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Eduardo Soares Ribeiro
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Mestrando em Filosofia pela UFSCar. E-mail: <eduardo.sribeiro@yahoo.com.br>.
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O I Ching, muito resumidamente, é um livro com cerca de 5000 anos, o qual, com sua maneira de ver o
mundo, influenciou de maneira essencial a grande maioria das disciplinas científicas e espirituais da
civilização chinesa. Seu “texto básico” consiste em 64 imagens – os hexagramas – aos quais foram sendo
acrescentados comentários no decorrer dos anos. Etimologicamente, “Ching” significa “clássico”, no
sentido de “livro clássico” e “I” é comumente traduzido por “mutação”, “mudança”, o que fez sê-lo
conhecido no Ocidente por “Livro das mutações”.
Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar
ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417
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[No I Ching] essa mutação não era concebida como incidindo sobre
seres ou objetos sofrendo modificações. Não há o que mude, não há
quem mude, pois só há o mudar. Supor que algo ou alguém muda é
supor esse algo ou alguém fora da mutação, sofrendo-lhe então a ação.
Ante a universalidade e onipresença da mutação, não se pode
propriamente falar de algo ou alguém que muda. Há que se
compreender, isto sim, os modos e estágios da mutação e, para tanto,
cunharam-se os Kua [trigramas], que a tradição chinesa atribui a Fu-
Xi, o ser mítico em quem teve origem todo o mundo chinês.
(CORRÊA PINTO in WILHELM, 1982, p. XII, grifos do autor).
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Usaremos, doravante, as siglas IM, PdM, PM e IF para sinalizar os textos de Bergson “A introdução à
metafísica” (1989), publicado em 1903, “A percepção da mudança” (2006), de 1911, “O pensamento e o
movente” (1989), de 1934, e “A intuição filosófica” (1989), de 1911, respectivamente.
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Apesar da aparente semelhança entre a filosofia bergsoniana e o pensamento de Heráclito, o qual afirma
que a realidade é um puro vir-a-ser, Bergson diz que para ele se trata da “persistência das existências”
numa continuidade movente, numa continuidade substancial movente. Cf. IM, 1989, p.151, a pequena
nota do próprio Bergson sobre sua doutrina e a de Heráclito.
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Quão semelhante se nos apresenta tal visão com o que Bergson escreve em “A
percepção da mudança”: “Há mudanças, mas não há, sob a mudança, coisas que
mudam: a mudança não precisa de um suporte. Há movimentos, mas não há objeto
inerte, invariável, que se mova: o movimento não implica um móvel. (PM, 2006, p. 169,
grifo do autor).
Essa duração bergsoniana contínua não é algo evanescente, fugaz, pelo
contrário, tem um peso ontológico, mesmo uma regularidade, a qual o I Ching, por seu
turno – tão ligado desde sua origem à apreciação e compreensão do movimento da
natureza –, expressa em termos como os que se seguem: “a natureza está em constante
mudança, mas sempre através das mesmas estações – sempre a primavera, nunca as
mesmas flores”. É isto similar ao que Bergson afirma quando nos diz:
Tais afirmações corroboram com as descobertas que seriam feitas pela física
atômica, do infinitamente pequeno, chamada de física quântica. Com efeito, essa será
uma das mais fecundas aproximações realizadas por Fritjof Capra em seu “Tao da
Física” entre a Física moderna e o misticismo oriental. No que diz respeito às
descobertos da física quântica com relação à natureza da matéria a partir da década de
1930 até 1975, ano em que o livro foi escrito, Capra diz:
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Richard Wilhelm (1873-1930) foi um missionário, sinólogo e teólogo alemão que traduziu, quando vivia
na China, com a ajuda de seu mestre chinês Lao Nai Suan, o I Ching. (Cf. WILHELM, 1982, p. 1). Esta
tradução para o alemão, foi a primeira publicada no Ocidente, em 1923. A popularização do I Ching no
meio ocidental veio com o advento da tradução para o inglês do texto de Wilhelm, feita por Caryl F.
Baynes em 1950, com prefácio de Carl Jung.
Ora, essa questão também encontra paralelo com o pensamento chinês tal como
o estamos abordando. Lao-Tsé6, no poema inicial do Tao Te Ching, escreve:
O sábio chinês quer dizer com isso coisa semelhante ao que Bergson diz acerca
da comunicação da intuição. Como posso falar sobre o Tao sempre-movente, sobre a
realidade que não pode ser definida e descrita, senão ao preço de deturpá-la?
