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FRANCISCA MARQUES

Educação comunitária

como prática

de etnomusicologia

aplicada:

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reflexões sobre uma

experiência no

Recôncavo baiano

este texto percorro brevemente as diferentes

fases de aplicação e desenvolvimento de um

projeto de educação comunitária como prática

de etnomusicologia aplicada. O foco da refle-

xão é a experiência de trabalho do Laboratório

de Etnomusicologia, Antropologia e Audiovisual

(LEAA/Recôncavo), parte integrante da Associação

de Pesquisa em Cultura Popular e Música Tradicional do Re-


côncavo, localizada em Cachoeira, Bahia.

A abordagem do surgimento e desenvolvimento desse projeto

educativo será feita em perspectiva histórica, e busca mostrar


FRANCISCA MARQUES
como o diálogo e os anseios comuns de validação e continuidade é bolsista do CNPq,
doutoranda em
dessa proposta foram compartilhados entre seus interlocutores Antropologia Social pela
USP e coordenadora
(pesquisadora e comunidade pesquisada). Nós nos “afinamos” e do Laboratório de
nos superamos. Também alteramos os rumos e perspectivas de Etnomusicologia,
Antropologia e Audiovisual
atuação local, passando da realização de um projeto de extensão (LEAA/Recôncavo) em
Cachoeira, Recôncavo da
universitária à criação de uma organização não-governamental Bahia.

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que busca, por meio de parcerias institu- armazéns de fumo e fábricas de charuto,
cionais idôneas, manter e gerir projetos o que gerou desemprego e, conseqüente-
coletivos que garantam sustentabilidade, mente, a pobreza.
autonomia e desenvolvimento contínuo Esse quadro de empobrecimento se
para futuras gerações de multiplicadores mantém praticamente inalterado ainda
de conhecimento. hoje, de modo a gerar um constante fluxo
O objetivo central do LEAA/Recôncavo migratório especialmente de jovens buscan-
é a formação de pesquisadores, técnicos e do trabalho para outras regiões da Bahia e
educadores entre jovens e adolescentes da do Brasil. Embora existam perspectivas de
comunidade de Cachoeira. Em linhas ge- geração de renda pelo turismo cultural, a
rais, nossa atuação compreende o trabalho comunidade não dispõe de infra-estrutura
com pesquisa sobre a música e a cultura nem planejamento adequado para que ele
do Recôncavo, a introdução de membros funcione de fato. A recente criação da Uni-
da comunidade às práticas de pesquisa e versidade Federal do Recôncavo da Bahia
documentação etnográfica e audiovisual e (UFRB) e do campus Cachoeira, em 2006,
o incentivo à formação de lideranças co- abre possibilidades para transformações
munitárias capazes de atuar politicamente futuras neste cenário.
pela salvaguarda de bens culturais. Atualmente, a população cachoeirana,
predominantemente afrodescendente, vive
em sua maior parte na zona rural e depende
da agricultura, da pesca e do comércio de
CACHOEIRA, BAHIA produtos na sede para sobreviver. Já na
zona urbana, existe um pequeno comércio
Cachoeira é uma das principais cidades ativo, marcadamente impulsionado pela
do Recôncavo baiano1. Sua origem remonta feira livre.
a um povoamento indígena e, posteriormen-
te, a um engenho cujo núcleo populacional
viria a ser, em 1693, a Vila de Nossa Senhora
do Rosário do Porto da Cachoeira. CHEGADA E RETORNOS
Durante o período colonial, devido ao
tráfico de escravos mantido entre a Bahia Cheguei a Cachoeira pela primeira vez
e o Daomé, e à expansão das zonas cana- em 2000 em busca de informações sobre a
vieiras e fumageiras e das vilas próximas a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Mor-
Salvador, houve nessa região do Recôncavo te. Aproveitando a oportunidade de uma
uma concentração expressiva de africanos viagem à Bahia para um trabalho que fazia
de diferentes nações. sobre a Festa de Iemanjá em Salvador, fiz
A vila alcançaria grande prosperidade no um rápido roteiro que incluía uma visita a
século XIX em razão da exploração de mão- Cachoeira. Durante a estadia no local, en-
de-obra escrava, de sua vocação portuária e contrei um grupo de adolescentes da Escola
comercial facilitada pelo transporte fluvial de Música Irineu Sacramento2. Iniciei uma
do Rio Paraguaçu até a Bahia de Todos os conversa informal com o professor e alguns
Santos, e do posicionamento estratégico de alunos que ao verem o meu equipamento de
Cachoeira como porta de acesso ao sertão áudio pediram que eu os deixasse gravar.
e à Chapada Diamantina. Esse foi o começo. Um ano depois, então
Embora mantivesse prestígio intelec- no mestrado, nossa conversa seria mais
tual, político, cultural e econômico até profunda e bastante produtiva.
meados do século XX, Cachoeira entrou A decisão de introduzir esses jovens no
1 A cidade possui os títulos em lenta decadência devido a uma série trabalho de campo e na captação sonora
de “heróica”, “histórica” e
de fatores, dentre eles o enfraquecimento vinha de uma inquietação minha que se
“monumento nacional”.
do comércio local pela construção de ro- intensificou quando, em entrevista, pergun-
2 A escola é mantida pela Filar-
mônica Lyra Ceciliana. dovias e o fechamento de seus principais tei a vários deles como se sentiam fazendo

