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Estatuto da Criança e do Adolescente na escola

Entrevista com Eloisa de Blasis

Desde os anos 80, tem-se falado em gestão democrática nas


escolas, modelo em que a decisão não é tomada apenas
pelos dirigentes, mas também pelos professores, pais e
alunos. Mas ter a participação da comunidade na gestão da
escola nem sempre é fácil. "A grande dificuldade da escola é
estabelecer interlocução com os pais e com a comunidade.
Você tem que aprender a estabelecer essa interlocução",
opina a pedagoga e pesquisadora do Centro de Estudos e
Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária
(Cenpec), Eloisa de Blasis.

De acordo com Eloisa, que dentro do Cenpec atua na formação de gestores de


educação e avaliação de projetos educacionais, existem diferentes expectativas que a
comunidade tem em relação à escola e que a escola tem em relação à comunidade.
Além disso, ela destacou a questão do medo que a escola muitas vezes tem da
comunidade. "Não sei até que ponto a escola consegue manter os portões abertos,
porque ela está sempre vulnerável a invasões, a depredações, a roubos... Quando
você vai numa escola pública de periferia, a coisa mais comum é ver grade de todo
tipo e de todo formato", afirma.

A especialista em gestão democrática da escola foi entrevistada pelo Portal Pró-


Menino e falou sobre a relação entre ECA e escola, a capacitação dos professores, a
dificuldade de a escola garantir o direito à aprendizagem, entre outros assuntos.
Confira a entrevista na íntegra abaixo.

Portal Pró-Menino - De quando vem a discussão sobre gestão democrática na


escola?

Eloisa de Blasis - Dos anos 80. Não é uma discussão tão jovem assim, já tem
maioridade. Cada escola é livre para planejar a sua gestão, qual seria o modelo mais
democrático, com quais instâncias ela pode contar etc.
Portal Pró-Menino - Qual a sua visão da relação entre escola e ECA?
Eloisa - O ECA vai na direção da garantia dos direitos da criança e do adolescente. A
escola pública, de um modo geral, está aí, entre outras coisas, para garantir o direito à
educação. Essa é uma relação direta que se estabelece. O ECA é bastante claro com
relação a algumas posturas ligadas à criança e ao jovem. Posturas em relação à forma
de você se relacionar ou à forma de você se comunicar com essa criança e com esse
jovem, dar a ele liberdade de expressão, enfim. De um modo geral, a escola tem se
esforçado para isso, mas ela ainda tem muita dificuldade. Não dá para discutir essa
questão do direito e do papel da escola sem a gente pensar no contexto mais geral
onde a escola está inserida. A escola é sempre um reflexo do que é a sociedade.
Hoje, em alguns lugares na periferia de cidades como São Paulo, por exemplo, falar
em gestão democrática da escola é uma coisa muito complicada. Eu, que trabalho
diretamente com professores e com diretores de escola, sei o quanto eles vivem na
carne situações que são impeditivas, inclusive de atitudes ou de comportamentos que
vão nessa direção. Porque a situação, por exemplo, de violência que a gente vive com
o PCC [Primeiro Comando da Capital] também é uma situação bastante comum dentro
das escolas, principalmente nas grandes metrópoles e na periferia. Por outro lado,
você vai para esses lugares e observa que o equipamento social público mais
presente e de maior importância ali é a escola. Em qualquer lugar, as pessoas têm
uma expectativa muito grande em relação a essa instituição e a valorizam. Mas nós
vivemos determinadas crises que a própria escola não tem resposta. É comum a gente
dizer que a escola tem que estar aberta para a comunidade e falamos isso há mais de
vinte anos. E, em alguns lugares, eu não sei até que ponto a escola consegue manter
os portões abertos, porque ela está sempre vulnerável a invasões, a depredações, a
roubos... Quando você vai numa escola pública de periferia, a coisa mais comum é ver
grade de todo tipo e de todo formato. É como se, de alguma forma, a escola se
sentisse invadida pela comunidade. E em alguns lugares ela de fato é. Muitas vezes, a
escola tem um comportamento de medo em relação à comunidade. Então o diretor
tranca o equipamento, que é pra ninguém roubar. Por outro lado, o equipamento
ficando solto vai ser roubado mesmo. Então, em alguns casos, quando a gente
observa o contexto, discutir gestão democrática da escola vai requerer da gente
olhares diferentes, olhares novos, abordagens novas. A comunidade e a escola estão
expostas ao mesmo tipo de coisas, porque elas estão ali, naquele bairro. Existem
programas, como o do governo do estado [Escola da Família], que deixa aberta as
escolas aos fins de semana e traz a comunidade para dentro dela. Nesses bairros, a
escola é o único lugar potencialmente viável para o lazer aos fins de semana. Ela tem
esse papel.

