Você está na página 1de 6

Capítulo 1 – Práticas de Linguagem em ação: propostas e situações interativas

em sala de aula1

2
Não podemos reduzir a criança a um par de olhos que vêem , a um
par de ouvidos que escuta, a um aparelho fonador que emite sons e a
uma mão que aperta com torpeza um lápis sobre uma folha de papel.
Por trás (ou além) dos olhos, dos ouvidos, do aparelho fonador e da
mão, há um sujeito que pensa e que tenta incorporar seus próprios
saberes a esse maravilhoso meio de representar e recriar a língua
que é a escrita, todas as escritas. (FERREIRO, 2002, p. 36)

Dentre os muitos desafios enfrentados pelas instituições escolares ao longo


dos anos, um deles sempre ganhou especial destaque, dada sua complexidade e
importância: a definição do currículo escolar. A discussão sobre o que ensinar faz
parte da educação desde que, no final do século XIX, a proclamação da República
instituiu a escola para todos, como um ideal moderno (MORTATTI, 2000) que sempre
almejou socializar o conhecimento e preparar os indivíduos para estar e viver em
sociedade.

No entanto, essa não é uma tarefa dotada de simplicidade, já que, como


destaca LERNER (2002, p. 58),

As decisões envolvidas na seleção e hierarquização dos conteúdos


são cruciais, porque – como mostrou a teoria crítica do currículo –
decidir quais aspectos do objeto são mostrados supõe também
decidir quais são ocultados; decidir o que é que se ensina significa,
ao mesmo tempo e necessariamente, decidir o que é que não se
ensina.

Assim, o que deve ser levado em conta no momento de tomar decisões tão
importantes? Como decidir que conhecimentos produzidos em sociedade devem ser
trazidos para dentro das salas de aula e quais devem ficar de fora?

Embora essas sejam questões a serem constantemente repensadas e que


continuamente tornam-se fontes de pesquisa e de estudo, para tal reflexão - e em
especial para a área com a qual essa investigação se ocupa, a das Práticas de
Linguagem-, é valioso retomar o propósito inicial da escola, o de incorporar os alunos
à sociedade, no caso, à uma comunidade de leitores e escritores (LERNER, 2002, p.
56), como forma de discutir a organização curricular estabelecida nas instituições
escolares.

1
Capítulo da monografia de finalização da Pós Graduação em alfabetização da Escola da Vila de Miruna
Genoino (2011).
2
Em todo o trabalho foi mantida a ortografia original dos textos citados.
Então, se a escola tem como função primeira a de preparar os indivíduos para
que possam desenvolver-se bem fora de seus muros, está claro que

O objeto de ensino deve-se definir tomando como referência


fundamental as práticas sociais de leitura e escrita. Sustentar isso é
muito diferente de sustentar que o objeto de ensino é a língua escrita:
ao pôr em primeiro plano as práticas, o objeto de ensino inclui a
língua escrita, mas não se reduz a ela. (LERNER, 2002, p. 56)

Ainda assim, ter clareza da necessidade de que o currículo mantenha direta


relação com essas práticas não necessariamente significa resolver todos os conflitos e
desafios envolvidos na seleção curricular, na seleção dos saberes a serem ensinados.
Mesmo desprovidos de dúvidas quanto à função social da escola, a forma de
materializar as práticas sociais de uso da linguagem para dentro dos muros escolares,
conseguindo decidir em que etapa priorizar quais conteúdos, muitas vezes resulta em
deformações entre o que é ensinado nas instituições e o que os alunos, como usuários
da linguagem, necessitam fora dela.

Essas deformações podem ser melhor compreendidas pelo fenômeno da


transposição didática, evidenciado por CHEVALLARD em suas discussões sobre a
didática da Matemática (Apud LERNER, 2002, p. 34); fenômeno esse que está
presente em todos os saberes a serem ensinados e aprendidos dentro da escola
porque

A escola tem a finalidade de comunicar às novas gerações o


conhecimento elaborado pela sociedade. Para tornar realidade este
propósito, o objeto de conhecimento – o saber científico ou as
práticas sociais que se tenta comunicar – se transforma em “objeto de
ensino”. Ao se transformar em objeto de ensino, o saber ou a prática
a ensinar se modificam: é necessário selecionar-se algumas questões
em vez de outras, é necessário privilegiar-se certos aspectos, há que
se distribuir as ações no tempo, há que se determinar uma forma de
organizar os conteúdos. A necessidade de comunicar o conhecimento
leva a modificá-lo. (LERNER, 2002, p. 34, grifos da autora).

