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9 de abril de 2018
Acabei de sair da minha conversa com o meu advogado. O doutor Marlus me contou
que no sábado o Lula teve que ir morar no local que esses juízes querem. Outro absurdo
disso que esses juízes estão fazendo com o meu país. Deus tenha misericórdia do Brasil.
Eu que livrei o Brasil dos do PT tenho que morar no mesmo lugar que os do PT. Toda
vez que eu cruzo com esse Palocci me dá muita raiva.
E isso é meritocracia? As pessoas deviam morar conforme os seus méritos para o Brasil.
Eu livrei o Brasil dos do PT e tenho que morar com eles. É uma justiça do socialismo:
todo mundo ter que morar igual. Quando vão perceber que esses juízes são ateus e
comunistas?
Hoje em dia é assim. Homem casa com homem, mulher com mulher, tem gente que
escreve livro e coloca no nosso nome e agora quem livrou o jardim das ervas daninhas
tem que morar no mesmo lugar que as ervas daninhas.
Mas eu não perdi minha fé: “Não fui eu que ordenei a você? Seja forte e corajoso! Não
se apavore nem desanime, pois o Senhor, o seu Deus, estará com você por onde você
andar”. (Josué 1:9)
20 de setembro de 2018
Não tem um dia que a gente saia da reunião com o advogado sem descobrir alguma
barbaridade. Eu estou até trêmulo: agora soube que o Temer virou youtuber! É só
alguém falar mal dele na eleição que ele vai lá e grava um vídeo respondendo. E
imagina se isso é se dar ao respeito. Eu não posso assistir pois aqui onde estou
hospedado não tenho como ver a internet. Mas já imagino aquela cara dele falando isso
e aquilo. Esqueci de perguntar se ele não lê as poesias no youtube também. Foi isso que
aconteceu nesse país: eu, temente a Deus, que administrava o dízimo das grandes
empresas, vim parar aqui e o presidente fica gravando vídeo no youtube. Daqui a pouco
vai se filiar no PSOL. Temer, se você está respondendo ao que o Doria fala de você na
campanha, nem queira saber o que dizem aqui. Você traiu nós, deixou nós aqui, mas
logo vai poder responder pessoalmente. A gente vai bater longos papos, Michel. Quero
ver você fazer poesia aqui.
7 de outubro de 2018
Michel, escrevo para pedir desculpas. Você sabe o quanto fico nervoso aqui e aí acabo
sendo injusto com você. Somos amigos faz muitos anos e isso vai continuar apesar dos
percalços. Nós desenvolvemos a política neste país, sabemos tudo de política. Hoje é dia
da eleição, fizemos tudo direito na campanha. Hoje o MDB vai mostrar a nossa força.
Sempre fizemos bem contas, eu já rascunhei aqui os votos que vamos ter. Também
faremos a nova geração. O Brasil vai voltar ao normal agora, Michel, como acontece
sempre aquele movimento de sair um pouco para depois voltar. Já saiu um pouco com a
vinda para cá de alguns de nós. Hoje as eleições vão fazer tudo se acomodar e se Deus
quiser logo estaremos juntos de novo. Tenho certeza que o Jucá, o Eunício e o Geddel
estão sentindo o mesmo.
“O amigo ama em todos os momentos; é um irmão na adversidade.”
(Provérbios 17:7)
28 de outubro de 2018
Prezado Senhor Jair Messias Bolsonaro:
Venho por meio desta parabenizar o senhor pela sua ação política das últimas décadas.
Sempre fomos amigos no Congresso, onde estamos há muitos e muitos anos. Não me
surpreendeu a sua trajetória. O ideário do senhor, que está ao lado dos tementes a Deus
como eu, é o melhor para o país. O povo brasileiro, que merece respeito, não aguenta
mais tanta violência, homossexualidade, tudo isso que sempre conversamos. Direitos
humanos é para quem paga os dízimos. Pois foi Deus que fez os humanos. Tenho
certeza de que estamos juntos e que com a sua mão firme o senhor vai combater o
comunismo.
Se puder eu gostaria de conversar com você sobre um novo tipo de comunismo que
apareceu no Brasil: o que obriga alguns políticos a morar no mesmo lugar. E isso é a
meritocracia que tanto lutamos, Bolsonaro? Aqui moram os do PT e os que colocaram
os do PT para correr e abrir caminho para você. Não é possível.
Com a sua competência e essa força que o senhor tem, inclusive no nome, estou certo de
que o senhor vai combater essa verdadeira venezuelização da nossa justiça. Eu já estou
ao seu dispor. Vamos à luta, Bolsonaro! Deus tenha misericórdia deste país. Com a
admiração do seu amigo de sempre, Eduardo Cunha.
Ricardo Lísias é escritor e venceu o Prêmio APCA por O céu dos suicidas. Seu último
livro é Diário da cadeia, lançado em 2017, assinado por Eduardo Cunha
(Pseudônimo).
Ficção: Berlim
'Penso que se morássemos em Berlim provavelmente teríamos ficado de lados opostos.'
Luiza Mussnich
30/10/2018 - 09:56
'Enquete: qual a melhor solução? Galeão ou Cumbica?' Foto: Igo Estrela / Getty Images
Zé Maria sempre foi dos últimos da fila. Apático e tímido, não era popular entre os
colegas, nem alvo preferencial de bullying. Nunca tirava as melhores notas, mas seu
desempenho não chegava a ser sofrível. Na escolha dos times, ficava entre os últimos,
antepenúltimo, depois de um gordo, antes de um manco e de um zarolho. Sua presença
era insignificante, sua existência tão mundana, que se tornava difícil até encontrar
adjetivos para completar um parágrafo.
(Mas, afinal, não é assim a vida de tantos e tantos? De quase todos nós? É que tantos e
tantos e quase nenhum de nós daria um livro, um conto, um personagem coadjuvante
numa crônica de revista.)
