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Sinclair, L. C. A. (2010). Por que a mulher permanece em um relacionamento violento? In: L. C.

de A. Williams, J. M. D. & Maia, K. de S. A. Rios (Orgs). Aspectos psicológicos da violência:


pesquisa e intervenção cognitivo-comportamental (pp. 84-91). Santo André, SP: ESETec Editores
Associados.
CAPÍTULO 4
POR QUE A MULHER PERMANECE EM UM RELACIONAMENTO
VIOLENTO?1

Débora Sinclair
Tradução de Miriam Bonomi e
Lúcia Cavalcanti de Albuquerque Williams

Sabemos que toda mulher é vulnerável a se tornar vítima da violência, mas não
há modo de prever quais mulheres o serão. Por que razão uma determinada mulher toma
uma ação protetora imediatamente após uma única agressão ao passo que outra sofre
agressões repetidas? Como terapeutas raramente atendemos mulheres que foram
agredidas apenas uma vez. Não temos estimativas no sentido de saber a quantas
mulheres isto acontece, pois é pouco provável que estas nos procurem para obter ajuda.
Atendemos, entretanto, a mulher que é agredida repetidamente. O que ocorre com tal
mulher antes do episódio de agressão que torna difícil a ela tomar iniciativas no sentido
de se proteger? O que acontece depois da agressão para mantê-la em uma posição de
vítima? Nossa experiência nos ensina que estas questões precisam ser respondidas antes
de se fornecer um atendimento eficaz.

A tarefa do terapeuta consiste em avaliar, juntamente com a cliente, quais os


fatores mas prementes que a impedem de alterar a situação. A Figura 2 tem sido útil no
sentido de delinear alguns dos aspectos que contribuem para a ocorrência do fenômeno
da violência contra a mulher2.

                                                            
1
  Esse capítulo é parte do livro: Sinclair, D. (1985). Understanding Wife Assault. Toronto:
Publications Ontario. Reprodução parcial autorizada pelo autor. Capítulo traduzido
parcialmente.
2
Conroy, K. (1982). Long-term treatment issues with battered women. Em S. Flanza (Org.)
The Many Faces of Family Violence. (pp. 24-33). Springfield, Illinois: Charles C. Thomas.
A. B.
Crenças Sociais Recursos/Respostas
da Comunidade
 
 

C.
Experiência
Psicossocial da
Vítima

O Círculo A representa as crenças sociais que contribuem para manter a mulher


prisioneira de uma relação abusiva.

O Circulo B refere-se tanto a respostas que ela recebe da comunidade como o


acesso que ela tem a recursos que a permitirão abandonar uma relação abusiva.

O Circulo C representa a experiência psicológica da mulher agredida que


contribui para sua vitimização.

O terapeuta precisa ter uma compreensão ampla da interconexão entre todos os


fatores que contribuem para complicar a vida da mulher que sofre violência. A maioria
das mulheres que é vítima de violência se encaixa nas áreas sombreadas da Figura. As
pessoas com experiência clínica na área chegaram a um consenso sobre os fatores que
contribuem para a situação da mulher agredida. Este capítulo discute tais fatores.

Crenças Sociais que contribuem para a Violência contra a Mulher

Todos nós crescemos com certos valores e crenças sobre o fato de sermos
homens ou mulheres: sobre casamento, divórcio, a privacidade do lar, a expressão de
afeto e de raiva. Alguns dos valores e crenças enraizadas em nossa sociedade são
elementos complicadores da vida da mulher agredida.

O papel tradicional feminino

A mulher é ensinada desde a mais tenra idade a aceitar passivamente o que a


vida lhe traz. Com freqüência, ela sai da casa do pai para ir viver na casa do marido. Ela
abre mão do sobrenome do pai para assumir o sobrenome do marido. Sua socialização a
leva a acreditar que seu valor como pessoa será medido por sua capacidade em
“encontrar um bom partido” e “saber mantê-lo”. Ela cresce acreditando que um homem
irá tomar conta dela do ponto de vista econômico e social e, em contrapartida, ela
tomará conta da casa e dos filhos de tal homem. Se ela tiver uma carreira, esta será
secundária à carreira do marido. Toda a expectativa é no sentido de ela assumir uma
posição de dependência ou infantilidade, de uma pessoa desamparada no mundo,
enquanto os homens de sua vida irão tomar as decisões importantes que afetam o seu
futuro. Espera-se que a sua fonte de prazer seja derivada do fato de agradar aos outros,
principalmente se estes forem homens. Ela passa a buscar aprovação do homem como
forma de se auto-afirmar.

Eis alguns exemplos de verbalizações que contribuem para o fato de ela


permanecer em um relacionamento abusivo e refletem expectativas estereotipadas da
mulher:

“Você fez a sua cama, agora se deite nela”.