A organização dos conhecimentos voltados para a leitura e a escrita dentro da


sala de aula colocou em jogo uma transposição didática que, ao classificar os saberes,
os tornou fragmentários, separados de sua origem comunicativa inicial; ao invés de
efetivamente, como já se comentou antes, voltar-se para a inserção em uma
comunidade letrada, a escola passou a detalhar os conteúdos, colocando como objeto
de ensino, por exemplo, as orações e frases mais do que os textos, e a privilegiar os
chamados “romances escolares”, escritos apenas para o uso escolar (LERNER, 2002,
p. 56), mais do que colocar em jogo situações comunicativas reais voltadas para as
práticas de linguagem.
Coloca-se em destaque, então, a necessidade de que a escola reformule o que
compreende pelo considerado ensino da “Língua”. Deixar de pensar no mesmo como
algo único e estável, A língua, para pensá-la como uma variedade de usos sociais
(BUENOS AIRES, 1995b, p. 641) a comunicação, a participação em uma troca leitora
e escritora, a aproximar-se da utilização real da linguagem fora da escola. Pensar em
comunicação implica interagir com o outro com quem quero comunicar-me. Inserir-se
em uma comunidade de leitores e escritores significa considerar que

A linguagem humana se apresenta, inicialmente, como uma produção


interativa associada às atividades sociais, sendo ela o instrumento
pelo qual os interactantes, intencionalmente, emitem pretensões à
validade relativas às propriedades do meio em que essa atividade se
desenvolve. A linguagem é, portanto, primariamente uma
característica da atividade social humana, cuja função maior é de
ordem comunicativa. (BRONCKART, 2009, p. 34, grifos meus),

No processo de fragmentação dos saberes, tem-se priorizado o


estabelecimento de relações individuais com os conhecimentos a serem ensinados, ao
invés destes usos sociais mencionados. É verdade que o professor sempre esteve,
dentro da escola, com uma ação relacionada a um grupo-classe, mas após o ensino
coletivo de determinados saberes, habitualmente coloca-se os alunos diante de
práticas individuais, mecânicas, de exercício, que são pertinentes no âmbito da
fragmentação citada anteriormente, mas que de nenhuma forma são parte do uso
social da linguagem.

Compreender e discutir um currículo voltado para as práticas de linguagem


significa pensar não só nelas em si, e assim novamente fragmentá-las, mas pensá-las
em seu uso, em comunicação, em interação. O que significa estabelecer em sala de
aula um trabalho com as Práticas de Linguagem? Favorecer a interação entre os
alunos é uma ação que favorece que tipo de relações com essas práticas? Como
permitir um trabalho efetivo com os textos e com uma comunidade letrada? Essas são
algumas questões a serem discutidas.

1.1 – As Práticas de Linguagem: ações e implicações no âmbito escolar

Quando se tomam as práticas de linguagem como o marco de atuação do


educador, as implicações na forma de organizar o ensino são das mais variadas.
Primeiramente e de forma fundamental, trata-se de, considerando o já exposto no
presente capítulo, abandonar uma visão fragmentada do conhecimento, voltada
apenas a uma série de conteúdos previamente organizados para
Hacer de la escuela un ámbito donde lectura y escritura sean
prácticas vivas y vitales, donde leer y escribir sean instrumentos
poderosos que permitan repensar el mundo y reorganizar el propio
pensamiento, donde interpretar textos sean derechos que es legítimo
3
ejercer y responsabilidades que es necesario asumir (BUENOS
AIRES, 1995b, p. 640)

Para que tal objetivo seja alcançado é preciso organizar um ensino que se
relacione de forma direta com as práticas sociais de linguagem, onde ler e escrever
dentro da escola tenha sentido porque são ações que se constroem em vínculo com o
seu uso também fora do espaço escolar, entre os membros de uma comunidade de
usuários da linguagem. Para isso é preciso que a escola apresente uma enorme gama
de situações comunicativas que possam realmente aproximar os alunos daquilo que
não conhecem ainda, mas que vivenciarão em sociedade.

Concretamente ao invés de organizar aulas sequenciadas voltadas a


conteúdos desprovidos de significado, por serem apresentados de forma
descontextualizada, como o ensino de adjetivos, verbos, pontuação, substituições
lexicais etc., a abordagem que toma as práticas de linguagem como objeto organiza e
planeja situações didáticas onde esses mesmos conteúdos possam ser fruto da
reflexão dos alunos de forma contextualizada, em uso. Assim, discute-se a
importância, por exemplo, de trechos descritivos em indicações literárias com o uso de
adjetivos e locuções, a presença usual de enumerações em notas de enciclopédias e
o uso da vírgula com esse fim, a constância de diálogos em contos tradicionais e o uso
de verbos de elocução para apresentá-los e ainda para dar notícias sobre os
sentimentos dos diferentes participantes deste discurso.

Colocam-se, então, os conteúdos da língua a serviço das produções


comunicativas sociais: textos literários, informativos, escritos para expressão pessoal,
produções que favoreçam a comunicação; essas produções são trabalhadas porque
existem fora da escola, são socialmente importantes, e é na busca por solucionar os
problemas inerentes a essas e outras produções escritas, que os conteúdos da língua
aparecem como respostas, como recursos para sanar estas dificuldades na escrita,
como um apoio que todo escritor de textos dos mais variados tipos utiliza e utilizará
durante toda a sua vida para que a comunicação através do uso da linguagem se
efetive.