Pró-menino - Um papel social?

Eloisa - Sim e eu diria que, na verdade, precisamos fazer uma discussão sobre esse
papel social da escola. Existe uma expectativa em relação a isso e existe um papel
social culturalmente já consolidado e que está talvez na mentalidade das pessoas que
trabalham na escola. Existem expectativas que a comunidade tem em relação à escola
e que a escola tem em relação à comunidade. A interlocução dessas expectativas é
que às vezes fica truncada. E isso acontece em qualquer lugar que eu vá, seja no
Piauí ou no interior do estado de São Paulo. A escola espera a participação da família
no acompanhamento escolar das crianças. Quando a família participa da vida escolar
do aluno, valoriza a escolarização e os pequenos têm mais possibilidades de ter
sucesso na escola. Existem estudos sobre isso. Mas as nossas comunidades muitas
vezes não vêem isso como um valor, porque a escola durante muito tempo foi vista
como uma ponte para a ascensão social por garantir o trabalho. Hoje, uma boa
educação ou um bom nível de escolaridade não necessariamente garante trabalho
para todo mundo. E a gente sabe que, cada vez mais, para garantir algum trabalho, a
gente precisa de especializações dos mais variados tipos. As pessoas que vivem
nessas comunidades mais desfavorecidas não têm essa expectativa, então elas não
valorizam tanto a escola. Por outro lado, elas precisam trabalhar, inclusive as mães.
As mulheres começaram a trabalhar de uns trinta, vinte anos para cá, e trabalham o
dia todo, passando menos tempo com os filhos. E aí a expectativa que a comunidade
acaba tendo em relação à escola é essa: de que a escola dê aquilo que ela [a
comunidade] não pode dar. A família tem que dar convívio, a educação também vem
desse convívio, mas não tem condições. A minha filha de seis anos passa a maior
parte do tempo com a empregada ou na escola. E, além de tudo, eu viajo. O tempo
que eu passo com ela é muito pequeno. E essas mães que ficam pouco tempo com os
filhos esperam que a escola faça alguma coisa para compensar. Por isso, a história
das ONGs [organizações não-governamentais] e das redes de proteção... Porque
essas crianças não podem ficar abandonadas. O destino delas pode ser a rua e a
gente sabe que dali pode não vir coisas muito boas. As ONGs estão preocupadas com
isso, tentam garantir um pouco esse outro lado. Porém, muitas vezes a expectativa
que a escola tem em relação aos pais também é um pouco distorcida. Por exemplo,
um pai que tem baixa escolaridade, que mal sabe ler e escrever, ele tem condições de
valorizar a escolarização dos filhos, desde que aquilo seja um valor para ele. Tomar a
lição, perguntar para a criança se tem lição, tomar conta, criar uma rotina para que a
criança possa fazer lição de casa, tudo isso é cultural. Se as pessoas não têm esses
elementos culturais incorporados em seu dia-a-dia, isso se torna uma coisa um pouco
mais difícil e a escola tem esse tipo de expectativa em relação aos pais. A escola
também vive situações muito precárias e espera que o pai esteja lá presente para
ajudar, para pintar uma porta, para trabalhar numa quermesse, para ajudar numa
festa... Mas a escola também tem dificuldade de ver os pais ou a presença dos pais
dentro dela como pessoas que podem ajudar a tomar decisões. A escola não gosta de
ter o pai como alguém que está ali presente e que, junto com ela, decide. Isso tudo eu
acho que é parte do processo democrático que a gente ainda tem que viver e aprender
a fazer. A escola tem que aprender a viver numa sociedade mais democrática, onde
as pessoas podem colocar aquilo que pensam, podem sonhar e, coletivamente, tomar
decisões. Até porque, do ponto de vista cultural, a escola vive submetida a uma rotina
que está para além dela, que é a rotina do próprio sistema público de educação, seja
ele municipal ou estadual.

