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Actas do III Encontro Ibero-americano de Jóvens Musicólogos

HISTORIOGRAFIA MUSICAL E IDENTIDADE: APONTAMENTOS A PARTIR DA


TEORIA DA HISTÓRIA DE JÖRN RÜSEN

Juliane Larsen
(Universidade de São Paulo)

Neste trabalho utilizaremos alguns conceitos da teoria da história de Jörn Rüsen para refletir sobre
a historiografia musical e sua capacidade de construir e/ou fortalecer identidades históricas a partir
da manutenção da memória musical das sociedades. Primeiramente esclareceremos o conceito de
identidade histórica e a maneira pela qual as narrativas atuam em sua formação. Em seguida
inserimos o debate sobre a identidade histórica no âmbito da história da música. O objetivo é refletir
sobre a criação de identidade histórica pelas narrativas de história da música, discutir quais tipos de
identidades foram favorecidas na historiografia tradicional da música clássica ocidental, e como as
transformações da musicologia alteraram as narrativas históricas incluindo novas representações de
identidade.

Palavras-chave: historiografia musical, teoria da história, identidade histórica.

A teoria da história de Jörn Rüsen

Jörn Rüsen é um historiador alemão cuja obra tem sido bastante difundida no Brasil
nos últimos anos e vem se tornando referência para estudos sobre teoria da história,
historiografia e aprendizagem histórica. Seus livros começaram a ser traduzidos para o
português em 2001 e agora diversos volumes já se encontram disponíveis, devido
principalmente à atuação de professores ligados à Universidade de Brasília e à
Universidade Federal do Paraná.
Rüsen é um importante autor da área de teoria e metodologia da história, “seu
diálogo internacional é amplo e sua preocupação com a tarefa esclarecedora do
pensamento histórico como fator de resgate da autonomia crítica dos indivíduos e como
fator de entendimento cultural são mundialmente conhecidos”1.
Rüsen formulou sua teoria da história a partir dos anos 1980, buscando uma
solução para os impasses no debate que ocupava a História naquele momento, em que

1
Estevão de Rezende Martins: “Pensamento histórico, cultura e identidade”, Textos de História, 10, 1, 2002,
pp. 215-219.

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eram questionadas a natureza da história e a possibilidade do conhecimento histórico


(construção do conhecimento sobre o passado a partir da pesquisa metódica).
Tais impasses vinham das perspectivas pós-modernas que representaram uma
profunda desilusão com o projeto Iluminista, a crença no progresso da ciência e a ideia de
um processo evolutivo capaz de incluir toda a humanidade. Na História essa desilusão se
voltou para a própria ideia de construção de conhecimento da área: se não é possível que
um único processo histórico inclua toda a humanidade, a história teria sido até então uma
construção ideológica, não mais que representações do passado criadas através do
discurso narrativo. Essa crítica atinge também a concepção de método na história e traz
para o primeiro plano a dimensão retórica e poética da narrativa. Como representante
dessas críticas podemos citar Hayden White, que em 1973 publicou Meta-história: A
imaginação histórica na Europa do século XIX. De acordo com White as narrativas históricas
assemelham-se às ficções e a historiografia poderia ser vista como um gênero literário.
Rüsen, ao contrário, defende uma visão conciliadora que absorve algumas das
críticas levantadas pelo pós-modernismo e tenta reestabelecer as bases científicas do
conhecimento histórico, sem negar a dimensão poética contida no fazer historiográfico.
Um dos pontos importantes da obra de Rüsen é o pressuposto de que a consciência
histórica fundamenta o conhecimento histórico. Rüsen define a consciência histórica
como “a suma das operações mentais com as quais os homens interpretam sua
experiência da evolução temporal de seu mundo e de si mesmos, de forma tal que possam
orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo”2. É esta compreensão da vida no
tempo que permite, de acordo com Rüsen, a formação das identidades históricas e a
orientação para o agir, funções principais da consciência histórica.
A questão da orientação para o agir é muito importante na teoria de Rüsen porque
a consciência histórica é fundamentada no pressuposto de que o homem tem de agir
intencionalmente para poder viver e que o mundo não é algo dado, mas necessita
continuamente da interpretação do homem, e esta interpretação ocorre em função das
suas intenções.
Seguindo o raciocínio de Rüsen, nas intenções também há um fator temporal: o
homem vai sempre além do que experimenta como mudança temporal, realizando

