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Guia de promoção de resiliência

* Cenise Monte Vicente

Índice

1. Introdução

2. Planejamento

3. Recomendações para a vida cotidiana

Introdução

Resiliência é um termo utilizado para definir a capacidade humana de passar por


experiências adversas sucessivas sem prejuízos para o desenvolvimento.

Algumas pessoas, cujas biografias foram marcadas por tragédias acumuladas,


chamaram a atenção dos estudiosos da psicologia do desenvolvimento pelo
modo de responder às dificuldades e de transformar tais eventos em promotores
de habilidades para a vida.

Para afirmar que o desenvolvimento das potencialidades do sujeito não foi


afetado negativamente pelas situações de risco vividas, proponho identificar se o
sujeito é capaz de amar, de trabalhar e se assume seus direitos e deveres como
cidadão.
Resiliência é um termo Pensei em propor este guia: um conjunto de
utilizado para definir a recomendações para operadores sociais que
capacidade humana de trabalham com crianças e adolescentes cujas vidas
são marcadas pela violência.
passar por experiências
adversas sucessivas Acredito que estas sugestões possam ser úteis
sem prejuízos para o especialmente para os jovens que responderam de
desenvolvimento modo irado às condições adversas de suas vidas.
Quando o sistema é destruidor, aquele que manifesta
a ira revela ter preservado aspectos fundamentais da condição humana. Existe
um acúmulo de conhecimento sobre resiliência que nos permite afirmar que é
possível promovê-la.

A resiliência é um fenômeno psicológico construído e não é tarefa do sujeito


sozinho. As pessoas resilientes contaram com a presença de figuras
significativas, estabeleceram vínculos, seja de apoio seja de admiração. Tais
experiências de apego permitiram o desenvolvimento da auto-estima e da
autoconfiança.

Outro motivo para a elaboração deste trabalho é o entendimento de que estamos


diante de uma ferramenta, um conceito com potencial de instrumentalizar os
trabalhadores da área da infância para a educação, para a vida e para a
cidadania.

A resiliência tem uma dimensão ética que não pode ser negada. Ela só é
possível quando existe esperança no futuro e quando existe um sentido
anunciado, uma meta, um horizonte ético que nos coloca para frente. Um dos
fatores de destruição do trabalho de um educador social ao lidar com vidas
difíceis é a descrença que nasce do modelo do dano, no qual predomina a
observação apenas dos problemas e das dificuldades, algumas vezes com muita
precisão, mas que não insere na análise qualquer perspectiva ou alternativa de
resolução.

O modelo fundamental para o desenvolvimento da resiliência é o modelo do


desafio, no qual tanto o reconhecimento do problema quanto das soluções estão
presentes. A promoção da resiliência, portanto, serve não apenas aos meninos e
às meninas em dificuldade, mas à toda comunidade comprometida com estas
vidas.

O primeiro grande passo diz respeito à própria equipe. Boa parte do problema
tem relação com as dificuldades do próprio mundo adulto que fracassou com
estes jovens
A equipe realiza seu trabalho em determinado contexto institucional. Ao chegar
às instituições, as pessoas encontram muitas rotinas, regulamentos, tradições,
modos de compreensão e de relacionamento estabelecidos. As instituições têm
memória, mas nem sempre ela é explícita ou consciente: muitas vezes são
gestos que se repetem e ninguém sabe explicar a origem. É neste ponto que o
Estatuto da Criança e do Adolescente encontra enormes dificuldades de
implantação, já que ele exige a criação de um repertório novo.

O antigo repertório do Código de Menores explicava-se pela função do internato -


exclusão ou seqüestro social, associada a uma dinâmica centrada na vigilância e
na punição. A distância da comunidade permitia o pacto de omissão e silêncio,
enquanto na clausura só restava aos presos transgredir ou acatar a morte civil
em silêncio.

A construção de um repertório novo dependerá da capacidade criativa e


democrática da comunidade institucional, incluindo aí seus destinatários e suas
famílias.

O objetivo deste Guia é de colaborar com alguns elementos necessários neste


processo de transformação.