Portal Pró-Menino - Cada escola é livre para planejar a sua gestão?


Eloisa - Eu diria que em alguns momentos, historicamente pensando, dependendo do
secretário de Educação ou do ministro de Educação. Eu já trabalhei numa escola que
tinha um projeto pedagógico de excelente qualidade, que foi construído por meio de
muitas escolhas feitas coletivamente com os pais, professores e alunos. A Secretaria
de Educação não concordava com as escolhas que nós fazíamos em determinados
momentos e isso teve obviamente conseqüências para a escola. De uma forma geral,
é possível planejar a gestão da escola com participação da comunidade. O problema é
saber como fazer isso. A grande dificuldade da escola é estabelecer interlocução com
os pais e com a comunidade. Você tem que aprender a estabelecer essa interlocução.
Fico me lembrando de uma escola num município muito pequeno chamado João
Monlevade, no interior de Minas [Gerais]. Fizemos um trabalho com as escolas de lá
por dois anos. Um dia, eles me disseram que eu tinha que comparecer ali à noite para
ver como eles trabalhavam com as famílias dos alunos. Era uma comunidade das
mais pobres que já vi: as casas eram muito precárias, não tinha água encanada, não
tinha luz elétrica... A presença do poder público ali era a escola, então tudo era na
escola, porque não tinha nem posto de saúde naquele lugar. A intenção era a de
montar o projeto pedagógico da escola com a participação dos pais, e tinha um
determinado momento que chegava na discussão sobre o currículo da escola. O que a
gente acha importante que os nossos filhos aprendam? Temos que aprender a
perguntar isso e aprender também a ouvir o que eles [os filhos] têm a dizer. Não
necessariamente o que a gente acha que é melhor é o que eles querem. Eu me
lembro de ter entrado numa das salas de aula de uma das escolas da cidade para
acompanhar o trabalho que eles faziam por lá. Era um trabalho brilhante, emocionante
de ver. Para discutir o currículo da escola, primeiro elas tiveram que aprender o que
era o currículo escolar. Pois bem, currículo é aquele papel em que eu coloco os meus
dados para quando eu estiver procurando emprego. Currículo da escola é outra coisa
e aquelas pessoas tiveram que entender seu verdadeiro significado. Isso demandava
algumas estratégias de interlocução. E elas conseguiam fazer isso, a participação era
muito intensa. Uma outra pesquisa que fiz foi numa cidade do Espírito Santo, chamada
Anchieta. Uma das perguntas que fazíamos ao professor era o que ele achava
importante para o aluno aprender dentro daquela comunidade, uma comunidade de
pescadores. Paralelo a isso, também fazia a mesma pergunta ao pai e ao aluno. A
escola achava que os meninos tinham que aprender artesanato. Os alunos e os pais
achavam que tinham que aprender inglês, espanhol e informática. Isso porque eles
trabalhavam em barcos que estavam ficando cada vez mais modernos. Para poder
operar o barco, eles tinham que ler instruções em inglês e espanhol, e o barco era
informatizado. Percebe a diferença de expectativas que a comunidade tinha em
relação à escola e a escola tinha em relação à comunidade? Eu diria que a escola,
nesse caso específico, esperava da comunidade muito menos do que a comunidade
tinha para oferecer, queria e esperava da escola.

