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Introdução
Seyla Benhabib e Drucilla Cornell
1) A teoria do materialismo histórico deve ser tomada como uma ‘ciência’ que
formula generalizações semelhantes a leis para os fatos culturais e históricos.
2) Essa ‘ciência’ da sociedade toma como determinante em última instância as
relações de produção. Ao explicar as transformações sociais, é a dinâmica das
relações de produção o mecanismo causal final e determinante
3) A consciência de um grupo social bem como o seu potencial para a transformação
social revolucionário são determinados por sua posição no processo da produção;
as classes sociais são definidas nos termos dessas posições e são os atores
coletivos mais importantes na história.” P. 7
“Os teóricos feministas formularam suas exigências de uma união mais contínua entre o
feminismo e marxismo sem contestar o primado da produção implicado no modelo
ortodoxo. Assim, para caracterizar atividades das mulheres tais como gerar filhos, atender
doentes e idosos e realizar o trabalho doméstico, usou-se o termo ‘reprodução’”. P. 8
“Alguns feministas afirmam que gênero era uma forma de classe, ao passo que outros
alegavam ser possível falar das mulheres como uma classe em virtude da posição delas
dentro da rede das relações de produção ‘afetivos sexuais’”. P. 8
“Procurando uma síntese entre Marx e Weber, Habermas assinala dois aspectos dos
processos de modernização: o cultural e o societal”. P. 11
“O mundo da vida, por outro lado, é caracterizado por contextos de ação ‘socialmente
integrada’. Nos contextos de ação socialmente integrada, os agentes atuam na base de
alguma forma de consenso intersubjetivo implícito ou explícito sobre normas, valores e
afins, afirmados no discurso e interpretação linguísticos”. P. 12
“Num nível, a dicotomia público/ privado se dá, por um lado, entre aparelho
administrativo estatal, e, por outro, a família nuclear. De acordo com essa versão da
divisão público/privado, o econômico, o político e o sistema jurídico das sociedades
modernas, nos quais todos – ostensivamente – podem participar igualmente como agentes
econômicos, cidadãos políticos e pessoas jurídicas, é contrastado com a esfera fechada e
exclusiva da intimidade, sexualidade e afeição caracterizando a família nuclear moderna.
Enquanto público, nesse sentido, é o que está aberto a todos, ‘privado’ nesse contexto
significa o que é exclusivo, particularístico e baseado em laços especiais não
universalizáveis entre indivíduos”. P. 12
“[...] ao ignorar como o mundo da vida e sua hierarquia assimétrica de gênero modela
tanto a economia como a esfera da participação público- política, Habermas postula uma
dinâmica sem retorno que vai do sistema ao mundo da vida apenas. Essa teoria parece
também ignorar o fato de que a família nuclear moderna não é um ‘abrigo num mundo
impiedoso’, mas um lugar de ‘cálculo instrumental, egocêntrico e estratégico [...]
(Fraser)’”.
“[...] se os feministas estão preocupados não só com o rapto, maltrato à mulher, violência
e dano domésticos, mas também com práticas sexuais e pornográficas [...] entre adultos
coniventes, o liberal insistiria em que é tanto normativamente correto quanto
politicamente sábio que a legislação pública cesse à porta do quarto de dormir – desde
que, evidentemente, o consentimento das partes interessadas seja autêntico”. P. 18
“Os teóricos feministas representados neste volume, e os críticos comunitaristas do
liberalismo, concordam primeiro e principalmente numa rejeição da concepção liberal do
‘eu descompromissado’ (Taylor) ou um ‘sujeito desimpedido’”. P. 18
“Os teóricos feministas argumentam que a visão do ‘eu desimpedido’ atômico, criticado
pelos comunitaristas, é masculino, uma vez que o grau de isolamento e independência que
postula entre indivíduos jamais aconteceu com as mulheres”. P. 19
“[...] ser feminina biológica tem sido sempre interpretado em termos de gênero como
impondo certa identidade psicossexual e cultural; a mulher individual tem sido sempre
‘situada’ num mundo de papéis, expectativas e fantasias sociais”. P. 19
“[...] para Beuvoir, o projeto de assumir o gênero deve ser compreendido como algo que
ocorre dentro de um campo de relações sociais que limitam a liberdade do sujeito desde o
início. O corpo da mulher é em si uma situação social e não um simples fato biológico.
