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 J A C Q U E S L A C A R R I E R E

Título original:
Les hommes ivres de Dieu
© Librairie Arthème Fayard, 1975.

Edições Loyola
Rua 1822 ny 347 - Ipiranga
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Postal 42.335 04218-970 São
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ISBN: 85-15-01278-2
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 1996
PADRES DO DESERTO

PREFÁCIO ...................................
...........................................................
.................................................
..............................................
..................... 13

INTRODUÇÃO ..............................
.......................................................
..................................................
..........................................
................. LZ

 Primeira parte O FIM DE

UM MUNDO

1 —  O FIM DOS TEMPOS ................................................


.....................................................................
..................... 23
Crença no fim iminente do mundo no tempo de Jesus e nos três
séculos seguintes: são Paulo, santo Hipólito de Roma, Basílio de Ancira,
Tertuliano, são Cipriano.
Suas conseqúèncias: a ruptura com o mundo. Santo do deserto e
bom selvagem. Relações entre o anacoretismo e a ascese. A partida para
o deserto.

2 — A GRANDE TRANSIÇÃO 33
Os textos sobre a vida no deserto. A ocupação grega e romana no
Egito. Dois mundos estranhos um para o outro. O exotismo egípcio em
Roma. Primeiros assaltos contra o paganismo. A "morte" do deus egípcio
Serápis.
A cristianização do Egito. Sincretismo dos meios citadinos helenizados.
O meio rural. A aventura copta. Tornar-se cristão permanecendo egípcio.
Panorama da heresia monofisita. As perseguições. O fim de um mundo.
Partida de Antão para o deserto.

Segunda parte OS HOMENS ÉBRIOS DE DEUS

3 —  A ESTRELA DO DESERTO........................................................... 51
Santo Antão existiu? A Vida de Antão e a tradição aretológica. Onde
começa e onde termina a história? O Chamado: Antão se instala junto de um
ancião.
A experiência das trevas. Permanência de Antão num túmulo. Suas
primeiras tentações. O bestiário fantástico do Egito antigo. Crenças
funerárias e Livro do Am-Duat.
A experiência da luz. Antão parte para a montanha de Colzum. Seus
vinte anos de solidão. Seus primeiros ensinamentos e seus primeiros
discípulos.
Últimos anos de Antão. Suas visões edênicas. Sua
morte.

4 —  A PRADARIA DOS SANTOS ....................................................... 71


Um santo entre os anjos: Paulo de Tebas. A Vida de Paulo de Tebas por são
 Jerônimo. O problema de sua historicidade. Vida de Paulo de Tebas no
deserto. Sua gruta, o pão de Deus, seu encontro com Antão, sua morte
milagrosa.
Um santo entre os homens: Pacômio. As Vidas coptas de Pacômio. Sua
vocação. Sua ascese perto de Khenobóskion com o apa Palamão.
ÍNDICE
PADRES DO DESERTO
pacomianos. Sua organização. Sua disciplina. Técnicas de asceses coletivas.
A língua do anjo. Morte de Pacômio.

5  OS ATLETAS DO EXÍLIO (I) ........................................................ 93


O Império romano se torna cristão. Reconhecimento do cristianismo


pelo imperador Constantino. Suas conseqüências sobre o destino do
cristianismo. A Igreja dos militantes e a recusa do temporal. Vida econômica
do Egito do século IV. Prestígio dos primeiros eremitas. Uma nova Terra
Santa. Os primeiros peregrinos do Egito cristão: Paládio, Rufino, Cassiano.
Nos desertos do Alto Egito. Mosteiros e anacoretas. A curiosa viagem
de um monge no deserto.
A Tebaida. Port-Royal e a redescoberta do deserto. As traduções de
Arnauld d'Andilly. Mosteiros e eremitas da verdadeira Tebaida. Os
discípulos de Antão: Paulo o Simples e são Sisoés.
Ao encontro de anacoretas estranhos. Precauções indispensáveis da
parte do leitor: não confiar nas aparências. Vida de João do Egito, o recluso.
Santo Apoio e seus milagres. Pafnúcio e seu anjo. A conversão de Tais. Um
mito de antes da Graça.
6 — OS ATLETAS DO EXÍLIO (II) ..................................................... 119
Os desertos do Wadi-an-Natrun. Suas paisagens fantásticas. Os perigos
que ali se corre.
Homens em tocas de hienas. O deserto da Nítria e o deserto das Celas.
Macário o Jovem. Sua vida e suas asceses incríveis. Macário e o mosquito.
Seus discípulos. O pão e a alma.
Os homens mais humildes do mundo. Macário o Antigo e o deserto de
Skete. Suas visões. Macário e o

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querubim. Macário e o cadáver. O ensinamento e os discípulos de Macário o
Antigo: Moisés e os ladrões, Bessarião, Poimém e a estátua. João o Pequeno e
a vara milagrosa. Arsênio, o preceptor.
Proibição oficial de praticar os cultos pagãos. Controvérsia entre
pagãos e cristãos. As violências dos cristãos: pilhagens, incêndios dos
templos, execuções dos sacerdotes. Motins em Alexandria. A última
mensagem do pensamento pagão.
Vida e vocação de Canúcio de Atripé. Seus mosteiros. Suas regras
implacáveis. Sua divisa: forçar os homens a amar a Deus. O porrete e a
salvação da alma. Expedições de Canúcio contra os templos e os sacerdotes
pagãos. Fim do paganismo no Egito.

8 — FICAR MAIS PERTO DO CÉU ..................................................... 159


A Palestina e a Síria cristãs. Autores e viajantes cristãos: Teodoreto de
Ciro, João Mosco.
Na Palestina. Santo Hilarião, primeiro eremita palestino. Sua vida
singular. O Sinai e seus anacoretas errantes. Eremitérios do mar Morto. Santa
Maria Egipcíaca e sua estranha história. Uma prostituta arrependida. Os
contos cristãos do deserto.
A Síria cristã. Breve história do cristianismo siríaco.
Os reclusos. Viver no interior das árvores e das grutas. Santo
Acépsimo, são Talelo e sua jaula, são Marão e sua árvore de espinhos.
Pastadores e estacionários. O testemunho de santo Efrém. Natureza
dessas estranhas asceses. Fechar os olhos para o mundo. As lágrimas de
santa Domnina.
Esítítííis e dendiitas. Natureza e origem possível do estilitismo. As Vidas
de são Simeão o Antigo. Sua vocação. Sua temporada num poço. As
correntes. Sua primeira coluna. Suas asceses e seus milagres. Morte de são
Simeão. Fascínio dos visitantes. Outros cstilitas célebres. Os dendritas. Estar
ébrio de céu e de Deus.