2
Jörn Rüsen: Razão Histórica. Teoria da História: Os fundamentos da ciência histórica, Brasília, UNB, 2001, p.57.

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projeções do tempo que ultrapassam sua experiência. A articulação entre experiência e


intenção são fundamentais para a vida prática, e é esta articulação que podemos chamar
de orientação para o agir.
Rüsen afirma que a carência de orientação é algo vivenciado por todos os homens,
que agem e sofrem as consequências das ações dos outros e precisam orientar-se em
meio às mudanças do mundo e de si mesmos3. As carências de orientação surgem da
consciência da temporalidade e, de acordo com o autor, despertam um interesse em
conhecer o passado. Rüsen então conclui que a ideia de história surge a partir destas
necessidades de orientação: “As carências de orientação no tempo são transformadas em
interesses precisos no conhecimento histórico na medida em que são interpretadas como
necessidade de uma reflexão específica sobre o passado. Essa reflexão específica reveste
o passado do caráter de ‘história’”4.
A partir desta compreensão da história enquanto um conhecimento com raízes na
vida prática e também com capacidade de exercer funções no cotidiano dos indivíduos,
passaremos à reflexão particular sobre a identidade histórica, o que nos dará ferramentas
para analisar as narrativas sobre a música do passado e refletir sobre o tipo de identidade
histórica que estas narrativas têm privilegiado ao longo do tempo. Posteriormente
veremos como o ensino da história da música deveria ser repensado e, finalmente, como
tais questões atingem a escrita da história da música na atualidade.

Identidade histórica

Em sua teoria da história Rüsen busca expor os princípios do pensamento histórico,


partindo dos processos intelectuais básicos que formam a consciência histórica. Isso
significa que Rüsen parte da premissa de que existe uma cognição própria da História,
cognição esta que se refere à capacidade humana de rememoração, efetuada pela
consciência histórica. A consciência histórica articula as experiências do passado com o
presente e o futuro, os quais são vistos como campos de ação orientados pelo passado.
A identidade histórica emerge desta interpretação da experiência temporal
realizada pela consciência histórica. De acordo com Rüsen a identidade histórica

3
J. Rüsen, Razão Histórica...
4
J. Rüsen, Razão Histórica..., p.31.

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“consiste na ampliação do horizonte nas experiências do tempo e nas intenções acerca


do tempo, no qual os sujeitos agentes se asseguram da permanência de si mesmos na
evolução do tempo”5. Em outras palavras, a identidade histórica permite que o sujeito
continue sendo ele mesmo no fluxo temporal.
Ao fundamentar o conhecimento histórico na consciência histórica e considerar a
narrativa como uma maneira de expor este conhecimento, Rüsen consequentemente
atribui também às narrativas a capacidade de representar e atuar na construção de
identidades históricas. Salientamos que as narrativas podem ser um dos elementos, tendo
em vista a construção de identidades é bastante complexa e envolve todo o universo
simbólico em que o indivíduo se move e os grupos com os quais interage.
A principal maneira através da qual a história deu forma às identidades foi através
das narrativas-mestras e, principalmente, na forma de identidade nacional. Mas, a crise da
modernidade é também a crise das narrativas-mestras. Ao mesmo tempo em que ocorre
a falência destas grandes narrativas como modelos explicativos abrangentes, ocorrem
modificações no conceito de identidade.
A crise da modernidade é também a crise da identidade, como afirma Stuart Hall:
“A assim chamada ‘crise de identidade’ é vista como parte de um processo mais amplo de
mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades
modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem
estável no mundo social”6.
Com a globalização a identidade fechada e centrada da cultura nacional é deslocada
e contestada, permitindo o surgimento de novas possibilidades de identificação, mais
ligadas a posicionamentos políticos. Diante deste novo panorama, seriam ainda as
narrativas históricas capazes de gerar sentido aos seus destinatários e responder às
carências de orientação específicas do final do século XX e século XXI?
A teoria de Rüsen é uma resposta a estas crises da modernidade, para o autor os
homens sempre irão necessitar de orientação temporal em suas vidas e esta orientação
pode ser dada pela narrativa histórica. Rüsen é enfático ao afirmar que é preciso admitir
que não há uma história e sim multiplicidade de histórias, multiplicidade de perspectivas
históricas. O autor sustenta que é preciso partir do reconhecimento da diversidade,