[...] Para Witting o corpo feminino recebe significado dentro da diferença de gênero
hierarquizada da reprodução sexual”. P. 22
“Cornell e Thurschwell [...] mostram [...] através das críticas de Lacan e Kristeva que a
rígida oposição binária – masculino/feminino – é por sua vez constituída apenas de um
efeito de relações intersubjetivas de muitos gêneros que deixa traços em todo sujeito
dotado de gênero”. P. 22
Marx eliminou do seu enfoque teórico todas as atividades básicas para a sobrevivência
humana que se acham fora da “economia” capitalista. As atividade que ele eliminou
incluem não apenas as identificadas pelos feministas como “reprodutivas” (cuidado com
os filhos, alimentação) mas também aquelas referentes à organização social, isto é, as que
regulam as relações de parentesco, ou, nas sociedades modernas, as que ele classificaria
como “políticas”. P.25
Para Marx, a primeira divisão de classes surgiu da luta pela apropriação do primeiro
excedente social, quer dizer, o primeiro excedente social de alimentos e objetos. Uma
conseqüência dessa definição de classe é desconsiderar conflitos históricos por outras
atividades socialmente necessárias, tais como geração de filhos. Uma segunda
conseqüência é não levar em conta mudanças na organização dessas atividades como
componentes da mudança histórica. P. 31
Do mesmo modo [...], por não analisar as atividades “reprodutivas”, Marx é levado a
ignorar o componente de socialização na história humana. Em outras palavras, as falhas
na teoria de Marx que resultam de sua atração por uma estreita interpretação de
“materialismo” poderiam ter sido amenizadas, caso ele tivesse prestado mais atenção à
atividade de gestação e parto. P. 32
[...] nós não conseguimos ver como mulheres e homens nessas sociedades ocupam
relações muito diferentes dessas atividades ligadas à produção de alimentos e objetos,
diferença essa conectada com as regras que regem casamento e sexualidade. [...] essa
relação distintivas com as atividades “produtivas” não pode ser definida exclusivamente
em termos de uma “divisão de trabalho”. P. 32
Outros feministas [...] preferem rotular a categoria ampliada como “produção sexo-
afetiva” em vez de “reprodução”. Observam que o termo “reprodução” é utilizado por
Marx para designar o “processo econômico através do tempo”. Empregá-lo para designar
atividades tais como gestação, parto e criação de filhos poderia resultar em alguma
confusão”. P. 35
Uma teoria social crítica projeta o seu programa de pesquisa e a sua estrutura conceptual
como um olho nos objetivos e atividades daqueles movimentos sociais opositores com os
quais tem uma identificação partidária embora não acrítica. As questões que ela coloca e
os modelos que projeta são constituídos por aquelas identificações e aqueles interesses.
Assim, por exemplo, se as lutas contestadoras da subordinação das mulheres figurasse
entre as mais significativas de certa época, a teoria social crítica para aquele tempo teria
por objetivo, entre outras coisas, esclarecer o caráter e as bases dessa subordinação. P. 38
[...] as atividades e práticas que constituem a esfera do trabalho remunerado contam como
atividades de reprodução material visto que, a seu ver, são “trabalho social” [...]. [...]
atividades e práticas que em nossa sociedade são executadas sem pagamento por mulheres
da esfera doméstica [...]contam como atividade de reprodução simbólica dado que, ao ver
Habermas, atendem à socialização e às funções da reprodução simbólica. P. 40
Reprodução simbólica “[...] admite duas funções como duas ‘espécies naturais’
objetivamente distintas às quais as práticas sociais concretas e a organização concreta das
atividades em qualquer sociedade podem corresponder mais ou menos fielmente. Assim,
práticas de criar filhos seriam em si práticas de reprodução simbólica, enquanto as
práticas que produzem alimento e objetos seriam práticas de reprodução material. E a
organização social capitalista moderna [...] seria um espelho fiel da distinção entre as duas
espécies naturais, dado que separa institucionalmente essas práticas. P 40
[...] não é certo que as práticas de criar filhos atendam à reprodução simbólica em
contraste com a reprodução material. Sem dúvida, eles regulam as interações de crianças
com outras pessoas, mas também suas interações com a natureza física [...]. [...] criar
filhos não é per se uma atividade de reprodução simbólica: é igualmente e ao mesmo
tempo, atividade de reprodução material. É o que poderíamos chamar de atividade de
“aspecto duplo”. P. 41
Como mostrou Judith Stiehm, essa divisão entre protetores masculinos e protegidas
femininas introduz mais dissonância nas relações das mulheres com a cidadania.