Zé Maria, como muitos, era filho único. Criado pela mãe e pela avó. O pai, não
conhecia. “Ele é um homem importante”, dizia a mãe, “e tem outra família.” Zé Maria
era o que chamam de “filho bastardo”, mas nem isso o destacava. Tantos como ele
cresciam sem pai, sem mãe, com duas mães, no Jardim Peri Peri.
Com a mãe se recusando a revelar a identidade do pai, Zé Maria havia muito desistira.
Cresceu procurando-o na televisão, nas revistas. “Um homem importante”, podia ser
artista, ator, apresentador, jogador de futebol. Zé Maria examinava a fisionomia de
Celso Portiolli, Padre Fábio de Melo, Humberto Martins. Um dia, passando pelo
Datena, se perguntou se seu pai não era Alexandre Nardoni, Goleiro Bruno, Marcinho
VP.
O espelho também não trazia respostas, não dizia nada de volta. Sem traços marcantes,
sem marcas de nascença, tinha a pele parda da mãe, e de toda a sua vizinhança. Não
tinha olhos azuis, não tinha língua presa, cabelo nem liso nem crespo; se desmaiasse na
hora do rush, nem sua alma saberia a que corpo retornar.
Assim, às vésperas das eleições (à beira do precipício), Zé Maria estava com 16 anos,
não tinha partido e não havia tirado título. Não acompanhava as discussões nem assistia
aos programas políticos. Mas, enquanto esperava o Pica-Pau, um jingle familiar soou na
TV da sala, e sua prima mais velha comentou:
“Sabe que esse homem esteve uma vez aqui no bairro? Foi no dia daquele atentado, nos
Estados Unidos. Ele passava aqui de carro. Parou no bar em que sua mãe trabalhava
para assistir pela TV...”
“Que dia? Que atentado?”, Zé Maria questionou.
“O 11 de setembro... Faz tempo. Acho que em 2002. Você nem tinha nascido.”
Não. 11 de setembro de 2001. E Zé Maria havia nascido exatamente nove meses depois.
De noite, sozinho no quarto, ele pesquisou o histórico do candidato. “Um homem
importante”, que passara pelo bairro, tivera contato com sua mãe, nem que tenha sido
como freguês do bar. O nome era mais uma coincidência, que não podia ser só
coincidência. E lembrava-se das primeiras palavras que ouvira, pela TV, da boca de seu
pai:
“Sinais! Fortes sinais!”
Acordou no dia seguinte como filho de presidenciável. Mulher de presidente é primeira-
dama — filho de presidente é o quê? Primeiro em algo? Ao menos primogênito ele
poderia ser, pela primeira vez? Não, seu pai já tinha filhos, netos e bisnetos. Ele
permanecia filho bastardo. Mas filho bastardo de um democrata cristão.
Na escola, tentou enfim fazer parte dos debates políticos. Pregou o pai aos moleques de
cabelos coloridos, às meninas bonitas que o assustavam por serem feministas, até aos
que defendiam o “mito”; ninguém o levava a sério. Ele vinha defender seu pai-
candidato, apenas para ser descartado, posto de lado, nem ameaça nem aliado, apenas
desprezível, como sempre havia sido.
De noite, cabisbaixo em casa, sua mãe chegou e bagunçou seu cabelo. “Que tá chocho
assim, Zé Maria? Pisou na goiabada?”
“Mãe, você precisa me dizer, eu tenho direito de saber. Meu pai é um político? Eu fui
concebido no 11 de setembro? Qual é o nome dele? De repente posso pedir um exame
de DNA...”
“Quem foi que te disse que ele é político? Ai, eu jurei não contar...”
“Mãe, eu tenho 16 anos, eu mereço saber.”
A mãe suspirou. Engoliu fundo. As lágrimas escorreram.
“Meu filho... Se quer mesmo saber a verdade... a verdade é que não sei. Não sei o nome
dele. Naquela época eu era jovem, solteira, trabalhava num bar e estava perdida; foi
uma fraquejada... teve sim uma comitiva com alguns políticos, que passou e parou por
aqui. Mas... nunca mais o vi. Nunca fui ligada em política e nunca vi seu pai em cargo
nenhum... eu queria poder dizer que ele já foi prefeito, sim, foi vereador, mas que cargo
mesmo que ele ocupou eu não sei...”
“Meu pai já foi Deputado”, pavoneou-se Zé Maria. “Ele que aprovou a jornada de
trabalho de 44 horas, o aviso prévio de 20 dias”, advogou com conhecimentos parcos
via Wikipédia.
A mãe lhe sorriu, passou-lhe a mão no rosto orgulhosa, como se visse diante de si o
futuro da nação.
“Eu não sabia, meu filho, eu não sabia. Sei que ele é um homem importante, mas não
sei por onde anda. Sei que era um bigodudo baixinho, que falava de um tal de
aerotrem...”
Santiago Nazarian é escritor, tradutor e roteirista. Seu último livro, Neve negra, foi
publicado em 2017 pela Companhia das Letras.
Ficção: Ode à alegria
'A postos, guadá junta o papel higiênico à cara dos santos'
Juliana Leite
30/10/2018 - 09:58
digamos que, no tumulto da liberdade humana, guadá viaje com sua mesa dobrável e o
pacote de papel higiênico por dois ônibus entre a rua do beco, casa três, e o endereço de
trabalho: centro da cidade, bar do chico. Não apenas bar do chico, como fundos. Não
apenas fundos como, na coordenada cardeal específica, porta dos banheiros. Nesse
espaço diminuto, guadá existe. E não apenas existe como é real.
digamos que sábado.
habituada à lotação dos ônibus, guadá não se detém — digamos que não, na rua que
hoje está apinhada de gente entre o ponto de descida do 393 e o bar do chico. Licença
para passar, ela pede no caminho, misturando-se aos corpos esbravejantes que miram a
praça. Para facilitar a travessia até o outro lado da rua, guadá assume o gesto dos
estandartes na multidão: ergue acima da cabeça a mesa dobrável onde se lê o nome do
refrigerante: Guaraná Poti, lá no alto, lado a lado com Nenhuma a menos, Vem pra luta
amada, Juntas somos gigantes. Em comum com a multidão, guadá tem pressa.
digamos que urgência.
entra no bar meia hora antes do turno, 12 horas às 18 horas. Saúda no caminho os
companheiros que, chão varrido, descem as cadeiras empilhadas no salão. Vai direto aos
fundos e começa a se preparar. Encosta a mesa à parede do cubículo que precede os
sanitários, ficando de frente para as duas portas que se autodistinguem: bengala e leque.
