Você está na página 1de 86

Ficção: Continuação do

Diário da cadeia escrito


por Eduardo Cunha
(pseudônimo)
'Deus tenha misericórdia deste país. Com a admiração do seu amigo de sempre, Eduardo
Cunha'
Ricardo Lísias
30/10/2018 - 09:56

Continuação do Diário da cadeia escrito por Eduardo Cunha (pseudônimo) Foto:


Agência O Globo

9 de abril de 2018
Acabei de sair da minha conversa com o meu advogado. O doutor Marlus me contou
que no sábado o Lula teve que ir morar no local que esses juízes querem. Outro absurdo
disso que esses juízes estão fazendo com o meu país. Deus tenha misericórdia do Brasil.
Eu que livrei o Brasil dos do PT tenho que morar no mesmo lugar que os do PT. Toda
vez que eu cruzo com esse Palocci me dá muita raiva.
E isso é meritocracia? As pessoas deviam morar conforme os seus méritos para o Brasil.
Eu livrei o Brasil dos do PT e tenho que morar com eles. É uma justiça do socialismo:
todo mundo ter que morar igual. Quando vão perceber que esses juízes são ateus e
comunistas?
Hoje em dia é assim. Homem casa com homem, mulher com mulher, tem gente que
escreve livro e coloca no nosso nome e agora quem livrou o jardim das ervas daninhas
tem que morar no mesmo lugar que as ervas daninhas.
Mas eu não perdi minha fé: “Não fui eu que ordenei a você? Seja forte e corajoso! Não
se apavore nem desanime, pois o Senhor, o seu Deus, estará com você por onde você
andar”. (Josué 1:9)

20 de setembro de 2018
Não tem um dia que a gente saia da reunião com o advogado sem descobrir alguma
barbaridade. Eu estou até trêmulo: agora soube que o Temer virou youtuber! É só
alguém falar mal dele na eleição que ele vai lá e grava um vídeo respondendo. E
imagina se isso é se dar ao respeito. Eu não posso assistir pois aqui onde estou
hospedado não tenho como ver a internet. Mas já imagino aquela cara dele falando isso
e aquilo. Esqueci de perguntar se ele não lê as poesias no youtube também. Foi isso que
aconteceu nesse país: eu, temente a Deus, que administrava o dízimo das grandes
empresas, vim parar aqui e o presidente fica gravando vídeo no youtube. Daqui a pouco
vai se filiar no PSOL. Temer, se você está respondendo ao que o Doria fala de você na
campanha, nem queira saber o que dizem aqui. Você traiu nós, deixou nós aqui, mas
logo vai poder responder pessoalmente. A gente vai bater longos papos, Michel. Quero
ver você fazer poesia aqui.

7 de outubro de 2018
Michel, escrevo para pedir desculpas. Você sabe o quanto fico nervoso aqui e aí acabo
sendo injusto com você. Somos amigos faz muitos anos e isso vai continuar apesar dos
percalços. Nós desenvolvemos a política neste país, sabemos tudo de política. Hoje é dia
da eleição, fizemos tudo direito na campanha. Hoje o MDB vai mostrar a nossa força.
Sempre fizemos bem contas, eu já rascunhei aqui os votos que vamos ter. Também
faremos a nova geração. O Brasil vai voltar ao normal agora, Michel, como acontece
sempre aquele movimento de sair um pouco para depois voltar. Já saiu um pouco com a
vinda para cá de alguns de nós. Hoje as eleições vão fazer tudo se acomodar e se Deus
quiser logo estaremos juntos de novo. Tenho certeza que o Jucá, o Eunício e o Geddel
estão sentindo o mesmo.
“O amigo ama em todos os momentos; é um irmão na adversidade.”
(Provérbios 17:7)

28 de outubro de 2018
Prezado Senhor Jair Messias Bolsonaro:
Venho por meio desta parabenizar o senhor pela sua ação política das últimas décadas.
Sempre fomos amigos no Congresso, onde estamos há muitos e muitos anos. Não me
surpreendeu a sua trajetória. O ideário do senhor, que está ao lado dos tementes a Deus
como eu, é o melhor para o país. O povo brasileiro, que merece respeito, não aguenta
mais tanta violência, homossexualidade, tudo isso que sempre conversamos. Direitos
humanos é para quem paga os dízimos. Pois foi Deus que fez os humanos. Tenho
certeza de que estamos juntos e que com a sua mão firme o senhor vai combater o
comunismo.
Se puder eu gostaria de conversar com você sobre um novo tipo de comunismo que
apareceu no Brasil: o que obriga alguns políticos a morar no mesmo lugar. E isso é a
meritocracia que tanto lutamos, Bolsonaro? Aqui moram os do PT e os que colocaram
os do PT para correr e abrir caminho para você. Não é possível.
Com a sua competência e essa força que o senhor tem, inclusive no nome, estou certo de
que o senhor vai combater essa verdadeira venezuelização da nossa justiça. Eu já estou
ao seu dispor. Vamos à luta, Bolsonaro! Deus tenha misericórdia deste país. Com a
admiração do seu amigo de sempre, Eduardo Cunha.
Ricardo Lísias é escritor e venceu o Prêmio APCA por O céu dos suicidas. Seu último
livro é Diário da cadeia, lançado em 2017, assinado por Eduardo Cunha
(Pseudônimo).
Ficção: Berlim
'Penso que se morássemos em Berlim provavelmente teríamos ficado de lados opostos.'
Luiza Mussnich
30/10/2018 - 09:56

'Penso que se morássemos em Berlim provavelmente teríamos ficado de lados opostos.'


Foto: Agência O Globo

Como são as primeiras horas após


a morte de alguém
a construção de um muro cortando um país inteiro
o fim de uma guerra
de um relacionamento
da apuração de uma eleição?
Eu gostaria muito
que não tivéssemos como nos desentender
se sonhamos na mesma língua
e ouvimos samba em fevereiro.
Será que as palavras ficaram daltônicas?
Você surdo
eu muda?
 
Penso que se morássemos em Berlim
provavelmente teríamos ficado de lados opostos.
O céu, o mesmo
nós, tão outros.
Se as palavras têm mais de um sentido
a manga está azeda
a manga precisa ser passada
talvez você escute
de outra forma o que digo
e eu diga de outra forma
o que você escuta.
A palavra é à queima-roupa,
o nocaute a facada
os golpes
podem vir a qualquer momento
de qualquer lugar.
Nosso passado é museu incendiado.
País de
puxadinho
jeitinho
deixa que eu deixo
ratos
malas
cuecas cheias de dinheiro
tô mandando o Bessias
só usa em caso de necessidade
tem que manter isso aí
com o Supremo, com tudo
rouba, mas faz
ninguém sabia de nada, mas
todo mundo sabe o que acontece
todo mundo sabe o que pode acontecer.
Não vou me acostumar nunca.
Alguém está prestes a arrancar a última flor,
mas as crianças já foram dormir.
Luiza Mussnich é poeta. Em 2018, publicou "Lágrimas não caem no espaço" pela
7Letras.
Ficção: Mensagem
Apagada
'Enquete: qual a melhor solução? Galeão ou Cumbica?'
Carlos Eduardo Pereira
30/10/2018 - 09:57

'Enquete: qual a melhor solução? Galeão ou Cumbica?' Foto: Igo Estrela / Getty Images

Esta mensagem foi apagada


Não voto em ninguém, vou estar embarcado.
Deixa eu explicar: o prédio da foto existe sim, o que desabou foi outro.
Esta mensagem foi apagada
No primeiro turno, estou com ele. No segundo, vou de quem ele estiver apoiando. E se
ele decidir não apoiar ninguém, anulo meu voto.
E quem diabos é o 29? Tem candidato com esse número?
Não, sua besta: 29 é o dia da Reunião da Turma.
E vice apita alguma coisa?
(encaminhada) O candidato a vice dele acaba de proferir depoimento bombástico numa
rádio. Passem adiante.
Desculpem, grupo errado.
A nova campanha ficou top!
E tem gente que acredita em pesquisa.
Olha um vídeo antigo, essa é sua cara verdadeira, pode acreditar.
Com certeza é fake.
Partiu carreata.
Bom dia, amigos. Mais de 600 mensagens em 24 horas. Perdi alguma coisa?
Os melhores candidatos, levando-se em consideração biografia e currículo, dificilmente
chegarão a algum lugar nestas eleições.
Vídeo (1:12)
Que baixaria.
Algum de vocês já respondeu a pesquisa de opinião? Ou pelo menos conhece alguém
que tenha respondido?
É manipulação rasteira. Só pode ser montagem.
Só trouxa mesmo é que cai numa cascata dessas.
Acordar vendo isso acabou com meu dia.
Em Portugal, amigo meu não viu nada disso de manifestação na rua.
(encaminhada) Compartilhem. Recebi de fontes confiáveis.
Ele pode não ser o melhor fertilizante pro Brasil neste momento, mas é o melhor
pesticida de que dispomos agora.
(encaminhada) Manifestação vira campo de nudismo e orgia em São Luiz, na hora do
Hino Nacional.
Não fosse a certeza de fraude, eu já estaria tranquilo quanto à vitória. E eles vão tentar,
pois sabem que não chegarão ao poder tão cedo. É pra isso que servem as pesquisas
compradas.
Incrível como esses dementes espalham mentiras e conseguem acusar os seus opositores
daquilo que eles mesmos fazem, e em escala muito maior.
Os organizadores do movimento divulgaram que tinham mais de 3 milhões nas ruas do
centro durante a manifestação.
A PM não divulgou nada.
Tudo maconheiro.
Vou votar nele mesmo. Fazer o quê, né?
Decisão inteligente.
Esta mensagem foi apagada
Mais fácil eu torcer pro Bahia.
Futebol não tem mais espaço neste grupo.
Querem de todas as maneiras implantar o comunismo.
(encaminhada) Um encontro de hackers nos EUA testou as urnas brasileiras e todas
foram invadidas em menos de duas horas.
Independentemente do candidato que ganhar, isso tudo vai ficar na mesma.
De que pesquisa você tá falando? Da mesa de bar?
Só bicha e sapatão nessas imagens, confirmando o que eu falei.
Parece piada, né?
Enquete: qual a melhor solução? Galeão ou Cumbica?
Os golpistas de ontem são os aliados de hoje.
Cara, o De Souza costumava ter o raciocínio mais lógico da nossa Turma. O que
aconteceu com ele?
Lembram da vez em que ele foi com o Oliveira pro matinho?
Vocês só tocam nesse assunto porque eu escolho candidato com essa facilidade toda.
Mensagem de voz (0:42)
Galera, agora é engenharia social pra cima de quem tá indeciso. Aqui em casa, já
convenci a diarista, os pedreiros que estão fazendo reforma no meu banheiro, a
empregada da minha mãe, o porteiro do prédio da minha irmã, tudo dentro da técnica,
sem afrontar, procurando mostrar os pontos positivos do nosso candidato.
Mas mesmo assim acho que vão tentar fazer algo. Tão na rua conversando com
desembargadores.
Não mataram quando tiveram chance...
Mandou bem, Rivera.
Esta mensagem foi apagada
A nossa sorte é que os grandes institutos de pesquisa estão sofrendo com as pesquisas
da internet, muito mais amplas, o que impede que eles mintam demais.
São as mulheres que vão definir quem vai vencer as eleições, elas correspondem a 52%
do eleitorado, são mais classistas do que os homens, votam em bloco.
Tu tá preocupadinho demais, hein, com o que as mulheres acham, com o que deixam de
achar. A gente tá de olho.
Só pra lembrar o que nos une (ou uniu).
Esta mensagem foi apagada
Tu sabe que nas FFAA não existe racismo. Por acaso tu sofreu perseguição? Se ainda
estivesse com a gente, seria promovido como todos, ao mesmo tempo, concorda?
Esta mensagem foi apagada
Esta mensagem foi apagada
Carlos Eduardo Pereira é escritor. Seu primeiro romance, Enquanto os dentes,
é semifinalista do Prêmio Oceanos e finalista do Prêmio São Paulo de Literatura.
Ficção: O filho bastardo
de um democrata cristão
'Zé Maria sempre foi dos últimos da fila'
Santiago Nazarian
30/10/2018 - 09:57