Terceira parte MORRER PARA O

MUNDO
PADRES DO DESERTO
disser que ela me pareceu de imediato, estranhamente, um mar de gelo.
Porque este deserto ocidental do Egito não é de areia, mas de sal. Mar mineral
e branco, cuja crosta endurecida é insensível aos ventos e ressoa em alguns
lugares sob os pés como uma abóbada de cristal. Oceano atapetado de
sedimentos fossilizados, de cascas imemoriais, como se as batalhas das águas
e da terra, a alternância dos elementos tivessem encontrado aí o seu campo de
repouso. Num tal mundo, o homem é quase excrescência inútil,
13
presença absurda. E ele só pode viver ali tornando-se também peso morto do tempo,
hibernando-o num perpétuo inverno. Eis por que durante tantos séculos esse lugar
extremo só abrigou fantasmas hirsutos, sombras andrajosas, engodos de seres
humanos que as testemunhas de então designaram os atletas do exílio e que eu
chamei os homens ébrios de Deus.

Este livro foi escrito e publicado há treze anos. Mas ele nasceu bem mais
cedo em meu espírito, gerado por uma visão noturna. Eu estava então no
monte Atos, no mosteiro da Grande Laura, onde jantava, após o ofício da
noite, no grande refeitório cheio de monges e eremitas para a festa anual de
santo Atanásio o Atônita. As paredes eram cobertas de afrescos antigos, cuja
faixa inferior representava, alinhados lado a lado, os grandes santos do
deserto: Antão, Paulo de Tebas, Pacômio, Macário, Onofre, Poimém. Silhuetas
nuas, longos corpos esquálidos vestidos de barbas e de cabelos caindo até os
pés, com grandes olhos negros cavados na ossatura do rosto. À luz das velas,
suas auréolas realçavam a paüdez de seus traços e todos aqueles santos
retomavam vida, repentinamente, distantes e familiares ao mesmo tempo,
como se, dos continentes seculares de seu afresco, eles surgissem da borda
luminosa daquela refeição noturna. Aquela noite, compreendi que eles não
estavam pintados somente para figurar uma experiência insubstituível, para
se ancorar num tempo passado, mas para surgir também a cada instante no
presente dos homens. E naquela noite senti vir a mim todo um povo da
sombra, cuja existência e história eu havia ignorado até então. Quis
conhecê-los, encontrar um a um os habitantes desse mundo desconhecido do
deserto. Li as Vidas dos santos, os relatos e os testemunhos dos que os
conheceram, inventariei dezenas de textos gregos e coptas que, mais tarde, me
levaram ao Egito. E foi lá, no coração do Wadi-an-Natrun, que decidi escrever
Hoje, não sei muito bem o que pensar deste livro. Ele foi o testemunho de uma
época e de uma vida que me levaram mais freqüentemente ao Oriente que ao
Ocidente. O que então me fascinava continua a me interessar, mas me diz menos
respeito. Nada tenho de asceta e nunca busquei aprofundar melhor aquilo que,
durante anos, me conduziu à procura daqueles homens. Além do mais, sinto-me
totalmente ateu e escrevi a história desses homens sem jamais compar-
PREFÁCIO

tilhar sua opção e sua fé. Empreendimento sempre incerto, já que ele recusa a
identificação sem que o recuo implicado seja por isso revelador. Isto explica
por que, ao lado de um grande número de reações entusiastas e muito
elogiosas, este livro tenha sido criticado, vilipendiado em alguns meios
católicos. De minha parte, não me preocupava muito com isso, pois na história
não existe domínio reservado. Se os crentes fossem os únicos habilitados a
falar de sua fé, se só os monges tivessem de escrever sobre o monaquismo, a
história do pensamento não passaria de uma eterna tautologia. Como não
tenho, aliás, nenhuma pretensão de historiador, encontrei-me mais uma vez
rejeitado diante de mim mesmo. Porque este livro não é um tratado de
história, uma hinologia ou uma critica pretensamente objetiva do fenômeno
que ele estuda. Os homens ébnos de Deus é o diário de um encontro inteira-
mente pessoal com uma época e com homens que até hoje não sei se foram
loucos ou se foram santos. E não sei igualmente se eles foram — e ainda são —
para mim os indígenas de um outro mundo ou os irmãos desconhecidos de
um continente que é o meu. Este estudo é também um livro-testemunha,
quero dizer, o relato de um testemunho pessoal, termos contraditórios para um
ocidental, mas que sempre se confundiram estreitamente em todo o domínio
oriental. Testemunha, em grego, se diz martyr, que também significa mártir.
Como, enfim, meu objetivo em todos os meus livros nunca foi redigir
teses de pretensão universitária nem marcar data para a posteridade, mas
simplesmente, organicamente eu diria, comunicar-me com meus
contemporâneos, relatar o que vivi e pensei, para que outros o vivam e o
pensem por si mesmos, reivindico particularmente as insuficiências —  até
mesmo as ignorâncias — deste livro: como as tentativas e os erros das amebas
e dos paramécios, elas são a marca dos titubeios sem os quais nenhuma
verdade faz sentido. É assim que surge finalmente este livro, após tantos anos:
um ensaio para interrogar, pressentir ou delinear os limites do homem. Pois
foi isso, sem dúvida alguma, que me atraiu outrora para a experiência desses
santos do deserto: esse desafio lançado ao nosso destino de hominídeo, essa
recusa visceral da nossa casca antiga e essa busca última de um homem
Esta profecia encontrará tal eco nos meios evangelizados pelo Apóstolo,
que alguns cristãos cessarão todo trabalho e viverão ociosos, à espera do dia
iminente.
Esse clima escatológico e exaltado não deixará de se ampliar nos séculos
seguintes e com toda certeza está na origem de muitos comportamentos
irracionais e excessivos, como a vocação para o martírio, a obsessão da
virgindade e da ascese, a fuga para os desertos. Todos esses comportamentos
têm entre si o traço essencial de serem antes de tudo uma recusa radical do
mundo, recusa que se compreende facilmente uma vez que este mundo está
destinado a desaparecer de um dia para o outro. Que numa época a ênfase seja
dada ao mártir e, na outra, ao asceta ou ao anacoreta, tanto faz! Pois todas
essas atitudes se prendem a uma mesma e total desafeição para com o mundo
aqui de baixo, conseqüência das conturbações, dos traumatismos operados
nos espíritos pelo medo, pela angústia, pela exaltação do Fim dos Tempos.
Um exemplo disso? Posto que Jesus disse, a propósito dos sinais
precursores de sua segunda Vinda: "Ai das que estiverem grávidas ou
amamentando nesse dia!", muitas jovens permanecerão virgens e inúmeros
casais praticarão os casamentos virginais ou apotâcticos (consistindo em viver
 juntos, mas renunciando às relações sexuais), para não serem surpreendidos
impuros no momento do Juízo Final1. Se for necessária uma prova
suplementar desta ligação, operada em muitos espíritos, entre o zelo da
virgindade e o temor do fim do mundo, eis um texto muito revelador de santo
Hipólito, bispo de Roma, extraído do seu Comeniáúo sobre Daniel, escrito no
início do século III:

Um bispo, homem piedoso e modesto, mas que tinha excessivo confiança em


suas visões, tivera três sonhos e se pôs a profetizar: "Sabei, meus irmãos, que
o luizo Final ocorrerá em um ano. Sc o que vos digo não acontecer, não creiais
mais nas Escrituras e agi como vos aprouver". Ao cabo de um ano, nada
aconteceu, ele ficou confuso, os irmãos escandalizados, as virgens se
casaram e 05 que tinham vendido todos os seus bens foram reduzidos à
mendicância.
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PADRES DO DESERTO
tamanho descomunal de certos animais, os gregos reagiram com zombaria, escárnio
e esse espírito mordaz que os egípcios não apreciavam muito. Eles lhes retribuíram,
aliás, a gentileza e captamos, nesses jogos da linguagem, todas os abismos que
separam dois povos que estão lado a lado durante séculos sem se compreenderem.
Para os egípcios, os gregos eram gente turbulenta, superficial e pouco séria, um
povo irresponsável e infantil. Recordemos esta frase atribuída por Platão a um
sacerdote egípcio —  frase cuja justeza permanece mais que nunca válida a trinta
séculos de distância e que poderia aplicar-se aos gregos de hoje: "Vós outros, gregos,
permanecereis sempre crianças. Quando é que os gregos se tornarão um povo
adulto?"
A presença romana no Egito foi menos sensível ainda que a dos gregos.
Roma tratou o Egito como uma terra à parte, um país cujos costumes, modos
de vida, deuses e o lugar excêntrico que ocupava nos confins do mundo o
diferenciavam das outras províncias do Império. Se os gregos se justapuseram
aos egípcios sem realmente misturar-se a eles, os romanos só fizeram ocupar o
Egito. Senão, vejamos um mapa do Egito romano. Que vemos aí? Cidades
gregas: Alexandria, Náucratis no' Delta, Arsínoe no Faium; depois, à medida
que subimos o Nilo, Afroditópolis, Oxirrinco, Hermópolis, Licópolis,
Ptolomaida, Coptas, Tebas, Siena. Algumas dessas cidades eram evi-
dentemente de origem egípcia, mas elas usaram durante muito tempo e com
mais freqüência seu nome grego. Uma única cidade tem um nome e uma
origem devidos a Roma: Antinoé, fundada por Adriano após a morte de seu
favorito, Antínoo. É que, de fato, a penetração romana não foi muito além do
Médio Egito. Nada de limes, faixa-fronteira como em tantos outros países do
Império, nada de fortifica-ções, de vias, de implantações duradouras. Antes
uma presença esporádica, nos limites do deserto hostil, que obrigou os
romanos a se servirem de dromedários; presença limitada a algumas
guarniçôes de militares, algumas dezenas de funcionários e cidadãos
confinados unicamente no Delta e nos burgos importantes. Roma ocupa
militarmente o Egito, mas não constrói nada ali, não funda nada, não
compreende nada. Contenta-se em reprimir as revoltas que estouram a todo
momento e, como diz com acerto um historiador do Egito romano, "em fazer o
país suar trigo e prata para alimentar os romanos".
PADRES DO DESERTO
Dirão que estamos fazendo o jogo do mistério e do exotismo, mas isso seria
ignorar o papel singular que o Egito desempenhou para a cultura romana. Pois este
país — tão desconhecido e tão pouco apreciado pelos que o ocuparam — suscitou
uma verdadeira febre entre os romanos da Itália. Visto de Roma ou de Pompéia, o
Egito não é mais uma terra de trigo povoada de indígenas embrutecidos, mas o país
da sabedoria e do conhecimento, o reino das tradições ocultas e dos poderes
mágicos. Ele cristaliza, em torno de seus enigmas, seus símbolos indecifráveis, seus
monumentos misteriosos, toda uma carência de exotismo e de maravilhoso de que
as culturas antigas se ressentiam tanto quanto as nossas. Pode-se ver uma prova
disso na moda que fizeram os cultos egípcios (os de ísis, principalmente) a partir do
século I antes de nossa era. Toda uma aristocracia culta se entusiasma com ísis, seus
mistérios, seus sacerdotes, com esses cultos estranhos e até então desconhecidos, a
ponto de obrigar o imperador Tibério a suprimi-los, a mandar crucificar alguns
sacerdotes como exemplo e a deportar alguns milhares de fiéis de ísis para a
Sardenha. Tudo isso, junto com os relatos mais ou menos fantásticos trazidos pelos
viajantes (pois a moda então é a dos relatos de viagem fabulosos, onde tudo é
pitoresco e fácil, exotismo de bazar, prodígios e milagres, relatos que Luciano de
Samosata parodiará na sua História verdadeira1 ), acaba formando no espírito do
profano uma imagem convencional do Egito que se encontra nessas pinturas de
paisagens nilóticas que "causam furor" na mesma época nas casas de Roma e de
Pompéia. Templos e cabanas de juncos à beira do Nilo, barcos e barqueiros, íbis e
crocodilos se reproduzem ali ao infinito, tal como naqueles papéis pintados de nossa
infância onde, numa paisagem oriental estereotipada — deserto, camelos, mesquita
—, mulheres com véus apanhavam água à sombra das palmeiras. Os romanos, nos

primeiros séculos de nossa era, terão o seu Egito, tal como o século XVI teve as suas
índias ocidentais e o século XIX a sua Polinésia: terras paradisíacas onde se
cristalizam essa amargura inconsciente e essa nostalgia da inocência que afetam as
civilizações nas épocas de êxito material e de conquista.