É ali, de frente para os ferrolhos íntimos, que guadá testemunha diariamente as
urgências humanas.
acomoda embaixo da mesa, junto aos pés magros, a sacola em que trouxe 12 rolos de
papel higiênico, embalagem econômica. Antes de tudo, liga o radinho de pilha e puxa a
antena para o alto. Desde que guadá não aumente demais o volume, chico não se
incomoda. Ela sintoniza a estação à espera das músicas que, nos mistérios dos sentidos,
a ajudarão a se distrair da fumaça de óleo que em breve escapará pelo exaustor.
digamos que 80 centímetros.
o mais importante agora, guadá sabe, é começar logo o corte das porções de papel
higiênico. Nos gestos rápidos de um banheiro de bar, guadá precisa estar preparada para
fazer a oferta da porção de papel no momento certo: antes, sempre antes das portas dos
sanitários se fecharem. Contribuição voluntária é o que ela pede em troca, às vezes
sendo atendida, mas nem sempre. A cada 40 metros de rolo, 50 porções de 80
centímetros.
digamos que com ajuda de cenografia.
guadá compreende que, no bar do chico e além, para vender papel é preciso tornar
visível a sua mão, já que é ela, e não qualquer outra, a que acode no momento de
urgência. Por isso, na parede mal pintada atrás de si, guadá prende um pano púrpura
onde a imagem de nossa senhora de guadalupe, a padroeira do seu bairro, presta serviço.
Digamos que guadá não saiba ao certo qual é a causa da santa: se cura enfermo, afasta
mau-olhado ou vence demanda, nada disso importa. O que vale, isso sim, é que o efeito
do roxo vivíssimo do pano, somado à chama violeta que circunda a mulher, capture a
atenção dos olhos que passam rumo ao banheiro. E que, nessa fração de segundo, guadá
esteja preparada para empunhar o papel higiênico, fazendo-se ver.
digamos que com fé.
de dentro da bolsa guadá retira a novidade do dia, o bico extra: santinhos do candidato
que, distribuídos um a um, lhe valerão 1 quilo de alcatra. Promessa para o povo da rua
do beco, uma jura na qual guadá acreditou, e não apenas ela como também seus
vizinhos. Cada um à sua maneira, os vizinhos deveriam espalhar os santos conforme
pedido pelo assessor: número e rosto para cima, pessoal, sempre para cima. Se o pedido
de voto parece abstrato demais para o beco, o quilo de carne é suficientemente concreto.
Digamos que candidato e assessor saibam disso e, antecipando a estratégia, tenham
arranjado no açougue do carlim o estímulo: foto do candidato na porta, alcatra
pendurada na vitrine.
os mil santos, cota de guadá, vieram com ela hoje para a porta dos banheiros. Bastava
que juntasse um deles, talvez dois, a cada porção de papel higiênico: foi o que ela
planejou, digamos que planejou, junto à ideia de um ensopado.
“hora de abrir!”, chico anuncia. A postos, guadá junta o papel higiênico à cara dos
santos. Por uma fresta da porta consegue ver, já entrando no salão, a fumaça roxa que
embala o povo do lado fora. No rádio, aquela canção de que ela gosta — gosta muito,
mesmo sem compreender totalmente o efeito que a letra tem sobre si. Tudo vai mal,
Tudo, Tudo mudou, Não me iludo e contudo, A mesma porta sem trinco, O mesmo teto,
E a mesma lua a furar nosso zinco, Meu amor, Tudo em volta está deserto, Tudo certo,
Tudo certo como dois e dois são cinco. Aquela voz que canta alto e forte e que desperta
em guadalupe, à espera do serviço, a intuição de que hoje será um dia rico.
digamos que alegre.
Juliana Leite é escritora e mestre em literatura comparada pela Uerj. Seu romance de
estreia, Entre as mãos, publicado pela Record, venceu o Prêmio Sesc de Literatura
2018.
Ficção: Golpe 2.0
'dizem os mais otimistas que provavelmente seguiremos na bunda-molice
necrogovernista'
Yasmin Nigri
30/10/2018 - 09:58
Yasmin Nigri é poeta, artista visual e mestre em filosofia. Em 2018 lançou seu primeiro
livro, "Bigornas", pela Editora 34.
Ficção:
Protoneoliberalzinho
'Ciro Gomes está na cama do hospital. Ao lado dele, soro goteja devagar'
Luisa Geisler
30/10/2018 - 09:58
Luisa Geisler venceu duas vezes o Prêmio Sesc de Literatura e está entre os 20
melhores jovens escritores brasileiros segundo a revista Granta. Em 2018, publicou o
romance "De espaços abandonados" pela Alfaguara.
Ficção: A última gralha
'I’m your fan número uno. I love you, Jay / I love you too, Don, but you muito louco'
Lucrecia Zappi
30/10/2018 - 09:59
O presidente norte-americano esperava na pista. Assim que seu colega desembarcou, foi
breve e amigável em duas palavras. Hola, amigo. O brasileiro respondeu com um Hi
altivo, elevando a mãozinha inexperiente aos expatriados tupiniquins. Os meia dúzia,
concluiu o norte-americano ao notar o gesto à distância, provavelmente seriam
indocumentados. Mesmo assim, esses bad hombres não resistiam à oportunidade de ver
com os próprios olhos Mar-a-Lago, um presente do homem para a natureza, ainda que a
desculpa de estar ali fosse a visita do novo imperador do Palácio do Planalto.