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uma performance musical dentro de uma nicas, mas também ligados ao samba e ao
performance ritual. Eles entendiam a sua candomblé.
função de “aprender” e “tocar música” e o Em princípio, nos reuníamos em uma
seu papel como parte do “fazer musical”, sala na casa de Luci, sambadora do Sam-
mas nunca haviam pensado na sua partici- ba Suerdieck e filha de Dona Dalva, e,
pação na Festa de Nossa Senhora da Boa por final, passamos a encontros de duas
Morte, por exemplo, como atores dentro horas, duas vezes por semana, na Sede da
de um complexo processo ritual. A per- Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte
gunta gerou dúvida em todos, mas também para discussões de textos, escuta de fono-
curiosidade em torno de alguns sobre o que gramas, programas de rádio e uma coleção
seria o desenvolvimento de uma pesquisa de CDs e vídeos, em especial as produções
etnomusicológica por eles mesmos. educativas da TVE-Bahia/Irdeb. Ainda em
A partir de então, resolvi explorar o 2001, passei a locar uma casa para abrigar
trabalho de campo como um meio propício adequadamente as atividades, e os trabalhos
para interlocução e colaboração com músi- se intensificaram.
cos e sambadores. Os primeiros resultados Paralelamente às atividades em sala
dessa proposta foram apresentados ainda no de aula, cada um dos alunos começou a
início dos trabalhos do mestrado durante o desenvolver pesquisa sobre música a partir
36th International Council for Traditional de um tema de seu interesse. No período de
Music no Rio de Janeiro (Marques, 2001). outubro a dezembro de 2001, demos início
Na ocasião, falei a respeito da experiência também a uma série de trabalhos de campo
de percepção sonora e práticas de campo para a documentação das festas religiosas
e escrita etnográfica desenvolvida com de Cachoeira. Passamos então à formação
oito alunos de faixa etária entre 14 e 25 de um acervo audiovisual. Seria o primeiro
anos, todos músicos da Filarmônica Lyra momento do que constitui hoje o Arquivo
Ceciliana. de Som e Imagem Dalva Damiana de Frei-
Nenhum dos jovens envolvidos no tas e o surgimento de um grupo de jovens
workshop Trabalho de Campo e Captação e adolescentes cachoeiranos interessados
Sonora tinha empreendido qualquer pes- na sua formação como pesquisadores em
quisa de campo e isso me trazia questio- etnomusicologia e cultura popular.
namentos como os apontados por Clifford
(1998, p. 268) sobre como se definiria um
“campo”, e como seria o caso de um daque-
les alunos estudar sua própria comunidade, DE PROJETO DE EXTENSÃO A ONG
como essa distância poderia ser negociada
e definida ou como essa distância seria Em 2003, concluído o mestrado, e de vol-
entendida. Esses mesmos questionamentos ta a Cachoeira, após uma série de reuniões
se estenderam posteriormente, e são perti- com sambadores, músicos, professores e ar-
nentes ainda hoje, e influenciaram na minha tistas, foi fundada a Associação de Pesquisa
decisão de residir em Cachoeira para dar em Cultura Popular e Música Tradicional do
3 Em 2004, a Associação
continuidade aos trabalhos iniciados com Recôncavo. O objetivo inicial da associação Cultural do Samba de Roda
educação comunitária. era a formação de um centro de pesquisa Dalva Damiana de Freitas,
a Associação de Pesquisa
Convidada a morar com a família de e atividades educativas voltadas para a em Cultura Popular e Música
Tradicional do Recôncavo e a
Dona Dalva (Samba de Roda Suerdieck), criação e manutenção de um laboratório, Associação Cultural Filhos de
me estabeleci entre os sambadores e a um arquivo de som e imagem, biblioteca e Nagô fizeram a solicitação do
registro do Samba de Roda do
comunidade, e passei a ministrar como museu de instrumentos. Na mesma época, Recôncavo no livro das formas
atividade de extensão do Laboratório de foi criada a Associação Cultural do Samba de expressão do patrimônio
cultural brasileiro ao Instituto do
Etnomusicologia (LE-UFRJ) um curso de de Roda Dalva Damiana de Freitas3. Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Iphan). Em 2005, o
Introdução à Pesquisa em Etnomusicologia A partir do ano de sua criação, o LEAA/ Samba de Roda foi proclama-
(Marques, 2002; 2003). O curso se ampliou Recôncavo começou a desenvolver projetos do “obra-prima e patrimônio
imaterial da humanidade” pela
ao interesse de músicos não só das filarmô- mais consistentes voltados diretamente ao Unesco.