Jovens surfistas de trem Foto: H. John Maier Jr. / Getty Images

Zé Maria sempre foi dos últimos da fila. Apático e tímido, não era popular entre os
colegas, nem alvo preferencial de bullying. Nunca tirava as melhores notas, mas seu
desempenho não chegava a ser sofrível. Na escolha dos times, ficava entre os últimos,
antepenúltimo, depois de um gordo, antes de um manco e de um zarolho. Sua presença
era insignificante, sua existência tão mundana, que se tornava difícil até encontrar
adjetivos para completar um parágrafo.
(Mas, afinal, não é assim a vida de tantos e tantos? De quase todos nós? É que tantos e
tantos e quase nenhum de nós daria um livro, um conto, um personagem coadjuvante
numa crônica de revista.)
Zé Maria, como muitos, era filho único. Criado pela mãe e pela avó. O pai, não
conhecia. “Ele é um homem importante”, dizia a mãe, “e tem outra família.” Zé Maria
era o que chamam de “filho bastardo”, mas nem isso o destacava. Tantos como ele
cresciam sem pai, sem mãe, com duas mães, no Jardim Peri Peri.
Com a mãe se recusando a revelar a identidade do pai, Zé Maria havia muito desistira.
Cresceu procurando-o na televisão, nas revistas. “Um homem importante”, podia ser
artista, ator, apresentador, jogador de futebol. Zé Maria examinava a fisionomia de
Celso Portiolli, Padre Fábio de Melo, Humberto Martins. Um dia, passando pelo
Datena, se perguntou se seu pai não era Alexandre Nardoni, Goleiro Bruno, Marcinho
VP.
O espelho também não trazia respostas, não dizia nada de volta. Sem traços marcantes,
sem marcas de nascença, tinha a pele parda da mãe, e de toda a sua vizinhança. Não
tinha olhos azuis, não tinha língua presa, cabelo nem liso nem crespo; se desmaiasse na
hora do rush, nem sua alma saberia a que corpo retornar.
Assim, às vésperas das eleições (à beira do precipício), Zé Maria estava com 16 anos,
não tinha partido e não havia tirado título. Não acompanhava as discussões nem assistia
aos programas políticos. Mas, enquanto esperava o Pica-Pau, um jingle familiar soou na
TV da sala, e sua prima mais velha comentou:
“Sabe que esse homem esteve uma vez aqui no bairro? Foi no dia daquele atentado, nos
Estados Unidos. Ele passava aqui de carro. Parou no bar em que sua mãe trabalhava
para assistir pela TV...”
“Que dia? Que atentado?”, Zé Maria questionou.
“O 11 de setembro... Faz tempo. Acho que em 2002. Você nem tinha nascido.”
Não. 11 de setembro de 2001. E Zé Maria havia nascido exatamente nove meses depois.
De noite, sozinho no quarto, ele pesquisou o histórico do candidato. “Um homem
importante”, que passara pelo bairro, tivera contato com sua mãe, nem que tenha sido
como freguês do bar. O nome era mais uma coincidência, que não podia ser só
coincidência. E lembrava-se das primeiras palavras que ouvira, pela TV, da boca de seu
pai:
“Sinais! Fortes sinais!”
Acordou no dia seguinte como filho de presidenciável. Mulher de presidente é primeira-
dama — filho de presidente é o quê? Primeiro em algo? Ao menos primogênito ele
poderia ser, pela primeira vez? Não, seu pai já tinha filhos, netos e bisnetos. Ele
permanecia filho bastardo. Mas filho bastardo de um democrata cristão.
Na escola, tentou enfim fazer parte dos debates políticos. Pregou o pai aos moleques de
cabelos coloridos, às meninas bonitas que o assustavam por serem feministas, até aos
que defendiam o “mito”; ninguém o levava a sério. Ele vinha defender seu pai-
candidato, apenas para ser descartado, posto de lado, nem ameaça nem aliado, apenas
desprezível, como sempre havia sido.
De noite, cabisbaixo em casa, sua mãe chegou e bagunçou seu cabelo. “Que tá chocho
assim, Zé Maria? Pisou na goiabada?”
“Mãe, você precisa me dizer, eu tenho direito de saber. Meu pai é um político? Eu fui
concebido no 11 de setembro? Qual é o nome dele? De repente posso pedir um exame
de DNA...”
“Quem foi que te disse que ele é político? Ai, eu jurei não contar...”
“Mãe, eu tenho 16 anos, eu mereço saber.”
A mãe suspirou. Engoliu fundo. As lágrimas escorreram.
“Meu filho... Se quer mesmo saber a verdade... a verdade é que não sei. Não sei o nome
dele. Naquela época eu era jovem, solteira, trabalhava num bar e estava perdida; foi
uma fraquejada... teve sim uma comitiva com alguns políticos, que passou e parou por
aqui. Mas... nunca mais o vi. Nunca fui ligada em política e nunca vi seu pai em cargo
nenhum... eu queria poder dizer que ele já foi prefeito, sim, foi vereador, mas que cargo
mesmo que ele ocupou eu não sei...”
“Meu pai já foi Deputado”, pavoneou-se Zé Maria. “Ele que aprovou a jornada de
trabalho de 44 horas, o aviso prévio de 20 dias”, advogou com conhecimentos parcos
via Wikipédia.
A mãe lhe sorriu, passou-lhe a mão no rosto orgulhosa, como se visse diante de si o
futuro da nação.
“Eu não sabia, meu filho, eu não sabia. Sei que ele é um homem importante, mas não
sei por onde anda. Sei que era um bigodudo baixinho, que falava de um tal de
aerotrem...”

Santiago Nazarian é escritor, tradutor e roteirista. Seu último livro, Neve negra, foi
publicado em 2017 pela Companhia das Letras.
Ficção: Ode à alegria
'A postos, guadá junta o papel higiênico à cara dos santos'
Juliana Leite
30/10/2018 - 09:58

Papel Higiênico Foto: Marka / Getty Images

digamos que, no tumulto da liberdade humana, guadá viaje com sua mesa dobrável e o
pacote de papel higiênico por dois ônibus entre a rua do beco, casa três, e o endereço de
trabalho: centro da cidade, bar do chico. Não apenas bar do chico, como fundos. Não
apenas fundos como, na coordenada cardeal específica, porta dos banheiros. Nesse
espaço diminuto, guadá existe. E não apenas existe como é real.
digamos que sábado.
habituada à lotação dos ônibus, guadá não se detém — digamos que não, na rua que
hoje está apinhada de gente entre o ponto de descida do 393 e o bar do chico. Licença
para passar, ela pede no caminho, misturando-se aos corpos esbravejantes que miram a
praça. Para facilitar a travessia até o outro lado da rua, guadá assume o gesto dos
estandartes na multidão: ergue acima da cabeça a mesa dobrável onde se lê o nome do
refrigerante: Guaraná Poti, lá no alto, lado a lado com Nenhuma a menos, Vem pra luta
amada, Juntas somos gigantes. Em comum com a multidão, guadá tem pressa.
digamos que urgência.
entra no bar meia hora antes do turno, 12 horas às 18 horas. Saúda no caminho os
companheiros que, chão varrido, descem as cadeiras empilhadas no salão. Vai direto aos
fundos e começa a se preparar. Encosta a mesa à parede do cubículo que precede os
sanitários, ficando de frente para as duas portas que se autodistinguem: bengala e leque.
É ali, de frente para os ferrolhos íntimos, que guadá testemunha diariamente as
urgências humanas.
acomoda embaixo da mesa, junto aos pés magros, a sacola em que trouxe 12 rolos de
papel higiênico, embalagem econômica. Antes de tudo, liga o radinho de pilha e puxa a
antena para o alto. Desde que guadá não aumente demais o volume, chico não se
incomoda. Ela sintoniza a estação à espera das músicas que, nos mistérios dos sentidos,
a ajudarão a se distrair da fumaça de óleo que em breve escapará pelo exaustor.
digamos que 80 centímetros.
o mais importante agora, guadá sabe, é começar logo o corte das porções de papel
higiênico. Nos gestos rápidos de um banheiro de bar, guadá precisa estar preparada para
fazer a oferta da porção de papel no momento certo: antes, sempre antes das portas dos
sanitários se fecharem. Contribuição voluntária é o que ela pede em troca, às vezes
sendo atendida, mas nem sempre. A cada 40 metros de rolo, 50 porções de 80
centímetros.
digamos que com ajuda de cenografia.
guadá compreende que, no bar do chico e além, para vender papel é preciso tornar
visível a sua mão, já que é ela, e não qualquer outra, a que acode no momento de
urgência. Por isso, na parede mal pintada atrás de si, guadá prende um pano púrpura
onde a imagem de nossa senhora de guadalupe, a padroeira do seu bairro, presta serviço.
Digamos que guadá não saiba ao certo qual é a causa da santa: se cura enfermo, afasta
mau-olhado ou vence demanda, nada disso importa. O que vale, isso sim, é que o efeito
do roxo vivíssimo do pano, somado à chama violeta que circunda a mulher, capture a
atenção dos olhos que passam rumo ao banheiro. E que, nessa fração de segundo, guadá
esteja preparada para empunhar o papel higiênico, fazendo-se ver.
digamos que com fé.
de dentro da bolsa guadá retira a novidade do dia, o bico extra: santinhos do candidato
que, distribuídos um a um, lhe valerão 1 quilo de alcatra. Promessa para o povo da rua
do beco, uma jura na qual guadá acreditou, e não apenas ela como também seus
vizinhos. Cada um à sua maneira, os vizinhos deveriam espalhar os santos conforme
pedido pelo assessor: número e rosto para cima, pessoal, sempre para cima. Se o pedido
de voto parece abstrato demais para o beco, o quilo de carne é suficientemente concreto.
Digamos que candidato e assessor saibam disso e, antecipando a estratégia, tenham
arranjado no açougue do carlim o estímulo: foto do candidato na porta, alcatra
pendurada na vitrine.
os mil santos, cota de guadá, vieram com ela hoje para a porta dos banheiros. Bastava
que juntasse um deles, talvez dois, a cada porção de papel higiênico: foi o que ela
planejou, digamos que planejou, junto à ideia de um ensopado.
“hora de abrir!”, chico anuncia. A postos, guadá junta o papel higiênico à cara dos
santos. Por uma fresta da porta consegue ver, já entrando no salão, a fumaça roxa que
embala o povo do lado fora. No rádio, aquela canção de que ela gosta — gosta muito,
mesmo sem compreender totalmente o efeito que a letra tem sobre si. Tudo vai mal,
Tudo, Tudo mudou, Não me iludo e contudo, A mesma porta sem trinco, O mesmo teto,
E a mesma lua a furar nosso zinco, Meu amor, Tudo em volta está deserto, Tudo certo,
Tudo certo como dois e dois são cinco. Aquela voz que canta alto e forte e que desperta
em guadalupe, à espera do serviço, a intuição de que hoje será um dia rico.
digamos que alegre.

