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O humano entre o sagrado e o profano - ornamento e luxo na história da arte

Jefferson W.Kielwagen1

Resumo

Partindo dos desvios funcionais do ornamento – do preencher ao transbordar – esse artigo aborda
a questão do dispêndio, pensando o luxo – tudo que for exuberante, excessivo e, até certo ponto,
inacessível - como uma face do ornamento: um desperdício ou transbordamento de pura
visualidade. Do luxo primitivo, ligado ao sagrado e a questões de identidade, passando pelo luxo
mundano do excesso produtivo eliminado sazonalmente, chega-se a sub-luxo contemporâneo -
todo o espectro de luxos intermediários que, tornando-se acessíveis a todos, banaliza o sagrado –
ou sacraliza o banal.
Palavras chave: ornamento; luxo; sagrado.

Abstract

Based on the functional deviations of ornament – from the fulfilling to the overflowing - this article
deals with the problem of expenditure, thinking the luxury - all that is exuberant, excessive and, to
some extent, inaccessible - as a face of the ornament: a waste or overflow of pure visuality. From
primitive luxury, connected to the sacred and issues of identity, through the mundane luxury of
excessive production, periodically wasted, one reaches the contemporary sub-luxury - the whole
spectrum of intermediate luxuries that, by becoming accessible to all, trivializes the sacred - or
sacralizes the trivial.
Key words: ornament; luxury; sacred.

1
Mestrando regularmente matriculado no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UDESC.
1. Luxo sagrado

“E que se derramem safiras, ametistas e esmeraldas


no obscuro erotismo da vida plena: porque na minha
escuridão enfim treme o grande topázio, palavra que
tem luz própria.” – Clarice Lispector, Água Viva

Dentre as obras de arte que marcam


a influência barroca no Brasil - deixada
pelos missionários católicos europeus
desde meados do século XVII - encontram-
se alguns dos mais pungentes, exuberantes
e até desmedidos exemplos de
ornamentação conhecidos. Tal é o caso do
Retábulo da Basílica de Nossa Senhora do Retábulo da Basílica de Nossa Senhora
Carmo, em Recife: sob o predomínio do do Carmo, em Recife.

dourado, abundam as formas e cores mais


variadas, numa riqueza de detalhes que, indo além da dispersão, beiram a
opressão. É uma imagem que, além de desafiar a descrição, nega qualquer
possibilidade de discrição: tudo é muito e não há sutilezas. Predomina o
ornamento fitomórfico nas formas de folhas douradas que se enrolam nas pontas,
ao redor das colunas e ao longo de todas as janelas e espaços que abrigam as
figuras religiosas. No centro, uma espécie de janela ou câmara maior abriga a
Maria, o menino Jesus e vários querubins; a cortina branca indica que esses
personagens existem para além de um véu, em um espaço próprio, ao redor do
qual o ornamento se prolifera e se espalha sobre as superfícies.
Como pensar esse preciosismo desmedido, e que espécie de vazio tal
ornamento quer esconder? Uma resposta possível pode ser encontrada na
constatação de que os retábulos barrocos não estão sozinhos nas operações
ornamentais que empreendem. Para esse fim, examinemos o Kandariya
Mahadeva, em Khajuraho, Índia - um templo hindu medieval, construído entre
1004 e 1035 e considerado o mais ricamente ornamentado dentre toda a
arquitetura religiosa indiana, coberto de esculturas em pedra por dentro e por fora,
com motivos que incluem desde figuras humanas em posições sexuais até a
abstração geométrica. Igrejas barrocas e templos medievais indianos estão bem
separados no tempo e no espaço, mas não obstante, apesar de algumas
diferenças arquitetônicas estruturais, podem-se encontrar nas minúcias e detalhes
pelo menos duas semelhanças dignas de nota: a ornamentação abundante e
criação de espaços vazios em seus centros mais sagrados. O correspondente
indiano do retábulo ou sanctum sanctorum é o garbha-griha2, em cujo núcleo há
uma câmara oca que abriga a imagem da divindade e a partir da qual se expande
toda a estrutura ornamental interna do templo. No Kandariya Mahadeva, o
garbha-griha abriga o lingam, o falo de Shiva. Ao redor distribuem-se, esculpidos
em pedra, ornamentos vegetais, geométricos e figuras humanas.
A profusão ornamental se espalha
por toda a superfície interna e externa do
templo, a partir desse vazio central. No
pensamento indiano, a relação entre cheio
e vazio é evidente, visto que seus
sistemas filosóficos costumam colocar o
tudo e o nada em uma relação de
equivalência. No sânscrito, ambos os
termos súnya (vazio) e purna (pleno),
aparentemente opostos, são usados para
nomear o zero matemático; há uma
referência comum para ambos, da qual
podem-se depreender que todos os

