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LIVROS DE LINHAGENS E A HISTORIOGRAFIA PORTUGUESA

A historiografia1 portuguesa propriamente dita nasce na época de D. Dinis e é


representada pelos Livros de Linhagens pelas Crónicas.

Na História da Literatura Portuguesa, António José Saraiva e Óscar Lopes traçam, em


resumo, um quadro desta época, dizendo que: “temos durante o século XIV os
seguintes grandes textos históricos, uns conservados, outros perdidos:

1 - A Crónica Geral de Espanha em galego-português, que é de textos


castelhanos;
2 - A Crónica Portuguesa de Espanha e Portugal (c. 1342) c. principalmente
portuguesas, e da qual se conservou um fragmento da Crónica Breve de Santa
Cruz;
3 - Três Livros das Linhagens, sendo os dois últimos da iniciativa de D. Pedro,
conde de Barcelos;
4 - A primeira versão da Crónica Geral de 1344, atribuída ao mesmo Conde de
que só se conhece a versão castelhana;

5 - A segunda versão da Crónica Geral de 1344, redigida em 1400.

Destes, interessam principalmente à historiografia medieval os Livros de Linhagens,


"registos de famílias nobres, compilados em épocas diversas, acrescentados e
interpolados de cópia em cópia até ao século XVI".

Os Livros de Linhagens foram, no século XVI, designados por Nobiliários sobre os


quais Joaquim Veríssimo Serrão diz: - "Os quatro Nobiliários revelam interesse para a
História política e social, dando notícia das famílias ilustres, sobretudo, dos membros
ainda vivos, que se haviam destacado na formação do Reino. "

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Os Livros de Linhagens, a que no século XVI se deu também o nome de Nobiliários,
são quatro obras escritas durante a Idade Média onde se descreve a genealogia das
principais famílias nobres no reino. O primeiro, também chamado Livro Velho e o
quarto, conhecido como Nobiliário do Conde D. Pedro de Barcelos, estão completos.
Dos restantes chegaram até nós apenas fragmentos (Segundo de Linhagens, ou
Segundo Livro Velho, e Terceiro Livro de Linhagens, ou Nobiliário da Ajuda). O
Livro do Conde D. Pedro de Barcelos é o mais desenvolvido dos quatro, tendo o autor
pretendido apresentar um resumo da história universal. D. Pedro, Conde de Barcelos,
era filho natural de D. Dinis e bisneto de Afonso X. Os Livros de Linhagens foram
publicados no século XIX por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta
Historica, volume dedicado aos Scriptores.

1
Atividade literária que consiste em registar factos históricos. A historiografia portuguesa nasceu na
época de D. Dinis, representando, logo de início, dois géneros: livros de linhagens, que registavam dados
genealógicos da nobreza, e crónicas, que evocavam factos históricos ou lendários em que intervinham
diversos personagens.
D. Pedro, conde de Barcelos

Conde de Barcelos, nascido em 1285 e falecido em 1354, era filho bastardo de D. Dinis.
Era dono de um rico património em terras, doado pelo monarca seu pai. A certa altura,
porém, exilou-se em Castela, por ter desagradado ao rei o seu envolvimento nos
conflitos civis de então. De regresso a Portugal, culturalmente enriquecido, afastou-se
da corte e remeteu-se ao estudo e ao labor literário. Escreveu numerosas cantigas e um
Livro de Linhagens.

QUARTO LIVRO DE LINHAGENS OU NOBILIARIO DO CONDE D. PEDRO


DE BARCELOS

DA LINHAGEM DOS HOMENS COMO VEM DE PADRE A FILHO, DES O


COMEÇO DO MUNDO, E DO QUE CADA UM VIVEU E DE QUE VIDA FOI. E
COMEÇA EM ADÃO, O PRIMEIRO HOMEM QUE DEUS FEZ, QUANDO
FORMOU O CEU E A TERRA.