Juliana Leite é escritora e mestre em literatura comparada pela Uerj. Seu romance de
estreia, Entre as mãos, publicado pela Record, venceu o Prêmio Sesc de Literatura
2018.
Ficção: Golpe 2.0
'dizem os mais otimistas que provavelmente seguiremos na bunda-molice
necrogovernista'
Yasmin Nigri
30/10/2018 - 09:58

Estudantes protestam no Rio de Janeiro Foto: Bettmann / Agência O Globo

dizem os mais otimistas


que provavelmente seguiremos
na bunda-molice necrogovernista
 
os realistas se preparam pro golpe
os pessimistas xingam alarmados
os melancólicos perdem o grito
paralisados pelo medo
até mesmo os black blocs
ao que parece adormeceram
 
(salve rapaziada da Abin)
 
os sensatos sabem
só há uma certeza
o pior já está aí
 
enquanto a esquerda
gasta libido discutindo
se pode ou não pode
se deve ou não deve
se tira ou não tira
turbante da cabeça
 
na vida erótico-política
os fascistas de várzea
marcham em transe
com o ** pro alto
urrando e dançando
enquanto jogam viagra
pros milicos
 
no melhor dos cenários
o bozo não leva
bebo todas
baixo a francófila
brado em brasa
viva o Brizola!
salto nua
no fusca em chamas
sequestro o lula
empalo o cunha
mato o temer
pego em armas
 
engrosso o tom e vou pra treta
o dia cresce horizontal
filhotes da ditadura
regressam às jaulas

Yasmin Nigri é poeta, artista visual e mestre em filosofia. Em 2018 lançou seu primeiro
livro, "Bigornas", pela Editora 34.
Ficção:
Protoneoliberalzinho
'Ciro Gomes está na cama do hospital. Ao lado dele, soro goteja devagar'
Luisa Geisler
30/10/2018 - 09:58

Assentos vazios no Congresso Foto: Andressa Anholete / AF

— Depois de tanto tempo — a médica franze os lábios —, acho que encontramos. —


Ela sustenta a pausa. Ainda mantém os olhos nos papéis. — É um protozoário novo,
mas que… a gente sempre encontra.
— Pelo amor de deus, eu sou um homem estudado, não precisa criar toda essa firula.
Ciro Gomes está na cama do hospital. Ao lado dele, soro goteja devagar. Sua médica
usa jaleco e olha a prancheta à sua frente. Apesar dos passos e conversas do lado de
fora, o quarto está silencioso. Ela revira papéis na prancheta, exames, exames refeitos,
um gráfico, o laudo de raios X.
— Olha, Ciro, não é para se preocupar. Mas é… é um parasita… o
protoneoliberalzinho.
O silêncio invade o quarto. Por isso a médica havia pedido que os familiares se
retirassem. A médica olha para o chão.
— Não é possível — diz Ciro.
— É muito possível.
— Mas de onde vem isso?
— Em geral vem de… promiscuidade.
— Eu sempre fui fiel, que absurdo é esse!
— Escuta, não quero julgar — a médica suspirou. — É uma doença altamente
contagiosa. Gente que… bom, gente que circula muito — ela pausou.
— “Circula muito?”
— Eu... eu não quero ofender, mas é que… quem frequenta ambientes demais,
ambientes… que às vezes proliferam o parasita, aí… se você é muito partidário… aí já
era, Ciro.
Ele faz menção de se levantar da cama. A médica corre até seu lado, a voz dela é cada
vez mais baixa:
— Às vezes é algo de estilo de vida, se você pratica esportes na natureza, que envolvem
árvores, pular de um galho pra outro, sabe?
O rosto do candidato já está vermelho. Ela continua:
— Você é um homem vivido, sabe do que estou falando. Acaba dando com o
protoneoliberalzinho.
— Entendi.
Os dois olham para o chão, como se a resposta de todo o futuro da nação pudesse estar
escrita ali. Não está. Ciro ergue a cabeça, inspirando:
— E foi por isso que tive o problema na próstata? Aquele antes?
— Sim. É claro que é um problema causado por estresse, mas agravou.
— Que estresse? — Ciro berra, erguendo-se na cama. A médica põe as mãos em seus
ombros para acalmá-lo.
— Às vezes a gente fica estressado a ponto de estourar uma veia… e… os
protoneoliberaizinhos avançam… o sistema imunológico fica fragilizado.
Ciro se senta outra vez, olhando a médica.
— Mas tem tratamento?
— O perigo do protoneoliberalzinho é quando ele encontra vírus do F. Ascista. Aí fica
complicado. Um F. Ascista é vazio, sabe? Porque vírus não tem material genético.
— Ele se adapta.
— Muda pra sobreviver, mas é a mesma coisa. Aí o protoneoliberalzinho pode virar um
protonazista. Aí realmente fica complicado. Porque o protonazista é muito mais uma
questão de saúde pública.
— Como assim? Os sintomas ficam piores?
— É. Fuga da mídia, falas teocráticas, medo de confronto apesar de discurso agressivo,
desrespeito ao estado de direito, cloreto de sódio…
— Sal?
— É. Em partes menos gentis do corpo.
— Onde, doutora?
O rosto de Ciro segue vermelho. Ele começa a gritar, questionando desde o modo
administrativo do hospital até as dúvidas a respeito da metafísica planetária, passando
pelo apogeu e perigeu lunares previstos para o mês. A médica confere o WhatsApp e
tenta discutir com um familiar que compartilhou notícias falsas. Ouve berros de
palavras como “coxinhas”, “transposição do São Francisco”, “mortadelas” e “doença de
Chagas”. O segurança do hospital bate à porta, olha para dentro, pausa, espia. Ele
assente com a cabeça e dá passos para trás em silêncio. Após ser deserdada por sua avó
e tias, a médica volta a prestar atenção.
— Porque a gente não pode ignorar a agenda dentro da ideologia, em especial quando se
fala da regulamentação… eu quero respostas, doutora!
— Calma. É só que você não precisa saber de detalhes. Mas é um sintoma detestável,
muito da população acaba com sal no… bom, sal.
Ciro cruza os braços, com a testa franzida desde a área da sobrancelha até onde o cabelo
começa, no meio da cabeça. A cabeça inteira de Ciro Gomes se torna uma única testa
franzida. Ele limpa a garganta.
— Está bem, está bem. E o meu tratamento? Como que… como é que eu saio dessa
bagunça encalacrada?
A médica organiza as folhas em sua prancheta. Ela se senta em uma poltrona ao lado da
cama. Ela sorri.
— Em geral se pode detonar um protoneoliberalzinho com laser. A gente dá uma
espécie de choque.
— Que choque?
— Choque de realidade.

Luisa Geisler venceu duas vezes o Prêmio Sesc de Literatura e está entre os 20
melhores jovens escritores brasileiros segundo a revista Granta. Em 2018, publicou o
romance "De espaços abandonados" pela Alfaguara.
Ficção: A última gralha
'I’m your fan número uno. I love you, Jay / I love you too, Don, but you muito louco'
Lucrecia Zappi
30/10/2018 - 09:59

Torrada queimada Foto: Phil Ashley / Agência O Globo

O presidente norte-americano esperava na pista. Assim que seu colega desembarcou, foi
breve e amigável em duas palavras. Hola, amigo. O brasileiro respondeu com um Hi
altivo, elevando a mãozinha inexperiente aos expatriados tupiniquins. Os meia dúzia,
concluiu o norte-americano ao notar o gesto à distância, provavelmente seriam
indocumentados. Mesmo assim, esses bad hombres não resistiam à oportunidade de ver
com os próprios olhos Mar-a-Lago, um presente do homem para a natureza, ainda que a
desculpa de estar ali fosse a visita do novo imperador do Palácio do Planalto.
Jay, may I call you, Jay?
My name is Jay-ir. Jay-ir.
Jared?
Jay-ir.
Jay. Jay amigo.
O brasileiro perguntou o que significava a palavra. Donald imitou o abre e fecha de um
bico de pato. Aquilo seria uma gralha? Suspirou aliviado, não tinha nem como ser
confundido com um tucano. Foi buscar na mala um pacotinho e colocou-o sobre a mesa.
The book is on the table. For you.
Souvenir? For me?
For you.
Gracias, amigo.
De nada. From Museu Nacional. A little smoky.
Smoky? Mescal?
No, book. The book is on the table.
Carbonized? No problema. No me gusta leer. Carbonized is perfecto.
Sob o sol quente da Flórida, um campo de golfe se abria diante deles. O brasileiro olhou
com inveja. Um dia também transformaria seu país em um campo aparado como aquele.
Jay sentiu que tudo era tostável neste mundo. Enxergou um vasto campo protocolar
repleto de presentinhos simbólicos como as bolinhas de golfe diante deles. Ser chefe de
Estado era bico. E já tinha até apelido. Jay. Quis condecorar-se com três Jay sobre o
peito. Só desejou que gralha fosse pássaro melhor, como a águia. Foi quando sentiu-se
atingido por uma pequena inveja. Don era um bad macho, falava espanhol como um
caubói de fronteira.
Com apetite desbravador, devorou um hambúrguer inspirado na temperatura do dia:
carbonized. Enquanto comiam, falaram de esportes nacionais. Golfe. Futebol. Beisebol.
Vôlei de praia. Apesar do entusiasmo inicial, um desconforto foi tomando conta do
brasileiro. Seria o estômago sensível. Ou o inglês ostensivo. Saudades da pátria. De
repente, Jay deixou escapar que acabaria com o maior esporte brasileiro.
Miss universe?
PeTeca. Plumas e PT, o passado do Brasil. No existing anymore. No memory.
Me gusta. Make Brazil great again.
Ele riu. Donaldy, you’re too much.
You think, amigo? Want to see? Come.
Os dois passaram pela cozinha, desceram escadas e chegaram a outro salão. Nas
paredes, gralhas de todas as espécies, fotos de criancinhas atirando e mulheres do tipo
que mereciam ser estupradas. Chamou-lhe a atenção a quantidade de PeTecas.
What. Is. This.
I’m your fan número uno. I love you, Jay.
I love you too, Don, but you muito louco.
Loco de amor. I am you. You. As you will become me.
Ele pensou no que tinha feito em um só mês no governo. Tinha ordenado um
desmatamento exemplar em todo o país, queimado e cimentado tudo. Sentiu-se confuso,
perguntando-se o que teria vindo primeiro, a laje ou a Amazônia? Amazônia, chutou,
mas já não tinha certeza.
Aquilo era um pesadelo, um jogo perverso da memória. Pensou no passado, mas o que
veio foi o presente carbonizado do Museu Nacional. O objeto era um livro, mas nunca
saberia o que estava escrito ali. Se insistisse em abrir, a coisa viraria farelo. Pensou na
carne bem passada que comera momentos antes.
Devia ser o estômago. Pôs a mão sobre a barriga inchada e reparou que o americano fez
o mesmo. Gestão com gestação. A última coisa que ouviu foi a voz sufocada, Soy tu
fan, Jay. Respirou fundo, parecia que não se lembrava de nada, somente um chamado
vago de identidade norte-americana, nutrida ao polir o coturno enquanto sonhava com
uma invasão militar e outras glórias do venerável Exército brasileiro.
Parou para ouvir o que o outro gralhava, mas estava sem forças. Tentou corrigir o
próprio nome, mas, distante e enfraquecido, Jay-ir soou como eco sobre uma queimada
tão profunda que não deixa cicatriz. Ficou com a boca entreaberta, como se tivesse sido
esfaqueado e nunca mais lhe entrasse o ar.