Garbha-Griha do Kandariya Mahadeva, em


números são virtualmente, ou
Khajuraho. potencialmente, presentes naquilo que é
sem-número. Em outras palavras, o vazio absoluto é o lugar-momento de
potencialidade máxima, de onde o novo pode surgir. Essa noção sugere uma
leitura diferente da relação entre ornamento e vazio: o primeiro não é criado para
2
Do sânscrito, garbha = útero e griha = casa, garbha-griha significando literalmente a câmara ou casa do
útero.
preencher o segundo; é o segundo que cria continuamente o primeiro, sem nunca
preencher-se.
Retornando, então, ao Retábulo da Basílica de Nossa Senhora do Carmo,
pode-se tentar uma leitura pensando o vazio como potência ilimitada e criadora,
que o ornamento nunca preenche; antes disso, transborda continuamente para
além de seus limites. Por essa razão, retábulos e garbha-grihas - diferentes de
tapetes ou papéis de parede - não suprimem a terceira dimensão; pelo contrário,
jogam com a profundidade para criar níveis, nichos e véus. Em meio ao frenesi
decorativo e às referências teatrais e escultóricas, pode-se frequentemente
distinguir tanto as minúcias arquitetônicas e figurações divinas quanto os reinos
vegetal, mineral, e animal - sem ignorar o fato de que estas obras quase sempre
estão divididas em inúmeras partes, oferecendo-se como janelas que remetem ao
sagrado. Já no primeiro plano, elementos como rochas, vegetação, colunas, falsas
ruínas, detalhes de ourivesaria e cortinado assinalam uma espécie de cenografia,
que se apresenta como oferenda de cores e formas.
Uma beleza tão fulgurante e, ao mesmo tempo, inacessível, tende a
produzir em seus espectadores sensações próximas ao arrebatamento – o
apagamento do eu. A profusão ornamental dos templos remete ao sagrado,
sugerindo uma noção de luxo que não tem nenhuma relação com valores de troca
ou bens de consumo. Que dizer desse luxo sagrado, e de sua capacidade de
insuflar reverência?
A questão exige um olhar mais aprofundado sobre a história do luxo. Gilles
Lipovetsky propõe uma genealogia - uma história estrutural, de longuíssima
duração - que serve justamente a esse fim. No paleolítico, o luxo mais primitivo
aparece em relação direta com o sagrado e com as primeiras manifestações de
espiritualidade; nasce, portanto, antes da fabricação de bens de valor elevado, ou
mesmo do resultado mecânico do excesso de riquezas materiais: “Não há dúvida
de que os pequenos grupos de caçadores-coletores do paleolítico tenham tido um
nível de vida objetivamente medíocre. Tanto suas habitações como suas
vestimentas são rústicas, e seus utensílios, pouco numerosos. Mas, se não
fabricam bens de grande valor, isso não os impede, por ocasião das festas, de
enfeitar-se e admirar a beleza de seus ornamentos. Além disso – e, sobretudo –
de viver em uma espécie de abundância material, de comer bastante nas festas,
de gozar de tempo livre e de uma alimentação suficiente obtida sem grande
esforço. Exibindo uma atitude de despreocupação deliberada com o amanhã, eles
festejam e consomem de uma só vez tudo o que têm em mãos, em lugar de
constituir estoques alimentares. Nada de esplendores materiais, mas a ausência
de previdência...”3
O luxo primitivo, então, é espírito de dispêndio. A esse respeito pode-se
evocar o pensamento de Georges Bataille, que introduz o conceito, bastante
genérico, de despesas improdutivas – entre as quais constariam todos os
fenômenos e práticas sociais improdutivos, como artes, jogos, religiões e práticas
sexuais não reprodutivas. Em outras palavras, atividades que consomem energia
ou recursos, mas não produzem um resultado material. Como se tivéssemos
energia demais - uma potencialidade excedente – que manifestamos não por um
capricho, mas por uma espécie de pressão exercida de dentro pra fora – o
transbordamento. Bataille sugere que o mesmo se verifica com os fenômenos
naturais4, tomando como exemplo o sol - que “dá sem nunca receber”; entende-se
que as estrelas queimam para ninguém, e que, portanto, há sempre um excesso a
ser desprendido de forma exuberante. Bataille propõe ainda uma distinção entre
dois tipos de economia, uma para os sistemas sociais e econômicos - onde há
necessidades e desejos de lucro e crescimento - e outra para os sistemas vivos -
onde a energia estaria sempre em excesso. Ainda que – segundo esse autor - a
economia social derive da natural, o problema para o humano é como utilizar esse
excedente - que forma dar ao dispêndio.