Jay, may I call you, Jay?
My name is Jay-ir. Jay-ir.
Jared?
Jay-ir.
Jay. Jay amigo.
O brasileiro perguntou o que significava a palavra. Donald imitou o abre e fecha de um
bico de pato. Aquilo seria uma gralha? Suspirou aliviado, não tinha nem como ser
confundido com um tucano. Foi buscar na mala um pacotinho e colocou-o sobre a mesa.
The book is on the table. For you.
Souvenir? For me?
For you.
Gracias, amigo.
De nada. From Museu Nacional. A little smoky.
Smoky? Mescal?
No, book. The book is on the table.
Carbonized? No problema. No me gusta leer. Carbonized is perfecto.
Sob o sol quente da Flórida, um campo de golfe se abria diante deles. O brasileiro olhou
com inveja. Um dia também transformaria seu país em um campo aparado como aquele.
Jay sentiu que tudo era tostável neste mundo. Enxergou um vasto campo protocolar
repleto de presentinhos simbólicos como as bolinhas de golfe diante deles. Ser chefe de
Estado era bico. E já tinha até apelido. Jay. Quis condecorar-se com três Jay sobre o
peito. Só desejou que gralha fosse pássaro melhor, como a águia. Foi quando sentiu-se
atingido por uma pequena inveja. Don era um bad macho, falava espanhol como um
caubói de fronteira.
Com apetite desbravador, devorou um hambúrguer inspirado na temperatura do dia:
carbonized. Enquanto comiam, falaram de esportes nacionais. Golfe. Futebol. Beisebol.
Vôlei de praia. Apesar do entusiasmo inicial, um desconforto foi tomando conta do
brasileiro. Seria o estômago sensível. Ou o inglês ostensivo. Saudades da pátria. De
repente, Jay deixou escapar que acabaria com o maior esporte brasileiro.
Miss universe?
PeTeca. Plumas e PT, o passado do Brasil. No existing anymore. No memory.
Me gusta. Make Brazil great again.
Ele riu. Donaldy, you’re too much.
You think, amigo? Want to see? Come.
Os dois passaram pela cozinha, desceram escadas e chegaram a outro salão. Nas
paredes, gralhas de todas as espécies, fotos de criancinhas atirando e mulheres do tipo
que mereciam ser estupradas. Chamou-lhe a atenção a quantidade de PeTecas.
What. Is. This.
I’m your fan número uno. I love you, Jay.
I love you too, Don, but you muito louco.
Loco de amor. I am you. You. As you will become me.
Ele pensou no que tinha feito em um só mês no governo. Tinha ordenado um
desmatamento exemplar em todo o país, queimado e cimentado tudo. Sentiu-se confuso,
perguntando-se o que teria vindo primeiro, a laje ou a Amazônia? Amazônia, chutou,
mas já não tinha certeza.
Aquilo era um pesadelo, um jogo perverso da memória. Pensou no passado, mas o que
veio foi o presente carbonizado do Museu Nacional. O objeto era um livro, mas nunca
saberia o que estava escrito ali. Se insistisse em abrir, a coisa viraria farelo. Pensou na
carne bem passada que comera momentos antes.
Devia ser o estômago. Pôs a mão sobre a barriga inchada e reparou que o americano fez
o mesmo. Gestão com gestação. A última coisa que ouviu foi a voz sufocada, Soy tu
fan, Jay. Respirou fundo, parecia que não se lembrava de nada, somente um chamado
vago de identidade norte-americana, nutrida ao polir o coturno enquanto sonhava com
uma invasão militar e outras glórias do venerável Exército brasileiro.
Parou para ouvir o que o outro gralhava, mas estava sem forças. Tentou corrigir o
próprio nome, mas, distante e enfraquecido, Jay-ir soou como eco sobre uma queimada
tão profunda que não deixa cicatriz. Ficou com a boca entreaberta, como se tivesse sido
esfaqueado e nunca mais lhe entrasse o ar.
Lucrecia Zappi nasceu em Buenos Aires e vive em Nova York. Acre, seu último
romance, publicado pela Todavia, é finalista do Prêmio Jabuti.
Ficção: NN
'O primeiro chute que eu levei foi nas canelas. Não foi bem um chute, foi mais uma
rasteira. Caí. Mas tenho reflexos. As mãos chegaram na calçada antes dos dentes'
Natalia Borges Polesso
30/10/2018 - 09:59
O primeiro chute que eu levei foi nas canelas Foto: Agência O Globo
O primeiro chute que eu levei foi nas canelas. Não foi bem um chute, foi mais uma
rasteira. Caí. Mas tenho reflexos. As mãos chegaram na calçada antes dos dentes. Olhei
para trás, esperando encontrar alguém constrangido por um tipo de piada mal executada,
um engano horroroso, o qual nunca esquecerá. Nossa! Uma vez eu derrubei uma mulher
achando que era meu irmão. Poderia ser isso. Sei lá. O cabelo curto, os ombros largos, a
camiseta preta de banda que só o irmão usava e zaz. Desculpa, moça! Achei que fosse o
meu irmão. Me estenderia uma mão rápida e eu até diria “não foi nada, acontece”. Mas
não. Nada disso. Me olhou como quem olha um alvo. E gritou raaaaaaaaah com a língua
dobrada, um erre americano ou de outra língua raaaaah. O ponto de ônibus estava logo
ali, uns 3 metros. As pessoas tinham o pescoço girado na nossa direção, mas ninguém se
mexia. Acompanharam a chegada do ônibus com a cabeça e subiram. Uma leva de
atrasados correu em cardume para o ponto, inútil. Giraram novamente o pescoço em
nossa direção, esperando a próxima condução. Olhei para o homem e encolhi as pernas.
