componentes deste processo não funciona
adequadamente, prejudicando a função de armazenamento e/ou esvaziamento vesical.
A avaliação urodinâmica é a avaliação da função e disfunção do trato urinário inferior por qualquer
método apropriado(1,2). Esta pode ser classificada em não invasiva ou invasiva, quando requer a
colocação de cateter uretral para sua realização.
Anamnese
A anamnese é um dos instrumentos mais importantes para a avaliação de crianças com queixas
relacionadas à função do trato urinário inferior e, sempre que possível, deve ser obtida diretamente da
criança e também de seus pais.
Na maioria das vezes a enurese e/ou incontinência urinária constituem a queixa principal na consulta
médica. Mas devemos pesquisar ativamente os demais sinais e sintomas que podem não ter sido
relatados espontaneamente, por desconhecimento ou falta de observação. Muitos pais consideram
normal frequência urinária aumentada ou a noctúria do filho, pois eles próprios apresentam estes
sintomas. Outras vezes atribuem a urgência e a incontinência de urgência à preguiça da criança, que
brinca até o último minuto, em vez de ir ao banheiro logo que sente vontade(3).
É importante buscar tanto os sintomas da fase de enchimento quanto de esvaziamento vesical, que
muitas vezes coexistem. Os últimos são mais sutis e muitas vezes passam despercebidos. Não é
incomum que a hipótese de disfunção do trato urinário inferior seja equivocadamente afastada com
base apenas na ausência dos sintomas da hiperatividade vesical, como urgência e incontinência.
Entretanto, as situações de dificuldade de esvaziamento vesical são mais graves por se associarem à
presença de resíduo pós miccional, elevação da pressão de micção e risco elevado de infecção urinária,
refluxo vesicoureteral e lesão renal. O reconhecimento destas alterações é fundamental, pois requer
abordagem terapêutica específica.
O ureter ectópico (com ou sem duplicação ureteral), em meninas, causa perda urinária
contínua, apesar da micção normal.
Comorbidades
Exame físico
O exame físico permite identificar os pacientes que possuem causa orgânica, neurogênica ou
anatômica, para seu distúrbio do trato urinário inferior. Ainda que este grupo represente uma
minoria dos pacientes, a identificação precoce é importante para o estabelecimento do
tratamento adequado, já que muitos destes casos se associam ao elevado risco de lesão
renal.
O exame físico deve ser realizado com ênfase nos seguintes aspectos:
2. Exame neurológico
O exame neurológico é feito com ênfase na pesquisa de sensibilidade do períneo e da região
perianal e dos seguintes reflexos: bulbo-cavernoso, anal e reflexos profundos dos membros
inferiores. A avaliação da marcha deve ser sempre realizada.
· Toque retal - o tônus e a contratilidade do esfíncter anal informam sobre a integridade dos
reflexos S2 e S4, os mesmos segmentos que controlam os esfíncteres.
· Reflexo bulbo-cavernoso - sua pesquisa é feita através da compressão da glande ou clitóris
durante o toque retal. Quando o reflexo está presente há uma contração do esfíncter anal.
Quando o reflexo bulbo-cavernoso está normal é forte indicação de que o reflexo sacral está
normal. Um reflexo negativo, entretanto, não dá certeza de lesão no reflexo sacral.
· Reflexo anal - presença de contração do esfíncter anal em consequência do estímulo da pele
próxima.
3. Exame da genitália
Deve-se observar:
· Perda de urina contínua, com movimentos ou palpação abdominal;
· Epispádia nos meninos;
· Estenose do meato uretral;
· Clitóris bífido nas meninas, sugerindo epispádia;
· Sinéquia;
· Fimose;
· Presença de implantação ectópica de ureter;
· Sinais sugestivos de abuso sexual.
4. Exame abdominal
Deve-se observar:
· Presença de massa abdominal palpável;
· Cíbalos fecais;
· Globo vesical palpável.
5. Avaliação da estatura
Pesquisar déficit de crescimento.
A anotação das micções e dos sintomas relacionados, feita em casa, sob condições normais é
fundamental na avaliação da função do trato urinário inferior de crianças que já adquiriram o
controle esfincteriano ou após a idade de cinco anos.
No mapa de volume e frequência devem ser anotados: horário e volume das micções e
episódios de urgência e incontinência. O mesmo deve ser preenchido por um períodomínimo
de três dias. O diário miccional é um registro mais completo, que inclui informações sobre:
ingestão hídrica, frequência e volume das micções, enurese, noctúria, incontinência urinária
diurna e outros sintomas do trato urinário inferior. A duração do sono e informações sobre as
evacuações e escape fecal também devem ser anotadas. Na prática clínica, modelos mais
simples podem ser utilizados durante tratamento e seguimento dos pacientes (Figura 7).
