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Eloisa de Blasis - Dos anos 80. Não é uma discussão tão jovem assim, já tem
maioridade. Cada escola é livre para planejar a sua gestão, qual seria o modelo mais
democrático, com quais instâncias ela pode contar etc.
Portal Pró-Menino - Qual a sua visão da relação entre escola e ECA?
Eloisa - O ECA vai na direção da garantia dos direitos da criança e do adolescente. A
escola pública, de um modo geral, está aí, entre outras coisas, para garantir o direito à
educação. Essa é uma relação direta que se estabelece. O ECA é bastante claro com
relação a algumas posturas ligadas à criança e ao jovem. Posturas em relação à forma
de você se relacionar ou à forma de você se comunicar com essa criança e com esse
jovem, dar a ele liberdade de expressão, enfim. De um modo geral, a escola tem se
esforçado para isso, mas ela ainda tem muita dificuldade. Não dá para discutir essa
questão do direito e do papel da escola sem a gente pensar no contexto mais geral
onde a escola está inserida. A escola é sempre um reflexo do que é a sociedade.
Hoje, em alguns lugares na periferia de cidades como São Paulo, por exemplo, falar
em gestão democrática da escola é uma coisa muito complicada. Eu, que trabalho
diretamente com professores e com diretores de escola, sei o quanto eles vivem na
carne situações que são impeditivas, inclusive de atitudes ou de comportamentos que
vão nessa direção. Porque a situação, por exemplo, de violência que a gente vive com
o PCC [Primeiro Comando da Capital] também é uma situação bastante comum dentro
das escolas, principalmente nas grandes metrópoles e na periferia. Por outro lado,
você vai para esses lugares e observa que o equipamento social público mais
presente e de maior importância ali é a escola. Em qualquer lugar, as pessoas têm
uma expectativa muito grande em relação a essa instituição e a valorizam. Mas nós
vivemos determinadas crises que a própria escola não tem resposta. É comum a gente
dizer que a escola tem que estar aberta para a comunidade e falamos isso há mais de
vinte anos. E, em alguns lugares, eu não sei até que ponto a escola consegue manter
os portões abertos, porque ela está sempre vulnerável a invasões, a depredações, a
roubos... Quando você vai numa escola pública de periferia, a coisa mais comum é ver
grade de todo tipo e de todo formato. É como se, de alguma forma, a escola se
sentisse invadida pela comunidade. E em alguns lugares ela de fato é. Muitas vezes, a
escola tem um comportamento de medo em relação à comunidade. Então o diretor
tranca o equipamento, que é pra ninguém roubar. Por outro lado, o equipamento
ficando solto vai ser roubado mesmo. Então, em alguns casos, quando a gente
observa o contexto, discutir gestão democrática da escola vai requerer da gente
olhares diferentes, olhares novos, abordagens novas. A comunidade e a escola estão
expostas ao mesmo tipo de coisas, porque elas estão ali, naquele bairro. Existem
programas, como o do governo do estado [Escola da Família], que deixa aberta as
escolas aos fins de semana e traz a comunidade para dentro dela. Nesses bairros, a
escola é o único lugar potencialmente viável para o lazer aos fins de semana. Ela tem
esse papel.
Eloisa - Sim e eu diria que, na verdade, precisamos fazer uma discussão sobre esse
papel social da escola. Existe uma expectativa em relação a isso e existe um papel
social culturalmente já consolidado e que está talvez na mentalidade das pessoas que
trabalham na escola. Existem expectativas que a comunidade tem em relação à escola
e que a escola tem em relação à comunidade. A interlocução dessas expectativas é
que às vezes fica truncada. E isso acontece em qualquer lugar que eu vá, seja no
Piauí ou no interior do estado de São Paulo. A escola espera a participação da família
no acompanhamento escolar das crianças. Quando a família participa da vida escolar
do aluno, valoriza a escolarização e os pequenos têm mais possibilidades de ter
sucesso na escola. Existem estudos sobre isso. Mas as nossas comunidades muitas
vezes não vêem isso como um valor, porque a escola durante muito tempo foi vista
como uma ponte para a ascensão social por garantir o trabalho. Hoje, uma boa
educação ou um bom nível de escolaridade não necessariamente garante trabalho
para todo mundo. E a gente sabe que, cada vez mais, para garantir algum trabalho, a
gente precisa de especializações dos mais variados tipos. As pessoas que vivem
nessas comunidades mais desfavorecidas não têm essa expectativa, então elas não
valorizam tanto a escola. Por outro lado, elas precisam trabalhar, inclusive as mães.