Ele ergueu os dois braços mais ou menos na altura dos ombros, cotovelos para baixo e
punhos para cima, fechou as mãos e disse algo mais articulado dessa vez. Quem é o
messias? Deformei a cara toda, na tentativa de trazer algum sentido para aquela
pergunta doida, e foi aí que o segundo chute veio. Pegou de raspão, porque puxei as
pernas para o lado e levantei tão rápido que tonteei, a visão desestabilizada como num
desses filmes de ação. Na minha frente, o cara; atrás de mim, a escadaria da igreja. Dei
as costas, subi correndo, rezando para que os pés se erguessem na medida certa dos
degraus, para que não houvesse tropeço algum nem cálculo físico mal executado,
rezando também para que a porta da igreja estivesse aberta. E estava. Entrei. Corri pela
lateral e me escondi atrás de uma pilastra. Senti uma pontada aguda na nuca. Não vi
quando ele entrou, só ouvi o grito novamente. Atrás de mim, o Cristo morto. Pensei em
confrontá-lo. O que poderia fazer comigo dentro de uma igreja, afinal? Pensei em sair
de trás da pilastra e perguntar se estava confuso ou se tinha errado de pessoa. Pensei em
pedir ajuda aos fiéis, a deus, ao Cristo ali deitado. Este homem está louco! Está me
perseguindo! Me deu um chute e me derrubou, tive que entrar correndo aqui, pedir
proteção. As cabeças continuaram imóveis. Dei dois passos à frente, para conferir se
eram bonecos ou pessoas reais. Olhos de vidro, umedecidos pela luz, magnetizados ao
Cristo crucificado no altar. Cheguei mais perto, pareciam vivos, pareciam respirar. Mais
perto. Havia uns 15, espalhados pelos bancos. Um deles me olhou e com muita ternura
disse raaaaah. Tinha uma expressão de bondade extrema na face. Toquei seu braço e em
resposta ele disse: ele é o messias. Jesus? Eu perguntei. Raaaah me respondeu em tom
negativo e cheio de compaixão. Não avistei mais o sujeito agressivo, saí pela lateral da
igreja. A rua estava minada de cartazes com a foto de um homem demasiado sorridente.
Banners, painéis, faixas, adesivos em carros. Sua imagem estava em camisetas, blusas e
até em macacõezinhos de bebês. Quando foi que aquilo teria acontecido? Não lembro de
nenhuma transição. Parei na beira da calçada e apertei a cara novamente. Na verdade, eu
não me lembrava de nada muito específico antes da rasteira. Eu sabia onde estava, sabia
que cidade era aquela, mas nada fazia muito sentido. Será que tinha batido a cabeça?
Apalpei o crânio. Foi então que ouvi um psiu. Na porta de um prédio, uma garota
estranhamente familiar fazia um sinal para que eu me aproximasse. Desconfiei. Natalia!
Natalia? Era o meu nome. Andei devagar até perto da porta. Ela me olhou de cima a
baixo. Você fugiu? Eles conseguiram te lavar? Levar? Não, lavar? Conseguiram te pôr
na salinha? Com os vídeos da NN? NN? Nova Narrativa. Fala alguma coisa. Eu tentei
articular as sílabas de modo que alguma explicação mais complexa saísse da minha
boca em forma de palavras e perguntas. Mas eu só consegui dizer raaaah. A garota me
arrastou para dentro do prédio. Temos mais uma. Precisamos reverter. Você sabe que
dia é hoje? Eu sabia. Era domingo. Domingo de eleições. Não pude responder. Deve ter
sido levada à força. A realidade me escapava. Já não sabia se ouvia a voz da garota ou
outra interna, clamorosa. Natalia, você conhece o messias? Messias? Quem é o messias?
Natalia Borges Polesso é escritora e tradutora. "Amora", seu último livro de contos,
publicado pela Não Editora, venceu o Prêmio Jabuti em 2016.
Ficção: Planeta dos
Homens
'E assim seguimos nosso caminho: rumo a Brasília, o centro do poder, onde nosso
profeta revelará a verdade e derrubará o falso Messias. Glória a Deus!'
Samir Machado de Machado
30/10/2018 - 10:00
E aqui completo meu último relato, antes de chegarmos ao nosso destino final.
Foto: Eric VANDEVILLE / Agência O Globo
Então nosso líder para em meio às favas e se volta para nós, como que
tomado por súbita revelação:
Alguns são capturados com redes, feito animais. Nosso líder, porém,
resiste: quando é cercado, defende-se das redes com seu cajado, revida,
tem a camisa rasgada, e derruba seus perseguidores aos brados:
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Após o grande cisma de 2018 ter dividido o país, poucos previram o que
viria — exceto ele. Daciolo nos alertou, mas não lhe demos ouvidos
enquanto houve tempo. Nem comunistas nem neonazistas, as grandes
forças ocultas por trás de tudo eram as mesmas desde o início dos
tempos: os Illuminati.
Formados por filósofos e pensadores da Baviera no Iluminismo,
enganam-se aqueles que acreditam terem deixado de existir no século
XIX. Como deixou bem claro em seus escritos o profeta Dan Brown,
eles seguem ativos até hoje, em sua eterna disputa de poderes contra a
maçonaria, os rosa-cruzes, os templários, o Priorado de Sião, a sociedade
teosófica e o Clube do Mickey. Somos todos apenas peões de um grande
tabuleiro, onde decidem nossos destinos manipulando os eventos
mundiais, grandes e pequenos. Mas nosso líder sabe como desmascará-
los, e é por isso que fazemos nossa jornada: de volta ao Congresso, para
expor a farsa do falso Messias e os poderes ocultos que o manipulam.
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Há algo novo, algo que não estava ali na última vez que nosso mestre
viera à capital. A estátua da Justiça fora substituída por outra, que agora
se impõe gigantesca à nossa frente — maior que o Cristo Redentor do
Rio ou o Cristo-Luz de Camboriú, imponente e opressiva.