“Andarilhos podem parar pela música e boa comida, mas uma descrição do Tao parece
sem substância ou sabor”, diz Lao-Tsé no poema XXXV. Chuang-Tzu7, discípulo maior
de Lao-Tsé e escritor magno do taoísmo, diz: “Se alguém indaga acerca do Tao e outro
responde, nenhum dos dois o conhece.” (CHUANG-TZU apud CAPRA, 1983, p. 96).
Thomas Merton (2003, p. 56) escreve que “na verdade, o Tao não pode ser comunicado.
Ainda assim ele se comunica à sua maneira”.
E é à sua maneira que a China encarou esse problema desde os primórdios de
sua civilização e no decorrer de sua história. Uma solução a ele se deu na forma de sua
escrita, a escrita ideogramática8, que não parece se organizar para exprimir conceitos,
mas sim imagens:
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Lao-Tsé (551 a.C.-479 a.C) foi o fundador do taoísmo, a escola do Tao ( ), quando da escrita de seu
Tao Te Ching, um livro composto por 81 poemas e tido como o tratado fundamental desta escola e, em
certo sentido, do próprio pensamento chinês. Nele, Lao-Tsé escreve sobre o Tao, sua constituição,
funcionamento e implicações no mundo dos homens, na terra e no céu – o Tao é a mudança imutável, a
realidade última percebida interior e exteriormente. Na verdade, Lao-Tsé (que pode ser traduzido por
“velho mestre”), enquanto “fundador”, compilou o que seriam verdades universais e foi o primeiro a
transmiti-las de forma metódica e registrada. De forma alguma ele foi o primeiro a ver o Tao ou a saber
de sua existência; foi, sim, o primeiro a nomeá-lo dessa maneira. No que diz respeito à edição do Tao Te
Ching, utilizamos no presente trabalho a tradução para o inglês feita por Gia-fu Feng e Jane English
(1972). As traduções do inglês para o português são nossas.
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Chuang Tzu (369-286 a.C.), literalmente “Mestre Chuang”, foi um grande sábio taoísta. Estudiosos
consideram que Chuang Tzu foi para Lao-Tsé o que São Paulo foi para Jesus. Nascido quase trezentos
anos após Lao-Tsé, desenvolveu em seus escritos uma rigorosa lógica num esplêndido estilo de escrita.
Seu único livro, “Chuang Tzu”, do qual pelo menos os sete primeiros capítulos são historicamente
considerados como escritos por ele – os chamados “Capítulos interiores” – fez com que alguns sinólogos
o chamassem de “o maior escritor de todos os tempos da China”.
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Para um aprofundamento no tema da linguagem e da escrita chinesas, cf. o belo e rico capítulo inicial de
Watts, 1975 e também o Livro I de “O pensamento chinês” (1997), de Granet.
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Um conhecido provérbio chinês afirma que uma imagem vale por mil
palavras, porque via de regra é muito mais fácil mostrar do que falar.
Como se sabe, a escrita chinesa é única, pois não usa alfabeto, mas,
pelo contrário, caracteres ou ideogramas que originalmente eram
imagens ou sinais convencionais. (WATTS, 1975, p. 31-32).
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Tomemos o exemplo do hexagrama 22, , o qual, no Comentário da quinta linha, diz: “Seis na
quarta posição significa: Graça ou simplicidade? Um cavalo branco chega como que voando. Ele não é
um salteador, deseja cortejar, no momento devido.” (in WILHELM ,1982, p. 88).
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Cf. PM, 1989, p. 221.
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BIBLIOGRAFIA
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de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1999 [1896].
CAPRA, Fritjof. O Tao da Física: um paralelo entre a Física Moderna e o Misticismo
Oriental. Tradução de José Fernandes Dias. São Paulo: Editora Cultrix, 1983 [1975].
DELEUZE, Gilles. O Bergsonismo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34,
1999 [1966].
FENG, Gia-fu; ENGLISH, Jane. Tao Te Ching. Nova York: Vintage Books, 1972.
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3ª. Ed., Rio de Janeiro: Gryphus Editora, 2010.
WATTS, Alan. Tao: o curso do rio. Tradução de Terezinha Santos. São Paulo: Editora
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Pensamento, 1975.
WILHELM, Richard. I Ching: o livro das mutações. Tradução de Alayde Mutzenbecher
e Gustavo Alberto Corrêa Pinto. São Paulo: Editora Pensamento, 1982 [1923].
WORMS, Frédéric. Le Vocabulaire de Bergson. Paris: Ellipses, 2000.