Confirma o subtexto do gênero do papel de cidadão. E, vendo as mulheres como
necessitadas da proteção dos homens “fundamenta o acesso não só a... meios de
destruição, mas também [a] meios de produção [...] e aos meios de reprodução, [...] a
posição das mulheres como esposas e parceiras sexuais”. P. 53
Equivale dizer que a identidade de gênero sobrevive em todas as arenas da vida. É um dos
(se não o) “meio de troca” entre todos eles, um elemento básico do aglutinador social que
os liga mutuamente. P. 54
Os feministas nem sempre pensaram isso, é claro. [...] Identificaram a libertação das
mulheres com a ampliação dos direitos civis e políticos para incluir as mulheres nas
mesmas condições que os homens, e com a entrada das mulheres na vida pública
dominada pelos homens em igualdade de condições com eles. P. 67
Recentes estudos feministas da teoria e prática política moderna cada vez mais
argumentam que os ideais do liberalismo e da teoria do contrato, tais como igualdade
formal e racionalidade universal, acham-se profundamente prejudicados pelos
preconceitos masculinos sobre o que significa ser humano e a natureza da sociedade. P.
67
Além do mais, as mulheres não são, absolutamente, o único grupo que tem sido excluído
da promessa do liberalismo e republicanismo modernos. P. 67
Os feministas mostraram que a exclusão teórica das mulheres do público universalista não
é mero acaso ou aberração. O ideal do público cívico exibe uma vontade de unificar, e
exige a exclusão de aspectos da existência humana que ameaçam dispersar a unidade
fraternal de formas retas e verticais, especialmente exclusão de mulheres. Dado que o
homem como cidadão exprime o ponto de vista universal e imparcial da razão, alguém
tem que cuidar de seus desejos e sentimentos particulares. P. 68
No discurso moral moderno, ser imparcial significa sobretudo ser desapaixonado: ser
inteiramente isento de sentimentos no julgamento. A idéia de imparcialidade busca assim
eliminar a alteridade num sentido diferente, no sentido das experiências sensíveis,
desejosas e emocionais [...]. P. 68
A dicotomia entre razão e desejo surge da teoria político moderna na distinção entre o
domínio público universal da soberania e do Estado, por um lado, e, por outro, o domínio
privado particular das necessidades e desejos.[...] Na teoria e práticas modernas esse
público consegue uma unidade em especial pela exclusão de mulheres e outros que se
relacionam com a natureza e o corpo. P. 73
[...] a moderna concepção de razão normativa provinha da tradição deontológico de ideais
de unidade em teoria política e moral, tradição essa que expulsa a particularidade e o
desejo, colocando sentimento em oposição à razão. [...] A razão deontológica gera uma
oposição entre, de um lado, razão normativa, e, de outro, desejo e afetividade. P. 73
[...] a distinção entre público e privado tal como aparece na teoria política moderna
exprime uma vontade de homogeneidade que exige a exclusão de muitas pessoas e
grupos, sobretudo mulheres e grupos “racionalizados”, culturalmente identificados com o
corpo, selvageria e irracionalidade. P. 83
[...] para a teoria feminista, o sistema gênero-sexo não é contigente, mas um modo
essencial pelo qual a realidade social é organizada, simbolicamente dividida e vivenciada
na prática. Por sistema “gênero-sexo” entendo a constituição simbólica sócio-histórica, e
a interpretação das diferenças anatômicas dos sexos. O sistema gênero-sexo é o grão
através do qual o que revela uma identidade incorporada, um modo de ser no próprio
corpo e de vivenciar o corpo. P. 91
Esse processo de reflexão sobre situações da vida real voltou a atenção dos teóricos
feministas para aquelas práticas da vida negligenciadas que, além das formas de
discriminação institucionalizadas e semi-institucionalizadas, persistentemente, através de
toda a vida do individuo, criam e reforçam certos modos de ver, pensar e agir. Tornou-se
também claro que alguns desses modos específicos de vivenciar o mundo, junto com