1. História chamada "verdadeira" por ser, justamente, fruto de pura imaginação e


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A GRANDE TRANSIÇÃO
ramente dizem respeito ao meio que nos interessa aqui, o do camponês copta.
O que é certo é que tornar-se cristão, no século III, para um camponês do Egito
não significava apenas adotar uma religião nova; implicava também renunciar
mais ou menos à religião antiga, a imagens, a símbolos, a ritos ancestrais.
Entre este mais e este menos se situa todo o verdadeiro alcance do cristianismo
naquela época, e a necessidade que ele teve de se acomodar com este passado
prodigioso, de não romper com algumas de suas exigências, em suma, de dar
ao copta a impressão de que ele podia tornar-se cristão permanecendo egípcio1.
Vale dizer que os termos cristianismo e oistão tinham para um camponês
copta um sentido bem diferente do que tem para nós. De um extremo a outro
do orbis romanus, cada um dos países convertidos teve, aliás, com bastante
rapidez a sua própria visão de Cristo, a ponto de a história dos seis primeiros
séculos da Igreja ter sido uma luta constante contra as heresias, um esforço
perpétuo para impor a todos uma visão idêntica de Cristo. O peso do passado
se exerceu profundamente sobre a sensibilidade religiosa do Egito cristão, e e
evidente que haverá sempre, na maneira como um camponês copta era
cristão, algo de estranho à nossa própria experiência. A prova disso é que no
dia em que ele puder, com toda liberdade, escolher o seu cristianismo,
escolherá um cristianismo todo equivocado, herético: o monofisismo, que se
tornará, a partir do final do século V, a religião nacional do Egito2.

1. Permanecer egípcio, para um copta, não significava apenas continuar a pertencer


ao Egito enquanto nação, mas enquanto cultura, perpetuando a crença nos símbolos
religiosos milenares. Assim, na Vida copta de Teodoro, o discípulo de Pacômio, conta-se
que Teodoro, tendo visto no campo um touro que possuía os sinais externos dos touros
sagrados de Ápis, "mandou-o matar para que seus monges não se pusessem a adorá~lo"\
2 . O monofisismo foi uma heresia que afirmava que o Pai e o Filho tinham
somente uma natureza — inteiramente divina — e, portanto, que a natureza humana de
Cristo não passava de uma aparência. Essa doutrina já havia sustentado certo número de
seitas dos séculos anteriores, bem como algumas seitas gnôsticas e também os marcionitas
e os docetistas. Na doutrina monofisita, Cristo só tem uma carne aparente e pode mudar à
vontade de forma e de aspecto. Para explicar a Crucifixão (já que seria impossível
crucificar um fantasma), os monofisitas admitiram que Cristo não foi realmente
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A GRANDE TRANSIÇÃO
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Segunda Parte
51

PADRES DO DESERTO
que fugiam dos lugares habitados para escapar das corvéias, dos impostos, de
seus amos ou da justiça. Mas sua
s ua temporada no deserto era apenas passageira.
No caso de Antão, esta partida tomava um sentido bem diferente, pois o que o
atrai não é a realidade concreta, e sim a realidade simbólica do deserto.
Como todos os anacoreias que o imitarão a seguir, Antão viveu numa
época e num meio profundamente impregnados de símbolos e de imagens
bíblicas. Toda a realidade material circundante (o deserto, o céu, os sons, as
luzes, as sensações mais quotidianas) possui um valor e um sentido
simbólicos, por ter servido, de uma maneira ou de outra, a este ou aquele
episódio da história divina. O deserto, antes de tudo, é um lugar inóspito,
tórrido, onde ninguém poderia levar uma existência normal. Lá o homem está
nu, apanhado entre a terra e o céu, entre os dias extenuantes c as noites
gélidas, prisioneiro de uma paisagem abstrata, que não é a imagem de
nenhum mundo familiar. O deserto é um lugar inumano. Mas que quer dizer
inumano para um copta? Quer dizer um lugar habitado por outras criaturas
que não homens: por anjos e demônios. No deserto, nenhum homem pode
viver se não for ajudado por Deus ou por seus anjos, ninguém pode morar ali
sem enfrentar mais cedo ou mais tarde os assaltos do Diabo: tem de viver ali
com os milagres e as tentações. Mas, de tanto freqüentar os anjos, acaba-se
parecendo com eles. O que os homens do deserto perdem em humanidade
ganharão em angelismo, e compreende-se que os pintores bizantinos que
representarão estes homens do Egito nos afrescos dos mosteiros da Capadócia
ou da Grécia os tenham pintado sob este duplo aspecto de selvagens c de
anjos: rosto emagrecido, trajes esfarrapados, cabelos que caem até os pés, mas
também olhares perdidos na contemplação de uma outra realidade, carne que
quase não é mais carne. Todas as convenções da arte bizantina terão como
meta fazer dos grandes ascetas não criaturas impassíveis, fantasmas ou
ilusões, mas seres que já pertencem a uma outra espécie de humanidade, a
meio caminho do outro mundo. O deserto é o lugar de uma experiência
suprema, uma provação que conduz fatalmente o homem para além de si
mesmo, rumo ao Anjo ou à Besta, rumo ao Diabo ou a Deus.
Orígenes —  que dirigiu por muito tempo a célebre Didascália de
Alexandria e foi um dos espíritos mais eminentes do século III —
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PADRES DO DESERTO
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PADRES DO DESERTO
serpentes "com rostos de centelha, fogo na face e fogo no olho", o senhor do
cetro, o que está no país, o falcão macho e o falcão fêmea. De cada lado da margem,
assistindo à passagem do cortejo divino, aparece uma multidão de criaturas:
numa das margens, estão todos aqueles que "criam o Oceano e fazem a
marcha do Nilo"; são, na ordem, três deuses, quatro mulheres, quatro múmias
chifrudas e aladas, quatro nobres, um objeto de aparência estranha
(provavelmente uma haste de papiro), mas que é na realidade um ser vivo, já
que se chama aquele que é cheio de magia, um homem ajoelhado chamado
aquele que traz o despertar, Anúbis, um carneiro chamado o matador de seus
inimigos, um carregador e uma carrcgadora de olhos, o deus-orictéropo* Set e
um cinocéfalo** (na mitologia egípcia, os cinocéfalos abrem e fecham as portas
do Reino dos Mortos). Na outra margem se erguem aqueles que cortam as
almas e apnsionam as sombras. Dtstinguem-se o deus Órion, um deus chamado
o Ocidental, uma deusa que está sobre a chama, cinco criaturas com cabeça de
pássaro carregando facas, mais oito Osíris e o deus-carneíro Khnum. E isso se
repete em cada uma das doze horas do Am-Duat! Além disso, só
mencionamos aqui os deuses e as criaturas mais aparentes, as que estão nas
margens do rio. Ao longe, nas trevas desse mundo estranho, o brilho do
deus-Sol ilumina de passagem, como um projetor varrendo a noite, criaturas
de pesadelo: mortos sepultados na areia, dos quais só a cabeça emerge,
serpentes montadas em patas tão altas quanto pernas-de-pau, o dragão Apófis
enroscado num penhasco que ele envolve com suas espirais, homens
estendidos na terra, decapitados ou manietados (os "inimigos" do Sol), outras,
enfim, que mal adivinhamos, sepultadas sob montículos de areia.
Essa imaginação funerária não era somente visual, mas sonora. Nesta ou
naquela hora do Am-Duat, os textos descrevem os ruídos múltiplos que
acompanham a passagem da barca divina: gritos de alegria dos mortos
enquanto o Sol atravessa sua "hora", gemidos e