3
Lipovetsky, pg. 22.
4
Bataille e Lipovetsky abordaram a questão do dispêndio de formas bem distintas; cabe ressaltar aqui uma
diferença fundamental no que diz respeito às fronteiras entre o natural e o humano. Para Lipovetsky, “...deve-
se protestar radicalmente contra as teses que interpretam o luxo como uma necessidade natural que prolonga
uma ‘economia’ cósmica ou biológica cura característica seria o desperdício de uma energia sempre em
excesso. Na verdade, não há nenhuma continuidade entre o pretenso luxo da natureza e o dos homens:
mesmo apresentada sob forma metafórica, essa relação é inaceitável. O dispêndio suntuário primitivo não
deriva de nenhum movimento natural, é um fato ou regra sociológica...” (LIPOVETSKY, p. 24). Essa idéia de
continuidade entre o natural e o social, que Lipovetsky quer negar, é precisamente a que Bataille afirma na
base de suas reflexões. O primeiro crê – como Durkheim – que o social constitui um universo autônomo - que,
ainda que derivado do natural, serve agora a seus próprios fins – e o segundo, que há continuidade entre o
social e o natural de modo que seus processos sejam análogos. O caminho de Bataille é certamente mais
romântico...
Sobre a questão do luxo enquanto espírito de dispêndio, Roger Caillois
elabora uma teoria em que a festa é uma espécie de recurso ao sagrado: “Nas
civilizações ditas primitivas (...) a festa dura várias semanas, vários meses,
entrecortados por períodos de repouso de quatro ou cinco dias. Muitas vezes são
necessários vários anos para reunir a quantidade de víveres e de riquezas que aí
serão não só consumidos ou despendidos com ostentação mas ainda destruídos
e esbanjados pura e simplesmente, pois os esbanjamento e a destruição, formas
do excesso, inserem-se por direito na essência da festa.”5 Os primeiros bens de
luxo estão na origem não só dos objetos de prestígio, que sinalizam o status social
de seus possuidores, mas também das maneiras de estabelecer contatos com
deuses e espíritos; é o universo anímico dos talismãs e objetos de poder; derivam
do pensamento mágico-religioso, de modo que a religião se torna uma das
condições para seu surgimento. Esse luxo sagrado e primitivo apresenta como
uma qualidade do transcendente.

2. Luxo profano

Se considerarmos o luxo ou dispêndio


como faces do ornamento, pode-se acrescentar
a reflexão de Maffesoli sobre esse caráter
transcendental: “Eis o porquê de o ornamento
não ser um simples supérfluo. (...) aceitemos o
paradoxo: é um supérfluo que dá vida ao
expressá-la. O que podemos encontrar, por
exemplo, no ornamentalismo do Jungedstil, mas
que está igualmente presente no kitsch, o dos
anões que decoram as casas ou os jardins
Jeff Koons, Sacred Heart
populares das periferias das grandes cidades. (Red/Gold). 356.9 x 218.4 x 121 cm.
Coleção de Steven e Alexandra
Em cada um desses casos – a arte reconhecida Cohen.
como tal ou aquilo do que debochamos – há