Portal Pró-Menino - E esse é um ponto crítico da história, porque para reverter


essa cultura da escola de abrir espaço para que os pais interfiram em questões
curriculares e pedagógicas, precisa-se mexer um pouco com a questão de que
só o professor ou a escola sabem o que o aluno deve aprender.
Eloisa - Isso é fundamental. Não dá pra gente generalizar as escolas. Existem
escolas, profissionais, professores e diretores de todos os tipos, com o mais variado
tipo de formação possível. Você tem do melhor até o mais precário. Aqui no estado de
São Paulo, por exemplo, eu diria que o que temos de melhor em termos de educação
já passou pelo sistema público de educação, não esteve na escola particular. Não dá
para generalizar, tem de tudo e este é o ponto crítico. O que eu observo que acontece
nas cidades do interior é que lá as escolas não têm muita clareza de qual é sua função
social. Elas não têm noção de que aquele pai, por mais pobre e analfabeto que seja, é
a pessoa a quem servem. Isso é ter a noção que, atuando na esfera pública, você tem
que ter o respeito pelas pessoas a quem você serve. E é olhar para essas pessoas de
igual para igual, é uma coisa cultural mesmo, uma coisa de comportamento. Você vê
de tudo. Você pode ver tanto uma escola recebendo bem o pai quanto aquela que fala
com ele olhando de cima para baixo, como se fosse inferior. Muitas vezes, o pai ou a
comunidade não se sente acolhido por conta disso. Eu acho que é uma coisa de
aprender mesmo, de colocar as pessoas para perceber que elas podem fazer e que
elas têm contribuições para dar, não importando a situação dela, se tem pouca ou
muita escolaridade, se tem pouca ou muita cultura... Vivemos momentos de crise e
buscamos respostas para eles. A presença das ONGs também vem como uma
tentativa de resposta a essas crises. Acredito que a escola tem que se ocupar de
garantir o direito de, por exemplo, fazer com que toda criança saia da escola sabendo
ler e escrever. É claro que ela sozinha não vai fazer nada disso. Se num hospital
metade dos pacientes estiver morrendo, a culpa não é só do médico. Muito
provavelmente a gestão do hospital contribuiu para aquele resultado. Nem tudo
depende do médico e às vezes ele está fazendo o que pode nas piores condições
possíveis. A situação é a mesma na escola. Eu diria que a escola tem uma grande
carga, mas o sistema que gerencia tudo isso também tem uma participação muito
forte. Hoje em dia vemos as coisas com olhos um pouco diferentes no sentido de
aproveitar o que tem de bom, como essas grandes avaliações de sistema, Saeb
[Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica], Enem [Exame Nacional do
Ensino Médio] e Saresp [Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de
São Paulo]. Eu me lembro que no começo as críticas que nós educadores fazíamos
eram que elas avaliavam o produto e não o processo. Por exemplo, olhar um dado
qualquer do Saeb que diz que 50% dos meninos estão saindo da quarta série sem
saber ler e escrever, 40% terminam e 60% não terminam, você não está olhando todo
o processo, não vê o que veio antes. Se você começar a pegar esses dados na
seqüência histórica, você vai ver que no ano tal tantos por cento foram aprovados, no
ano tal aumentou a taxa de aprovação, mas, recentemente, você vai ver que a taxa de
aprovação diminuiu. O que está acontecendo? Tem alguma coisa errada. E não é só
na escola que a questão está localizada, a responsabilidade não pode ser atribuída
somente à escola ou só ao professor. Você tem que olhar a coisa no global, porque o
resultado final é de responsabilidade de todo mundo, do sistema, da escola, do
professor e da sociedade como um todo.

Portal Pró-Menino - Deve haver essa responsabilidade do sistema, dos mais


altos níveis, mas as escolas se destacam nesse meio.
Eloisa - Então, só que aí você tem que ver o seguinte: as escolas não têm condições
iguais, assim como os alunos. A idéia da escola pública é a de que todo mundo entra
em igualdade de condições e que aí os melhores se destacam, mas isso não é
verdade. Tem gente que entra em condições mais vantajosas e gente que entra em
condições menos vantajosas. O que a escola vai fazer para dar conta de todo mundo
é que é a grande questão. No Brasil, durante muito tempo, a gente fez estudos que
ainda estão valendo, que são os famosos estudos sobre o fracasso escolar. Tem
milhares desses estudos e todos eles provam que quem fracassava na escola pública
não era criança de classe média que estava na escola pública, era a criança mais
pobre. Porque ela vem com menos condições, menos referências culturais, o pai é
menos letrado, na casa dela não se lê jornal, não tem livro. Ela vem em condições
diferentes, o que não quer dizer que aquela criança tenha menos condições
intelectuais que a outra, ela tem as mesmas condições intelectuais que a outra, mas
ela não tem as mesmas condições de vida. E o resultado é que a desigualdade se
perpetua. De trinta anos pra cá houve um movimento muito forte de ampliação das
vagas. Hoje em dia, quase 100% das crianças estão na escola. Isso é um avanço
importante na direção da garantia dos direitos, mas ainda não foi garantido um outro
direito, que é o direito à aprendizagem. Toda criança tem que sair da escola sabendo
ler e escrever.