Lucrecia Zappi nasceu em Buenos Aires e vive em Nova York. Acre, seu último
romance, publicado pela Todavia, é finalista do Prêmio Jabuti.
Ficção: NN
'O primeiro chute que eu levei foi nas canelas. Não foi bem um chute, foi mais uma
rasteira. Caí. Mas tenho reflexos. As mãos chegaram na calçada antes dos dentes'
Natalia Borges Polesso
30/10/2018 - 09:59

O primeiro chute que eu levei foi nas canelas Foto: Agência O Globo

O primeiro chute que eu levei foi nas canelas. Não foi bem um chute, foi mais uma
rasteira. Caí. Mas tenho reflexos. As mãos chegaram na calçada antes dos dentes. Olhei
para trás, esperando encontrar alguém constrangido por um tipo de piada mal executada,
um engano horroroso, o qual nunca esquecerá. Nossa! Uma vez eu derrubei uma mulher
achando que era meu irmão. Poderia ser isso. Sei lá. O cabelo curto, os ombros largos, a
camiseta preta de banda que só o irmão usava e zaz. Desculpa, moça! Achei que fosse o
meu irmão. Me estenderia uma mão rápida e eu até diria “não foi nada, acontece”. Mas
não. Nada disso. Me olhou como quem olha um alvo. E gritou raaaaaaaaah com a língua
dobrada, um erre americano ou de outra língua raaaaah. O ponto de ônibus estava logo
ali, uns 3 metros. As pessoas tinham o pescoço girado na nossa direção, mas ninguém se
mexia. Acompanharam a chegada do ônibus com a cabeça e subiram. Uma leva de
atrasados correu em cardume para o ponto, inútil. Giraram novamente o pescoço em
nossa direção, esperando a próxima condução. Olhei para o homem e encolhi as pernas.
Ele ergueu os dois braços mais ou menos na altura dos ombros, cotovelos para baixo e
punhos para cima, fechou as mãos e disse algo mais articulado dessa vez. Quem é o
messias? Deformei a cara toda, na tentativa de trazer algum sentido para aquela
pergunta doida, e foi aí que o segundo chute veio. Pegou de raspão, porque puxei as
pernas para o lado e levantei tão rápido que tonteei, a visão desestabilizada como num
desses filmes de ação. Na minha frente, o cara; atrás de mim, a escadaria da igreja. Dei
as costas, subi correndo, rezando para que os pés se erguessem na medida certa dos
degraus, para que não houvesse tropeço algum nem cálculo físico mal executado,
rezando também para que a porta da igreja estivesse aberta. E estava. Entrei. Corri pela
lateral e me escondi atrás de uma pilastra. Senti uma pontada aguda na nuca. Não vi
quando ele entrou, só ouvi o grito novamente. Atrás de mim, o Cristo morto. Pensei em
confrontá-lo. O que poderia fazer comigo dentro de uma igreja, afinal? Pensei em sair
de trás da pilastra e perguntar se estava confuso ou se tinha errado de pessoa. Pensei em
pedir ajuda aos fiéis, a deus, ao Cristo ali deitado. Este homem está louco! Está me
perseguindo! Me deu um chute e me derrubou, tive que entrar correndo aqui, pedir
proteção. As cabeças continuaram imóveis. Dei dois passos à frente, para conferir se
eram bonecos ou pessoas reais. Olhos de vidro, umedecidos pela luz, magnetizados ao
Cristo crucificado no altar. Cheguei mais perto, pareciam vivos, pareciam respirar. Mais
perto. Havia uns 15, espalhados pelos bancos. Um deles me olhou e com muita ternura
disse raaaaah. Tinha uma expressão de bondade extrema na face. Toquei seu braço e em
resposta ele disse: ele é o messias. Jesus? Eu perguntei. Raaaah me respondeu em tom
negativo e cheio de compaixão. Não avistei mais o sujeito agressivo, saí pela lateral da
igreja. A rua estava minada de cartazes com a foto de um homem demasiado sorridente.
Banners, painéis, faixas, adesivos em carros. Sua imagem estava em camisetas, blusas e
até em macacõezinhos de bebês. Quando foi que aquilo teria acontecido? Não lembro de
nenhuma transição. Parei na beira da calçada e apertei a cara novamente. Na verdade, eu
não me lembrava de nada muito específico antes da rasteira. Eu sabia onde estava, sabia
que cidade era aquela, mas nada fazia muito sentido. Será que tinha batido a cabeça?
Apalpei o crânio. Foi então que ouvi um psiu. Na porta de um prédio, uma garota
estranhamente familiar fazia um sinal para que eu me aproximasse. Desconfiei. Natalia!
Natalia? Era o meu nome. Andei devagar até perto da porta. Ela me olhou de cima a
baixo. Você fugiu? Eles conseguiram te lavar? Levar? Não, lavar? Conseguiram te pôr
na salinha? Com os vídeos da NN? NN? Nova Narrativa. Fala alguma coisa. Eu tentei
articular as sílabas de modo que alguma explicação mais complexa saísse da minha
boca em forma de palavras e perguntas. Mas eu só consegui dizer raaaah. A garota me
arrastou para dentro do prédio. Temos mais uma. Precisamos reverter. Você sabe que
dia é hoje? Eu sabia. Era domingo. Domingo de eleições. Não pude responder. Deve ter
sido levada à força. A realidade me escapava. Já não sabia se ouvia a voz da garota ou
outra interna, clamorosa. Natalia, você conhece o messias? Messias? Quem é o messias?

Natalia Borges Polesso é escritora e tradutora. "Amora", seu último livro de contos,
publicado pela Não Editora, venceu o Prêmio Jabuti em 2016.
Ficção: Planeta dos
Homens
'E assim seguimos nosso caminho: rumo a Brasília, o centro do poder, onde nosso
profeta revelará a verdade e derrubará o falso Messias. Glória a Deus!'
Samir Machado de Machado
30/10/2018 - 10:00

E aqui completo meu último relato, antes de chegarmos ao nosso destino final.
Foto: Eric VANDEVILLE / Agência O Globo

E aqui completo meu último relato, antes de chegarmos ao nosso destino


final. Por seis meses, nosso grupo tem atravessado em silêncio as terras
infinitas dos Grandes Campos de Soja, rumo ao centro do poder. Vistas
assim, rodeados pela visão da plantação sem fim, tudo parece diferente:
o tempo dobra e o espaço parece infinito, como se no resto do país 700
anos tivessem se passado, enquanto nós mal envelhecemos.

Então nosso líder para em meio às favas e se volta para nós, como que
tomado por súbita revelação:

— Glória a Deus! Digam-me: será que o Homem, essa maravilha do


Universo, este glorioso paradoxo que nos mandou nesta missão, ainda
faz guerra contra seus irmãos? Ainda mantém os filhos de seu vizinho
esfomeados?
Eis que uma trombeta ecoa distante, e nos colocamos em alerta. Daciolo
olha o horizonte e podemos vê-los: estão a cavalo, vindo na nossa
direção, de relhos e espingardas em mãos, com seus chapéus piramidais.
Os homens a cavalo avançam pela plantação de soja. Para despistá-los,
nosso grupo se divide, e corremos.

Alguns são capturados com redes, feito animais. Nosso líder, porém,
resiste: quando é cercado, defende-se das redes com seu cajado, revida,
tem a camisa rasgada, e derruba seus perseguidores aos brados:

— Tire suas patas imundas de mim, seu Illuminati imundo! Glória!

Sob sua liderança, logo conseguimos reverter a situação. Alguns dos


nossos tombaram em batalha, mas agora estamos em posse das armas e
cavalos de nossos perseguidores.

E assim seguimos nosso caminho: rumo a Brasília, o centro do poder,


onde nosso profeta revelará a verdade e derrubará o falso Messias.
Glória a Deus!

PUBLICIDADE

Após o grande cisma de 2018 ter dividido o país, poucos previram o que
viria — exceto ele. Daciolo nos alertou, mas não lhe demos ouvidos
enquanto houve tempo. Nem comunistas nem neonazistas, as grandes
forças ocultas por trás de tudo eram as mesmas desde o início dos
tempos: os Illuminati.
Formados por filósofos e pensadores da Baviera no Iluminismo,
enganam-se aqueles que acreditam terem deixado de existir no século
XIX. Como deixou bem claro em seus escritos o profeta Dan Brown,
eles seguem ativos até hoje, em sua eterna disputa de poderes contra a
maçonaria, os rosa-cruzes, os templários, o Priorado de Sião, a sociedade
teosófica e o Clube do Mickey. Somos todos apenas peões de um grande
tabuleiro, onde decidem nossos destinos manipulando os eventos
mundiais, grandes e pequenos. Mas nosso líder sabe como desmascará-
los, e é por isso que fazemos nossa jornada: de volta ao Congresso, para
expor a farsa do falso Messias e os poderes ocultos que o manipulam.

Enfim chegamos ao nosso destino. O Eixo Monumental está deserto,


como quase tudo em Brasília sempre parece deserto mesmo quando há
gente. Na paisagem alienígena, Daciolo desce do cavalo em frente à
pirâmide do Teatro Nacional, cujo paredão revestido por blocos de
concreto exibe um código de sinais que só ele saberá decifrar. Nós o
aguardamos. Diante daquelas inscrições crípticas, ele extrai uma
revelação súbita, que orienta nosso caminho. Sobe de volta em seu
cavalo e nós o seguimos.

PUBLICIDADE

O Congresso Nacional se descortina à nossa frente, mas há algo de


estranho nele. Há um movimento intenso, um entra e sai de pessoas que
não parecem servidores públicos, congressistas ou seus assessores; são
pessoas carregando quinquilharias de plástico, bugigangas descartáveis,
biscoitos e chocolates, em sacolas azuis onde se lê: “A loja mais amada
do Brasil”.
Quanto tempo ficamos distantes, para que os vendilhões o tivessem
tomado assim, de modo tão completo? O que aconteceu aqui?

Mas Daciolo continua em frente, e acena para que o sigamos pela


avenida, passando o Congresso e chegando enfim à Praça dos Três
Poderes, onde a verdade enfim se descortina.

Há algo novo, algo que não estava ali na última vez que nosso mestre
viera à capital. A estátua da Justiça fora substituída por outra, que agora
se impõe gigantesca à nossa frente — maior que o Cristo Redentor do
Rio ou o Cristo-Luz de Camboriú, imponente e opressiva.

Daciolo desce do cavalo, em choque. E então cai de joelhos ao chão.

— Oh, meu Deus! Todo esse tempo... — Daciolo bate com o punho no
chão, em desespero — vocês finalmente conseguiram. Seus maníacos!
Vocês destruíram tudo, malditos sejam! Malditos sejam todos vocês!

A sua frente ergue-se uma de muitas Estátuas da Liberdade. Financiadas,


claro, com empréstimo do BNDES. Glória a Deus.

PUBLICIDADE

Samir Machado de Machado é escritor, autor de Homens elegantes


(Rocco, 2016) e Tupinilândia (Todavia, 2018).

Ficção: Militante
'Eu não quis falar nada sobre minha preocupação. Vai que nosso candidato não entra? Já
tomei cano assim.'
Marcelo Moutinho
30/10/2018 - 10:00

Pessoas bandeirando na Avenida Passos, esquina com Uruguaiana Foto: Fabiano


Rocha / Agência O Globo
PUBLICIDADE

Seu Botelho disse que amanhã paga. Só que amanhã a eleição já acabou.
Não se preocupa, minha filha, aqui a gente é correto, você não leu o que
está escrito na bandeira? Honestidade em primeiro lugar.

Eu não quis falar nada sobre minha preocupação. Vai que nosso
candidato não entra? Já tomei cano assim. Você passa a semana na rua,
debaixo de um sol de fritar os miolos, e depois não recebe o combinado.
Ah, me desculpa, mas a situação complicou, a grana que ia pintar não
pintou, eleição é fogo. Você sabe como é.

Sei. Por isso é que estou aflita.


Amanhã sem falta. Pode contar, ele insistiu. Seu Botelho, meu cartão vai
vencer, tenho aluguel pra pagar, os lanches da menina, parcelamento do
cartão, conta de luz. Pode confiar. Lê aí na bandeira que está na sua mão.
É nosso compromisso.

Acredito no Seu Botelho porque ele nunca faltou comigo. Antes, eu


trabalhava pra outro chefe, o Doutor Almeida. No fundo, tudo parecido.
Chegar às 8, de café tomado, caminhar até o ponto indicado na
mensagem do WhatsApp e passar o dia agitando a bandeira em direção
aos carros que param no sinal. Às vezes, um motorista toca a buzina,
acena com a mão, fazendo o sinal de joia. Tem outros que xingam, cada
palavra feia que nem consigo repetir. Intervalo de 20 minutos pro
almoço, eles mandam uma quentinha caprichada, depois é bandeira pra
lá e pra cá até escurecer.