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ventário Nacional de Referências Culturais
Ao lado,
(INRC) na primeira fase do projeto Rotas
alunos durante da Alforria: Trajetórias da População Afro-
aula de música; descendente em Cachoeira, Bahia, realiza-
do pela Coordenação Geral de Pesquisa e
abaixo, Referência (Copedoc/Iphan) e Centro Na-
auxiliar de cional de Folclore e Cultura Popular (CN-
FCP/Iphan), a equipe do LEAA/Recôncavo
pesquisa
empreendeu levantamento bibliográfico e
entrevista museológico, mapeou as referências cultu-
Gayaku Luiza rais de Cachoeira e São Félix e realizou, a
Francisca Marques partir de questionários baseados no INRC,
uma série de entrevistas e documentações
samba de roda e às festas populares de Ca- audiovisuais sobre as referências culturais
choeira. Também, através de parcerias com a (celebrações, formas de expressão, ofícios,
Associação Cultural do Samba, Filarmônica edificações e lugares)4. O material recolhido
Lyra Ceciliana, grupo de capoeira Raízes foi organizado e sistematizado através do
dos Orixás e grupo de percussão Odara preenchimento de anexos (bibliográfico,
realizamos durante quatro meses cursos museológico, audiovisual, bens culturais
gratuitos de capoeira, feitura de berimbau, inventariados, contatos) e relatórios. Os
toques de candomblé e coreografia do auxiliares de pesquisa trabalharam também
samba de roda. como monitores educativos na Exposição
Em 2004, ingressei no doutorado e o “Cachoeira, Quem É Você?” organizada
LEAA passou a contar com o apoio do pelo CNFCP e Copedoc no escritório re-
Grupo de Estudos de Som e Música em gional do Iphan em Cachoeira5.
Antropologia (Soma-USP) para a realiza- Nesse mesmo ano, através da parceria
ção de dois cursos: Pesquisa de Campo e com o Educandário a Jesus por Maria, foi
Práticas de Laboratório. dado início às aulas de cultura popular
Em 2005, treinados para trabalhar como para crianças e adolescentes entre 10 e 14
auxiliares de pesquisa para aplicação do In- anos. Simultaneamente, em parceria com
a Associação Cultural do Samba de Roda
Itamaraci Gomes – Projeto Rotas da Alforria - Iphan Dalva Damiana de Freitas, começaram os
trabalhos de educação musical com o Sam-
ba de Roda Mirim. Os sambadores adultos
do Samba de Roda Suerdieck passaram a
ministrar aulas de cavaquinho, percussão
e coreografia do samba de roda na sede da
Associação de Pesquisa e do LEAA/Re-
côncavo6.
Em 2006, a Associação de Pesquisa
em Cultura Popular e Música Tradicional
4 A equipe foi formada por 14
jovens e adolescentes com do Recôncavo e Associação Cultural do
idades entre 15 e 23 anos Samba de Roda Dalva Damiana de Freitas
dos ensinos superior, médio e
fundamental. receberam, juntas, o título de Utilidade
5 A verticalização em bens Pública Municipal da Prefeitura Municipal
culturais como a Feira Livre e
a Festa de Nossa Senhora da
de Cachoeira pelos serviços prestados à
Ajuda foi retomada com a par- cultura e à comunidade.
ticipação dos alunos do LEAA
como auxiliares de pesquisa na Desde a sua criação, o LEAA tem
segunda fase do projeto Rotas recebido visitas e trabalhado com alunos
da Alforria em 2007.
e pesquisadores de diversas instituições
6 Em 2008 esses projetos conti-
nuam em pleno funcionamento. que buscam suporte logístico, técnico e de