* Qrictéropo: gênero de mamíferos tubultdentados, com aparência geral de um


porco, mas dotado de uma boca em forma de tubo, por onde se alimenta de cupins e
formigas; é chamado na Áfr ica do Sul aardvark ("porco da terra"). (N. do T.)
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PADRES DO DESERTO
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59
PADRES DO DESERTO
ele apareceu fora daquele castelo àqueles que vinham até ele, e ficaram cheios de
assombro ao vê-lo num vigor maior do que jamais tivera. Não tinha nem
engordado pela ausência de exercício nem emagrecido por tantos jejuns e combates
sustentados contra os demônios. Tinha o mesmo rosto de antes, a mesma
tranqüilidade de espírito e o humor agradável. Não estava nem abatido de tristeza
nem numa excessiva alegria. Seu rosto não era nem demasiado jovial nem
demasiado severo. Não dava mostra nem de desagrado de se ver rodeado de
tamanha multidão nem de satisfação de ser saudado e reverenciado por tanta
 gente. Era de uma perfeita igualdade de alma, num estado conforme à natureza.

Ele forma então seus primeiros discípulos, que decidem renunciar ao mundo
e se agrupar em torno dele. Desta época — que podemos situar aproximadamente
em 305 — data a fundação da primeira comunidade cristã no Egito. Ainda não é um
mosteiro, mas, no máximo, uma laura, um agrupamento de anacoretas, submetidos
a uma ascese e a um modo de vida relativamente livres. Esta primeira comunidade,
Antão a estabelecerá às margens do Nilo, não longe da fortaleza de Pispir, perto da
atual aldeia de Deir-el-Maimum.
A reputação de Antão, nesta data, já é enorme no Egito. Ela atinge todas
as camadas da população e não mais apenas um punhado de devotos e
admiradores. Uma multidão de pessoas aflui ao "mosteiro" de Pispir, deita-se
ao longo da entrada, na esperança de ver o asceta aparecer para lhes falar,
curá-las ou exorcizá-las. Já corre o boato de que basta se aproximar do
"mosteiro" de Antão para voltar de tá imediatamente curado. Mas Antão não
suporta nem a multidão, nem os milagres, nem a glória e decide partir de
novo para mais longe no deserto, "num lugar onde não fosse conhecido de
ninguém".

^0m

 A última parte da vida de Antão, da idade de sessenta anos até sua


morte, apesar de alguns detalhes concretos, mal pertence à história humana.
Após ter deixado seus companheiros de Pispir, Antão se deteve às
margens do Nilo, sem saber muito para onde iria, quando, de repente, ouviu
uma voz celeste lhe dizer que se dirigisse "para o deserto interior". Naquele
exato momento, passavam beduínos; ele os
61
PADRES DO DESERTO
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PADRES DO DESERTO
Sinai, ainda que estivéssemos a mais de vinte léguas. O mar fica a oriente deste
mosteiro. Ás pontas do Sinai ficam a leste do mar. Avistamos algumas montanhas
do lado do ocidente com um pouco de mata, mas muito distante de lá, e todo o
conjunto do que podíamos vislumbrar era inteiramente árido e causticado.

É ali que Paulo de Tebas viverá durante cem anos. Cem anos de uma existência
quase milagrosa, ainda que são jerônimo, no que lhe diz respeito, ache tudo muito
natural:

 A palmeira de que falei lhe fornecia tudo o que era necessário à sua alimentação e à
sua vestimenta, o que não deve ser visto como impossível, já que Jesus Cristo e seus
anjos são testemunhas de que, nesta parte do deserto que pertence às terras dos
sarracenos e se junta à Síria, tenho visto solitários dos quais um, recluso há trinta
anos numa caverna, só vivia de pão de cevada e de água lodosa, e um outro,
trancado numa velha cisterna, vivia de cinco figos por dia.

Paulo de Tebas viverá decerto com menos que isso. Levará nesta gruta
uma existência angélica que o universo teria ignorado se, pouco antes de sua
morte, Deus não tivesse avisado Antão da existência de Paulo. Antão tinha já
noventa anos, mas decidiu imediatamente pôr-se a caminho, à procura dele.
A partir deste episódio, a Vida de Paulo de Tebas torna-se uma espécie de
sonho acordado em pleno deserto.
Para começar, onde vive Paulo de Tebas? Antão não sabe e parte às
cegas. Mas às cegas, quando alguém se chama Antão e vive no deserto, quer
dizer o olho de Deus. A Providência guarda o caminho do asceta e nele coloca
estranhas balizas:

 Ao despontar o dia, santo Antão começou a caminhar sem saber aonde ia e o sol,
chegado o meio-dia, já tinha escaldado o ar de tal sorte que parecia todo inflamado
quando ele viu uma criatura que tinha em parte o corpo de um cavalo e era como
aquelas que os poetas chamam Hípocentauros. Tão logo o vislumbrou, Antão ar-
mou sua fronte com o sinal salutar da cruz e lhe gritou: "Olá! Em que lugar da
terra mora aqui o servo de Deus?" O monstro, então, murmurando não sei o que de
bárbaro e entrecortando suas palavras mais do que proferindo-as distintamente,
esforçou-se por fazer sair uma voz doce de seus lábios eriçados de pêlos e,
estendendo a mão direita, lhe mostrou o caminho tão desejado. Depois, dissipou-se
diante dos olhos daquele a quem tinha enchido de espanto. Quanto
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PADRES DO DESERTO
A Vida de Pacômio chegou até nós num grande número de versões
escritas nos diferentes dialetos coptas: boháirico e menfitico (Delta e Baixo
Egito), akhmínico e sub-akhmínico (no Médio Egito) e sahídico (no Alto
Egito). Estas Vidas apresentam entre si certo número de variantes, mas todas
concordam no essencial: os principais episódios da infância de Pacômio e sua
regra são, em todas elas, os mesmos. Por eles, podemos reconstituir com bases
históricas bastante seguras a espantosa existência do primeiro dos monges.
Pacômio nasceu em 286 na aldeia de Esneh (atualmente Isna), no Alto
Egito, a uns cinqüenta quilômetros de Tebas. Ao contrário de Antão, teve uma
infância paga. Mas, como não se poderia admitir que um futuro santo
pudesse, mesmo inconscientemente, adorar os ídolos, sua Vida toma o
cuidado de assinalar que ele só os adorava na aparência. Vomitava a cada vez
o vinho dos sacrifícios, seu estômago se recusava a ingurgitar alimentos
oferecidos aos ídolos. Antão, aos vinte anos, teve a revelação de uma vida
consagrada a Deus. Em Pacômio, o fenômeno é invertido: ele é consagrado a
Deus sem ao menos saber disso. Inversão que se opera até nos detalhes mais
concretos: Antão ouvia o chamado de Jesus; Pacômio, ao penetrar num
templo pagão, aos oito anos de idade, não ouve voz alguma; ao contrário, são
os ídolos que param de falar ou de profetizar. A vocação de Pacômio é essa
voz paga que se cala em sua presença.
Em nada surpreso com tantos prodígios, Pacômio continua a crescer:
aos vinte anos, é alistado à força no exército romano e parte um belo dia para
a guarnição, em Antinoé. Lá, pela primeira vez, fica sabendo que existem no
mundo seres chamados cristãos, que se devotam voluntariamente aos outros
e se deixam martirizar, em vez de renegar sua fé. Tocado por sua
generosidade e sua gentileza, Pacômio os freqüenta assiduamente e decide,
nesta época, consagrar-se ao Deus dos cristãos.
Assim que foi dispensado, dois ou três anos mais tarde, ele regressou ao
sul e chegou um belo dia a Sheneset (em grego Khenobóskion),

aldeia deserta e causticada pela intensidade do calor. Então, pôs-se a considerar


aquele lugar: não tinha muitos habitantes, apenas alguns. Foi até o rio, num
 pequeno templo chamado pelos antigos Psampisarapis (lugar de Sarápis), pôs-se de
 pé, orou, e o espírito de
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OS ATLETAS DO EXÍLIO

milagrosamente transportada para o coração das areias, com seus tanques,


seus bosques, seus outeiros e seus lavradores.
Muito diferentes, porém, eram aqueles famosos desertos da Tebaida,
que os jansenistas transformaram num oásis de paz e de meditação. No
sentido estrito do termo, a Tebaida era a região circunvizinha de Tebas no
Alto Egito (a mesma em que se estabeleceram os primeiros mosteiros
pacomianos), mas, de fato, todos os autores do século IV e os viajantes
posteriores chamaram de Tebaida as soledades que beiram o Nilo desde
Mênfis até Siena, isto é, todo o Médio e o Alto Egito. Para não confundir ainda
mais uma geografia já demasiado incerta, é este sentido amplo que
conservaremos.
Que eram, pois, esses desertos do Médio e do Alto Egito nos quais tantos
anacoretas se instalarão a panir do século IV? Extensões de pedra, onde só
brotavam algumas palmeiras e um pouco de grama, onde os pontos de água
eram raros; extensões entrecortadas de outeiros ou de colinas a cujos pés os
ascetas eclificarão cabanas com galhos, cavarão simples buracos para se
abrigarem do sol lá onde não existiam túmulos subterrâneos abandonados. Os
que se estabelecerão perto do Nilo viverão como trogloditas nos grandes
rochedos e escarpas que pendem sobre o rio, em grutas que o viajante pode
ver ainda hoje. Escreve Maillet, um viajante do século XVIII:

A começar do castelo do Cairo e até o Alto Egito, milhares e milhares de celas


talhadas na pedra se vêem nos lugares mais inacessíveis. Os santos anacoretas só
chegavam a estas grutas por trilhas muito estreitas, freqüentemente interrompidas
 por precipícios que eles atravessam com pequenas pontes de madeira que, retiradas
de seu lado, tornavam inacessível a abordagem de seu refúgio. Ali está o que se
chama a Tebaida, outrora famosa pelo número prodigioso de eremitas que ela
abrigou. Avistam-se muitas dessas grutas e cavernas a partir dos barcos que
navegam pelo Nilo. Havia algumas de onde, com longas cordas, se hauria água do
mesmo Nilo, quando ele estava em sua altura, vindo o rio então flutuar ao pé dos
rochedos escarpados...
 Aliás, estas grutas não são unicamente o que se tem chamado Tebaida. Há também
aquelas montanhas desertas e incultas que se estendem rumo ao mar Vermelho com
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Os ATLETAS DO EXÍLIO

com uma esponja e da lavagem das panelas" 1. Episódio bastante freqüente na


vida dos santos a partir do século IV, sobretudo na Síria. Há aí uma espécie de
ascese última no sentido de que, ao castigar seu próprio corpo, visa-se de fato
a castigar seu ser social, a excluir-se da sociedade,  permanecendo no seio da
sociedade mesma, o que o anacoreta. evidentemente, não pode fazer. Eis por
que, nos séculos seguintes, quando este tema atingir sua precisão, ele situará
os "santos simuladores", como poderíamos chamá-los, não mais no deserto
nem mesmo nos mosteiros, mas em plena cidade (como Marcos o Louco, em
Alexandria, ou Simeão Slos, em Antioquia) ou mesmo no seio da própria
família (como santo Aleixo).

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Os anacoretas disseminados nas grutas situadas ao longo do Nilo


permaneceram anônimos por mais tempo. Em razão primeiramente de seu
afastamento —  alguns se retiravam em locais inacessíveis ou em túmulos
subterrâneos — e porque, no mais das vezes, esses anacoretas preferiam fugir
dos visitantes a ter de recebê-los. É um fenômeno bastante lógico, e os maiores
anacoretas não são necessariamente os mais conhecidos. E mesmo certo que
em meio àquela multidão de ascetas dos desertos do Egito tenha havido
alguns que atingiram uma perfeição suficiente para, de certa forma, "fechar o
círculo", isto é, renunciar à própria santidade2. Quanto aos outros, ou seja,
aqueles cujo nome e cujas proezas ascéticas chegaram até nós, é óbvio que os
mais famosos não foram necessariamente os mais santos. O clima espiritual
bem particular do Oriente cristão no século IV conduziu certos anacoretas a
uma espécie de exagero ascético, a uma ostentação desconsiderada de
mortificações e de macerações, onde o rigor e a sinceridade nem sempre
estavam no comando. Mas, por outro lado, há que se dizer que é muito difícil
 julgar, a vinte séculos de distância, a experiência de homens que viveram
quarenta ou cinqüenta anos na solidão. Assim, que o leitor não se engane. Em
113