5
J. Rüsen, Razão Histórica..., p.126.
6
Stuart Hall: A identidade cultural na pós-modernidade, Rio de Janeiro, DP&A, 2005 (10.a ed), p. 7.

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levando em conta ao mesmo tempo a unidade da humanidade e a diferença das culturas7.


As narrativas históricas tornam-se importantes não apenas para o reconhecimento
da própria identidade como também para o aprendizado sobre o outro, sobre a diferença.
Rüsen salienta ainda que as identidades expressas pelas narrativas não possuem um
conteúdo fixo, o conteúdo depende sempre do destinatário, de suas opções e das
relações sociais. Estas relações são sempre problemáticas, como afirma Rüsen: “A
constituição de identidade efetiva-se, pois, numa luta contínua por reconhecimento entre
indivíduos, grupos, sociedades, culturas, que não podem dizer quem ou o que são, sem
ter de dizer ao mesmo tempo quem ou o que são os outros com os quais têm a ver”8.
Tratar a historiografia como um diálogo entre historiador e destinatário significa
reconhecer que diferentes grupos sociais e mesmo diferentes gerações elaboram o seu
próprio modo de compreender as narrativas e que estas podem deixar de ser válidas
quando não respondem mais às carências de orientação de seu tempo.
Em seguida veremos como isto ocorre com as narrativas sobre a música clássica
que, ao privilegiar a evolução da linguagem musical e elencar os principais compositores
e suas obras mantiveram-se conectadas ao pensamento positivista e, consequentemente,
expressam apenas uma identidade histórica estável, de maneira que não mais respondem
satisfatoriamente às questões sobre a música do passado colocadas pelo presente.

Historiografia musical e identidade

Na teoria de Rüsen a narrativa histórica é capaz de gerar sentido para o leitor. Este
sentido é a noção de que o passado tem implicações para o presente ao qual o leitor
pertence. Assim ocorre o processo de identificação. Ao mesmo tempo, o leitor se situa
em relação ao passado e pode atuar modificando o presente a partir da expectativa de
um futuro diferente.
Se transportarmos este pensamento para as narrativas sobre história da música,
veremos que o leitor pode situar-se em relação à produção musical do passado de sua
comunidade. Em tal caso a história da música apresentaria a função de auxiliar a

7
J. Rüsen: “A História entre a modernidade e a pós-modernidade”, História: Questões & Debates, 14, 26-27,
1997, pp.46-79, 95-96.
8
J. Rüsen, Razão Histórica..., p. 87.

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manutenção da memória musical das sociedades. A história da música permitiria também


