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Uma das máscaras identitárias sob a qual somos chamados a nos esconder
para sermos contemporâneos, atualizados, estarmos neste mundo de
vertigem, resulta do embotamento de uma de nossas qualidades: a
capacidade de nos surpreendermos. De olhos atentos, uma criança olha o
novo com surpresa! Seria gesto infantil o homem atual assumir a mesma
posição. Como tudo muda, como tudo se desloca, nada deve surpreender e
tudo deve ser tributado ao progresso, ao desenvolvimento, naturalizando
esta crescente necessidade do novo. Paradoxalmente, o novo é o que não
existia, mas é o que era já esperado. O flâneur não precisa das galerias para
se deixar olhar e para olhar. É-se flâneur em qualquer parte: desfila-se
virtualmente por toda parte, sempre sem se surpreender com nada porque
toda novidade, tecnológica ou não, já estava na ordem do dia, estava por
acontecer, viria não se sabia a hora e se faria obsoleta sem qualquer aviso
prévio. E o olhar dirigido para todos os lados deve ser móvel, rápido,
fragmentário. Quase turista. A mobilidade pelos espaços de outras culturas
não dispõe de tempo para qualquer hibridização enriquecedora da
experiência humana: o tempo é apenas o do consumo, cada lugar e sua
história são mercadorias a serem olhadas, por suas superfícies salientes. O
tempo de um flash da máquina fotográfica: registro a ser guardado e
rapidamente esquecido por que outra mercadoria já se oferece.
Como esta sociedade não tem tempo a perder – tempo é dinheiro e tudo se
mede pelo dinheiro – os velhos processos de construção de artefatos,
entendidos estes como instrumentos forjados ao longo do tempo, imemorial
em seus começos, sem assinatura e sem data, mas em constante mutação
pela prática humana, deixaram de ser considerados progressos da
humanidade, avanços significativos. Vale mais a invenção que se implanta
de um dia para o outro, numa vertigem sem tempo para com ela construir
artefatos. Não se trata, obviamente, de preferir a enxada ao computador.
Trata-se de aceitar que um e outro são produtos do esforço e inteligência
humanos. Não se pode esquecer, entre professores, por exemplo, que o
quadro de giz também é tecnologia! E que os primeiros professores que os
usaram foram presos, porque o quadro permitia tornar a construir, no
momento, escritos interpretativos que não pré-existiam ao diálogo de sala
de aula. Como a verdade já estava dada, como imaginar construí-la?
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Até mesmo diferenças lingüísticas antes consideradas variedades têm sido supervalorizadas e elevadas a
línguas oficiais, como é o caso do mirandês, em Portugal. A sobrevalorização da diferença é própria dos
tempos que correm, chamados de pós-modernos.
distinto. Máscara da distinção. Esquecimento das semelhanças e do
destino histórico comum.
Certamente isto tudo está muito longe de nos tornar produtivamente mais
humanos5. Segundo Bárcena (2001:95), “o que nos faz humanos não é tanto
a nossa racionalidade, mas a capacidade para nos deixarmos afetar – na
vida afetiva – pelos outros”. Haverá tempo para se deixar afetar quando se
tem que produzir constantemente? Na universidade da produtividade não
há tempo para o Tempo Grande, nem espaço para a sabedoria, a que
Benjamin chamou de lado épico da verdade. Porque sabedoria implica
conhecimento e vida, e não mero registro de resultados de experimentos.
Referências bibliográficas
Resumo
A discussão aqui proposta parte de uma pergunta: há identidades que os sujeitos sociais
devem preencher para transitarem no mundo alargado das relações e espacialmente
apequenado graças às novas tecnologias de comunicação? As tecnologias como tais são
datadas e assinadas e não se implantam sem se fazerem acompanhar de outros
predomínios, de ordem cultural e econômica. A globalização, alargando as relações
possíveis, paradoxalmente exige diferenças para que a inserção de cada um se faça
notar, mas obriga ajustamentos que limam arestas e produzem as máscaras da
representação teatral sob as quais é preciso se esconder para falar a um mundo de
desigualdade social, mas hostil a qualquer dessemelhança. Para exemplificação, serão
considerados dois ambientes totalmente distintos: o mundo da produção e circulação
acadêmicas e o mundo distante dos primeiros contatos com a sociedade letrada.