alguns traços associados de personalidade, enquanto operando no presente como parte do
mecanismo de opressão, em virtude de serem atribuídos exclusivamente às mulheres,
poderiam conter em si mesmos capacidades cognitivas e padrões emocionais que não
deviam ser perdidos, mas reavaliados como possíveis componentes não só da libertação
das mulheres mas também da reestruturação da cultura dominante. P. 108
[...] a construção de gêneros através das práticas de esferas separadas . significa que as
mulheres, como categoria social, por definição, por seu destino aparentemente natural,
têm sido representadas como “não bem-sucedidas”. P. 115
As mulheres não apenas são em geral avaliadas como tendo “potencial” inferior e
portanto “valor” inferior para os empregadores como, na realidade, muitas vezes exibem
menor grau de “habilitações extrafuncionais” [...], isto é, em todas aquelas características
que foram definidas por Dreitzel como “capacidade de ter sucesso em comparação com a
“capacidade de desempenhar”. P. 117
[...] os teóricos psicanalistas feministas têm ainda que fazer do discurso do Foucoult
objeto de sua ctírica do discurso masculino como uma reação simultânea ao poder da mãe
e negação dele. E nem Foucoault, nem seus seguidores estenderam sua desconstrução do
dissimulado discurso do “o Verdadeiro” ao discurso das teóricas da “maternação”. P. 121
“Não se nasce, mas torna-se mulher”. Esse já famoso dito de Simone Beauvoir afirma a
não coincidência de identidade natural e identidade de gênero. Como o que nos tornamos
não é o que já somos, o gênero é desalojado do sexo; a interpretação dos atributos sexuais
é distinguida da facticidade ou simples existência desses atributos. O verbo “tornar-se”
encerra, porém, uma ambigüidade conseqüencial. Não só somos nós culturalmente
construídos como, em certo sentido, construímo-nos a nós mesmos. P. 139
Como pode o gênero ser ao mesmo tempo questão de escolha e construção cultural? P.
139
Se estamos sempre já dotados de gênero, imersos em gênero, que sentido tem dizer que
escolhemos o que já somos? P. 140
Para que a afirmação de Beauvoir seja irrefutável, e para ser verdade que “nós tornamos”
nossos gêneros por uma espécie de atos volitivos e ajustativos, ela deve significar algo
diferente de um ato cartesiano não localizado. Que uma atuação pessoal é requisito lógico
para assumir um gênero não pressupõe que essa ação seja por sua vez desencarnada; de
fato, nós nos tornamos nossos gêneros, e não nossos corpos” P. 140
Embora Sartre argumente que o corpo é coextensivo com a identidade pessoal (é uma
“perspectiva” que se vive), também insinua que a consciência está de certo modo além do
corpo (“Meu corpo é um ponto de partida que eu sou e que ao mesmo tempo ultrapasso)”.
P. 141
[...] o corpo é assim vivenciando como um modo de tornar-se. De fato, para Sartre o
corpo natural só existe na condição de ser ultrapassado. P. 141
Não nascer, mas tornar-se uma mulher não implica que esse tornar-se percorre um
caminho da liberdade desencarnada a uma incorporação cultural. Na realidade, é-se um
corpo de início, e só depois nos tornamos nosso gênero. P. 142
Juntando a fraseologia sartriano com a de Beauvoir, poderíamos dizer que “existir” nosso
corpo em termos culturalmente concretos significa, pelo menos em parte, tornamo-nos
nosso gênero. P. 142
Escolhemos nosso gênero, mas não o escolhemos de uma distância, que assinale uma
junção ontológica entre o agente optante e o gênero escolhido. [...] Baeuvoir vê o gênero
como um projeto incessante, um ato diário de reconstrução e interpretação. P. 142
Não é possível assumir um gênero de um momento para o outro. [...] Tornar-se um gênero
é um processo impulsivo, embora cauteloso, de interpretar uma realidade plena de
sanções, tabus e prescrições. [...] Escolher um gênero é interpretar normas de gênero
recebidas de um modo que as reproduzam e organizem de novo. [...] o gênero é um
projeto tácito para renovar a história cultural nas nossas próprias condições corpóreas.