Cansativo, viu? Mas não tem nada. Pior é quando não rola eleição.

Ou quando não pagam direitinho a gente. Na última, dois anos atrás, o


Doutor Almeida pediu que a equipe fizesse hora extra. Nosso candidato
está crescendo, a chance de ganhar é real e, se ele ganhar, geral aqui vai
se dar bem. Emprego garantido, vocês têm que pensar no futuro, nas
suas famílias.

PUBLICIDADE

A gente trabalhou por quase 15 horas seguidas, à base de sanduíche e


refresco de laranja. Sem muxoxo ou cara feia. Mas deu ruim. Um fulano
lá acabou vencendo e nosso dinheiro nunca chegou. Não tem papel,
assinatura, contrato, é tudo de boca. Vou cobrar de quem?
Não gosto de comentar esses assuntos com o Seu Botelho porque fico
com medo de ele me mandar embora. Preciso resolver o problema do
cartão, se atrasar complica demais a vida, por causa dos juros. As duas
contas de luz estão atrasadas. Na terceira, fico sem eletricidade. Falta
pouco para a Luana terminar os estudos, mas livro custa dinheiro. E o
Uéslei está desempregado desde março. Até faz uns bicos de pintor, mas
não seguram o mês. Tenho rezado todo dia para que ele consiga uma
colocação, com carteira assinada, vale-refeição e ajuda pro ônibus.
Confio muito em Deus.

A oração é o caminho, sabe? Uma ligação só nossa com Ele. A gente


fala, pode ser até em silêncio, só pensando nas palavras, e lá de cima Ele
ouve. Prefiro desse jeito, sem ficar me mostrando pros outros.

O Seu Botelho repete sempre que o nosso candidato é um homem de


Deus, que até na bandeira está escrito Deus acima de todos. A verdade é
que não costumo olhar para a bandeira, muito menos ler o que está
escrito nela. Já agitei bandeira vermelha, amarela, azul, a de hoje é
verde. Não estou nem aí. Essas palavras bonitas, de dicionário, são só
palavras bonitas. Honestidade, justiça, honradez. Na bandeira do Brasil
tem a frase ordem e progresso. Cadê? Palavra não paga fatura.

PUBLICIDADE

Anteontem o Seu Botelho ficou nervoso, ralhou feio com a Marcinha.


Ela estava exausta e sentou por alguns minutos, debaixo da árvore.
Bandeira enrolada é voto jogado fora, disse o Seu Botelho. Quer
descansar, vai pra casa e deita na cama, que é mais confortável, tem
travesseiro. A Marcinha tinha virado a noite fazendo um extra de babá.
Tomei um susto com o grito do Seu Botelho. Às vezes, quando fico
muito tempo com a bandeira na mão, me esqueço do movimento, da rua,
dos carros, das buzinas, do sol. O braço se agita quase que sem controle.
Imagino um samba do Raça Negra, aquela música do Fábio Júnior, a
metade da laranja, dois amantes, dois irmãos, e de repente é como se
estivesse dançando comigo mesma.

A Marcinha diz que sou doida, diversão é diversão, trabalho é trabalho.


O Seu Botelho não liga, desde que a tarefa dos militantes seja feita como
combinado.

Você vai votar no nosso candidato, né? Eu respondi que sim, claro que
vou.

Se ele ganhar, vai ficar bom pra todo mundo, repetiu o Seu Botelho.

Já votei no vermelho, no amarelo, no azul. Ia ficar bom pra todo mundo,


sempre ia.

PUBLICIDADE

Vota no nosso candidato que seu marido vai conseguir um emprego


bom, vamos acabar com a corrupção, com a violência, melhorar a saúde,
é nosso futuro que está em jogo. O futuro da sua filha. Decorei a fala do
Seu Botelho porque dois anos atrás foi igualzinho. Acho que ele
aprendeu com o Doutor Almeida.

Por via das dúvidas, é melhor mesmo que nosso candidato ganhe.
Recebendo o pagamento, estou mais que satisfeita. Resolvo as
pendências, reforço a despensa e ainda faço uma graça com o Uéslei.
Melhor não arriscar, não. Eleição é fogo. Mas na próxima, graças a
Deus, a Luana já vai ser maior de idade. Pra segurar bandeira também e
dar uma moral nas despesas da casa.

Marcelo Moutinho é escritor e jornalista. Ferrugem, seu último livro de


contos, venceu em 2017 o Prêmio Clarice Lispector, da Biblioteca
Nacional.

Ficção: O esqueleto do
governador Geraldo
Alckmin
'Na parte da cidade aonde não podíamos ir, descobriram o esqueleto do governador
Geraldo Alckmin'
Emilio Fraia
30/10/2018 - 10:00
Reservatório de Jaguari, São Paulo Foto: Paulo Fridman / Getty Images
PUBLICIDADE

Na parte da cidade aonde não podíamos ir, descobriram o esqueleto do


governador Geraldo Alckmin. Isso foi o que ouvimos falar, o que se
espalhou. Nenhum de nós pisava na zona proibida. Éramos muitos, e
todos os dias, se corrêssemos feito almas penadas pela avenida dos
Índios Mortos, chegávamos na hora da distribuição de comida e água.

Depois da guerra que se seguiu ao Dia da Revolução, o chamado Dia da


Revolução, fomos divididos. O satélite de gerenciamento de batalhas
cruza o céu. A guerra se arrasta há anos. Há um sentimento de que está
emperrada, esgotada. Alguns acreditam que a guerra acabou, só
decidiram nos manter ligados a ela através dos informes que não param
de chegar. Outros, os Homens do Esgoto, falam baixo, pelos cantos, que
a guerra na verdade nunca existiu, a não ser para nós, que ficamos presos
aqui.
Na parte proibida, os que encontraram o esqueleto disseram que parecia
ter sido mastigado. Clandestinamente, contrabandearam um osso, um
osso do tornozelo do governador Geraldo Alckmin. Passamos de mão
em mão. Era de um branco tão branco, uma cor que não existia;
tínhamos certeza de que se tornaria escuro em minutos, porque os nossos
dedos tremiam, eram sujos e mansos, como o rio Real, no interior do
Piauí, forte Estado da Nação Soberana — repetir pela manhã e à noite,
com a mão em riste na altura do peito.

O que nos contaram, a informação que nos foi contrabandeada nas


sombras, é que havia um grupo que foi dizimado. Dele, fazia parte o
governador Geraldo Alckmin. Pessoas que outrora tomavam banhos
longuíssimos nas banheiras de louça chinesa de suas casas antigas do
bairro alto. Homens que seguiam as regras. Sorrateiros, não havia nada
fora das regras. Mas, nós ouvimos falar, as regras haviam sido também
inventadas por eles. Quando tudo veio à tona, a raiva cresceu. Foi
canalizada pela Nova Ordem, que prometeu louvar Deus e a Nação
acima de todas as coisas, restabelecer a ordem e, principalmente, atirar
para matar.

PUBLICIDADE

É por isso que estamos aqui agora, de um lado para o outro, pela avenida
dos Índios Mortos, atrás de água e comida. Ainda não entendemos muito
bem. O governador Geraldo Alckmin — dizem os que viram seu
esqueleto —, ele não esteve do nosso lado. Nem quando mais
precisamos. Ficou em silêncio. Ele poderia nos salvar? Enxergaria o rio
da história o governador Geraldo Alckmin? Não sabemos. No fim,
acabou como um montículo de ossos à beira do caminho. Ele e seu
grupo. Acabaremos todos, é verdade. Mas poderia ter sido diferente? Os
Homens do Esgoto, contempladores do fogo e das estrelas, repetem em
surdina: acabaremos todos.

Espirais de tempestades, oceanos brilhantes, caldeiras vulcânicas, fótons,


mésons. Olhamos as nuvens se formando, partículas carregadas.
Examinamos nosso kit de mapas. As emoções mudaram. Nossa visão
está mudando neste exato momento, e projetamos nosso fracasso e
desespero. Será que projetamos nosso desespero de agora na madrugada
infinita?

Esta noite, dormiremos abraçados ao esqueleto do governador Geraldo


Alckmin. Nos sonhos, receberemos sua alma. Ela é doce e vem trazer a
notícia de que na América Latina mais um general maquina um golpe.
Quando acordarmos, um de nós tomará nas mãos uma pedra e com ela
quebrará o osso do tornozelo do governador Geraldo Alckmin. O osso
será espatifado. Ficará apenas o pó branco grudado na terra suja.
Estávamos em busca de comida, vamos dizer. Dentro do osso, pode
haver alguma coisa, afinal. Água, talvez. Mas não haverá nada.

PUBLICIDADE

Viramos as chaves para a direita. Fazemos a contagem regressiva. No


alto-falante, uma voz diz: Agora vocês estão em modo de disparo.
Ficamos esperando. Nenhuma outra ordem é dada. Acabamos cansados.
Sob a pele da treva, nada cresce, dizem as vozes sorrateiras, todas elas,
esta noite, penduradas no esqueleto do governador Geraldo Alckmin.

Emilio Fraia é escritor e editor, autor de Sebastopol, publicado pela


Alfaguara em 2018.
Ficção: Fábula cabulosa
'A discussão cresceu, foi puxada de cabelo e pontapé para todo lado.'
Henrique Rodrigues
30/10/2018 - 10:01
Dança das cadeiras Foto: Isaias Martinez Jr / EyeEm
PUBLICIDADE

Aconteceu uma vez. Mas não era a primeira vez, e sim a 33 desde que o
espaço havia se transformado em coisa pública — antes, imperavam os
reis, num imperativo nem sempre categórico. Porque de rei a rês muda
só uma letrinha, mas na prática todo mundo já sabia que a diferença era
bem maior, como sempre. Mesmo porque, ao desembarcarem aqui,
conforme relatou Pero Vaz, chamou atenção a rês púbica das vergonhas
saradinhas de que eram providas as habitantes originais. Mas isso são
outros 500.

Como dizia, aconteceu uma vez, e foi justamente na escola pública, onde
cabia todo mundo de todos os tipos, tamanhos, cores, credos e tudo o
mais. Inclusive pobres e ricos — mas estes só marcaram presença porque
isto aqui é uma fábula e a gente dá aquela piscadinha fingindo que tá
tudo certo.
Sem ter muito mais o que fazer na hora do recreio e diante dos parcos
recursos do pátio, a gurizada decidiu brincar de dança das cadeiras.
Escondidos dos inspetores, que não saíam do WhatsApp e mal
prestavam atenção ao caos pueril, os moleques reuniram umas dez
cadeiras trazidas das salas, fizeram um círculo e começaram.

Alguns logo se cansaram e caíram fora, mas lá restavam Dacinho,


Cirinho, Dadinho, Jairzinho, Gerinho, Bolinho, Riquinho e Marinha
girando em torno do círculo, sempre com um lugar a menos do que gente
para sentar, que nem a vida.

Acontece que todos davam um jeito de se sentar, nem que fosse a meia-
nádega, e voltavam para a ciranda. Em dado momento, começou a
bagunça, porque criança gosta mesmo é de questionar o sistema e
reinventar a coisa toda. Descontente com o rumo da roda, Gerinho foi o
primeiro a reclamar:

— Amigos, já estamos há um tempão girando em sentido anti-horário e


não está dando certo. Não seria hora de inverter para o outro lado e rodar
para a direita?

PUBLICIDADE

No que Bolinho respondeu de imediato:

— Nada disso, camarada. Da última vez que você veio com essa a gente
se lascou...
— Isso porque você chegou invadindo! — bradou Riquinho, lá atrás,
tentando argumentar que tinha razão porque sempre fora chamado pra
colocar ordem e gerar diversão vááárias vezes.