— Oh, meu Deus! Todo esse tempo... — Daciolo bate com o punho no
chão, em desespero — vocês finalmente conseguiram. Seus maníacos!
Vocês destruíram tudo, malditos sejam! Malditos sejam todos vocês!
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Ficção: Militante
'Eu não quis falar nada sobre minha preocupação. Vai que nosso candidato não entra? Já
tomei cano assim.'
Marcelo Moutinho
30/10/2018 - 10:00
Seu Botelho disse que amanhã paga. Só que amanhã a eleição já acabou.
Não se preocupa, minha filha, aqui a gente é correto, você não leu o que
está escrito na bandeira? Honestidade em primeiro lugar.
Eu não quis falar nada sobre minha preocupação. Vai que nosso
candidato não entra? Já tomei cano assim. Você passa a semana na rua,
debaixo de um sol de fritar os miolos, e depois não recebe o combinado.
Ah, me desculpa, mas a situação complicou, a grana que ia pintar não
pintou, eleição é fogo. Você sabe como é.
Cansativo, viu? Mas não tem nada. Pior é quando não rola eleição.
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Você vai votar no nosso candidato, né? Eu respondi que sim, claro que
vou.
Se ele ganhar, vai ficar bom pra todo mundo, repetiu o Seu Botelho.
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Por via das dúvidas, é melhor mesmo que nosso candidato ganhe.
Recebendo o pagamento, estou mais que satisfeita. Resolvo as
pendências, reforço a despensa e ainda faço uma graça com o Uéslei.
Melhor não arriscar, não. Eleição é fogo. Mas na próxima, graças a
Deus, a Luana já vai ser maior de idade. Pra segurar bandeira também e
dar uma moral nas despesas da casa.
Ficção: O esqueleto do
governador Geraldo
Alckmin
'Na parte da cidade aonde não podíamos ir, descobriram o esqueleto do governador
Geraldo Alckmin'
Emilio Fraia
30/10/2018 - 10:00
Reservatório de Jaguari, São Paulo Foto: Paulo Fridman / Getty Images
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É por isso que estamos aqui agora, de um lado para o outro, pela avenida
dos Índios Mortos, atrás de água e comida. Ainda não entendemos muito
bem. O governador Geraldo Alckmin — dizem os que viram seu
esqueleto —, ele não esteve do nosso lado. Nem quando mais
precisamos. Ficou em silêncio. Ele poderia nos salvar? Enxergaria o rio
da história o governador Geraldo Alckmin? Não sabemos. No fim,
acabou como um montículo de ossos à beira do caminho. Ele e seu
grupo. Acabaremos todos, é verdade. Mas poderia ter sido diferente? Os
Homens do Esgoto, contempladores do fogo e das estrelas, repetem em
surdina: acabaremos todos.
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Aconteceu uma vez. Mas não era a primeira vez, e sim a 33 desde que o
espaço havia se transformado em coisa pública — antes, imperavam os
reis, num imperativo nem sempre categórico. Porque de rei a rês muda
só uma letrinha, mas na prática todo mundo já sabia que a diferença era
bem maior, como sempre. Mesmo porque, ao desembarcarem aqui,
conforme relatou Pero Vaz, chamou atenção a rês púbica das vergonhas
saradinhas de que eram providas as habitantes originais. Mas isso são
outros 500.
Como dizia, aconteceu uma vez, e foi justamente na escola pública, onde
cabia todo mundo de todos os tipos, tamanhos, cores, credos e tudo o
mais. Inclusive pobres e ricos — mas estes só marcaram presença porque
isto aqui é uma fábula e a gente dá aquela piscadinha fingindo que tá
tudo certo.
Sem ter muito mais o que fazer na hora do recreio e diante dos parcos
recursos do pátio, a gurizada decidiu brincar de dança das cadeiras.
Escondidos dos inspetores, que não saíam do WhatsApp e mal
prestavam atenção ao caos pueril, os moleques reuniram umas dez
cadeiras trazidas das salas, fizeram um círculo e começaram.
Acontece que todos davam um jeito de se sentar, nem que fosse a meia-
nádega, e voltavam para a ciranda. Em dado momento, começou a
bagunça, porque criança gosta mesmo é de questionar o sistema e
reinventar a coisa toda. Descontente com o rumo da roda, Gerinho foi o
primeiro a reclamar:
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— Nada disso, camarada. Da última vez que você veio com essa a gente
se lascou...
— Isso porque você chegou invadindo! — bradou Riquinho, lá atrás,
tentando argumentar que tinha razão porque sempre fora chamado pra
colocar ordem e gerar diversão vááárias vezes.
— Vamos voltar, galera, pois eu me preparei para isto tudo aqui, estudei
este tipo de brincadeira e...