Portal Pró-Menino - Mas com a universalização do ensino, aumentou o número


de professores menos capacitados.

Eloisa - Esse é um outro lado da questão, mas eu diria que a escola não dá conta de
ensinar todo mundo. Ela não conseguiu mudar a mentalidade do ponto de vista
cultural, a mentalidade de classe média. Então a criança de classe média que está na
escola pública está indo bem. Criança que não é de classe média não está.

Portal Pró-Menino - A escola ainda não acessou essa criança?


Eloisa - Não acessou, não conseguiu estabelecer interlocução com o mundo dessa
criança, não conseguiu ensinar essa criança. E isso é um grande desafio. Mas
também tem uma outra coisa: temos vivido um processo muito complicado de
desvalorização profissional do professor e de outras pessoas que atuam na área de
educação. Os salários ainda estão muito ruins e a formação deles dá poucas
respostas para as necessidades que a escola pública tem. Então o que diz a LDB [Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional]? Que temos dez anos para que todo
professor, mesmo que trabalhe com ensino infantil, tenha ensino superior. Aí o que
vemos de dez anos pra cá é um “boom” de universidades particulares abrindo por aí,
em todos os lugares do Brasil, dando qualquer tipo de curso de formação para
professor. Esse é um outro ponto muito sério. Não se pergunta hoje qual é o professor
que o Brasil precisa e que formação esse professor tem que receber para dar conta do
desafio de fazer com que todas as crianças aprendam. Não existe política pública que
venha do Ministério da Educação ou de qualquer Secretaria Estadual de Educação,
pelo menos não em São Paulo, que dê conta disso. E também tem um outro fenômeno
muito interessante: de dez ou quinze anos para cá, a gente tem muita formação de
professor no mercado, que vem de todo lado. Quem dá formação às vezes é a própria
Secretaria de Educação, mas ela terceiriza esse serviço. No Cenpec, a gente dá
formação de professor e elas têm qualidade. Mas elas também não respondem a essa
questão da aprendizagem do aluno. Pode até ter diminuído o índice de reprovação das
crianças, mas não aumentou o índice de aprendizagem.

Portal Pró-Menino - É por isso que agora cresce o uso da alfabetização fonética?
Eloisa - Uma bobagem. O bom alfabetizador vai misturar construtivismo com método
fonético, com silábico, com tudo. Ele vai lançar mão do que é eficiente para pôr a
criança para alfabetizar. Outra coisa que todo mundo sabe também é que a criança
cujo pai e mãe lêem para ela todos os dias tem acesso à escrita dentro de casa. Olha,
criança de classe média em escola particular dificilmente não aprende a ler e a
escrever, porque ela tem contato com a escrita e com a leitura no cotidiano e na rotina
dela, e não é porque a escola é melhor. Eu quero ver escola particular dar conta de
crianças que estão na escola pública. Ela não dá, eu sei que não dá. Se o pai não tem
curso universitário, ele não pode ajudar na lição de casa do filho. Tem lições ótimas,
mas, por exemplo, meu filho mais velho uma vez trouxe para casa um trabalho sobre
ditadura militar. Ele precisava dizer como que era a moda naquela época.
Precisávamos pegar uma revista antiga para ver isso. E quem é que guarda revista
antiga dos anos 70? Às vezes os pais têm que ajudar pesquisando na Internet. Você já
imaginou a situação de mãe que não tem condições? Às vezes o menino não tem nem
mesa para fazer a lição.

Portal Pró-Menino - O professor Antonio Carlos Gomes da Costa, em entrevista


ao Pró-menino , disse que uma das estratégias interessantes para que a escola
melhore e para que a comunidade reivindique melhor a qualidade das escolas, é
que haja realmente uma gestão democrática entre os interessados e os
envolvidos. Como o ECA pode auxiliar nessa melhoria da gestão democrática?