— Eu também já brinquei um monte, glória a Deus! — se aprumou


Dacinho, quase começando a girar em torno de si.

Olhando a situação com frieza e atitude, Cirinho tentou trazer equilíbrio


à discussão:

— Vamos voltar, galera, pois eu me preparei para isto tudo aqui, estudei
este tipo de brincadeira e...

— ...E eu também! — disse Dadinho, depois de muito hesitar em falar


alguma coisa. — Minha proposta é que a gente...

Jairzinho interrompeu bem valentão, chutando uma das cadeiras:

— Sua é o caramba. Se o seu amiguinho mais velho não estivesse


suspenso você nem seria convidado aqui. E digo mais, vamos mudar o
recreio todo aqui. Nada de passa anel, essas coisas. Vamos brincar só de
paredão!

Ao ver que aquele monte de menino não chegava a um consenso,


Marinha tentou conciliar:
— Meus amigos, vocês não têm vergonha dessa confusão toda? Vamos
girar pros dois lados ao mesmo tempo.

PUBLICIDADE

E não parou mais aquela balbúrdia. Em pouco tempo toda a molecada do


pátio se juntou e se dividiu em dois grupos. A discussão cresceu, foi
puxada de cabelo e pontapé para todo lado. E no fim as cadeiras ficaram
jogadas e ninguém mais se lembrava do motivo daquilo tudo. Até que
tocou o sinal e todo mundo teve que ir embora.

MORAL: VEJA BEM, NEM SEMPRE A ESQUERDA DE QUEM VAI


É A DIREITA DE QUEM VEM.

Henrique Rodrigues é escritor. Autor de O próximo da fila, publicado


pela Record em 2015, é doutor em literatura pela PUC-Rio.

Ficção: Fake
iluminewsmo
'é preciso sair do armário já que dentro ou fora dele só a gente continua em perigo'
Adelaide Ivánova
30/10/2018 - 10:01
a glorificação da neutralidade Foto: Yevgen Romanenko / Agência O Globo
PUBLICIDADE

a glorificação da neutralidade

o achar que o centro é a saída

manteve petralhas nas suas bolhas

e bolsominions nas suas tocas

isentões não estão a salvo

golpistas não estão a salvo

é preciso sair do armário


já que dentro ou fora dele

só a gente continua em perigo

as gay as índia as preta as mulé as trans as nordestina

enfim, nós, a maioria numérica

a quem alguns têm a ousadia de chamar de “minoria”

ou de “degenerados”

meu povo, minha pólvora:

é preciso mais do que nunca sair do armário

político: ser antipartido não é ser

apartidário

ficar em cima do muro parece seguro

mas olhando daqui de baixo


(de onde nos esmagam)

quem tá aí em cima parece o alvo mais fácil

é preciso, aliás, derrubar todos os muros

e sair do zap e voltar à vida

nunca foi tão necessário

não conte mais com minha cara

para tanta tapa

é preciso dizer: aqui você não toca

eu não sou o cachorro do seu apito

não caio nessa de proteger os valores

da cultura ocidental

de república de curitiba
o que você quer é manter

branca sua supremacia

eu não sou apartidária

tomar partido é meu partido

não me venha com seu ódio

encriptado em fake iluminewsmo

em formato de meme áudio vídeo

sair do armário

não é dever das bichas

é dever de todo ser humano humano

de quem não suporta perder moa


marielle margarida marighella

é dever de quem acredita

que todo mundo

PUBLICIDADE

inclusive o oponente

tem o direito de estar vivo

sair do armário

não é dever dos viados

socialista de iphone: uni-vos!

amantes de marx jacobs: organizai-vos!

sairemos do armário e do zap

não perderemos nenhuma chance

nem de pinta e nem de diálogo


Adelaide Ivánova é poeta e ativista, e vive na Alemanha. O martelo, seu
primeiro livro, venceu o Prêmio Rio de Literatura em 2018.

Ficção: O assassinato do
presidente
'A imagem nunca mais vai sair da sua cabeça'
Tiago Ferro
30/10/2018 - 10:01
John F Kennedy é assassinado em Dallas Foto: Rolls Press/Popperfoto / Getty
PUBLICIDADE

A imagem nunca mais vai sair da sua cabeça. Você acorda no meio da
noite e o pesadelo começa. É tudo em preto e branco. Sempre. O
conversível desfilando lentamente na avenida de Dallas, os acenos de
praxe, famílias nas calçadas, policiais uniformizados e agentes do FBI
muito parecidos com o Clint Eastwood no filme em que ele precisa
evitar que o Malkovich mate o presidente interpretado por um péssimo
ator. E então o tiro. O disparo não tem som. Você fecha os olhos, mas a
cor não vem. Você não consegue ver o amarelo dos cabelos loiros
misturado aos diversos tons de vermelho até chegar ao marrom do
sangue já pegajoso que encharca a massa encefálica deformada pela
bala. O Godard costumava dizer que não se trata de sangue, mas sim de
vermelho. Você se esforça para não vomitar na sua mulher dormindo ao
seu lado quando imagina os homens fardados rindo depois do ritual de
fuzilamento coletivo do presidente Allende. Todos fizeram questão de
dar ao menos um tiro no chileno naquele 11 de setembro. Você nunca
mais conseguiu fazer sexo depois que passou a construir no ecrã da sua
mente as cenas daqueles filhos da puta voltando excitados para casa com
sangue respingado nos uniformes e babando como lobos atrás das
vaginas secas de suas esposas que não podiam imaginar há sete anos
quando disseram sim em uma igrejinha de merda da periferia de
Santiago que seriam estupradas naquela noite por seus maridos violentos
cheirando a bebida barata como se fossem uma espécie de troféu em
homenagem à covardia. Você vai ao banheiro e se encara no espelho. No
filme hollywoodiano, o Kevin Costner defende que foram vários tiros de
diferentes locais. Você finalmente é capaz de ver a expressão de cada um
dos atiradores. Você se irrita quando pensa que são atores. Quem diria
que aquele garoto tremendo num pau de arara em uma estrada nordestina
iria se tornar a projeção dos melhores sonhos e também dos piores
pesadelos dos brasileiros? Dois dias depois do tiro em Dallas, Jack Ruby
matou Lee Oswald para depois morrer na prisão. Na Wikipedia USA,
Oswald é Marine and Marxist e Ruby um Nightclub Owner. Os grandes
mamíferos têm hábitos noturnos. No Congo de Leopoldo o horror era
branco. Hienas destroçam leões e você nunca mais será capaz de
mastigar carne. Gandhi foi baleado e na cena do filme ele diz “Oh, God”.
Você se apoia na pia fria do fim da madrugada e ouve o primeiro ônibus
do dia reduzir a marcha para subir a rua Harmonia. Eles se movem em
grupo e é impossível entender quem elabora os planos. Você passou a
urinar na cama. Mohamed Atta não agiu sozinho. Quando o Spielberg
convidou o Tom Cruise para participar do filme 9/11, o galã da
cientologia não entendeu por que não era possível alterar o roteiro e
salvar os americanos no final. O Che jamais sentiu medo. Ele trepava nas
árvores e preenchia compulsivamente os seus caderninhos. Não, não era
o roteiro de Diários de motocicleta. Você nunca engoliu o Gael no papel
do herói argentino. O Bush estava numa escola infantil sentado em uma
cadeirinha ridícula quando foi informado sobre os ataques. Ficou sem
reação. Você não consegue deixar de pensar que era na verdade um
aluno que depois de 50 anos preso naquela sala jamais conseguiu
aprender a ler. Ele deu um jeito de tirar a família Bin Laden da América.
Muhammad Ali era o Cara. Você nunca suportou as piadas reacionários
no grupo de WhatsApp da família. Você já trocou muitos presentes com
os estupradores da presidente Dilma. Na piscina da ACM, a última
senhora a sair da aula de hidroginástica pela escadinha de três degraus
pariu em 1933 um dos assassinos do Marighella. O filho de um dos
principais economistas brasileiros sonha em ter seu próprio avião e acha
o Chico Buarque um bosta. Você não teve coragem de engolir o verme
da tequila quando passou férias em Acapulco. Você pensa na
adolescente mexicana de uma vila muito pobre que toma pílulas
anticoncepcionais antes de trepar no teto do trem que a levará até o
extremo norte do país porque ela não pode entrar na América carregando
o filho do homem que vai estuprá-la no caminho. Os jovens americanos
gostam de ir para a Disney de Las Vegas pagar por sexo anal com
garotas colegiais fantasiadas de garotas colegiais. Você não sabe se foi
mesmo a ação de um fanático ou interesses texanos no pré-sal. Não, você
nunca mais vai dormir. Você vai ser massacrado, terá cada osso do corpo
quebrado, a pele rasgada, você vai virar um saco disforme e malcheiroso
e nas suas retinas a cena em Dallas vai se repetir para sempre em
looping. Em preto e branco. Você sonha com o sol inclemente da África
antes de Conrad. Um rinoceronte entra no rio para escapar do calor
torturante. Um sol branco e cruel sobre uma terra negra. O Estádio
Nacional do Chile.
E quando finalmente for pendurado no pau de arara, você vai conhecer
de ponta-cabeça os rostos dos homens que assassinaram o presidente
Lula.

FIM

Tiago Ferro é autor do romance O pai da menina morta, publicado pela


Todavia em 2018.

Ficção: Hadaddy issues


'Sexta-feira é dia de maldadde'
Paula Gicovate
30/10/2018 - 10:02
Manifestantes a favor de Fernando Haddad protestam em São Paulo Foto: Victor
Moriyama / Getty Images
PUBLICIDADE

Sexta-feira é dia de maldadde. Comício na Cinelândia, eu pensei em ir


de vermelho, mas, se eu for, ele não vai me ver. Não coloco verde e
amarelo porque nunca mais vesti uma camisa da Seleção Brasileira sem
passar impune. Eu poderia até apanhar por causa disso também, mesmo
lá, e não quero que seja assim que ele me veja pela primeira vez.

Minha analista diz que é projeção porque perdi meu pai muito cedo, e
que ele representa a figura sensata, firme e protetora que eu sempre quis
ter, mas eu culpo mesmo é a fala que é mansa, forte e que sai daquela
boca grossa libanesa que combina tanto com sobrancelha marcada. E
também as mãos, enormes, que quando gesticulam na TV me fazem
imaginar o que não fariam segurando firme meus flancos sussurrando
palavras de democracia nos meus ouvidos.
A primeira vez que o vi foi num domingo no Minhocão, centro de São
Paulo. Ele estava inaugurando uma ciclovia justamente numa das minhas
visitas à cidade. De calça justa, em cima de uma mountain bike verde,
liderando um monte de gente indo de bicicleta logo atrás, sorrindo para
os moradores dos prédios do Minhocão. Foi amor à primeira vista, e
comprovado não apenas pela sinastria amorosa que fiz quando voltei
para o Rio, que confirma seu sol em aquário caindo exatamente na
minha lua no mesmo signo, como pela taróloga que prometeu a chegada
de uma paixão que reacenderia minhas esperanças no amor após a
barbárie do meu último relacionamento.

Mas se antes nossa relação só era proibida pela distância, hoje em dia é
pela família também. Me sinto uma Julieta ao ter que esconder a camisa
com seu rosto no almoço de domingo, ao ouvir minha mãe rebater
qualquer comentário que eu faça sobre ele dizendo que não quer filha
dela metida com socialista enquanto eu tento explicar em vão que o
capitalismo já venceu, o Brasil não virou a Venezuela e meu lance com
ele é amor. Indignados, meus tios falam de corrupção e eu falo que
corrupção também é sonegar imposto da loja que a gente tem aqui em
Copacabana. Meu avô, que acha um absurdo, defende o conceito de
tradição e família mesmo tendo outra família que mora ali no início da
Barra da Tijuca.