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Ficção: Fake
iluminewsmo
'é preciso sair do armário já que dentro ou fora dele só a gente continua em perigo'
Adelaide Ivánova
30/10/2018 - 10:01
a glorificação da neutralidade Foto: Yevgen Romanenko / Agência O Globo
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a glorificação da neutralidade
ou de “degenerados”
apartidário
da cultura ocidental
de república de curitiba
o que você quer é manter
sair do armário
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inclusive o oponente
sair do armário
Ficção: O assassinato do
presidente
'A imagem nunca mais vai sair da sua cabeça'
Tiago Ferro
30/10/2018 - 10:01
John F Kennedy é assassinado em Dallas Foto: Rolls Press/Popperfoto / Getty
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A imagem nunca mais vai sair da sua cabeça. Você acorda no meio da
noite e o pesadelo começa. É tudo em preto e branco. Sempre. O
conversível desfilando lentamente na avenida de Dallas, os acenos de
praxe, famílias nas calçadas, policiais uniformizados e agentes do FBI
muito parecidos com o Clint Eastwood no filme em que ele precisa
evitar que o Malkovich mate o presidente interpretado por um péssimo
ator. E então o tiro. O disparo não tem som. Você fecha os olhos, mas a
cor não vem. Você não consegue ver o amarelo dos cabelos loiros
misturado aos diversos tons de vermelho até chegar ao marrom do
sangue já pegajoso que encharca a massa encefálica deformada pela
bala. O Godard costumava dizer que não se trata de sangue, mas sim de
vermelho. Você se esforça para não vomitar na sua mulher dormindo ao
seu lado quando imagina os homens fardados rindo depois do ritual de
fuzilamento coletivo do presidente Allende. Todos fizeram questão de
dar ao menos um tiro no chileno naquele 11 de setembro. Você nunca
mais conseguiu fazer sexo depois que passou a construir no ecrã da sua
mente as cenas daqueles filhos da puta voltando excitados para casa com
sangue respingado nos uniformes e babando como lobos atrás das
vaginas secas de suas esposas que não podiam imaginar há sete anos
quando disseram sim em uma igrejinha de merda da periferia de
Santiago que seriam estupradas naquela noite por seus maridos violentos
cheirando a bebida barata como se fossem uma espécie de troféu em
homenagem à covardia. Você vai ao banheiro e se encara no espelho. No
filme hollywoodiano, o Kevin Costner defende que foram vários tiros de
diferentes locais. Você finalmente é capaz de ver a expressão de cada um
dos atiradores. Você se irrita quando pensa que são atores. Quem diria
que aquele garoto tremendo num pau de arara em uma estrada nordestina
iria se tornar a projeção dos melhores sonhos e também dos piores
pesadelos dos brasileiros? Dois dias depois do tiro em Dallas, Jack Ruby
matou Lee Oswald para depois morrer na prisão. Na Wikipedia USA,
Oswald é Marine and Marxist e Ruby um Nightclub Owner. Os grandes
mamíferos têm hábitos noturnos. No Congo de Leopoldo o horror era
branco. Hienas destroçam leões e você nunca mais será capaz de
mastigar carne. Gandhi foi baleado e na cena do filme ele diz “Oh, God”.
Você se apoia na pia fria do fim da madrugada e ouve o primeiro ônibus
do dia reduzir a marcha para subir a rua Harmonia. Eles se movem em
grupo e é impossível entender quem elabora os planos. Você passou a
urinar na cama. Mohamed Atta não agiu sozinho. Quando o Spielberg
convidou o Tom Cruise para participar do filme 9/11, o galã da
cientologia não entendeu por que não era possível alterar o roteiro e
salvar os americanos no final. O Che jamais sentiu medo. Ele trepava nas
árvores e preenchia compulsivamente os seus caderninhos. Não, não era
o roteiro de Diários de motocicleta. Você nunca engoliu o Gael no papel
do herói argentino. O Bush estava numa escola infantil sentado em uma
cadeirinha ridícula quando foi informado sobre os ataques. Ficou sem
reação. Você não consegue deixar de pensar que era na verdade um
aluno que depois de 50 anos preso naquela sala jamais conseguiu
aprender a ler. Ele deu um jeito de tirar a família Bin Laden da América.
Muhammad Ali era o Cara. Você nunca suportou as piadas reacionários
no grupo de WhatsApp da família. Você já trocou muitos presentes com
os estupradores da presidente Dilma. Na piscina da ACM, a última
senhora a sair da aula de hidroginástica pela escadinha de três degraus
pariu em 1933 um dos assassinos do Marighella. O filho de um dos
principais economistas brasileiros sonha em ter seu próprio avião e acha
o Chico Buarque um bosta. Você não teve coragem de engolir o verme
da tequila quando passou férias em Acapulco. Você pensa na
adolescente mexicana de uma vila muito pobre que toma pílulas
anticoncepcionais antes de trepar no teto do trem que a levará até o
extremo norte do país porque ela não pode entrar na América carregando
o filho do homem que vai estuprá-la no caminho. Os jovens americanos
gostam de ir para a Disney de Las Vegas pagar por sexo anal com
garotas colegiais fantasiadas de garotas colegiais. Você não sabe se foi
mesmo a ação de um fanático ou interesses texanos no pré-sal. Não, você
nunca mais vai dormir. Você vai ser massacrado, terá cada osso do corpo
quebrado, a pele rasgada, você vai virar um saco disforme e malcheiroso
e nas suas retinas a cena em Dallas vai se repetir para sempre em
looping. Em preto e branco. Você sonha com o sol inclemente da África
antes de Conrad. Um rinoceronte entra no rio para escapar do calor
torturante. Um sol branco e cruel sobre uma terra negra. O Estádio
Nacional do Chile.
E quando finalmente for pendurado no pau de arara, você vai conhecer
de ponta-cabeça os rostos dos homens que assassinaram o presidente
Lula.
FIM
Minha analista diz que é projeção porque perdi meu pai muito cedo, e
que ele representa a figura sensata, firme e protetora que eu sempre quis
ter, mas eu culpo mesmo é a fala que é mansa, forte e que sai daquela
boca grossa libanesa que combina tanto com sobrancelha marcada. E
também as mãos, enormes, que quando gesticulam na TV me fazem
imaginar o que não fariam segurando firme meus flancos sussurrando
palavras de democracia nos meus ouvidos.
A primeira vez que o vi foi num domingo no Minhocão, centro de São
Paulo. Ele estava inaugurando uma ciclovia justamente numa das minhas
visitas à cidade. De calça justa, em cima de uma mountain bike verde,
liderando um monte de gente indo de bicicleta logo atrás, sorrindo para
os moradores dos prédios do Minhocão. Foi amor à primeira vista, e
comprovado não apenas pela sinastria amorosa que fiz quando voltei
para o Rio, que confirma seu sol em aquário caindo exatamente na
minha lua no mesmo signo, como pela taróloga que prometeu a chegada
de uma paixão que reacenderia minhas esperanças no amor após a
barbárie do meu último relacionamento.