que o leitor percebesse que parte das produções musicais não se mantém no presente,
devido a motivos diversos, como irrelevância estética ou histórica, ação de outros grupos
sociais ou ainda por causa da interferência de fatores econômicos. O conhecimento sobre
o passado musical possibilitaria ao leitor tomar atitudes, como por exemplo, o
engajamento pela manutenção da memória musical da comunidade ou o resgate de
músicas já esquecidas.
As narrativas históricas sobre a música podem atuar fortalecendo as identidades
históricas, pois o leitor compreende que a produção musical do passado lhe pertence. O
indivíduo é herdeiro do patrimônio artístico de sua cultura. Os laços de pertencimento a
um grupo social, cultura, sociedade ou nação são fortalecidos se o sujeito vê as músicas
de seu presente como um resultado de desenvolvimentos iniciados no passado. A
compreensão sobre a história das músicas que compõem a sua paisagem sonora (as
músicas presentes em sua vida no presente) pode levar à um processo de identificação
do sujeito com o grupo do qual emergiram tais músicas. Assim, a história da música atua
no processo de construção de identidade histórica do sujeito, que se reconhece como
pertencente a determinado grupo de indivíduos que têm em comum um tipo específico
de cultura musical.
De modo geral, estudos que busquem elucidar o porquê das práticas musicais
serem de tal forma, e atém-se sobre a complexidade dos contextos em que surgem e não
apenas nas estruturas composicionais, colaboram para criar um vínculo entre o passado
e o presente, porque trazem à luz relações entre a música e a sociedade e características
da subjetividade envolvida na produção musical, de maneira a criar conexões entre a
produção musical e as linhas de pensamento nas quais os compositores se inseriam.
Narrativas importantes para a constituição de sentido para o público a que se
destinam também são aquelas que trazem para a história da música a memória musical
de grupos sociais não contemplados pela historiografia musical tradicional. Isto ocorre,
por exemplo, com a ampliação dos estudos de gênero, que colaboram para a construção
e percepção de identidades específicas ao perscrutarem as relações entre indivíduos e
grupos sociais que nas narrativas tradicionais não eram problematizadas. Neste sentido
são importantes também os estudos sobre música popular, que acrescentam à história
da música narrativas sobre práticas musicais de grupos marginalizados e gêneros

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musicais não contemplados pela história da música tradicional.


Percebemos, portanto, que a historiografia musical atual tem favorecido a
diversidade e a inclusão de grupos sociais que passam a ter narrativas sobre suas
produções musicais. É notória a ampliação dos conteúdos da história da música, assim
como a problematização dos usos e desenvolvimentos dos conceitos musicais, em
aportes que emergiram principalmente a partir da influência das áreas afins, como
História, Antropologia, Sociologia, Estudos Culturais, etc.
No entanto, a história da música tradicional, aquela que constitui-se de uma relação
de compositores e suas obras-primas, ou que objetiva explicitar apenas a transformação
das técnicas de composição através dos estilos de época e que podemos considerar como
uma meta-narrativa, já que pretende-se como uma explicação de toda a música do
ocidente, tem-se tornado incapaz de explicar a experiência musical fora do continente
europeu e faz cada vez menos sentido para países herdeiros da cultura ocidental, como
os países da América Latina. Desligando-se das inquietações da atualidade, esta história
da música torna-se apenas um catálogo de referência para obras musicais tratadas como
patrimônio artístico do passado.
Acreditamos que podemos acrescentar modificações importantes para a história da
música em direção à construção de narrativas com maior capacidade de gerar sentido
para nossos destinatários a partir de reflexões simples no processo de pesquisa histórica:
a) quais são os critérios a partir dos quais direcionamos nossas pesquisas; b) para quais
destinatários nos dirigimos; c) quais os objetivos das narrativas sobre história da música;
esclarecendo:

a) Os critérios, ou premissas, dizem respeito ao momento anterior à


pesquisa, e são fundamentais para o resultado que ela virá a apresentar, de quais
premissas partimos? Cada período ou estilo musical oferece suas próprias
premissas?
b) Quando escrevemos em forma de narrativa o resultado de nossas
pesquisas musicológicas, visamos apenas nossos colegas pesquisadores ou
escrevemos também para nossos alunos nos cursos superiores de música, ou ainda
para um público geral, mais amplo? Pensar no destinatário da narrativa

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historiográfica é fundamental para o modo com o qual o resultado da pesquisa será


apresentado, tendo em vista que a história narrada é uma forma de apresentação
do conhecimento histórico e é a junção de uma dimensão cognitiva (a pesquisa)
com uma dimensão estética (a formatação final, o texto).
c) Manter a clareza sobre os objetivos da pesquisa musicológica é
fundamental para o desenvolvimento da pesquisa. Tal clareza auxilia a conduzir o
leitor através da argumentação e mantém explícita as linhas teóricas utilizadas.
Quais são os objetivos possíveis da história da música? Catalogar as obras com
vistas a manutenção de patrimônio? Explicar os estilos composicionais a partir de
um corpo de obras? Inserir os compositores e suas obras nos estilos de época?
Explicar a vida musical de um determinado lugar em um período específico? Expor
a formação de gêneros musicais?