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pessoal aos seus projetos de pesquisa. Em
2006, a associação de pesquisa firmou um
convênio com a Universidade Estadual
Paulista Julio de Mesquita Filho – Unesp
– campus Primavera, para desenvolvimento
de projeto conjunto no LEAA/Recôncavo
sobre turismo e patrimônio cultural em
Cachoeira7.
Atualmente, o laboratório dá suporte a
um projeto de iniciação científica sobre gê-
nero e hip-hop em Cachoeira desenvolvido
por uma aluna de relações internacionais
no departamento de antropologia da USP8.

Francisca Marques
A associação e o LEAA também foram
objeto de iniciação científica e atualmente
de mestrado no departamento de música da
Unicamp (Tygel, 2006). Todo o material
recolhido para a realização dessas pesquisas
permanece em Cachoeira. Foi acordado atividades do laboratório e da associação de
Educadores e
entre os pesquisadores e o LEAA que todos pesquisa em 2004, e foi se desenvolvendo
os membros da comunidade envolvidos nos como auxiliar de pesquisa e educadora, alunos durante
projetos receberiam cópias de entrevistas enquanto desenvolvia atividades de estágio o projeto
e fotografias em CD ou DVD, e que toda sob minha supervisão, direcionadas para
essa documentação seria incorporada como o gerenciamento de trabalhos educativos,
Young Digital
acervo no Arquivo de Som e Imagem Dalva de produção e projetos para a Associação Creators
Damiana de Freitas. Cultural do Samba de Roda Dalva Damiana
Os resultados desses e outros trabalhos de Freitas e o Samba de Roda Suerdieck.
desenvolvidos entre 2001 e 2007 foram Ao mesmo tempo em que hoje se dedica
apresentados pela equipe do LEAA/Recôn- integralmente às questões do samba de roda,
cavo no I Simpósio de Identidades Culturais recentemente graduada em administração,
e Religiosidade realizado em Cachoeira em Any vem se destacando como uma impor-
agosto de 2007 pela Fundação Hansen Bahia tante liderança regional entre os membros da 7 “Patrimônio Cultural e Poder
e Universidade Federal do Recôncavo da Associação de Sambadores e Sambadeiras Público Municipal: Diagnós-
ticos dos Atrativos Culturais
Bahia (UFRB). do Estado da Bahia. Ela mantém seu víncu- no Município de Cachoeira,
lo com a Associação de Pesquisa e com o Bahia” foi tema de iniciação
científica e monografia da
LEAA através da participação em projetos aluna Sabrina Rafaela Baldin
(Unesp/LEAA) sob orientação
e trabalhando com outros jovens na gestão do prof. Rodrigo Guimarães e
JOVENS LIDERANÇAS ENTRE da atual diretoria9. Francisca Marques.
8 O trabalho vem sendo desen-