PRÓLOGO

Em nome de Deus que e fonte e padre de amor, e porque este amor nom sofre
nenhuma cousa de mal, porem em servi-lo de coraçom e carreira real, e nenhum melhor
serviço nom pode o homem fazer que ama-lo de todo seu sen e seu proximo como si
mesmo, porque este precepto e o que Deus deu a Moises na Vedra Lei. Porem eu, conde
Dom Pedro, filho do mui nobre rei Dom Dinis, o houve de catar por grão trabalho, por
muitas terras, escrituras que falavam dos linhagens.
E vendo as escrituras com grande estudo e em como falavam de outros grandes
feitos, compuge este livro por ganhar o seu amor e por meter amor e amizade antre os
nobres fidalgos da Espanha.
E como quer que antre eles deve haver amizade, segundo seu ordenamento
antigo, em dando-se fe pera se nom fazerem mal uns aos outros, a menos de torvarem a
este amor e amizade per desfiarem-se2.
Esto diz Aristotiles que, se os homens houvessem antre si amizade verdadeira,
nom haveriam mester reis nem justiças, ca amizade os faria viver seguramente em o
serviço de Deus. E a todolos homens, ricos e pobres, cumpre amizade. E os que som
meninos hão mester quem os crie e ensine; e, se som mancebos, hão mester quem os
conselhe pera fazer sas cousas seguramente; e, se forem velhos, hão mester que lhes
acorram aos seus desfalicimentos. E os amigos verdadeiros devem-se guardar em sas
palavras de dizer cousa per que seus amigos nom venham a fama ou a mal, ca per i se
desataria a amizade. E nom se devem mover a crer de ligeiro as cousas que lhes deles
digam de mal, e devem-se guardar segredos e nom devem retraer as obras que se
fezerom.
E porque nenhuma amizade nom pode ser tão pura, segundo natura come
daqueles que descendem de um sangue, porque estes movem-se mais de ligeiro as
cousas por onde se mantem, houve de declarar este livro per títulos e per alegações, que
cada um fidalgo de ligeiro esto pudesse saber e esta amizade fosse descoberta e nom se
perdesse antre aqueles que a deviam haver. E o que me a esto moveu forom sete cousas.
2
A ponto de prejudicarem este amor e amizade por desconfiança
A primeira, pera se cumprir e guardar este precepto de que primeiro falamos.
A segunda, e por saberem estes fidalgos de quais descenderam de padre a filho e
das linhas travessas.
A terceira, por serem de um coraçom de haverem de seus enmigos que som em
estruimento da fe de Jesu Cristo, ca, pois eles vem de um linhagem e sejam no quarto ou
no quinto grau ou dali acima, nom devem poer deferença antre si. E mais que som
chegados como primos e terceiros, ca mais nobre cousa e, e mais santa, amar o homem
a seu parente alongado per divido3, se bom e, que amar ao mais chegado, se faleçudo e.
E os homens que nom som de bom conhecer nom fazem conta do linhagem que hajam,
senão de irmãos e primos coirmãos e segundos e terceiros; e dos quartos acima nom
fazem conta. Estes tais erram a Deus e a si, ca o que tem parente no quinto ou sexto
grau, ou dali acima, se e de grão poder, deve-o servir porque vem de seu sangue; e se e
seu igual, deveo de ajudar; e se e mais pequeno que si, deve-lhe fazer bem e todos
devem ser de um coraçom.
A quarta, por saberem os nomes daqueles donde vem e algumas bondadades que
em eles houve.
A quinta, por os reis haverem de conhecer aos vivos com mercees por os
merecimentos e trabalhos e grandes lazeiras que receberom os seus avos em se ganhar
esta terra de Espanha per eles.
A sexta, pera saberem como podem casar sem pecado, segundo os sacramentos
da Santa Igreja.
A setima, pera saberem de quais moesteiros som naturais e benfeitores.
E por esta materia ser mais crara e os nobres fidalgos saberem por grã parte dos
linhagens dos reis e emperadores e dos feitos em breve 4 que forom e passarom nas
outras terras do começo do mundo, u os seus avos forom a demandar suas aventuiras
por que eles ganharom nome e os que dele decenderom, por algumas nobrezas que ali
fezerom, falaremos primeiro do linhagem dos homens e dos reis de Jerusalem, des Adão
ataa nacença de Jesu Cristo; e das conquistas que fezerom os reis de Síria e el-rei Farão
e Nabucodonosor em Jerusalem.
Des i falaremos dos reis da Troia e dos reis de Roma e emperadores, e dos reis
da Gram-Bretanha, que ora se chama Inglaterra. Des i dos reis gentis que houve em
Persia, e reis e emperadores que houve no Egito e em Roma, e da destruiçom de
jerusalem e como d'i levou Vaspasiano pera Roma os novecentos mil judeus; e dos
Godos como entrarom a Espanha e o tempo que em ela viverom, e como ao depois foi
perduda per rei Rodrigo, e como foi cobrada per el-rei Palaio 5, o Montesinho, e per el-
rei Dom Afonso o Catolico e per outros reis que apos eles vierom; e como, per soberba
de el-rei Dom Ordonho de Leão, os Castelãos fezerom juízes que mantiveram a terra em
dereito. E de como destes juízes decenderom os reis de Castela, de uma parte, e da
outra, os reis de Navarra. Des i falaremos dos reis de Navarra e dos de Aragom e dos de
França e donde decenderom os reis de Portugal.