“O casamento não é um mar de rosas. Você tem que aceitar o que há de errado e o que
há de certo nele”.
“É seu dever ficar do lado dele. Ele deve estar sob muita pressão”.
O treinamento para o papel tradicional feminino prepara a mulher
adequadamente para assumir a posição de vítima. Ela aprendeu a pensar que será
egoísta se colocar suas necessidades à frente das necessidades das outras pessoas. Em
um relacionamento abusivo, ela corre o risco de ser chamada de mártir ou masoquista se
defender com lealdade o parceiro, quando na verdade está simplesmente representando
um papel pelo qual foi treinada. A mulher recebe uma pressão imensa para fazer o seu
casamento funcionar, ou pelo menos ter a aparência de que funcione. Ela recebe a
responsabilidade tanto pelo sucesso quanto pelo fracasso de sua união, fato que coloca a
mulher agredida em um beco sem saída: se ela proteger a si própria da violência, saindo
de casa pode ser acusada de abandono do lar; se ela permanecer no relacionamento
abusivo é acusada de necessitar deste abuso ou pior, de derivar prazer do mesmo. Um
enorme conflito é, então, criado para a mulher vítima de violência, uma vez que falhar
em manter o seu casamento significa falhar na expectativa mais básica de seu papel.

A privacidade do lar
Nossa sociedade ensina que a família é uma entidade sagrada e, portanto,
nenhum intruso tem o direito de nela intervir. Espera-se lealdade à família e acredita-se
que o que acontece atrás de portas fechadas é um assunto particular.

“Não lave roupa suja em público”.


“Aqui é a minha casa e posso fazer o que bem entender”.
“Não é da minha conta interferir em assuntos privados da família”.
A crença no lar como sendo uma entidade sagrada impede vizinhos, familiares,
amigos preocupados e até profissionais de intervirem de modo eficaz quando
presenciam ou ouvem falar a respeito do abuso. Enquanto há um certo mérito na crença
sobre a privacidade do lar, tal fato é, freqüentemente, usado como desculpa para a
irresponsabilidade ou falta de ação, encorajando as mulheres a lutarem e sofrerem em
silêncio.

O modelo de família intacta é o ideal

Pelo fato de o modelo familiar contendo um casal ser considerado ideal, muitas
pessoas acreditam que a família deva permanecer unida a qualquer custo. É atribuído
um valor mais alto à preservação da unidade familiar tradicional do que à segurança e
felicidade de seus membros individuais. Da mesma maneira, há uma crença de que a
criança precise da presença do pai dentro de casa, independente da qualidade do
relacionamento e dos riscos que ela encontre como resultado de sua presença no lar.

“Ela deveria pensar na família e manter seu casamento”.

“O lugar de uma mulher é em seu lar”.

“Ele é um bom pai, apesar de bater nela de vez em quando”.

Este tipo de raciocínio mantém a família unida por razões equivocadas. As


crianças não estão seguras em um lar onde há abuso constante. Elas não precisam de um
pai que dá modelo de comportamento violento como maneira de solucionar seus
problemas. Elas não se beneficiam em terem uma mãe que modela comportamentos
passivos, típicos de vítimas. As crianças são nossas reservas para o futuro e merecem,
portanto, o melhor início de vida possível. Colocar pressões para que uma mãe que
sofra violência mantenha a família intacta não só coloca em perigo a sua segurança,
como também corrói a habilidade da mulher em prestar cuidados de qualidade a seus
próprios filhos.

Culpar a vítima

A atitude de culpar a vítima é tão difundida que requer atenção especial.


Afirmações comuns que refletem tal crença, incluem:

“O que é que você fez para ele te bater?”


“Seu marido é um cara tão legal. Você deve ter feito algo errado”.
“Se você não tivesse casado com ele, nada disto teria acontecido”.
Tais verbalizações alimentam a auto-imagem negativa da mulher agredida. Elas
fortalecem sua dúvida a respeito de si própria, convencendo-a de que ela realmente
possa ser responsável pela violência do parceiro. Este é um dos erros mais fáceis que
um terapeuta possa fazer, especialmente se seus esforços em ajudar a mulher não derem
certo e o próprio terapeuta se sentir frustrado e enraivecido. As mulheres não são anjos
– é possível que você não goste em especial de alguma delas. É muito tentador torná-la
responsável pelo menos parcialmente pelo abuso. Entretanto, o importante é pensar que
nenhuma mulher merece ser agredida, independente do tipo de pessoa que ela possa vir
a ser.

Escassez de recursos e atitudes da comunidade que perpetuam a Violência contra a


Mulher

É importante para o terapeuta ter uma compreensão clara da realidade que a


mulher vítima de violência encara quando ela solicita ajuda, por duas razões:

1. para que você não caia na armadilha de culpá-la quando ela não conseguir fazer
mudanças tão rapidamente quanto você pensava que ela devesse fazer.

2. para que você saiba prepará-la para não culpar a si própria quando ela se confrontar
com obstáculos que retardem o seu progresso.