5
Caillois. O homem e o sagrado. Pg. 96.
uma potência vital, cosmogônica, ligando o humano ao seu entorno, que repete a
utopia da fusão com o grande Todo, coisas que são da ordem da mitologia e do
simbolismo”6. O supérfluo, então, remete a uma potência vital de caráter
transcendental, presente no luxo e no ornamento; é o paradoxo dos abismos
superficiais dos retábulos barrocos e da arte pop.
Consideremos um exemplo bem contemporâneo: sobre o terraço do
Metropolitan Museum of Art, em New York, repousa um coração de três metros e
meio, embrulhado em papel laminado vermelho - feito um ovo de páscoa, ou
presente de dia dos namorados - com direito a uma fita dourada. Equilibrando-se
graciosamente sobre sua extremidade menor, esse coração aparenta leveza, mas
em verdade é uma peça sólida de aço polido, cromada e pintada com tinta
transparente, de modo a refletir como um espelho o terraço à sua volta. A fita
dourada, enrolada, e a estrutura na parte superior que imita a extremidade
amassada de um papel de embrulho, lembram vagamente uma coroa ou cocar -
remetendo simultaneamente ao anseio infantil por doces, ao potente imaginário
católico-romano (o Sagrado Coração de Jesus) e ao hábito de presentear os
amantes com chocolate - fundindo o banal e o sagrado num único e luxuoso
objeto. O que se passa aqui? Que pretende o artista 7, banalizar o sagrado ou
sacralizar o banal?
Ora, se o luxo nasce na esfera do sagrado - como expressão primitiva de
dispêndio, oferenda e distintivo do humano - ele escorrega gradualmente, ao longo

6
MAFFESOLI, Michel. O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. São Paulo:
Zouk, 2003. Pg. 128.
7
Sacred Heart (Red/Gold) é uma criação do norte-americano Jeff Koons (Pensilvânia, 1955) - um dos nomes
mais proeminentes da arte contemporânea e também o artista mais caro vivo: Baloon Flower – escultura em
aço da mesma série de Sacred Heart, Celebrations - foi vendida, em Julho de 2008, por incríveis vinte e cinco
milhões de dólares. Trata-se de uma situação singular: no mercado da arte, o valor das obras tende a
aumentar com o tempo, e a marca das dezenas de milhões só é alcançada por clássicos centenários; Koons
rompe com essa tradição, mostrando que o contemporâneo pode valer tanto quanto o clássico num mercado
cujas regras nunca foram muito claras. A produção poética de Koons começou em 1985, e desde então ele
vem trabalhando com questões da ordem das superfícies enganadoras, do kitsch e do universo da
propaganda. Um certo erotismo também faz parte de seu repertório: em 1991 casou-se com a célebre &
infame Cicciolina – atriz pornô húngara, naturalizada italiana, que na época tentava uma carreira alternativa
como membro do parlamento italiano - e produziu uma série, intitulada Made in Heaven - de fotografias e
esculturas em porcelana e vidro - em que se auto-retrata em várias posições sexuais com a esposa.
Naturalmente, a série gerou muita polêmica, como quase tudo que ele faz. Flertando com o oportunismo do
universo da arte, trabalha com a própria imagem e com a idéia que o público tem de como deve ser um
artista. Jogando com opostos - como leve e pesado, sagrado e banal, nobre e vulgar - Koons e seus
paradoxos nos lembram continuamente que as aparências enganam, e que mesmo o mais superficial pode
esconder profundidades abissais.
dos milênios, para a dimensão do puramente material, como aponta Lipovetsky:
“Com a dinâmica do enriquecimento dos comerciantes e dos banqueiros, o luxo
deixa de ser privilégio exclusivo de um estado baseado no nascimento, adquire
um estatuto autônomo, emancipado que está do vínculo com o sagrado e da
ordem hierárquica hereditária“8. O luxo, então, torna-se autônomo e passa a servir
a seus próprios fins, chegando mesmo a sobrepujar o processo religioso que o
tornou possível em primeiro lugar, numa operação análoga à que se verifica com o
ornamento – ou mimetismo, ou política, ou a qualquer outro sistema, seja ele de
natureza química, biológica, social ou simbólica. Que dizer, por exemplo, da
comercialização da experiência religiosa, ou mesmo da teologia da prosperidade
contemporânea?
Essa operação de desvio funcional, em que o meio se torna um fim, é
identificada por Lipovetsky no âmbito do luxo, como um processo de fragmentação
que teria se acelerado a partir da segunda metade do século XIX - que é quando
surgem, na Europa, as primeiras magazines e galerias, com suas vitrines e
promoções. Tais estabelecimentos criaram estratégias comerciais que persistem
até hoje, como preços baixos e fixos, entrada livre, diversidade de produtos e
publicidade; é o período do art nouveau, da exploração de novos materiais como o
ferro e o vidro, e de avanços tecnológicos na área gráfica, como a técnica da
litografia colorida, que teve grande influência no desenvolvimento dos cartazes.
Nesse contexto se insere também a popularização do plástico, capaz de imitar
materiais nobres, como marfim, metais e pedras preciosas. Os privilégios que
antes eram de poucos, tornaram-se acessível a um número muito maior de
pessoas.
Teóricos pessimistas da arte e da cultura, como Ruskin e Adorno, temiam
que a produção em massa homogeneizasse a cultura, mas o que ocorreu foi
precisamente o contrário: a especificidade das demandas de diferentes mercados
é que diversificou a produção, de modo que não há mais um luxo, mas vários;
luxos de exceção e luxos intermediários coexistem com o luxo absoluto original. O
luxo sagrado converteu-se em profano para melhor servir a seus próprios fins. Se