As mulheres começaram a trabalhar de uns trinta, vinte anos para cá, e trabalham o
dia todo, passando menos tempo com os filhos. E aí a expectativa que a comunidade
acaba tendo em relação à escola é essa: de que a escola dê aquilo que ela [a
comunidade] não pode dar. A família tem que dar convívio, a educação também vem
desse convívio, mas não tem condições. A minha filha de seis anos passa a maior
parte do tempo com a empregada ou na escola. E, além de tudo, eu viajo. O tempo
que eu passo com ela é muito pequeno. E essas mães que ficam pouco tempo com os
filhos esperam que a escola faça alguma coisa para compensar. Por isso, a história
das ONGs [organizações não-governamentais] e das redes de proteção... Porque
essas crianças não podem ficar abandonadas. O destino delas pode ser a rua e a
gente sabe que dali pode não vir coisas muito boas. As ONGs estão preocupadas com
isso, tentam garantir um pouco esse outro lado. Porém, muitas vezes a expectativa
que a escola tem em relação aos pais também é um pouco distorcida. Por exemplo,
um pai que tem baixa escolaridade, que mal sabe ler e escrever, ele tem condições de
valorizar a escolarização dos filhos, desde que aquilo seja um valor para ele. Tomar a
lição, perguntar para a criança se tem lição, tomar conta, criar uma rotina para que a
criança possa fazer lição de casa, tudo isso é cultural. Se as pessoas não têm esses
elementos culturais incorporados em seu dia-a-dia, isso se torna uma coisa um pouco
mais difícil e a escola tem esse tipo de expectativa em relação aos pais. A escola
também vive situações muito precárias e espera que o pai esteja lá presente para
ajudar, para pintar uma porta, para trabalhar numa quermesse, para ajudar numa
festa... Mas a escola também tem dificuldade de ver os pais ou a presença dos pais
dentro dela como pessoas que podem ajudar a tomar decisões. A escola não gosta de
ter o pai como alguém que está ali presente e que, junto com ela, decide. Isso tudo eu
acho que é parte do processo democrático que a gente ainda tem que viver e aprender
a fazer. A escola tem que aprender a viver numa sociedade mais democrática, onde
as pessoas podem colocar aquilo que pensam, podem sonhar e, coletivamente, tomar
decisões. Até porque, do ponto de vista cultural, a escola vive submetida a uma rotina
que está para além dela, que é a rotina do próprio sistema público de educação, seja
ele municipal ou estadual.
Eloisa - Esse é um outro lado da questão, mas eu diria que a escola não dá conta de
ensinar todo mundo. Ela não conseguiu mudar a mentalidade do ponto de vista
cultural, a mentalidade de classe média. Então a criança de classe média que está na
escola pública está indo bem. Criança que não é de classe média não está.
Portal Pró-Menino - É por isso que agora cresce o uso da alfabetização fonética?
Eloisa - Uma bobagem. O bom alfabetizador vai misturar construtivismo com método
fonético, com silábico, com tudo. Ele vai lançar mão do que é eficiente para pôr a
criança para alfabetizar. Outra coisa que todo mundo sabe também é que a criança
cujo pai e mãe lêem para ela todos os dias tem acesso à escrita dentro de casa. Olha,
criança de classe média em escola particular dificilmente não aprende a ler e a
escrever, porque ela tem contato com a escrita e com a leitura no cotidiano e na rotina
dela, e não é porque a escola é melhor. Eu quero ver escola particular dar conta de
crianças que estão na escola pública. Ela não dá, eu sei que não dá. Se o pai não tem
curso universitário, ele não pode ajudar na lição de casa do filho. Tem lições ótimas,
mas, por exemplo, meu filho mais velho uma vez trouxe para casa um trabalho sobre
ditadura militar. Ele precisava dizer como que era a moda naquela época.
Precisávamos pegar uma revista antiga para ver isso. E quem é que guarda revista
antiga dos anos 70? Às vezes os pais têm que ajudar pesquisando na Internet. Você já
imaginou a situação de mãe que não tem condições? Às vezes o menino não tem nem
mesa para fazer a lição.
Eloisa - O ECA não pode tudo. Criança, pobre ou rica, tem direito a educação.