Eloisa - O ECA não pode tudo. Criança, pobre ou rica, tem direito a educação.
Criança, pobre ou rica, tem direito à aprendizagem. O que tem determinado que
crianças ricas aprendam mais que crianças pobres são as condições em que essas
crianças ingressam na escola, permanecem na escola e terminam a escola. A gente
vive numa sociedade que não é inclusiva. Ela cria fossos, ela separa as pessoas.
Acho que as escolas, de um modo geral, têm feito esforços muito grandes, assim
como as comunidades e os pai. Eu acredito em gestão democrática e acho que o pai
tem que ir pra escola e ajudar nas decisões. Esse é o caminho. Agora, como aprender
a conviver democraticamente e a respeitar a diversidade é que é a grande questão. A
escola tem uma função social clara e importante, ela tem que cumprir o papel de
garantir o direito à educação com qualidade para todas as crianças. Só que isso não
depende de uma escola isoladamente. A gente não tem muitos estudos que revelem o
sucesso de determinadas escolas. Às vezes a condição para isso pode ser uma
liderança forte por parte da direção da escola ou uma comunidade organizada. Uma
comunidade bem organizada às vezes faz a diferença também, porque sabe qual é o
seu papel, também compreende a sua função social e sabe estabelecer conversa com
sua direção. Um grupo de professores muito interessado, que gosta do que faz...
Portal Pró-Menino - E um grupo de adolescentes também que, eventualmente, se
mobiliza em grêmios...

Eloisa - Mas a escola tem um grande papel de abrir espaço do ponto de vista
pedagógico para que estes meninos consigam aprender a se organizar em grêmios.
Ela tem que aprender a criar situações pedagógicas para que as pessoas atuem
democraticamente. Aquela história que eu contei do município de Monlevade. Aquelas
pessoas podiam ensinar muita gente a estabelecer interlocuções. As professoras eram
pessoas comprometidas, mas ninguém ali tinha pós-graduação ou outra formação
especial. Tinham uma vontade especial de fazer e tinham uma crença muito forte.
Existia compromisso e responsabilidade. Agora, do ponto de vista cultural, estamos
vivendo uma crise de valores muito forte. A escola não está imune a essa crise de
valores. Então, por exemplo, a escola deve criar situações pedagógicas para que as
crianças possam aprender que “eu levanto a mão e espero a minha vez de falar e eu
também tenho que ouvir o que o outro diz, mesmo não concordando com o outro”. Isso
é muito difícil, nem todo mundo sabe fazer. Vejo que o professor fica perdido, porque
ele gostaria de fazer isso, mas ele não sabe como por não ter aprendido a fazer. A
gente está num processo de aprendizagem, enquanto sociedade eu diria. O ECA é um
estatuto e ele cumpre um papel importante. E a escola não pode fechar os olhos ao
ECA, ela tem que respeitar. Quando ela abre um espaço pedagógico para que a
criança aprenda a dialogar, ela está, de alguma forma, caminhando no sentido de
encontrar aqui todos os pressupostos colocados, todas as vontades, todos os desejos
colocados para aquelas crianças. Agora, é preciso também que essa seja uma
vontade, mas do coletivo, do social.

Portal Pró-Menino - E de onde vem essa questão de que o diretor é dono da


escola?

Eloisa - Imagina. Nunca ouvi falar nisso.

Portal Pró-Menino - Se não está na vontade do diretor, nada acontece. É como


um poder preponderante sobre todos os outros.
Eloisa - A gente tem, hoje em dia menos, aquele diretor que é a lei máxima. Tem esse
diretor que às vezes é inebriado pelo pequeno poder e que se sente dono da escola.
Aí ele monta ali uma cartilha, uma rotina às vezes rígida, autoritária, e que todos
devem seguir porque ele se sente a autoridade máxima. Mas você tem outros tipos de
diretor também. Você tem aquele que é uma liderança, que conclama, que mobiliza
professor, que mobiliza pai, que mobiliza aluno. Isso é uma questão ideológica. As
pessoas acreditam que se o diretor é uma liderança positiva é ele que vai fazer
diferença. Em muitos lugares isso acontece. Em outros lugares não vai adiantar esse
diretor bacana se a escola não tiver um corpo docente muito comprometido e que não
tenha muitas afinidades ideológicas com ele. Ele pode ser um grande líder, mas se
aquele grupo não tem afinidade com ele, não sei até que ponto ele vai obter sucesso
em sua ação. Isso é a gênese da gestão democrática.
Portal Pró-Menino - Mas uma gestão democrática, idealmente, ela iria além
dessas pessoas.