Livros de Linhagens do Conde D. Pedro

3
Parente afastado
4
Em resumo
5
Pelágio
ROTEIRO DE LEITURA
Livros de Linhagens Os Livros de Linhagens não são propriamente uma obra de literatura.
Herculano diz que estes registos familiares, existindo, talvez, desde o
início da nacionalidade, cor¬responderam a uma urgente necessidade
social. A introdução de lendas, troços de história, batalhas e anedotas
ameniza a aridez da genealogia e dá-lhes, então, interesse literário.
Os objetivos morias Lê-se logo no inícío do prólogo: "meter amor e amizade antre os
destes registos nobres fidalgos de Espanha" e entre "todolos os homeens ricos e
genealógicos pobres". Salienta, depois, a solidariedade de criar e ensinar os
meninos, aconselhar os mancebos e socorrer os mais velhos.
Divisão do livro O livro está dividido em "títolos e alegações" para que a amizade "non
se perdesse antre aqueles que a deviam haver. E o que me a esta
moveo foram sete causas".
Do que se falará neste Sendo, entre nós, a primeira tentativa de uma História Geral, começa a
livro narração da história com os filhos de Adão, passando pela história de
Jerusalém e Troia até "donde descendem os Reis de Portugal", "donde
descendem os nobres fidalgos de Castela e de Portugal e Galiza".
Pedido do Conde Roga que acrescentem nos títulos deste livro "aqueles que adiante
descenderem dos nobres fidalgos de Espanha, e os ponham e
escrevam nos lugares u convem".
Frequência de matrimónios celebrados em contrário das disposições
Factos de ordem social eclesiásticas.
que deram origem aos Lei da avoenga (direito de preferência no caso da venda dos bens
Livros de Linhagens. hereditários da família).
Abusos do direito de padroado (relaciona-se com os mosteiros).

A imagem de monarca ideal construída pelo Conde é definida pela figura de um rei que domina
a hierarquia da nobreza, é Ele quem define escalões, confere prestígio. O rei constitui-se, nessa
visão, como elemento chave na aplicação da Justiça e das leis. As leis elaboradas pelo rei são
feitas para todos do reino. Dessa forma centralizaria sua autoridade, sobrepondo-a aos poderes
locais. Essa centralização, no entanto só seria alcançada se governasse de maneira piedosa, com
justiça e misericórdia. A Justiça deixaria de ser um privilégio para tornar-se um direito de todos,
em nome do rei.
O Bom rei deveria desenvolver ações a fim de que houvesse, segundo coloca o Conde Pedro de
Barcelos ainda no Prólogo do Livro de Linhagens, “amor” e “amizade” entre seus súditos,
zelando e promovendo o bem comum. A figura do rei como regulador e promotor do bem
comum é necessária na medida em que a nobreza encontra-se fragmentada, desorientada e sem
consciência de grupo e da importância que possui dentro do reino. Dois valores que permitiriam
à nobreza ajudar-se mutuamente: “amor” e “amizade” estariam sendo deixados de lado.
A amizade, considerada como o maior de todos os bens, seria capaz de impedir discórdias.
Valores como fidelidade, lealdade e assistência mútua estão ligados a ela. São valores que
fazem parte da ética cavaleiresca, princípio básico que deve organizar a sociedade.
Se houvesse fidelidade entre os nobres não haveria necessidade dos reis. Em uma sociedade
configurada a partir de vínculos pessoais, a fidelidade é imprescindível. O rei, na conceção do
Conde, só é digno de fidelidade se souber respeitar os foros e costumes nobiliárquicos. Deve
apoiar-se nos vínculos pessoais que sustentam a sociedade, a fim de manter a justiça e ordenar a
mesma. A imagem do rei pacífico, capaz de promover a paz no reino é a personificação desse
ideal. O bom rei é ainda o rei cristão, temente a Deus. É o rei da Reconquista, que luta em
defesa da cristandade, combate mouros, reconquista territórios e garante a unidade da
cristandade. (Adriana Mocelim de Souza Lima, in A construção de um modelo ideal de
monarca no livro de linhagens do Conde Pedro de Barcelos)

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