Não é uma tarefa prescritiva de que devamos nos esforçar por fazer, mas aquela em que
estamos nos esforçando sempre, desde co começo. P. 143
As mulheres são “outros” de acordo com Beauvoir enquanto definidas por uma
perspectiva masculina que procura salvaguardar seu status desencarnado mediante
identificação das mulheres em geral com a esfera corporal. P. 144
Ao definir as mulheres como “outro”, os homens se capacitam pelo caminho mais curto
da definição a sair de seus corpos, fazer-se diferentes de seus corpos – símbolo em
potencial de enfermidade e decadência humanas, de limitação em geral – e fazer seus
corpos diferentes de si mesmos. Dessa afirmativa de que o corpo é Outro vai um simples
passo À conclusão de que outros são seus corpos, ao passo que o “Eu” masculino é uma
alma incorpora. P. 144
O corpo como situação tem pelo menos um dúplice significado. Como um lugar de
interpretações culturais, o corpo é uma realidade material que já foi situado e definido
dentro de um contexto social. [...] O corpo torna-se um nexo peculiar de cultura e escolha,
e “existir” o próprio corpo torna-se um modo pessoal de examinar e interpretar normas de
gênero recebidas. Na medida em que as normas de gênero operam sob a égide de
constrições sociais, a reinterpretação daquelas normas pela proliferação e variações de
estilos corpóreos torna-se um modo muito concreto e acessível de politizar a vida pessoal.
P 145
Para Wittig, a própria discriminação de “seco” ocorre dentro de uma tessitura política e
lingüística que pressupões, e, portanto, exige, que o sexo permaneça didático. [...]
Discriminação é sempre “discriminação”, e oposição binária sempre atende a propósitos
de hierarquia. [...] Para Wittig, quando designamos diferença de sexo, nós a criamos;
restringimos nosso entendimento de relevantes partes sexuais àquelas que ajudam no
processo de reprodução, e com isso tornamos a heterossexualidade uma necessidade
ontológica. P. 146
Wittig vislumbra uma sociedade assexuada, e mostra que o sexo, como a classe, é um
constructo que deve inevitavelmente ser destituído. P. 148
Por um lado, Wittig exige uma transcendência completa do sexo, mas sua teoria poderia
igualmente levar a uma conclusão inversa, à dissolução das restrições binárias mediante a
proliferação de gêneros. P. 148
Num artigo sob título “As mulheres Jamais Poderão Ser Definidas”, Julia Kristeva
observa que “a crença de que ‘alguém é uma mulher’ é quase tão absurda e obscurantista
como a crença de que ‘alguém é um homem’”. Kristeva diz “quase tão absurda” porque
há razões práticas, estratégicas para manter a noção de mulheres como uma classe não
obstante o seu vazio descrito como termo. P. 153
Daí, ela concluir: “devemos usas ‘somos mulheres’ como um aviso ou refrão para nossas
demandas. Em nível mais profundo, porém, uma mulher não pode ‘ser’; é algo que nem
mesmo pertence à ordem do ser”. Mulheres é pois um falso substantivo e significante
unívoco que disfarça e prejudica uma experiência de gênero internamente variada e
contraditória. P. 153
Gayle Rubin:
Se ela está correta em entender a identidade de gênero como o “traço” do parentesco, e
observar que o gênero tornou-se cada vez mais isento dos vestígios do parentesco, então
parece termos razão em concluir que a história do gênero pode revelar a gradual liberação
do gênero de suas restrições binárias. P. 154
A verdade da Mulher é que ela não existe, a não ser como o Outro de um discurso
baseado na radical exclusão d’Ela. P. 156
Nos escritos de feministas sob influência de Laca, esse arcabouço de discurso e exclusão
sofreu um deslocamento radical. A hierarquia absolutista d discurso estabelecido e o seu
Outro excluído é desestabilizada: a ausência da Mulher retorna revigorada para abalar os
alicerces da ordem recebida. P. 156
Lacan faz uma contribuição muito mais dramática à teoria psicanalítica. Ele sugere que a
própria entrada do sujeito no domínio da linguagem, o sistema convencional de
significado que ele chama de Simbólico, é determinada pelo relacionamento do bebê com
a mãe. Segundo Lacan, a gênese da consciência linguística ocorre quando o bêbe se
reconhece como tendo uma identidade distinta da de sua mãe: esse momento primordial
de separação é vivenciado pelo bêbe como uma perda (assim como ganho de uma
identidade) [...]. P. 158
Mulher é aquilo que não pode ser forçado a submeter-se a conceitos do discurso
masculino. Ela é aquilo que não pode ser conceituado ou definido. P. 160
Iris Young mostrou que a diferenciação de gênero não leva em si mesma e por si mesma à
supremacia masculina. Concordamos com ela em que identificação de gênero com
dominação masculina potencialmente implica uma categorização equivocada. Todavia,
nossa critica do enfoque estruturalista psicanalítico do gênero acrescenta uma nova
dimensão ao debate. A diferenciação de gênero é em si e por si um mal, porque
circunscreve a diferença e nega acesso ao “outro” em cada um de nós. P. 170