Eloisa - Ela vai além dessas pessoas. Em qualquer grupo grande, você tem que ter
alguém que faça a coordenação. A pessoa que coordena é aquela que de alguma
forma dá as diretrizes. É ela que vai trazer para o grupo diferentes possibilidades de
as pessoas analisarem qual é a melhor opção. Ela pode dar sugestões, as pessoas
também, ela ouve e respeita a vontade da maioria. Fico me lembrando de uma
experiência forte que tive na escola, como professora e coordenadora, onde ficamos
sem diretor durante quatro anos e a escola funcionava feito um relógio. Todo mundo
morria de inveja. Como é que essa escola está sempre limpa, como é que essa escola
funciona, como os professores estão dando aula lá? A liderança não vinha de uma
pessoa, vinha do próprio grupo. Todos tinham uma crença forte, tinham uma diretriz,
sabiam para onde queriam ir. E o clima de confiança no grupo era tão forte que se
alguma decisão tinha que ser tomada de manhã, estando algumas pessoas por lá e
outras não, a decisão era tomada naquele momento e todos confiavam na decisão,
baseada em certos combinados que fizemos anteriormente. Isso é o que tanto
defendemos na escola pública: o tal do trabalho coletivo. Um bom líder trabalha
coletivamente. Não dá para personalizar.

Portal Pró-Menino - Aqui no Brasil a gente fica sempre na pessoa, a gente não
perpetua para o grupo. Sobre a questão do regimento interno da escola, qual é a
sua visão sobre esse documento? Ele tem a condição de perpetuar o modo de
ser da escola, algo como uma constituição?
Eloisa - É isso mesmo. Ele pode ter esse papel, desde que as pessoas o conheçam
com clareza ou que elas participem da elaboração dele, que seja uma participação
democrática mesmo. O regimento interno tem que passar pela mão do diretor, do
coordenador, do professor, dos funcionários, dos alunos, dos pais... Se todos
conhecem aquilo fica muito mais fácil você gerir, seguir as regras, porque elas já foram
criadas e pensadas pelo coletivo, inclusive pelos alunos. E criança, mesmo as
pequenininhas, sabe muito das coisas. Costumamos achar que não dá para discutir
democracia com criança. Mas é com ela que começamos a discutir o assunto. A
criança de três, quatro ou cinco anos está muito centrada nela própria, por isso ela tem
que começar a ter vivências que mostrem a ela a alteridade, a importância do outro e
o papel do outro dentro do grupo. Eu tenho a minha vez de falar, posso expressar a
minha opinião e tenho que aprender a esperar a minha vez. Você pode começar isso
na pré-escola e é uma vivência que você vai desenvolvendo. Não adianta você
começar de uma hora pra outra, porque terá um trabalhão de discutir regras de
convivência com os alunos. Se eles estão habituados desde pequenos, fica muito mais
fácil quando eles estão lá na quinta, na sexta, na oitava série. Você cresce com aquilo
e vai desenvolvendo. Quantos professores puderam ter esse tipo de vivência,
perceber, observar ou saber que isso funciona? Outro dia eu estava conversando, lá
em Araçatuba [cidade de São Paulo], com um bando de professores e com
conselheiros tutelares. Discutíamos que os meninos não respeitam o que o professor
fala e falam todos de uma vez. E se percebe pela fala das pessoas a angústia de não
saber como é que deve lidar com as crianças quando esse tipo de situação de
descontrole acontece. Ela não sabe, do ponto de vista técnico e pedagógico, ela não
tem o domínio necessário para organizar o grupo. O professor tem que lidar com
conhecimento, ele tem que ter boa formação intelectual, isso num mundo ideal. Ele
tem que ter boa formação intelectual, mas ele também tem que ter domínio técnico-
pedagógico de estratégias para lidar com o grupo, para fazer com que o grupo
aprenda a respeitar as diferenças. Eu fico lembrando do meu filho, que hoje já é
adulto, quando estava na pré-escola. A professora que eles tinham era uma
professora muito boa. E essa coisa de fazer com que as crianças respeitassem a
diversidade era uma coisa que aparecia. Tinha uma menina de quatro anos no grupo
que já lia e escrevia. Tinha uma outra criança que, quando desenhava, seu desenho
não tinha linhas claras, era uma garatuja. Tinha dentro do grupo uma diversidade
muito grande. Eles aprenderam a respeitar o jeito do outro de fazer e de não ficar se
comparando. Mas essas são situações pedagógicas, o professor tem que ter
sensibilidade para fazer a leitura do movimento do grupo, para conhecer as crianças.
E às vezes têm situações que você vive na escola que são muito duras. Você lida com
crianças que vivem em ambientes de extrema violência. A criança aprende a violência
e a violência é o modelo que ela tem. Esse modelo tende a se perpetuar, porque a
criança leva isso para dentro da escola e ela a reproduz lá. Às vezes a escola não
sabe lidar com isso. Eu, particularmente, nunca me vi em situações do gênero e não
saberia o que fazer. E elas são cada vez mais presentes nas escolas, elas afloram.
Existe um mundo ideal, existem condições ideais, mas a gente vive numa sociedade
que vive uma profunda crise social de valores.