8
Lipovetsky, p. 35.
o dispêndio enquanto operação ultrapassa em muito a dimensão dos fenômenos
sociais, o luxo humano é apenas mais um elo de uma longa cadeia de
acumulação e desperdício - cadeia que remonta à natureza inorgânica - e o
humano seria, dentre as demais criaturas, o “mais apto a consumir, intensamente,
luxuosamente, o excedente de energia”9. De fato, a tecnologia que o homem cria
não cessa de abrir caminhos para novas formas de desperdício. Quem consegue
assistir os mais de cem canais disponíveis na TV a cabo? Que dizer da Internet,
oceano de informações, em sua maioria, inúteis?

3. Luxo animal, luxo humano

Encontro-me diante de
uma imagem que tem todas as
características estruturais de
uma natureza morta: uma
coleção de objetos cotidianos,
justapostos. Mas não são os
objetos normalmente retratados
em pinturas do gênero. No
centro da composição vê-se
Audrey Flack, Chanel, 1974, 213.4 x 152.4 cm
uma ânfora metálica e
espelhada de onde pende um colar de pérolas; o colar, por sua vez, derrama-se
sobre uma superfície também espelhada, e que reflete ânfora, pérolas e todos os
demais objetos em volta. Há também vidros de perfume – em um dos quais lê-se
claramente, sobre o rótulo, “toilette no 5, Chanel” – um bastão dourado de batom -
que, descoberto, revela sua ponta vermelha – ao lado de um vidro de esmalte e de
um estojo de maquiagem aberto – contendo um pequeno espelho, um pincel e
quatro cores de rouge amarelo: violeta e em dois tons de azul. As duas frutas
vermelhas – uma maçã e algo próximo a uma cereja que cresceu demais – são o
que há de mais próximo de uma natureza morta tradicional. Outros vidros e