MÚSICOS E SAMBADORES volvido por Mariana da Veiga,


bolsista PIBIC-Santander com a
pesquisa de Iniciação Científica

YOUNG DIGITAL CREATORS


com o nome provisório “As
Como resultado do trabalho empreen- Representações de Gênero nos
Videoclipes de Hip-hop Norte-
dido e a partir do desenvolvimento dessa americano”, orientadora: profa
metodologia de trabalho educativo, já é O Young Digital Creators (YDC) é um dra Rose Satiko Gitirana Hikiji
(Departamento de Antropologia
possível observar a formação de uma ge- programa multidisciplinar criado por um da USP).
ração de jovens lideranças em atuação na grupo intercultural de pesquisadores (Di- 9 É importante salientar que,
comunidade de Cachoeira. Um exemplo giArts-Unesco) e desenvolvido no formato gradativamente, os cargos de
gestão da Associação e do
disso é a sambadora Any Manuela Freitas de workshops anuais com duração de dois LEAA foram sendo ocupados por
jovens músicos e sambadores
do Nascimento. a quatro meses que reúnem, na Internet, que fizeram parte do quadro de
Integrante do Samba de Roda Mirim, grupos de diferentes partes do mundo. Os alunos do projeto de educação
comunitária empreendido entre
Any passou a acompanhar as rotinas das trabalhos remetem a uma proposta comum, 2001 e 2003.

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porém, são desenvolvidos localmente, den- voz para a experimentação e produção de
tro do contexto dos participantes, através do várias pequenas peças sonoras; em 2007,
uso de tecnologias e apostando no diálogo os educadores e os alunos produziram duas
e nas trocas entre os participantes por meio músicas e uma peça10.
de plataformas virtuais. Os educadores do LEAA/Recôncavo
Esses workshops tratam de temáticas nos projetos do YDC Unesco são cola-
de destaque na atualidade e combinam boradores voluntários. Eles são também
diferentes formas de expressão artística estudantes no ensino médio, superior e
com o uso de ferramentas digitais. Dentre pós-graduação nas áreas de antropologia,
os temas abordados nos projetos estão a música, educação, relações internacionais,
importância da água (“The sound of our teatro, audiovisual, turismo e administra-
water”), a problemática do HIV e Aids ção. Parte desses educadores foi aluna em
(“Youth creating and communicating on sessões anteriores do YDC Unesco. Esses
HIV and Aids”) e a urbanidade (“Scenes projetos, portanto, propiciam um ciclo
and sounds of my city”). completo de envolvimento de estudantes
Entre 2004 e 2007, a equipe do LEAA/ de todos os níveis para uma aprendizagem
Recôncavo participou de uma série desses coletiva em que diferentes gerações am-
workshops. O primeiro projeto foi realiza- pliam, multiplicam e renovam juntos os
do em 2004 e reuniu membros de quatro seus conhecimentos.
instituições de três diferentes localidades O fazer musical ou a composição de
(Cachoeira, LEAA, Camaçari, Cedesc e peças sonoras é um trabalho recorrente
Escola de Música Didá e Grupo de Rádio também nos programas que envolvem ur-
Arte de Salvador). banidade e os estudos das cidades. Nesses
Em o “O som da nossa água” traba- trabalhos, utilizamos a nossa experiência
lhamos a conscientização dos alunos e da
comunidade para o uso adequado e a pre-
servação dos recursos hídricos através de
atividades educativas e fazendo música ou
peças sonoras utilizando sons de água.
Nas duas sessões do projeto, em 2004 e
2007, foram feitos encontros e debates sobre
temáticas relacionadas ao meio ambiente em
nível global e local focalizando sobretudo
a ecologia sonora, a reciclagem, as formas
de preservação da água e o aquecimento
global. Além das atividades em sala (aulas
de meio ambiente e música), os alunos tive-
ram experiências em laboratório: exercícios
de percepção, criação e edição de sons.
Esses exercícios foram complementados
por trabalhos de campo com visitação a
lugares, práticas de entrevista e captação
de paisagens sonoras.
Os sons recolhidos em campo e produ-
zidos em laboratório foram digitalizados e
transformados em samples para alimentar
uma galeria online onde podem ser baixa-
dos para a produção de peças ou músicas
10 http://unesco.uiah.fi/water/ pelos demais participantes da comunidade
pieces/results?get_regions=La virtual do YDC Unesco. Na primeira sessão,
tin%20America%20and%20th
e%20Caribbean em 2004, utilizamos apenas percussão e