A medida do resíduo pós-miccional deve ser feita imediatamente após a micção, para evitar
falsos resíduos provenientes de dilatações do trato urinário superior ou de enchimento
rápido, devido a alto débito urinário. A ausência de resíduo pós-miccional na ultrassonografia
não afasta dissinergia, incoordenação vesicoesfincteriana ou hipoatividade detrusora. A
pressão de micção elevada e/ou prolongamento do tempo de fluxo podem levar ao
esvaziamento vesical completo mesmo nestas situações. Para aumento da sensibilidade
diagnóstica a aferição de resíduo pós-miccional pela USG deve ser, sempre que possível,
associada ao estudo do fluxo urinário. O estudo do fluxo (fluxometria) e a avaliação do
resíduo pós-miccional serão detalhados a seguir.
O ultrassom dinâmico da micção é uma técnica dinâmica desenvolvida em nosso meio por
Filgueiras e cols.(9). Fornece informações adicionais sobre a presença de contrações
involuntárias do detrusor durante a fase de enchimento, com ou sem perda urinária
associada, e contrações do assoalho pélvico. Durante a avaliação, na fase de enchimento
vesical é possível avaliar as repercussões no trato superior, como dilatação da pelve, cálices
e ureteres, além do esvaziamento do sistema pielocalicial. O esvaziamento vesical é feito em
ambiente privado, sem monitoramento desta fase. Após a micção é aferido o resíduo pós-
miccional.
Urofluxometria
A urofluxometria é o estudo do fluxo urinário. Esta técnica possui vantagens que fazem dela
a avaliação urodinâmica com maior aplicação em Pediatria. É estudo bastante simples e útil
na avaliação da função do trato urinário inferior(4,12,13). Dentre seus pontos positivos,
destacamos:
· É não invasiva;
· Pode indicar objetivamente uma dificuldade de esvaziamento vesical e servir para monitorar
a resposta ao tratamento;
· Pode ser associada à medida de resíduo pós-miccional por ultrassonografia aumentando a
sensibilidade para detecção de problemas no esvaziamento vesical;
· Pode ser associada à eletromiografia de assoalho pélvico, para avaliação da coordenação
vesicoesfincteriana e diagnóstico da micção disfuncional;
· É útil para selecionar os pacientes que necessitam de uma avaliação urodinâmica completa.
Todas as crianças com problemas do trato urinário inferior devem ter o esvaziamento vesical
avaliado. Esta recomendação inclui as crianças atendidas com queixa de incontinência, pois a
associação da dificuldade de esvaziamento à incontinência implica em maior gravidade e pior
prognóstico. Aqueles pacientes que já adquiriram o controle esfincteriano, sendo capazes de
seguir instruções e urinar da maneira habitual, devem ser avaliados através da fluxometria e
da medida de resíduo pós-miccional. Dentre as principais indicações da fluxometria se
destacam:
· Infecção urinária de repetição;
· Refluxo vesicoureteral;
· Incontinência urinária;
· Dificuldade ou esforço para urinar;
· Jato urinário fraco;
· Avaliação pré e pós-operatória de cirurgias de uretra.
A realização do estudo do fluxo urinário com a medida do volume residual seleciona os
pacientes que necessitam de uma avaliação urodinâmica completa. A demonstração de um
padrão de fluxo normal associado ao esvaziamento vesical completo e a uma avaliação clínica
detalhada é suficiente na maioria dos casos. A realização de urodinâmica invasiva fica restrita
a alguns casos com indicações especiais. Por esse motivo, é o procedimento mais utilizado na
urodinâmica pediátrica de pacientes sem lesão neurológica.
Técnica do exame - O fluxo urinário é medido num fluxômetro, que indica a quantidade de
urina eliminada por unidade de tempo. Usualmente o fluxo é expresso em ml/seg(2).
Para a realização do exame o paciente deve estar bem hidratado, com a bexiga
confortavelmente cheia. Está demonstrado que a curva de fluxo se modifica quando o volume
urinado é inferior a 50% da capacidade vesical estimada para a idade, em pacientes normais.
Deve-se evitar a hiper-hidratação da criança, pois enchimento vesical excessivo não reproduz
as condições usuais da criança e a distensão acentuada das fibras musculares da bexiga leva
ao esvaziamento vesical inadequado.
A fluxometria deve ser realizada quando o paciente referir o desejo miccional, em ambiente
privado. O paciente deve estar tranquilo, em pé ou sentado na cadeira de fluxo (Figura 8).
Esta é semelhante ao vaso sanitário; deve ser utilizado um adaptador no assento e apoio
para os pés. Quando bem aceita pela criança, a presença de um observador experiente pode
acrescentar informações importantes, como: dificuldade de iniciar a micção, aspecto do jato
urinário, utilização da musculatura abdominal e adoção de posturas e manobras necessárias
para que a micção ocorra. O ideal é que sejam feitos pelo menos dois fluxos com medida do
resíduo pós-miccional. Na presença de dois resultados divergentes, um terceiro estudo pode
ser necessário.