9
Bataille. A noção de despesa.
estojos completam o quadro. Certos objetos – como os recipientes brancos à
esquerda e à direita da ânfora - não brilham nem refletem nada, mas em
compensação, são adornados com motivos florais. Essa vanitas10 dispensa a
representação literal de um espelho, já que este recado já está dado em vários
objetos que compõem a imagem. Os únicos objetos que num primeiro momento
podem parecer deslocados são as duas frutas vermelhas; de resto, a impressão
geral é a de um todo bastante coerente, em que cada elemento reforça uma
impressão de beleza artificial, produzida por e para a vaidade.
O luxo dos esmaltes e batons não parece muito sagrado, se comparado ao
de um retábulo barroco; mas há entre eles uma continuidade essencial. Nesse
sentido, sobre a maquiagem como luxo e ornamento do corpo, pode-se evocar o
pensamento de Baudelaire em seu Elogio à Maquilagem no que diz respeito à
relação do belo com o natural: “Se (...) consentimos em recorrer simplesmente ao
fato visível (...) veremos que a natureza não ensina nada, ou quase nada, isto é,
ela obriga o homem a dormir, a beber, a comer e a se garantir, como pode, contra
as hostilidades da atmosfera. Também é ela que leva o homem a matar seu
semelhante, a comê-lo, a sequestrá-lo, a torturá-lo; pois, logo que saímos da
ordem das necessidades e das urgências para entrar na do luxo e dos prazeres,
vemos que a natureza só pode aconselhar o crime. (...) Passem em revistam
analisem tudo o que é natural, todas as ações e os desejos do puro homem
natural, encontrarão apenas o detestável. Tudo o que é belo e nobre é o resultado
da razão e do cálculo” 11.
A maquiagem, portanto, é muito mais que um artifício feminino de beleza;
indica um desejo de transcender o natural, de elevar-se acima dele e das
indignidades em que implica. De forma semelhante no universo masculino, o
barbear periódico - e inútil, visto que os pêlos sempre tornam a crescer – também
pode ser entendido como desejo de camuflar uma natureza vil. Paradoxalmente,
para Baudelaire essa nobreza sobre-natural, geralmente atribuída à civilização,
deita raízes no universo dos incivilizados: “...sou levado a olhar o adorno como um

10
Gênero moralizante de natureza morta em que tentava-se, através da inclusão de espelhos, chamar a
atenção à vaidade humana.
11
CHIAMPI, Irlemar. Fundadores da modernidade. São Paulo: Ática, 1991. p. 116.
dos sinais da nobreza primitiva da alma humana. As raças que nossa civilização,
confusa e perversa, trata naturalmente de selvagens, com um orgulho e uma
fatuidade completamente risíveis, compreendem, assim como a criança, a alta
espiritualidade do adereço. O selvagem e a criancinha atestam, através de sua
ingênua aspiração ao brilho, às plumas coloridas, aos tecidos reluzentes, à
majestade superlativa das formas artificiais, seu desdém pelo céu, e assim
provam, sem saber, a imaterialidade de sua alma”12.
Se o luxo pré-histórico, então, antes de se materializar na forma de objetos
valiosos já existia como uma atitude mental que afirmava o poder de
transcendência da espécie-humana – sua não-animalidade – ele é o primeiro
distintivo do humano. É aquilo que instaura a separação entre cultura e natureza,
servindo à crença de que estamos, de alguma forma, separados do mundo
natural, como uma força quase artificial agindo sobre a natureza, e não a partir
dela. Ainda que se possa argumentar que essa separação é impossível e, de certo
modo, absurda, o fato é que o humano se debate com todas as forças para
desvencilhar-se das amarras materiais e das indignidades em que elas implicam.
É claro: toda matéria é decadente, toda vida animal é também mortal, e essa
realidade nos coloca frente a frente com nossa própria finitude - todos os sistemas
de crença e pensamento que construímos em torno de nossa identidade enquanto
criaturas passam pelo evitamento desse vazio insuportável que, em última
instância, é a angústia diante da inevitabilidade da morte. Nesse sentido pode-se
pensar o luxo como algo que transborda por sobre os limites desse vazio, como as
voltas e circunvoluções do ouro na Basílica de Nossa Senhora do Carmo. Se o
luxo primitivo demarca as fronteiras do humano, separando-o dos animais, que
efeitos têm a fragmentação do luxo, bem como sua oscilação do sagrado para o
profano, sobre a delimitação da identidade humana?

12
CHIAMPI, Irlemar. Fundadores da modernidade. São Paulo: Ática, 1991. p. 117.
REFERÊNCIAS

BATAILLE, Georges. O Erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.

BATAILLE, Georges. A Parte maldita: precedido da noção de despesa. Lisboa: Fim de


Século, 2005.

CAILLOIS, Roger. O homem e o sagrado. Lisboa: Edições 70, 1950.

CAILLOIS, Roger. Mimetismo e psicastenia legendária. Revista Che Voui, ano 1, nº,
Cooperativa Cultural Jacques Lacan, Porto Alegre: 1986.

CHIAMPI, Irlemar. Fundadores da modernidade. São Paulo: Ática, 1991.

LIPOVETSKY, Gilles. O luxo eterno. SP: Cia das Letras, 2005.

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