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de inventariar referências culturais e demos Symposium of Eletronic Arts em San Jose,
prioridade para que os adolescentes fizes- Califórnia, e um sambador mirim foi aos
sem trabalho de campo e tivessem contato Estados Unidos representando o Brasil
com mestres da cultura popular durante como embaixador mundial da Juventude.
entrevistas e comunicações. Enquanto to- Ele e outros adolescentes de diferentes paí-
mavam contato com a realidade das suas ses participaram de uma série de vivências
cidades, os alunos desenvolveram técnicas e workshops de artes digitais. Em 2007, os
em entrevistas, audiovisual e multimeios, o trabalhos do LEAA representaram o YDC-
que lhes traz perspectivas profissionais em DigiArts Unesco na II Bienal de Sharjah,
áreas afins à etnomusicologia. Emirados Árabes.
O resultado do trabalho de todos os Ainda em 2007, o YDC-Unesco consi-
grupos teve o formato de uma apresentação derou que a metodologia e prática educativa
multimídia disponibilizada na plataforma do LEAA/Recôncavo é funcional, e que
do projeto Scenes and Sounds of my City11. seus procedimentos podem ser readaptados
Desde 2006, a equipe do LEAA tem do- a qualquer contexto e localidade. Assim, da
cumentado todo o processo de realização parceria entre LEAA/YDC Unesco foi pro-
desses projetos e disponibilizado na in- duzida uma cartilha prática para educadores
ternet fotos e vídeos que sintetizam essas visando à aplicação e ao desenvolvimento
experiências12. dos projetos do Young Digital Creators e
O Laboratório de Etnomusicologia, que deve ser distribuída no primeiro se-
Antropologia e Audiovisual (LEAA/Re- mestre de 2008 para 75 países (Marques
côncavo) foi duas vezes premiado pela sua & Veiga, 2008).
participação no YDC Unesco. Em 2006, o
trabalho foi apresentado no International

CONCLUSÃO
Embora a etnomusicologia aplicada
venha sendo discutida desde os anos 60,
apenas recentemente tem sido acessível
uma literatura ou sistematização de concei-
tos e idéias em torno de algumas práticas
educativas no Brasil. Trabalhos como os de
Marques (2003), Cambria (2004), Araújo
(2006) e Tygel (2006) mostram que existem
outras formas de desenvolver pesquisas
através de metodologias participativas não
apenas centradas no interesse do pesquisa-
dor (observação participante), mas de ação e
resultados que sejam de colaboração mútua
e que tragam benefícios para as comunida-
des estudadas.
Não me parece que a etnomusicologia
aplicada seja um campo que presume uma
separação entre teoria e prática, porém, 11 Os trabalhos podem ser aces-
sados em http://unesco.sjsu.
existe um academicismo de exclusão de edu/gallery /060623/LEAA/
alguns projetos que parece estabelecer index.html; e http://unesco.
sjsu.edu/gallery/070123/
limites para o que seria uma “pesquisa MARQUESJABAR/index.html
válida”. São também raros os recursos de 12 Ver: http://www.youtube.
investimento em projetos em áreas perifé- com/LEAA7; e http://leaa-
reconcavo.fotoblog.uol.com.
ricas como o Recôncavo. Invariavelmente, br/index.html

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o tempo de esperar apoio financeiro ou aprender, ensinar, inquietar-nos, produzir
institucional é o mesmo que se gasta na e juntos igualmente resistir aos obstáculos
realização qualitativa de projetos de edu- a nossa alegria”.
cação comunitária mesmo com recursos Esse pensar em comum em torno de
muito limitados. uma relação de autêntico diálogo é tarefa
Freire (1979; 1986; 1998; 2001) enfatiza de sujeitos, não de objetos. Essas relações
nas práticas educativas liberdade e maior que se tecem socialmente e se articulam
comprometimento e ousadia no cotidiano entre políticas de ação e educação comu-
do educador/pesquisador para metodologias nitária exigem enfrentamento e desafios
dialógicas e de empowerment. Ao mesmo enormes para os pesquisadores/educadores
tempo, para ele, existe também uma rela- e as comunidades, mas elas podem ser
ção sensível entre a alegria necessária à vividas e os desafios superados dentro
atividade educativa e a esperança de que do processo educativo de forma possível,
educadores e alunos “juntos podemos igualitária e criativa.

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