Planejamento

A equipe deve definir suas metas, imaginar o Um cotidiano democrático


futuro, estabelecer objetivos realizáveis, que
exige construção de
sejam ao mesmo tempo "abrangentes e
detalhados". A meta transversal, aquela que atitudes pouco freqüentes
deve permear todas as demais, é a construção em nossos repertórios. Esta
de um ambiente solidário e promotor do construção passa por
potencial de todas as pessoas envolvidas no sensibilização,
trabalho, seja na condição de operador seja compreensão e treinamento
como destinatário.

Planejar de modo democrático e participativo possibilita que todos os setores


participem da construção do quê fazer. Permite que os diferentes atores
institucionais conheçam os problemas e construam as soluções que serão
implementadas, dando sentido para suas ações e inserindo-as num conjunto
articulado voltado para metas comuns.

A experiência de planejar deve sempre contemplar os períodos de avaliação, na


qual as operações, o cronograma e os responsáveis possam ser discutidos com
todo o grupo avaliador. Com os resultados parciais avaliados é possível corrigir o
plano de trabalho. Planejar/avaliar/planejar permite romper com o modelo do
dano, pois o famoso discurso do "é muito difícil" deve ser substituído pelo
"podemos fazer".

Planejar não dispensa o treinamento. Os hábitos e os modos de responder às


situações de conflito têm uma matriz muito autoritária em nosso país. Um
cotidiano democrático exige construção de atitudes pouco freqüentes em nossos
repertórios. Esta construção passa por sensibilização, compreensão e
treinamento. A capacitação permanente da equipe é um elemento fundamental
na formação dos operadores.

Recomendações para a vida cotidiana

1) A construção do sentido

As condições adversas de vida podem levar as pessoas a uma atitude existencial


provisória, um modo de ocupar-se apenas com o presente baseando-se numa
atitude fatalista, de que "não tem jeito", "não adianta".

A construção do sentido é acompanhada da introdução do futuro. Mas, este


futuro precisa ser experimentado, por isso os projetos iniciais têm que ser de
curto prazo, viáveis e concretos. As atividades lúdicas, a organização de uma
festa, de um campeonato, permitem que o potencial se expresse e,
simultaneamente, haja prazer ou satisfação.

2) Calendário Baiano

Tão logo uma atividade tenha sido realizada, uma nova deve mobilizar o grupo,
de modo a introduzir novos sentidos. A sucessão de sentidos pode solicitar
atitudes diferentes, pode criar possibilidades de novos destaques, pode criar
espaço para que uma aquisição recentemente adquirida possa aprimorar-se e
oferece novos papéis, retirando os envolvidos das estereotipias freqüentes nas
experiências crônicas.

O futuro, a auto-estima e a autoconfiança estão sendo trabalhados pela tarefa.

3) O sentido e o lugar no mundo


Junto com a construção da vontade de sentido, podemos fomentar na criança e
no jovem um projeto de lugar no mundo, no futuro. Os jovens que não
conseguem imaginar seus futuros são os mais frágeis. Se o futuro não existe, ou
se a pessoa não "ocupa" um lugar no mundo no futuro, não há esperança, não
há desafio.

4) O ensino fundamental e o sentido

Muitos jovens não conseguem entender para que serve o conhecimento. Fica
difícil dedicar-se a algo cuja finalidade não está clara ou que não tem gancho
com a vida e a perspectiva do aluno.

Devido a isto, torna-se fundamental estabelecer os nexos entre as matérias


básicas e as profissões. Assim, o aluno pode entender para quê serve a
matemática, a língua portuguesa, as ciências, pois, junto com estes saberes,
existem modos de estar no mundo, por meio da produção. Cria-se uma ponte
entre o ensino, o mundo e o futuro. Aprender passa a fazer sentido
pessoalmente.

5) A auto-estima

Muitos meninos têm uma auto-imagem negativa. Cresceram ouvindo "profecias"


extremamente negativas e desqualificadoras. A equipe que desejar desenvolver
no jovem amor por si mesmo e pelos demais precisa desconstruir a imagem que
o menino trouxe. Esta desconstrução não é difícil. Dependerá do olhar da equipe
para as qualidades e potencial do jovem.