PUBLICIDADE

Ainda não conheço esses meus parentes, me pergunto se eles também


têm um fraco por democracia e libaneses de sobrancelha grossa.

Escolho uma camisa branca pra me destacar sem parecer que saí de uma
passeata pró-impeachment e vou pra Cinelândia de metrô porque ainda
não estou 100% na mountain bike. Colo uns adesivos na altura do peito e
no caminho até a Cardeal Arcoverde umas cinco pessoas esbravejam
com dedos na minha cara. Aperto o passo e o fone com o áudio de um
vídeo onde, com um violão no colo, ele olha para a câmera e canta
aquela música do Bob Marley, “Don’t worry about a thing ‘cause every
little thing is gonna be all right”. Tenho certeza que é amor, tenho
certeza que é pra mim.

Paula Gicovate é escritora e roteirista. Seu primeiro romance, "Este é


um livro sobre amor", está sendo adaptado para o cinema.

Ficção: C××××××
#desenhospelademocracia
Cynthia Bonacossa
30/10/2018 - 10:03
#desenhospelademocracia Foto: Agência O Globo
PUBLICIDADE
DESENHOS PELA DEMOCRACIA DE CYNTHIA B

Cynthia Bonacossa é cartunista. Em 2017, lançou pela editora Veneta


seu primeiro livro, Estudante de medicina, produzido em uma residência
artística na Maison des Auteurs.
Ficção: As tribulações
dos servos da luz
'o Senhor Presidente da República pareceu declamar um poema num idioma
desconhecido'
Gustavo Pacheco
30/10/2018 - 10:03

O presidente Michel Temer Foto: Evaristo Sá / AFP


PUBLICIDADE

Aos dezoito dias do mês de outubro do Ano de 2018, na cidade de


Brasília/DF, no cartório da 4ª Delegacia de Polícia Civil, onde presente
se achava o Dr. Arquimedes Junqueira, Delegado de Polícia, comigo
escrivão de seu cargo, ao final assinado, aí, compareceu Rafael Castral,
brasileiro, casado, escritor e pastor da Congregação Evangélica Deus Até
Debaixo D’Água, portador da Carteira de Identidade nº XXX e do CPF
nº XXX, nascido em seis de maio de 1970 na cidade de Curitiba/PR e
domiciliado nesta cidade à XXX, que, compromissado e advertido na
forma da lei, prometeu dizer a verdade do que soubesse e lhe fosse
perguntado, sabendo ler e escrever, inquirido pela autoridade, respondeu:
QUE é o autor da conhecida tetralogia de livros de literatura gospel-
fantástica “As Tribulações dos Servos da Luz”, que narra uma
conspiração satanista internacional para dominar o governo brasileiro,
etapa fundamental do plano de conquista mundial de poder que
antecederá a chegada do Anticristo; QUE a referida tetralogia é
livremente inspirada em informações confidenciais coletadas ao longo
dos oito anos em que o depoente integrou a organização satanista
Fraternidade Universal Satânica, com sede em San Francisco/EUA;
QUE graças ao amor de Jesus Cristo conseguiu, a muito custo, se libertar
das garras de Satanás e ser lavado e remido no sangue de Nosso Senhor
em 2009, ano em que que ingressou na Congregação Evangélica Deus
Até Debaixo D’Água; QUE por obra e graça do Espírito Santo recebeu a
chama da inspiração divina que guiou seu pensamento e suas mãos para
escrever o primeiro livro da tetralogia, “Tabernáculo das Trevas”,
publicado em 2010; QUE o narrador do referido livro, chamado Rafael,
é filho de um agente satanista infiltrado nos altos círculos de poder de
Brasília, chamado Miguel Tomé, que na obra em questão assume o cargo
de Vice-Presidente do Brasil; QUE o fato do nome do narrador ser o
mesmo do depoente é uma mera coincidência e que o depoente só
percebeu isso quando o livro já estava na gráfica; QUE não sabe explicar
de onde veio o nome do personagem Miguel Tomé, e que os mistérios da
criação artística, assim como os mistérios do Senhor, são insondáveis;
QUE não procedem de forma alguma os rumores de que o depoente é
filho do Senhor Presidente da República, apesar das inegáveis
semelhanças físicas entre ambos; QUE nunca teve qualquer contato com
o Senhor Presidente da República, nunca o encontrou pessoalmente, não
tem opinião formada a respeito de suas posições políticas, mas
considera-o um senhor elegante, quase diria bonito; QUE a publicação
dos três primeiros livros da tetralogia não trouxe ao depoente nenhum
contratempo, exceto o assédio dos fãs; QUE seus problemas começaram
a partir da publicação do quarto e último volume da tetralogia, “O
Ungido de Astaroth”, na semana anterior ao primeiro turno da eleição
presidencial; QUE o referido livro introduz uma reviravolta na trama da
tetralogia ao revelar que o personagem Miguel Tomé na verdade era
apenas o auxiliar de um personagem secundário que se revela o chefe
supremo dos satanistas, o ex-militar Josias Taumaturgo, que usando dos
mais variados ardis e mentiras acaba chegando à presidência da
república; QUE desde a publicação do referido livro o depoente tem sido
hostilizado todas as vezes em que sai de casa, inclusive quando vai aos
cultos na igreja; QUE tem recebido numerosas mensagens ameaçadoras,
pelos mais diferentes meios eletrônicos, e que teme por sua integridade
física e psicológica; QUE na noite de ontem recebeu um telefonema no
qual julgou reconhecer a voz do Senhor Presidente da República, que
pareceu declamar um poema num idioma desconhecido pelo depoente e
depois desligou em meio a assustadoras gargalhadas; e mais não disse e
nem lhe foi perguntado. Mandou a autoridade policial que se encerrasse
o presente termo que, lido e achado conforme, vai assinado pelo
depoente e por mim, Dirceu Mamede dos Reis, escrivão, que o lavrei.

Gustavo Pacheco é escritor, diplomata e colunista de ÉPOCA. Em


2018, lançou Alguns humanos, pela editora Tinta-da-china Brasil.
Ficção: Mão Dupla
'se eu cair na Rede sou peixe ou cobaia?'
Bell Puã
30/10/2018 - 10:04
'se eu cair na Rede sou peixe ou cobaia?' Foto: Jeremy Harbeck / Agência O Globo
PUBLICIDADE

é como se a via

que corta minha fala

fosse justamente

a mais engarrafada

discurso ambientalista

ou apoio aos canalhas?

se eu cair na Rede
sou peixe ou cobaia?

nossa pele negra

é semelhança

......................................

necessária?

suficiente?

ou caio na rede

ou nado contra

a corrente

Bell Puã é historiadora e poeta slammer recifense. Vencedora do


campeonato nacional de poesia falada Slam BR 2017 e convidada da
programação principal da Flip 2018, integra o coletivo Slam das
Minas-PE.

Ficção: O voto secreto


'Desculpe este desabafo em termos tão grosseiros. Ando muito estressado'
Alexandre Vidal Porto
30/10/2018 - 10:04

Itamaraty Foto: Jean-Erick PASQUIER / Getty Images


PUBLICIDADE

Trabalho num ministério em Brasília. Sou funcionário concursado.


Minha categoria é agente administrativo. Ocupo cargo de nível médio,
embora seja formado em ciências contábeis. Não é minha área de
atuação, nem o diploma tem efeito sobre meu salário, mas serve para o
pessoal daqui saber que eu tenho nível superior.

Passei no concurso faz 19 anos. Sempre trabalhei na mesma


superintendência. No começo, trabalhava na expedição. Foi o Dr. Mário
que me trouxe para a chefia.

A gente se conheceu quando ele estava entrando no ministério. Me pediu


umas coisas de trabalho. Acho que gostou de mim. Quando virou chefão,
me deu uma função gratificada. Foi o primeiro chefe que reconheceu
meu valor.
Ele tem 34 anos. Dezoito a menos que eu. Foi nomeado porque era
amigo de um petista poderoso. Dizem que eram até mais que amigos,
que rolava uma transa entre eles.

A assessora, Fernanda, também veio com ele. São da mesma carreira,


mas ela entrou no ministério depois. Acho ela uma chata arrogante. Já
quis falar alto comigo. Tem de ter muita paciência para aguentar. Odeio
mulher mandona.

Acabo funcionando como secretário para os dois. Minha mesa fica na


sala de espera deles. Faço as agendas, recebo pessoas, tomo conta dos
arquivos. Até café, se precisar, eu sirvo.

Tirando as arrogâncias da Fernanda, nunca tive do que reclamar no


trabalho. Minha relação com o chefe era boa. A coisa começou a pegar
quando o primeiro turno polarizou. Eu vi que ele mudou a foto de perfil
e passou a postar com #elenão e #haddadsim.

PUBLICIDADE

Um pouco antes das eleições, encontrei-o no elevador chegando ao


ministério. Ele perguntou na lata: “Em quem você vota, Carlos Igor?”. A
consulta me pegou de surpresa, mas, antes que eu pudesse responder, ele
continuou: “Só não vai me votar no Bolsonaro, hein, Carlos Igor…”.

Fiquei incomodado com o tom dele, mas tive presença de espírito. “Voto
no Alvaro Dias. Um primo do Paraná trabalha para ele, e ele sempre foi
bom com a minha família. Meu voto é dele.” Minha resposta o
surpreendeu.
Agora, quer saber de uma coisa? Achei a pergunta dele indiscreta pra
cacete.

Foi naquele momento que meu sentimento negativo por ele nasceu.

Ele tinha dado uma acalmada com papo de política. Depois do primeiro
turno, porém, as eleições voltaram a ser assunto constante nas conversas
dele com a Fernanda.

Quando iam despachar a papelada do dia, conversavam longamente. O


diretor de Recursos Humanos, Dr. Otávio, quase sempre se juntava a
eles. Ficavam batendo papo até que algum celular tocasse ou alguma
obrigação surgisse.

Eles chamam essas reuniões diárias de “recreio”. Nunca se preocuparam


em fechar a porta da sala. Pela animação das conversas e pelo volume
das vozes, era impossível não ouvir o que falavam.

PUBLICIDADE

No “recreio” de anteontem, ouvi claramente a Fernanda mencionar meu


nome ao Dr. Otávio. “Acho que o Carlos Igor é eleitor do Bolsonaro. Ele
disse para o Mário que ia votar no Alvaro Dias, mas acho que votou no
Bolsonaro no primeiro turno e vai votar de novo no segundo.” O chefe
completou: “Também acho que votou no Bolsonaro. Não dá para confiar
nesse pessoal de nível médio”.
Como é que você se sente quando seu chefe diz que não dá para confiar
em você? Dela, eu nunca esperei nada. Mas achava que pelo menos ele
me considerava.

Ontem, ele me viu no bandejão e me chamou para sentar com eles.


Estavam também o Dr. Otávio e mais dois diretores que eu não conhecia.
Gostei do gesto. Eu era o único agente administrativo da mesa.
Considerei uma deferência.

A conversa foi bem até criticarem o Dr. Couto. “Sabe o consultor


jurídico? Bolsonarizou total. O carro dele está coberto de adesivos.”

Foi aí que Dr. Mário disse, na frente de todos, que eu ia votar no


Bolsonaro. “A gente tem de convencer nosso Carlos Igor a não votar no
Bolsonaro.” Senti calor no rosto e uma desconexão imediata. “Cada
macaco no seu galho”, lembrei das palavras de minha mãe.

PUBLICIDADE

“Meu voto é secreto”, retruquei, desconcertado. Não sabia em quem eu


iria votar, “só em quem não votaria”, completei. Tentando reduzir o mal-
estar criado, Dr. Mário disse em tom grave, como se falasse em nome do
grupo: “Olha lá, Carlos Igor, veja como vai votar, não vai fazer
besteira…”.