Portal Pró-Menino - Como você vê trabalhos de organizações, como a Undime


[União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação], que lidam com a
gestão democrática?

Eloisa - A Undime tem um papel político muito importante no Brasil para os


municípios, sobretudo. O município muitas vezes não tem quadros formados para
fazer uma boa gestão. Grande parte deles não tem quadros gestores, porque fazer
gestão é um negócio complicado. Não tem gente com preparo para isso, a gestão não
é uma gestão pública de fato, é uma gestão partidária dentro da educação também.
Por isso a Undime tem um papel importante, porque ela politiza um pouco mais esse
tipo de coisa. Ela realiza seminários interessantes, em que as pessoas ali podem
discutir. É um seminário em que vão, sobretudo, secretários de Educação do Brasil
inteiro. A Undime também ministra cursos, oferece assessoria para os municípios,
oferece ferramentas. Ela ajuda os municípios a se articular, se tem, por exemplo, essa
coisa do regime de colaboração município-estado. Então o município tem que estar
bem municiado, bem preparado para lidar com essas questões.

Portal Pró-Menino - O que você acha do trabalho das ONGs no contra-turno


escolar?

Eloisa - Elas tentam também dar uma resposta. Eu acho que tem organizações de
todo tipo, de toda qualidade. A gente tem que tomar cuidado com o discurso de
algumas, tem discursos que eu acho perniciosos. O discurso de ONG que diz que
escola é chata, por exemplo, considero enganoso e acho que eles enganam a si
próprios quando falam isso. A maioria das ONGs faz um trabalho de tentativa de
escolarização. Bom, aí você tem um espectro que é o mercado, existe a competição. A
ONG pode ter um papel importante, pode complementar o trabalho da escola, mas
não pode escolarizar. Não tem essa de ficar dando curso de reforço escolar, ela pode
ter outros, oferecer outras coisas para fomentar a aprendizagem, o aumento de
referenciais culturais da criança.

Portal Pró-Menino - Mas o reforço escolar não supre a ausência da família?


Eloisa - Eu acho que não. A escola também pode dar reforço escolar. A ONG pode
trabalhar com outros elementos que vão favorecer a aprendizagem e a convivência da
criança na escola. Trabalho com esportes, trabalho com cultura, trabalho com arte... A
questão da rede de proteção é muito séria, porque hoje você tem uma quantidade
muito grande de crianças que estão totalmente fora dela. Nos municípios pequenos,
por exemplo, não existe ONG, não existe assistência social e, por isso, tudo vai para a
escola. Ela fica meio afogada e não consegue dar conta. Acho que a ONG tem um
papel e a escola tem outro diferente. Precisamos trabalhar em conjunto para garantir a
proteção e o direito à educação. A escola não dá conta de tudo, a família não dá,
então a gente tem que criar redes de proteção. Acho que temos que tomar cuidado
com os diferentes tipos de ONG. Sou contra esse discurso da escola ser chata, porque
hoje em dia a gente trabalha muito com o prazer imediato das coisas. Televisão te
proporciona um tipo de interação muito diferente do que a leitura de um livro do
Fernando Pessoa. E aquela ONG, que muitas vezes diz que a escola é chata, recebe
alunos que já estão alfabetizados. A escola pode melhorar muito sua metodologia e
disso ninguém discorda. A escola hoje não garante emprego para ninguém, mas a
gente sabe que quem vai para a escola tem que aprender a ler e escrever e, mesmo
que ela não tenha o melhor emprego do mundo, a qualidade de vida vai ser outra.

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