Mas se antes nossa relação só era proibida pela distância, hoje em dia é
pela família também. Me sinto uma Julieta ao ter que esconder a camisa
com seu rosto no almoço de domingo, ao ouvir minha mãe rebater
qualquer comentário que eu faça sobre ele dizendo que não quer filha
dela metida com socialista enquanto eu tento explicar em vão que o
capitalismo já venceu, o Brasil não virou a Venezuela e meu lance com
ele é amor. Indignados, meus tios falam de corrupção e eu falo que
corrupção também é sonegar imposto da loja que a gente tem aqui em
Copacabana. Meu avô, que acha um absurdo, defende o conceito de
tradição e família mesmo tendo outra família que mora ali no início da
Barra da Tijuca.
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Escolho uma camisa branca pra me destacar sem parecer que saí de uma
passeata pró-impeachment e vou pra Cinelândia de metrô porque ainda
não estou 100% na mountain bike. Colo uns adesivos na altura do peito e
no caminho até a Cardeal Arcoverde umas cinco pessoas esbravejam
com dedos na minha cara. Aperto o passo e o fone com o áudio de um
vídeo onde, com um violão no colo, ele olha para a câmera e canta
aquela música do Bob Marley, “Don’t worry about a thing ‘cause every
little thing is gonna be all right”. Tenho certeza que é amor, tenho
certeza que é pra mim.
Ficção: C××××××
#desenhospelademocracia
Cynthia Bonacossa
30/10/2018 - 10:03
#desenhospelademocracia Foto: Agência O Globo
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DESENHOS PELA DEMOCRACIA DE CYNTHIA B
é como se a via
fosse justamente
a mais engarrafada
discurso ambientalista
se eu cair na Rede
sou peixe ou cobaia?
é semelhança
......................................
necessária?
suficiente?
ou caio na rede
ou nado contra
a corrente
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Fiquei incomodado com o tom dele, mas tive presença de espírito. “Voto
no Alvaro Dias. Um primo do Paraná trabalha para ele, e ele sempre foi
bom com a minha família. Meu voto é dele.” Minha resposta o
surpreendeu.
Agora, quer saber de uma coisa? Achei a pergunta dele indiscreta pra
cacete.
Foi naquele momento que meu sentimento negativo por ele nasceu.
Ele tinha dado uma acalmada com papo de política. Depois do primeiro
turno, porém, as eleições voltaram a ser assunto constante nas conversas
dele com a Fernanda.
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“oi, dr. iceberg. vou me atrasar um pouco por causa do bolsonaro, ok?
dr. Rosemberg*
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Era a mesma ladainha toda semana: minha mãe isso, minha mãe aquilo...
esse rapaz precisava ocupar a cabeça com alguma coisa, parar de pensar
besteira. E o dr. Rosemberg precisava descobrir se Bolsonaro estava vivo
ou morto, se ganharia as eleições, se precisaria mandar os filhos para
fora do Brasil.
Acomodado numa poltrona atrás do divã onde Álvaro se distraía com as
próprias reclamações, fora do campo de visão do paciente, Rosemberg
sacou o celular. Leu que Bolsonaro estava em estado grave. A
candidatura saía fortalecida do atentado, afirmava um cientista político.
O dr. Rosemberg pensou que talvez a irmã pudesse acolher seus filhos
em Israel, pelo menos até as coisas se acalmarem no Brasil. Abriu o
WhatsApp. Suas mãos suavam.
Álvaro se ajeitou no divã e ameaçou olhar para trás. Ele precisava falar
alguma coisa rápido. Se Álvaro soubesse que o doutor checava as
notícias enquanto se lamentava, seria um golpe fatal em seu narcisismo.
Seriam pelo menos mais quatro ou cinco meses insuportáveis de terapia.
O dr. Rosemberg limpou a garganta, ajeitou-se na poltrona e perguntou
com voz mansa:
“E como você fica quando ouve que não é capaz de mudar o Brasil?”
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Ficção: As lágrimas e o
sangue
'Algum dia ar fresco resolveu alguma coisa? Parecia que havia um peso me dobrando
diante de tudo.'
Mateus Baldi
30/10/2018 - 10:05
Algum dia ar fresco resolveu alguma coisa? Foto: Agência O Globo
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Anos atrás, quando não era um homem em coma, meu pai passava os
sábados jogando videogame com Victor. Bastava perder uma partida
para que ele se levantasse do sofá dizendo — Meu filho, presta atenção:
no fim, a gente sempre se ferra.
Digo isso porque hoje eu tinha saído do CTI no fim da tarde, perto de
acabar o horário de visitas, e precisava encontrar Paula para comer no
japonês. Ela ia me buscar depois da gravação, de modo que decidi fazer
hora aqui no hospital. Caminhei pelo jardinzinho, comi um pão de
queijo, li as revistas, trabalhei na releitura dos meus escritos. Teria sido
uma ruptura simples com esse cotidiano estéril de casa-visitas-casa: meu
pai no CTI após capotar no Aterro e eu comendo sushi com minha amiga
de infância. Até que veio a mulher com o rosto ensanguentado, aquele
fio vermelho manchando a camisa e formando poças na pele. Eu estava
pegando café na máquina quando ouvi os gritos. A mulher e dois caras.
Só ela chorava. As lágrimas e o sangue. Não sei por quê, mas escrevi a
Paula dizendo que talvez fosse demorar um bocado. Ela sugeriu
deixarmos o encontro para outro dia — Tô presa na Barra e preciso
decorar muitas cenas. Agradeci aos céus, devolvi dois emojis e fui para o
pátio respirar um pouco de ar limpo.
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— Homofobia.
Pedi detalhes.
— Que mulher?
— A do sangue.
— Tava.
Irritada, ela meteu o maço no bolso e foi caçar isqueiro noutro lugar.
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Beijo grande da
Anna.