Os objetivos da história da música não se esgotam nesta pequena lista, e dependem


das opções do pesquisador, de suas experiências e suas crenças. Acreditamos que a
participação do musicólogo ou historiador da música nos debates atuais sobre teoria da
história pode ser útil para a reflexão sobre a própria história da música e sua crítica, assim
como para sua atualização conceitual e o despertar de um debate das características que
lhe são próprias e se devem ao caráter particular de seu objeto de estudo, campo este
que tem como obra de referência o livro de Carl Dahlhaus, Fundamentos da História da
Música, publicado em 1983, mesmo ano em que Jörn Rüsen publicou seu primeiro volume
de Teoria da História.

Conclusões

A teoria da história não deve constituir-se como um campo de especialidade para o


historiador da música ou musicólogo, porque ela não deve separar-se da atividade de
pesquisa, do trabalho prático. Como Rüsen mesmo afirma, a teoria da história não deve
ser tutora da pesquisa histórica, ao contrário, a teoria da história tem por objetivo analisar
as bases do pensamento histórico e torná-las explícitas9. A teoria da história, como um

9
J. Rüsen, Razão Histórica..., p. 14.

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campo de reflexão da atividade historiográfica, pode auxiliar o historiador a definir suas


prerrogativas e seus objetivos e administrar as fases do trabalho historiográfico com
vistas a alcançar os objetivos propostos. A teoria constitui, portanto, a dimensão de
reflexão e crítica sobre o fazer historiográfico e não apenas um guia metodológico que se
pode seguir para conseguir um resultado satisfatório na manipulação das fontes e escrita
da narrativa.
Especificamente na historiografia da música, é importante acompanhar as
discussões atuais da teoria da história para verificar as bases com as quais a disciplina
tem trabalhado desde seu estabelecimento e compreender como estas bases atuaram
moldando o conhecimento do passado musical das sociedades no ocidente, construindo
um cânone de obras musicais que são vistas como patrimônio artístico da humanidade e
excluindo grande parte das experiências musicais dos grupos sociais não hegemônicos.
Basta uma breve análise dos programas da disciplina história da música nas
universidades para perceber que a narrativa-mestra da história da música clássica, de suas
origens gregas até a atualidade, continua a ser repetida em sala de aula, sem que a escrita
ou os conteúdos desta narrativa sejam questionados. Apesar das pesquisas atuais na área
de história da música terem modificado nas últimas décadas a compreensão sobre o
passado musical e incluído outras possibilidades de construção de identidades históricas,
o discurso em sala de aula, na maioria das vezes, ainda é de uma identidade baseada em
pressupostos etnocêntricos, que crê na superioridade de suas obras porque crê que seus
critérios de julgamento são universais e que continua a contrapor a civilização à barbárie,
não reconhecendo a diversidade cultural e a multiplicidade de músicas presentes na
realidade dos próprios estudantes.
Se a música é o objeto de estudo da musicologia e apresenta significados
particulares para os grupos sociais da qual emerge, constituindo representações de sua
memória e patrimônio imaterial, acreditamos haver uma necessidade urgente de um
compromisso com o compartilhar do conhecimento adquirido a partir dos estudos sobre
a música, além da necessidade de criar espaço na universidade para narrativas elaboradas
dentro dos próprios grupos sobre suas músicas.
Concluindo, acreditamos que aproximar a musicologia dos debates que se
desenvolvem na História pode favorecer o desenvolvimento da área. Por outro lado,
acreditamos também que a atenção da musicologia aos mais diferentes tipos de música,

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pode ser a contribuição da área para o diálogo intercultural, para a afirmação de


identidades e para o reconhecimento da diversidade. Assim, o conhecimento sobre a
música do outro pode ser uma via para a disseminação de uma cultura de paz, pois, não
obstante as diferenças de materiais sonoros, sistemas composicionais, instrumentos,
afinações ou funções sociais da música, há a possibilidade de encantamento e
entendimento.

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