A maior parte dos funcionários que prestam serviço a mulheres agredidas tem
consciência da triste realidade econômica de seus clientes. Tal realidade inclui
condições tais como:

Moradia
9 Carência de Casa-Abrigo ou falta de um local que possa abrigá-las em uma
situação de emergência.

9 Pouco acesso a programas de transição que ofereçam local de moradia


temporário para quando a mulher e seus filhos forem desabrigados.

9 Pouco acesso a residências permanentes com custo acessível.

Emprego

9 Pouco acesso ao mercado de trabalho, principalmente a empregos com salários

decentes.

9 Pouquíssimos programas de capacitação para a mulher entrar no mercado de

trabalho.

Creches

9 Falta de creches acessíveis, com atendimento de qualidade, localizadas em uma


distância razoável de percurso entre o trabalho e a casa.

9 Subsídios a creches insuficientes para atender a demanda.

Serviços de Apoio

9 Existência de poucos serviços especializados para a mulher agredida (tais como


linhas SOS, grupos de apoio, escritórios de orientação legal). Todos sabemos
que não há recursos suficientes para suprir a demanda. As condições sociais
apenas irão melhorar em decorrência de ações políticas fortes. Neste ínterim, os
terapeutas podem amenizar a realidade árida que a mulher agredida encara,
reconhecendo o impacto que suas atitudes possam ter sobre ela. Os exemplos a
seguir refletem atitudes que prejudicam ou auxiliam o progresso da mulher
agredida.

Polícia3

                                                            
3
Desde 1983 a polícia da Província de Ontário foi instruída a tratar a agressão conjugal como
um crime e iniciar abertura de processo do mesmo modo que lidaria com uma agressão
provocada por um estranho.
Uma mulher chama a polícia para pedir ajuda em decorrência de seu marido
agressivo.

Resposta prejudicial: Não é dada prioridade a sua chamada. Muito mais tarde, quando
chegam os policiais, fica patente que eles não levam a situação a
sério. Um policial diz para o agressor, em frente da vítima:
“Calma, calma. Você sabe como são as mulheres... Mas o que foi
mesmo que ela fez?”

Resposta adequada: A chamada é atendida com respeito e preocupação por sua


segurança – acreditam em sua palavra. Os policiais chegam
prontamente à casa, sendo que um deles se reúne com ela para
avaliar o grau de sua segurança e descobrir o que ela quer fazer
(por exemplo, ser encaminhada para a Casa-Abrigo local). O outro
policial reúne-se com o agressor, informando-lhe que: “É ilegal
bater em sua mulher independente do que ela possa ou não ter feito.
A responsabilidade em controlar o seu gênio é inteiramente sua.
Você pode ser denunciado por lesão corporal.”

Médico

Uma mulher conta para seu médico que está com os nervos em frangalhos.

Resposta prejudicial: O médico está ocupado e sem vontade de sondar o que há por trás
da queixa do cliente. Ele prescreve uma receita de Valium e a
mulher recebe um tapinha condescendente nas costas. “Tudo vai se
ajeitar dentro de alguns dias, filha. Você só precisa tomar este
remédio e descansar mais”.

Resposta adequada: O médico responde com uma preocupação genuína, pedindo-lhe


que fale mais sobre sua situação. Fica sabendo que o marido é
muito ciumento o que dá pistas ao médico para um abuso em
potencial. Ele faz uma pergunta direta: “Seu marido alguma vez já
lhe machucou?” A resposta da mulher orienta o médico a
prosseguir com o questionamento, bem como a conversar sobre o
direito que a cliente tem de viver livre de agressões.
Assistente Social

Uma mulher finalmente cria a coragem para contar para sua assistente social
sobre o abuso.

Resposta prejudicial: A assistente social ouve atentamente, mas sabe que há sempre
dois lados em uma história. Treinada para ser imparcial, a
assistente social procura pela resposta correta. “Você acha que fez
ou disse alguma coisa que possa ter contribuído para o ataque de
seu marido?”

Resposta adequada: A assistente social crê, imediatamente, na versão da mulher e lhe


confirma isto. A mulher recebe uma explicação: “Não importa o
que você tenha dito ou feito, não foi você que o tornou violento.
Ele é responsável por seu próprio comportamento.”

Advogado

Uma mulher telefona a seu advogado dizendo que quer se divorciar de seu marido.

Resposta prejudicial: O advogado corre a processar os papéis sem uma completa


compreensão da situação da cliente. Mais tarde, quando a cliente
hesita em seguir os conselhos do advogado, este a culpa por fazê-
la perder o tempo.

Resposta adequada: Após ouvir sua história, o advogado lhe faz uma explanação
sobre seus direitos legais, esclarecendo quaisquer informações
errôneas que a cliente possa ter recebido e a encoraja a
pensar com calma sobre suas opções legais. O advogado respeita
o tempo da mulher, deixando a porta entreaberta para futuros
questionamentos e solicitações que a cliente possa ter quando
estiver preparada.
 

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