3
“Fazer da escola um âmbito onde leitura e escrita sejam práticas vivas e vitais, onde ler e escrever
sejam instrumentos poderosos que permitam repensar o mundo e reorganizar o próprio pensamento,
onde interpretar e produzir textos sejam direitos que é legítimo exercer e responsabilidades que é
necessário assumir” (tradução livre: Miruna Kayano Genoino)
Aparentemente parece que são apenas nuances na forma de organizar as
situações a serem vivenciadas na sala de aula, porém não se pode deixar de
considerar que

As práticas de linguagem implicam tanto dimensões sociais como


cognitivas e linguísticas do funcionamento da linguagem numa
situação de comunicação particular. Para analisá-las, as
interpretações feitas pelos agentes da situação são essenciais. Essas
interpretações dependem da identidade social dos atores, das
representações que têm dos usos possíveis da linguagem e das
funções que eles privilegiam, de acordo com sua trajetória (DOLZ e
SCHNEUWLY, 2004, p. 62)

O aluno que será apresentado a esse trabalho com as práticas de linguagem


tem uma ação ativa diante dos textos e das ações que lhe são requisitadas para
efetivar determinada comunicação. Para o educador isso significa considerar que a
todo momento lida-se com conteúdos vivos, que não são parte de um conjunto de
regras ou de um currículo fechado, mas que devem estar em direta relação com
aqueles que o utilizarão: os agentes da situação educativa.

Isso significa que dentro desta concepção considera-se não apenas o que será
ensinado, mas a relação dos sujeitos aprendizes com os conteúdos, com as ações,
com as práticas de linguagem. Uma vez que nesta perspectiva o trabalho dentro da
escola procura aproximar os usos reais da linguagem fora da mesma, é preciso trazer
para dentro das instituições não só os conteúdos da língua, ou os textos, mas as
maneiras colocadas em jogo quando leitores e escritores efetivamente praticam a
linguagem, ou seja, como se comportam diante das tarefas de ler e de escrever.

O que está em pauta são os comportamentos do leitor e do escritor, que são


todos os “fazeres” que precisam ser colocados em jogo nas diversas situações de
leitura e de escrita para que os diferentes propósitos que o ler e escrever podem
evidenciar sejam alcançados. Não existe uma única forma de ler ou de escrever, mas
várias, a depender dos propósitos comunicativos envolvidos e dos textos com os quais
se interage.

Assim, no ensino da leitura, por exemplo, não se trata de colocar os alunos e


alunas diante da tarefa de decodificar considerando que isso define o que é ler, mas
sim permitir que discutam os muitos sentidos de um texto, selecionem o que é mais
relevante para recomendar a outros, reflitam sobre diferentes interpretações de algo
que foi lido, leiam com o intuito de aprender sobre um tema, retomem leituras com o
objetivo de desfrutar o cuidado estético do autor ou enveredem no mágico universo de
cenários e personagens etc. Do mesmo modo, na escrita, não é foco do trabalho
apenas a caligrafia, o uso da norma culta e regras de pontuação, mas pensar no que
se escreve, planejando um texto, escrever algo comparando e refletindo junto a outro,
terminar uma produção e retomá-la inúmeras vezes até alcançar uma versão final,
avaliando a qualidade da interlocução que se quer estabelecer etc.

Estas ações compõem um conjunto de aspectos centrais no trabalho com as


práticas de linguagem, já que, como coloca LERNER (2002, p. 63),

Os comportamentos do leitor e do escritor são conteúdos – e não


tarefas, como se poderia acreditar – porque são aspectos do que se
espera que os alunos aprendam, porque se fazem presentes na sala
de aula precisamente para que os alunos se apropriem deles e
possam pô-los em ação no futuro, como praticantes da leitura e da
escrita. (grifos da autora)

Há de se ressaltar, porém, que esta forma de organizar e pensar o ensino só


pode ter significado e diferenciar-se de outras concepções, quando todo esse conjunto
de pressupostos voltados às práticas de linguagem são pensados de forma integrada
com as situações reais de comunicação, tornando clara e explícita, mais uma vez, a
importância de que as ações escolares tenham sentido para os alunos que estão
refletindo sobre as mesmas, que assim poderão exercê-las autonomamente.

Na construção de sentido encontra-se, então, a comunicação real de textos,


leituras, formas de colocar em jogo as práticas de linguagem. Escreve-se para alguém,
para buscar determinada reação no destinatário, lê-se por recomendação de outro,
interpreta-se e confrontam-se opiniões quando efetivamente acontecem trocas com
outros sujeitos imersos no mundo letrado. O trabalho com as práticas de linguagem,
então, deixa de lado os já comentados “romances escolares”, com o professor como
único destinatário, para efetivar-se perante os mais variados destinatários, por meio de
diferentes situações comunicativas.

Claro está, que a concepção na qual a presente pesquisa se fundamenta tem


como foco central as múltiplas interações dos sujeitos, as práticas vivas e reais
colocadas em funcionamento e a forma de relacionar-se com os diferentes textos, e
também com os outros significativos que estão participando das situações
comunicativas.

Você também pode gostar