O cara acha que é legal, mas te trata como um imbecil, te humilha. Vá se


danar! O problema desse pessoal é que eles vivem no mundo da teoria.
Não sou intelectual, mas não sou idiota. Sei que, se bandido te pega, te
queima. Não dá pra ser bonzinho. Tem de matar mesmo. A verdade é
que Bolsonaro fala tudo o que a gente pensa, mas não tinha espaço para
dizer. Chega de hipocrisia.

E vem um babaca desses deitar regra em cima de mim? O problema é


que agora pode tudo. Um viadinho de 34 anos nomeado superintendente
de um ministério. Onde já se viu? Dá nisso.

Agora quer me diminuir na frente dos outros? Com ares de superioridade


moral? Só não mandei tomar no rabo porque ele ia é gostar.

Desculpe este desabafo em termos tão grosseiros. Ando muito


estressado. É difícil fazer parte da minoria. Mas tem de se impor, certo?
Do contrário, te amassam.

Alexandre Vidal Porto é escritor e diplomata. Cloro, seu próximo


romance, será publicado em novembro pela Companhia das Letras.
Ficção: Psicologia das
massas e análise do eu
'Quando os amigos riam de sua desinformação, ele se defendia dizendo que ninguém
entendia mais de política do que os psicanalistas'
Ruan de Sousa Gabriel
30/10/2018 - 10:04
o lago baikal congelado Foto: WanRu Chen / Agência O Globo
PUBLICIDADE

“oi, dr. iceberg. vou me atrasar um pouco por causa do bolsonaro, ok?

dr. Rosemberg*

desculpa, foi o corretor haha”

Mais uma metáfora do Álvaro, pensou o dr. Rosemberg. O rapaz era


desses que descrevem sua tediosa vida íntima como um romance de
aventura, um neurótico típico. “Bolsonaro” eram um dos apelidos que
ele inventava para seus inimigos? Não importava. O dr. Rosemberg tinha
ganhado alguns minutos para descansar e ordenar as ideias antes da
próxima consulta, mas uma mensagem da filha interrompeu seus
pensamentos:

“Pai, viu que o Bolsonaro tomou uma facada?!!!!!


Tô com medo”

Em todos os grupos de WhatsApp havia links: “Bolsonaro esfaqueado


em Minas Gerais”, “Candidato sofre atentado”, “Presidenciáveis se
solidarizam com Bolsonaro”. Era sempre assim: o mundo pegava fogo lá
fora e o dr. Rosemberg permanecia alheio a tudo. As notícias
demoravam a chegar àquele consultório abafado, onde ele passava os
dias ouvindo rapazes mimados reclamar de mães superprotetoras. Ele,
que chegara a perder a voz de tanto gritar em assembleias na faculdade
de medicina, agora era o último a saber das notícias. Só ficou sabendo do
impeachment quando fechou o consultório, perto das 9 da noite.
Nenhuma das madames que atendera ao longo do dia teve a decência de
atualizá-lo.

Quando os amigos riam de sua desinformação, ele se defendia dizendo


que ninguém entendia mais de política do que os psicanalistas, porque
passam o dia todo ouvindo as angústias dos brasileiros. Ali, à beira do
divã, vislumbravam o prolongamento do pessoal ao político. Eram
confidentes dos sofrimentos públicos e psíquicos da nação. Ele não
confessava aos amigos, mas, na verdade, exagerava: o que mais ouvia
eram desilusões amorosas e planos de mudança para Portugal. E soluços.

PUBLICIDADE

“Desculpa o atraso, doutor”, Álvaro disse antes de se jogar no divã com


um suspiro. “Essa semana foi difícil... eu tava no jornal agora à tarde e aí
veio essa notícia da facada no Bolsonaro. Começou a chegar um monte
de e-mails da chefia com pedidos, tipo ‘sobe uma nota sobre a facada’,
‘ouve uns analistas políticos sobre o impacto disso na eleição’, ‘tenta
falar com alguém do mercado financeiro’. Eu já tava atrasado pra
terapia... subi umas notas correndo e saí antes que me pedissem mais
coisa. No caminho pra cá, recebi um monte de mensagens sobre o
Bolsonaro, vídeos da facada e tal. Será que agora ele ganha? Tem gente
que fala em ir pro Uruguai. Eu não vou, não. Primeiro porque não tenho
dinheiro. E porque fiquei pensando: será que a vida vai piorar tanto
assim se Bolsonaro for presidente? Minha vida já é ruim. Meu irmão vai
votar no Ciro Gomes porque acha que ele tem mais chance de vencer o
Bolsonaro. Minha mãe não liga pra política. Ela fala: ‘Não sei por que
vocês estão preocupados, vocês não vão mudar o Brasil’. Talvez ela
tenha razão. Fico pensando se eu não sou assim, meio desanimado, meio
castrado, sei lá, porque a minha mãe fala essas coisas, que não adianta
me preocupar porque eu não mudo nada. Se eu não sou capaz de mudar
nada, eu sou o quê? Impotente, né? Desde criança nada que eu faço é
suficiente pra minha mãe. Será que eu sou mesmo insuficiente? Às vezes
eu desconfio que as mulheres sabem disso, doutor. Que eu sou um
homem insuficiente. Incompleto, fraco, sem nada a oferecer. Quem vai
querer um homem que não é capaz de nada? A Virgínia nem responde
mais minhas mensagens. E a Leila, que eu achava que tava dando em
cima de mim, até selfie de pijama ela me mandou, descobri que tem
namorado! Não sei, doutor. Tô cansado e, além do mais...”

PUBLICIDADE

Era a mesma ladainha toda semana: minha mãe isso, minha mãe aquilo...
esse rapaz precisava ocupar a cabeça com alguma coisa, parar de pensar
besteira. E o dr. Rosemberg precisava descobrir se Bolsonaro estava vivo
ou morto, se ganharia as eleições, se precisaria mandar os filhos para
fora do Brasil.
Acomodado numa poltrona atrás do divã onde Álvaro se distraía com as
próprias reclamações, fora do campo de visão do paciente, Rosemberg
sacou o celular. Leu que Bolsonaro estava em estado grave. A
candidatura saía fortalecida do atentado, afirmava um cientista político.
O dr. Rosemberg pensou que talvez a irmã pudesse acolher seus filhos
em Israel, pelo menos até as coisas se acalmarem no Brasil. Abriu o
WhatsApp. Suas mãos suavam.

O celular caiu no chão.

“Tudo bem aí, doutor?”

Álvaro se ajeitou no divã e ameaçou olhar para trás. Ele precisava falar
alguma coisa rápido. Se Álvaro soubesse que o doutor checava as
notícias enquanto se lamentava, seria um golpe fatal em seu narcisismo.
Seriam pelo menos mais quatro ou cinco meses insuportáveis de terapia.
O dr. Rosemberg limpou a garganta, ajeitou-se na poltrona e perguntou
com voz mansa:

“E como você fica quando ouve que não é capaz de mudar o Brasil?”

PUBLICIDADE

Álvaro desembestou a falar, recordou um episódio de infância, e o dr.


Rosemberg mandou uma mensagem para a esposa:

“Vc sabe cadê meu passaporte?”


Ruan de Sousa Gabriel é repórter de ÉPOCA e O Globo. Escreve sobre
livros e mercado editorial.

Ficção: As lágrimas e o
sangue
'Algum dia ar fresco resolveu alguma coisa? Parecia que havia um peso me dobrando
diante de tudo.'
Mateus Baldi
30/10/2018 - 10:05
Algum dia ar fresco resolveu alguma coisa? Foto: Agência O Globo
PUBLICIDADE

Sergio, querido, desculpe atrapalhar suas férias, mas aconteceu um


negócio tão brutal que precisei pegar o laptop e te escrever este texto.
Espero que não se importe.

Anos atrás, quando não era um homem em coma, meu pai passava os
sábados jogando videogame com Victor. Bastava perder uma partida
para que ele se levantasse do sofá dizendo — Meu filho, presta atenção:
no fim, a gente sempre se ferra.

Digo isso porque hoje eu tinha saído do CTI no fim da tarde, perto de
acabar o horário de visitas, e precisava encontrar Paula para comer no
japonês. Ela ia me buscar depois da gravação, de modo que decidi fazer
hora aqui no hospital. Caminhei pelo jardinzinho, comi um pão de
queijo, li as revistas, trabalhei na releitura dos meus escritos. Teria sido
uma ruptura simples com esse cotidiano estéril de casa-visitas-casa: meu
pai no CTI após capotar no Aterro e eu comendo sushi com minha amiga
de infância. Até que veio a mulher com o rosto ensanguentado, aquele
fio vermelho manchando a camisa e formando poças na pele. Eu estava
pegando café na máquina quando ouvi os gritos. A mulher e dois caras.
Só ela chorava. As lágrimas e o sangue. Não sei por quê, mas escrevi a
Paula dizendo que talvez fosse demorar um bocado. Ela sugeriu
deixarmos o encontro para outro dia — Tô presa na Barra e preciso
decorar muitas cenas. Agradeci aos céus, devolvi dois emojis e fui para o
pátio respirar um pouco de ar limpo.

A mulher e os dois homens deixaram a emergência coisa de uma hora


depois. Ela tinha um curativo enorme no supercílio e um deles falava
sobre irem à polícia. Esperei e perguntei à recepcionista — O que
aconteceu?

PUBLICIDADE

— Homofobia.

Pedi detalhes.

— Só sei o que as meninas da enfermaria falam, e elas só falaram isso.


Desculpa.

Andei de um lado para outro, aflita. Voltei ao pátio. Respirei aquele


verde todo na esperança de que ar fresco resolvesse alguma coisa.
Algum dia ar fresco resolveu alguma coisa? Parecia que havia um peso
me dobrando diante de tudo.
— Tem fogo?

Virei. Na minha frente, uma enfermeira com um maço de cigarros na


mão. Sacudi a cabeça.

— Não tenho. Escuta, você estava lá dentro quando aquela mulher


entrou?

— Que mulher?

— A do sangue.

— Tava.

— E foi homofobia mesmo?

— Festa de rico, menina, não sabe como é? Ficaram se pegando, a dona


com outra dona, as duas bichas também, uns não gostaram e aí já viu.
Deus me livre.

Irritada, ela meteu o maço no bolso e foi caçar isqueiro noutro lugar.

Sergio, querido, você lembra quando eu te disse da primeira vez que


beijei uma mulher e gostei, a evangélica da Tijuca, e você riu e falou —
Todo mundo pensa que é livre até se descobrir prisioneiro? Eu tô
apavorada. Não posso mais sair na rua? Minha mãe tem medo de me
abraçar num restaurante. Meu pai achava o tempo todo que iam tomar a
gente por namorados, então melhor não demonstrar afeto. E agora essa
mulher que beijou uma mulher. Ou beijou os amigos e outra mulher. Ou
fez qualquer coisa que só dizia respeito a ela e apanhou.

PUBLICIDADE

Não é patético, tantos demônios depois, eu estar sentada nos bancos de


um hospital mandando mensagem para o meu analista bancando o
estereótipo da boa menina que ainda se assusta com o mundo real? É
como se essa mulher tivesse me demonstrado que poderia ter sido eu, e
quanto nos falta em matéria de civilização. Queria poder encontrá-la e
dar um abraço, dizer que vai ficar tudo bem, mas a gente sabe que nunca
fica.

Sergio, arrisco dizer que a verdadeira liberdade se resumirá à ideia de


vigiarmos todo mundo, e será livre aquele que obtiver o domínio do
futuro — uma noção plena de quais raivas nascerão nos desiludidos de
amanhã. E por já saber impossível, me desespero. Não tenho vocação
para a patrulha. No fim, a gente sempre se ferra.

Beijo grande da

Anna.

Mateus Baldi é escritor e roteirista. Em 2016, fundou a Resenha de


Bolso, plataforma de críticas de literatura contemporânea.

Você também pode gostar