PADRES DO DESERTO
ditou ver, conforme sua imaginação, restos de gigantes mumificados ou
grandes veleiros petrificados no fundo dos mares.
"Encontram-se ali", escreve Coppin, "pedaços de ossos humanos que
mudaram sua natureza para a das rochas. Eles nada têm de reconhecível além
da forma, mas a quantidade em que se encontram não deixa dúvidas de que
tenham sido ossos verdadeiros."
Um século depois dele, Maillet percorreu por sua vez a região e
escreveu: "É na rota desse canal (o canal do Faium) que se achava o deserto de
são Macário c aquele vale chamado Baharbalaama, termo árabe que significa
mar sem água, porque o mar outrora encheu esse vale. Isso ainda se reconhece
pela quantidade de embarcações que encontramos petrificadas com seus
mastros e que, provavelmente, tinham naufragado ali no tempo em que a
superfície do mar cobria com suas águas o golfo. Conserva outra prova
incontestável dessa origem
nas conchas marinhas de que suas margens pedregosas estão carregadas. É no
meio desse deserto horrível e estéril que se encontra ainda
hoje o mosteiro de são Zacarias e dois ou três outros habitados por alguns
religiosos coptas. É a esse pequeno número que estão reduzidos hoje aqueles
mosteiros famosos que povoaram aquelas soledades no tempo em que o Egito
era cristão"1.
Ossadas humanas, barcos naufragados... Os viajantes dos séculos XVII e
XVIII tinham a imaginação assombrada pelos desastres humanos. Rufino, que
percorreu esses desertos no século IV, na época em que os anacoretas
começavam a se multiplicar ali, interpretou de modo bem diferente a estranha
atmosfera do lugar:

Viemos em seguida para a Nítria, que é afastada de Alexandria cerca de


quarenta milhas e que é o lugar mais célebre de todos os lugares monásticos
do Egito. Tira seu nome de um burgo que é bem próximo, onde há grande
abundância de salitre, e creio que a Providência divina assim o permitiu, pois
ali seria preciso um dia lavar os pecados dos homens tal como nos servimos
do salitre para lavar as manchas das roupas.
115

PADRES DO DESERTO
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117
PADRES DO DESERTO
os pecados dos outros. Eu os ponho à frente para só olhar para eles." E os anacoretas
mudaram de assunto.

 m * #

Na extremidade oriental do Wadi-an-Natrun, a uns quinze quilômetros


mais ao sul, o salitre desaparece pouco a pouco, o solo se faz menos duro.
Deixa-se cavar mais facilmente, de modo que numerosos ascetas ali cavaram
buracos —  cobertos com ramos de palmeiras ou com juncos, para se
protegerem do sol —  ou se instalaram debaixo da terra, em cavidades tão
estreitas que mal era possível se mexer lá dentro. Era o famoso deserto das
Celas (em grego: feeiíia), onde Paládio passou três anos como discípulo de
Macário o Jovem. Escreve ele:

Em meio àquelas celas, algumas não tinham qualquer abertura, salvo um buraco
 para se escorregar dentro, pois se situavam no deserto interior, onde não se
admitiam visitantes. Era nessas que Macário morava durante a Quarentena. Eram
cavernas escuras situadas sob a terra, como tocas de hienas, e eram tão estreitas que
nem mesmo era possível estender os pés.

É nesse reduto que Macário o Jovem (assim chamado para distingui-lo


de seu homônimo Macário o Antigo) vinha mortificar-se todo ano durante
quarenta dias, por ocasião da Quaresma. Em seguida, ele regressava para uma
das outras celas, mais espaçosas, que possuía no deserto e onde recebia os
peregrinos que vinham vê-lo de todos os cantos do mundo romano.
Ao contrário dos outros anacoretas, que pareciam no mais das vezes
feras de formas humanas, esse Macário era

 pequeno, muito fraco e muito delicado. Só tinha barba nos lábios e muito pouco no de
cima, pois suas extremas austeridades impediam que ela lhe crescesse no queixo.

Extremas austeridades, diz Paládio. Perguntamo-nos se o termo


extremas não é um eufemismo quando se sabe, por exemplo, que, para vencer
o sono, Macário passou vinte dias e vinte noites ao ar livre, em pleno deserto,
queimado de dia pelo sol, transido de frio à noite, a tal ponto que, ao cabo
desses vinte dias,
119
PADRES DO DESERTO
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inipondo-se privações excessivas, e tornar-se igualmente presa dos demônios.
Algumas regras ascéticas tornaram-se, portanto, necessárias. As regras — e
esse é seu papel — concretizam e tranqüilizam. Elas dizem ao asceta o que é
bom e o que é mau e, se ele as respeita, fica mais seguro, no seio desse
universo ambíguo por onde avança um pouco como um cego, de estar no
caminho certo, que leva aos anjos e ao céu.
Foi evidentemente acerca do alimento e dos jejuns que tais regras
primeiro se estabeleceram. Sabemos por Cassiano que a maioria dos
anacoretas se impunham, por exemplo, só comer sete azeitonas por dia. Pois é
preciso saber muito bem, mesmo e sobretudo a propósito de um número de
azeitonas, onde começa e onde termina o pecado. Assim, o asceta estabelece: se
comer seis azeitonas em vez de sete, é um pecado de orgulho e, se comer oito,
um pecado de gula.
Conceder ao alimento tamanha importância simbólica poderá parecer
exagerado, mas não levar isso em conta seria ignorar o papel essencial que ele
tem desempenhado na maioria das religiões c das sociedades como símbolo
dos estados espirituais, das relações sociais e até das experiências místicas
mais elevadas. Este símbolo é lido claramente nas religiões primitivas ou
antigas, mas o cristianismo está longe de tê-lo ignorado. Quando o etnólogo
inglês Richards escreve, por exemplo, que, nas sociedades arcaicas, "o
alimento é a fonte das emoções mais intensas, ele fornece a base de algumas
das noções mais abstratas e das metáforas do pensamento religioso... Para o
primitivo, o alimento pode tornar-se o símbolo das experiências espirituais
mais elevadas, a expressão de relações sociais essenciais..."1, ele coloca uma
evidência e um princípio válidos também para os ascetas dos desertos do
Egito. O pão, para o asceta, podia passar como o "reflexo" da alma. e
encontramos uma ilustração impressionante disso nesse episódio da vida de
um anacoreta que João do Egito contou a Paládio. Esse anacoreta era de fato
tão perfeito que Deus o havia desobrigado

da preocupação que dizia respeito a seu alimento e lho fornecia por sua
Providência. Quando, impelido pela fome, ele entrava em sua caverna,
123

PADRES DO DESERTO
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125
PADRES DO DESERTO
Um dia em que Macário estava em sua cela, olhou para a direita e viu. Eis que um
querubim de seis asas e olhos inumeráveis estava perto dele. E, quando apa
 Macário começou a olhá-lo assim e a dizer: "Que é isso? Que é isso?", então, pelo
esplendor e pela claridade de sua glória, ele caiu sobre o rosto, o santo apa
 Macário, e ficou como morto.