6) Cuidar-se e cuidar

Os cuidados com o próprio corpo têm um importante papel na promoção da auto-


estima. Estimular a capacidade de cuidar de si mesmo. E simultaneamente
fomentar os cuidados com os ambientes onde o cotidiano transcorre. A dimensão
estética, as cores, as formas e a construção de "coisas belas" devem ser
estimuladas. É claro que esta estética virá marcada pelos interesses da
adolescência, da cultura, da época, mas o que nos interessa é o movimento de
preservação, de carinho, enfim, da autopreservação.

7) Livro de ocorrências novo

Nas instituições, existe sempre um registro das chamadas "ocorrências",


destinado a anotar os problemas, os erros, as brigas, as medidas adotadas frente
aos conflitos. Este livro precisa mudar de enfoque.
Quando o menino acerta, quando eles se entendem, quando revelam suas
qualidades e interesses, onde fica o registro? Precisamos começar a anotar as
soluções, as possibilidades.

Se esta mudança é estabelecida, começamos a fazer profecias positivas e o


adolescente tem a oportunidade de mudar sua auto-imagem e sua postura.

8) Os gestos anti-sociais

Quando o menino ou menina são agressivos ou "inadequados", o que fazer?

Antes de atribuir os motivos do jovem e condená-lo com alguma medida


disciplinar, precisamos entender o acontecimento. Entender suspendendo a
tendência de classificar entre certo e errado, bom e mau. A maioria destes atos
expressa um pedido de socorro ou um fragmento importante da vida do sujeito.

Compreender uma conduta fora do campo onde ocorreu é impossível. A biografia


e o contexto são fundamentais.

9) Não contra-atuar

Quando algum direito Quando o jovem apresenta um comportamento


fundamental está disruptivo, é muito freqüente que a resposta
ameaçado, como, por correspondente do operador seja uma espécie de
espelho. Se o menino está, por exemplo, nervoso, o
exemplo, o direito de educador entra na cena como um complementar,
aprender, os programas fazendo com que aquela atualização de algo
podem desenvolver um biográfico ou pedido de socorro se transforme em
SOS questão disciplinar e não numa possibilidade de
diálogo e elucidação das origens da atitude.

10) Desaquecendo as cenas

Estes momentos de tensão são quentes, dominados por escassa disposição para
ouvir e compreender. São necessários procedimentos de desaquecimento. Além
de não complementar a cena violenta, o operador deve facilitar a expressão
verbal de todos os protagonistas, retirar o conflito da dimensão dramática e
introduzi-lo num campo do diálogo, no qual poderá ocorrer elaboração.

11) As pequenas alegrias

Momentos de conversas coletivas, de cantoria, de leitura em grupo, de narrativa


popular podem ser momentos de restauração, de trégua e também de
elaboração. As histórias têm sempre uma mensagem, uma lição. Mas, a
atmosfera criada nestas atividades talvez sejam mais importantes do que o
recado verbal. É a melodia da canção.

12) Humor

O bom humor indica flexibilidade, plasticidade mental. Revela a capacidade de


fazer de conta, de olhar as coisas com certa distância, com crítica. Tal
capacidade associa-se à capacidade de rir. O riso indica certo distanciamento
dos fatos, cria a possibilidade para que os eventos possam ser entendidos sem
afetar a pessoa de modo imediato.

Aprende-se a relativizar.

13) Sistema de Socorro

Quando algum direito fundamental está ameaçado, como, por exemplo, o direito
de aprender, os programas podem desenvolver um SOS. O sistema de socorro
deve atender a todos os envolvidos na situação de "risco": operadores e
educandos.

Muitas situações resultam em exclusão ou expulsão. Se este movimento puder


ser substituído por processos de reinclusão qualificada, todo mundo aprende.

14) Direito à ternura

Os vínculos são muito importantes para a vida. Bebês morrem de carência


quando não são amados. O afeto é tão importante quanto as vitaminas. Ele
envolve um campo novo, que é difícil de expressar em lei. Trata-se do direito à
ternura.

* Cenise Vicente é psicóloga, foi oficial de projetos do UNICEF e presidente


do Conselho da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI).
Atualmente é diretora da empresa de consultoria Oficina de Idéias e
coordenadora do Projeto Envolver da Rede Social São Paulo.

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