Criança, pobre ou rica, tem direito à aprendizagem. O que tem determinado que
crianças ricas aprendam mais que crianças pobres são as condições em que essas
crianças ingressam na escola, permanecem na escola e terminam a escola. A gente
vive numa sociedade que não é inclusiva. Ela cria fossos, ela separa as pessoas.
Acho que as escolas, de um modo geral, têm feito esforços muito grandes, assim
como as comunidades e os pai. Eu acredito em gestão democrática e acho que o pai
tem que ir pra escola e ajudar nas decisões. Esse é o caminho. Agora, como aprender
a conviver democraticamente e a respeitar a diversidade é que é a grande questão. A
escola tem uma função social clara e importante, ela tem que cumprir o papel de
garantir o direito à educação com qualidade para todas as crianças. Só que isso não
depende de uma escola isoladamente. A gente não tem muitos estudos que revelem o
sucesso de determinadas escolas. Às vezes a condição para isso pode ser uma
liderança forte por parte da direção da escola ou uma comunidade organizada. Uma
comunidade bem organizada às vezes faz a diferença também, porque sabe qual é o
seu papel, também compreende a sua função social e sabe estabelecer conversa com
sua direção. Um grupo de professores muito interessado, que gosta do que faz...
Portal Pró-Menino - E um grupo de adolescentes também que, eventualmente, se
mobiliza em grêmios...
Eloisa - Mas a escola tem um grande papel de abrir espaço do ponto de vista
pedagógico para que estes meninos consigam aprender a se organizar em grêmios.
Ela tem que aprender a criar situações pedagógicas para que as pessoas atuem
democraticamente. Aquela história que eu contei do município de Monlevade. Aquelas
pessoas podiam ensinar muita gente a estabelecer interlocuções. As professoras eram
pessoas comprometidas, mas ninguém ali tinha pós-graduação ou outra formação
especial. Tinham uma vontade especial de fazer e tinham uma crença muito forte.
Existia compromisso e responsabilidade. Agora, do ponto de vista cultural, estamos
vivendo uma crise de valores muito forte. A escola não está imune a essa crise de
valores. Então, por exemplo, a escola deve criar situações pedagógicas para que as
crianças possam aprender que “eu levanto a mão e espero a minha vez de falar e eu
também tenho que ouvir o que o outro diz, mesmo não concordando com o outro”. Isso
é muito difícil, nem todo mundo sabe fazer. Vejo que o professor fica perdido, porque
ele gostaria de fazer isso, mas ele não sabe como por não ter aprendido a fazer. A
gente está num processo de aprendizagem, enquanto sociedade eu diria. O ECA é um
estatuto e ele cumpre um papel importante. E a escola não pode fechar os olhos ao
ECA, ela tem que respeitar. Quando ela abre um espaço pedagógico para que a
criança aprenda a dialogar, ela está, de alguma forma, caminhando no sentido de
encontrar aqui todos os pressupostos colocados, todas as vontades, todos os desejos
colocados para aquelas crianças. Agora, é preciso também que essa seja uma
vontade, mas do coletivo, do social.
Eloisa - Ela vai além dessas pessoas. Em qualquer grupo grande, você tem que ter
alguém que faça a coordenação. A pessoa que coordena é aquela que de alguma
forma dá as diretrizes. É ela que vai trazer para o grupo diferentes possibilidades de
as pessoas analisarem qual é a melhor opção. Ela pode dar sugestões, as pessoas
também, ela ouve e respeita a vontade da maioria. Fico me lembrando de uma
experiência forte que tive na escola, como professora e coordenadora, onde ficamos
sem diretor durante quatro anos e a escola funcionava feito um relógio. Todo mundo
morria de inveja. Como é que essa escola está sempre limpa, como é que essa escola
funciona, como os professores estão dando aula lá? A liderança não vinha de uma
pessoa, vinha do próprio grupo. Todos tinham uma crença forte, tinham uma diretriz,
sabiam para onde queriam ir. E o clima de confiança no grupo era tão forte que se
alguma decisão tinha que ser tomada de manhã, estando algumas pessoas por lá e
outras não, a decisão era tomada naquele momento e todos confiavam na decisão,
baseada em certos combinados que fizemos anteriormente. Isso é o que tanto
defendemos na escola pública: o tal do trabalho coletivo. Um bom líder trabalha
coletivamente. Não dá para personalizar.
Portal Pró-Menino - Aqui no Brasil a gente fica sempre na pessoa, a gente não
perpetua para o grupo. Sobre a questão do regimento interno da escola, qual é a
sua visão sobre esse documento? Ele tem a condição de perpetuar o modo de
ser da escola, algo como uma constituição?