Definições:
1. Fluxo máximo - é o maior valor de fluxo da curva após a correção de artefatos. O fluxo
máximo fornece uma descrição melhor da micção do que o fluxo médio;
2. Fluxo urinário médio - é o volume miccional dividido pelo tempo;
3. Volume urinado - volume total de urina expelida pela uretra.
· Torre - a hiperatividade detrusora pode produzir uma curva de alta amplitude e curta
duração, com formato de torre. O fluxo máximo é alcançado em tempo muito curto (1 a 3
seg). A redução do tempo para alcançar o fluxo máximo ocorre porque a contração detrusora
já abriu o colo vesical e para iniciar a micção o paciente tem apenas que relaxar o esfíncter
distal (Figura 10 a);
· Platô - a criança com obstrução anatômica ou contração tônica do esfíncter durante a
micção à saída do trato urinário quase sempre tem um fluxo de baixa amplitude, com uma
curva achatada em forma de platô. O fluxo máximo em geral é alcançado rapidamente (3 a
10 seg), mas o fluxo diminui lentamente (Figura 10 b).
A hipoatividade detrusora também pode causar um fluxo de baixa amplitude. Nesta, o tempo
para alcançar o fluxo máximo é variável e pode ocorrer na segunda metade da curva. A
confirmação do diagnóstico de hipoatividade detrusora requer a realização de cistometria e
estudo fluxo/pressão.
· Irregular ou staccato - Este é o padrão mais comum, quando há hiperatividade esfincteriana
durante a micção (micção disfuncional). Nesta situação há uma resistência irregular ao fluxo,
fazendo com que a curva de fluxo apresente picos e depressões. Esta é uma curva de fluxo
contínuo, mas flutuante. Para classificar uma curva como staccato as flutuações devem ser
maiores do que a raiz quadrada da taxa de fluxo máximo. O diagnóstico de incoordenação
vesicoesfincteriana pode ser feito com maior acurácia associando-se a eletromiografia de
assoalho pélvico ao estudo do fluxo, como será visto adiante (Figura 10 c).
· Interrompido ou fracionado - A curva mostra discretos picos, correspondendo a cada
esforço abdominal, separados por segmentos de fluxo zero. Ocorre na maioria dos casos de
detrusor hipo ou acontrátil, quando a contração do músculo abdominal é a principal
responsável pelo esvaziamento vesical, mas pode ocorrer também na micção disfuncional
(incoordenação vesicoesfincteriana) (Figura 10 d).
Figura 10 - Padrões anormais de curva de fluxo.
Ao se considerar o valor de fluxo máximo deve-se ter cuidado com espículas na curva,
produzidas por artefatos. Para evitar valores superestimados, o fluxo máximo só deve ser
documentado se em nível de pico com dois ou mais segundos de duração.
Na obstrução uretral fixa a curva tende a ter um padrão restritivo, com o fluxo máximo
aproximando-se do médio. Em condições normais o fluxo médio é maior que 50% e menor
que 85% do fluxo máximo.
Crianças maiores devem esvaziar sua bexiga completamente. O resíduo pós-miccional entre
5 e 20 ml pode estar associado à dificuldade de esvaziamento vesical e deve ser repetido.
Uma medida superior a 20 ml, encontrada em mais de uma ocasião, indica esvaziamento
vesical anormal ou incompleto. Em adultos e crianças maiores de cinco anos o resíduo é
considerado normal quando seu valor é menor ou igual a 10% da capacidade vesical.
Idealmente, o estudo do fluxo urinário deve seguir-se da medida de resíduo pós- miccional,
aumentando a sensibilidade dos exames.
O estudo de fluxo com valor de fluxo máximo baixo ou um formato irregular da curva de
fluxo (irregular, fracionado ou plateau) indica dificuldade na fase de esvaziamento vesical.
Mas um fluxo máximo normal não exclui dificuldade de esvaziamento.
A demora entre o término do fluxo e a medida do resíduo pode permitir um novo enchimento
da bexiga, pela produção de urina. Um intervalo de poucos minutos entre o término da
micção e a ultrassonografia pode resultar na produção de 5 ml ou mais de urina, que é o
limite superior de normalidade do valor do resíduo. Para que haja maior confiabilidade se
devem evitar intervalos maiores que cinco minutos entre a micção e a avaliação do resíduo
pós-miccional(4).
O enchimento vesical excessivo, com distensão das fibras musculares da bexiga, pode levar
ao esvaziamento inadequado. A micção deve ser realizada com o enchimento vesical
habitual.
Figura 11 - Registro da curva de fluxo e eletromiografia de assoalho pélvico. Observe a
ausência de atividade na eletromiografia segundos antes do início e durante uma micção
normal.
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