Eloisa - É isso mesmo. Ele pode ter esse papel, desde que as pessoas o conheçam
com clareza ou que elas participem da elaboração dele, que seja uma participação
democrática mesmo. O regimento interno tem que passar pela mão do diretor, do
coordenador, do professor, dos funcionários, dos alunos, dos pais... Se todos
conhecem aquilo fica muito mais fácil você gerir, seguir as regras, porque elas já foram
criadas e pensadas pelo coletivo, inclusive pelos alunos. E criança, mesmo as
pequenininhas, sabe muito das coisas. Costumamos achar que não dá para discutir
democracia com criança. Mas é com ela que começamos a discutir o assunto. A
criança de três, quatro ou cinco anos está muito centrada nela própria, por isso ela tem
que começar a ter vivências que mostrem a ela a alteridade, a importância do outro e
o papel do outro dentro do grupo. Eu tenho a minha vez de falar, posso expressar a
minha opinião e tenho que aprender a esperar a minha vez. Você pode começar isso
na pré-escola e é uma vivência que você vai desenvolvendo. Não adianta você
começar de uma hora pra outra, porque terá um trabalhão de discutir regras de
convivência com os alunos. Se eles estão habituados desde pequenos, fica muito mais
fácil quando eles estão lá na quinta, na sexta, na oitava série. Você cresce com aquilo
e vai desenvolvendo. Quantos professores puderam ter esse tipo de vivência,
perceber, observar ou saber que isso funciona? Outro dia eu estava conversando, lá
em Araçatuba [cidade de São Paulo], com um bando de professores e com
conselheiros tutelares. Discutíamos que os meninos não respeitam o que o professor
fala e falam todos de uma vez. E se percebe pela fala das pessoas a angústia de não
saber como é que deve lidar com as crianças quando esse tipo de situação de
descontrole acontece. Ela não sabe, do ponto de vista técnico e pedagógico, ela não
tem o domínio necessário para organizar o grupo. O professor tem que lidar com
conhecimento, ele tem que ter boa formação intelectual, isso num mundo ideal. Ele
tem que ter boa formação intelectual, mas ele também tem que ter domínio técnico-
pedagógico de estratégias para lidar com o grupo, para fazer com que o grupo
aprenda a respeitar as diferenças. Eu fico lembrando do meu filho, que hoje já é
adulto, quando estava na pré-escola. A professora que eles tinham era uma
professora muito boa. E essa coisa de fazer com que as crianças respeitassem a
diversidade era uma coisa que aparecia. Tinha uma menina de quatro anos no grupo
que já lia e escrevia. Tinha uma outra criança que, quando desenhava, seu desenho
não tinha linhas claras, era uma garatuja. Tinha dentro do grupo uma diversidade
muito grande. Eles aprenderam a respeitar o jeito do outro de fazer e de não ficar se
comparando. Mas essas são situações pedagógicas, o professor tem que ter
sensibilidade para fazer a leitura do movimento do grupo, para conhecer as crianças.
E às vezes têm situações que você vive na escola que são muito duras. Você lida com
crianças que vivem em ambientes de extrema violência. A criança aprende a violência
e a violência é o modelo que ela tem. Esse modelo tende a se perpetuar, porque a
criança leva isso para dentro da escola e ela a reproduz lá. Às vezes a escola não
sabe lidar com isso. Eu, particularmente, nunca me vi em situações do gênero e não
saberia o que fazer. E elas são cada vez mais presentes nas escolas, elas afloram.
Existe um mundo ideal, existem condições ideais, mas a gente vive numa sociedade
que vive uma profunda crise social de valores.
Eloisa - Elas tentam também dar uma resposta. Eu acho que tem organizações de
todo tipo, de toda qualidade. A gente tem que tomar cuidado com o discurso de
algumas, tem discursos que eu acho perniciosos. O discurso de ONG que diz que
escola é chata, por exemplo, considero enganoso e acho que eles enganam a si
próprios quando falam isso. A maioria das ONGs faz um trabalho de tentativa de
escolarização. Bom, aí você tem um espectro que é o mercado, existe a competição. A
ONG pode ter um papel importante, pode complementar o trabalho da escola, mas
não pode escolarizar. Não tem essa de ficar dando curso de reforço escolar, ela pode
ter outros, oferecer outras coisas para fomentar a aprendizagem, o aumento de
referenciais culturais da criança.