A sobriedade desse texto copta da Vida de Macário faz dessa passagem um


episódio quase único na literatura cristã do Egito. Nem as visões de Antão, que são
muito literárias e decerto inventadas por Atanásio, nem as de Pacômio, que em
grande parte são acréscimos tardios, têm este caráter conciso, direto, este acento de
surpreendente sinceridade. O homem suporta com dificuldade a visão dos anjos e
dos querubins, entendamos essa manifestação fulgurante de certos estados
interiores devidos aos jejuns e que o asceta não consegue crer que vêm do fundo de
si mesmo. Daí por que o medo, a angústia arrebatam o anacoreta diante da visão,
diante da voz daquela "coisa" que de repente se põe a "estar lá" e a falar.

Na noite seguinte, eis que todo o lugar se tornou luminoso como à hora do
meio-dia nos dias de verão, e apa  Macário soube que era o querubim que voltava
 para ele. A princípio, aquela Virtude ficou algum tempo sem lhe falar, para que ele
não se amedrontasse...

Depois, quando o asceta foi pouco a pouco se habituando ao brilho e à


presença do querubim, a "Virtude" o transportou em êxtase para o deserto de Skete
e lhe disse que ali se instalasse.
Macário parte para Skete, descobre os lugares como os havia visto com o
querubim, avista uma colina onde cava uma gruta, apanha juncos para fazer
um leito, cava um poço para sua água e se instala. Mas alguma coisa o
atormenta nesse deserto. Os demônios, primeiramente, que, cada vez que ele
se põe a orar, vêm "para cima de sua caverna como uma multidão de
cavaleiros que fingem travar combates uns contra os outros", enquanto outros
"ficam perto da porta e fazem bolas de fogo que lançam dentro da caverna,
onde explodem" (não é uma admirável descrição demoníaca da tempestade no
deserto?). E, depois, seus discípulos o atormentam, seus discípulos que já
afluem até ele, aos quais
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PADRES DO DESERTO
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PADRES DO DESERTO
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9.
O ros\o de Satã

Quando são levados aos Infernos, os homens começam a


 gritar: "Ai de mim que não conheci o Deus que me criou", e
logo param, pois não podem mais falar, por causa do calor e
da grande escuridão do lugar. Não se reconhecem mais um ao
outro em razão das trevas e da angústia que os arrebata.

O Inferno, texto copta

U m dos paradoxos da vida no deserto — onde o asceta deveria purificar-se


da ilusão, segundo o preceito de Evágrio Põntico —  faz com que, na
realidade, ele viva ali num mundo de contínuas ilusões. O deserto é um lugar
abstrato, um lugar de provação, mas ainda é mais do que isso: um pano de
fundo — como que virgem, infinito —, onde os espetáculos e os combates do
céu, entre os anjos e os demônios, prosseguem até na terra. Para purificar-se
da ilusão, o asceta tem de fazer tábua rasa dos valores, dos sistemas, mas
lambem das  formas do mundo profano. Assim, todas as aparições do deserto
— essas criaturas antropóides que se misturam aos eremitas, essas visões que

sc fazem e desfazem diante de seus olhos, esses monstros que vêm


assombrá-los — são formas novas, nada ou quase nada devendo às do mundo
diário. É por isso que um tema como o
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O ROSTO DE SATÃ
objeto recurvado, algo assim como um anzol, e arrancam do corpo a alma infeliz:
constata-se que ela é negra e tenebrosa. Depois eles a prendem à cauda de um
cavalo-espírito.

Observemos logo essa maneira de extrair a alma do corpo: com o auxílio


de um anzol introduzido na boca, análoga, decerto, no espírito dos coptas,
àquela que utilizavam os antigos embalsamadores para extrair o cérebro do
morto pelas narinas. A alma, para o copta, não sai voluntariamente do corpo: é
preciso arrancá-la. Mas, sobretudo, a idéia que vem à luz numa outra
passagem da Vida copta de Teodoro (da qual foi extraído o texto acima) é que
qualquer um que não sofreu nessa terra é condenado a sofrer no além, que
cada sofrimento suportado nesse mundo purifica a alma do homem. Como
essa contabilidade entre o sofrimento e a purificação nem sempre é muito
nítida e como nem todos os sofrimentos se eqüivalem, o que ocorre com
aqueles que sofreram só um pouco e não têm direito imediato ao paraíso? Ora,
os anjos implacáveis fazem-nos sofrer em seu leito de agonia, antes de sua
morte, para que a "conta" seja regularizada e possam ir direto para o céu, pois
a alma desses homens "é como um prato cozido que ainda precisa de um
pequeno suplemento de cozimento antes de ser comido".
A alusão é clara: é nessa terra que é preciso "cozinhar" se se quiser evitar o
cozimento eterno do inferno.
Mas alguns chegavam ao limiar da morte num tal estado de "frescor"
que seu caso era sem apelo e eles "iam direto para o fundo do inferno, para os
tormentos".
Que tormentos? É fácil imaginá-los: um fogo eterno, um calor tão
insuportável que os condenados, tomados de espanto, perdem o fôlego e a
voz. Obviamente, os castigos variavam conforme as faltas dos culpados, c os
coptas deram prova, na descrição dos diferentes castigos infernais, de uma
imaginação notável, como atesta esse excerto da Vida copta de Pacômio. De
fato, um dia,

aconíeceu que nosso pai Pacômio foi arrebatado por ordem do Senhor para fazê-lo
contemplar os castigos e os tormentos pelos quais são torturados os filhos dos
homens. Foi arrebatado no corpo? Fora do corpo? Em todo caso. Deus sabe que ele foi
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O ROSTO DE SATÃ
mas cujo corpo fantástico só se compunha de ar, evaporou-se entre suas mãos
lançando urros apavorantes; e, como o infeliz o perseguisse de maneira
ma neira vergonhosa,
ele o deixou cheio de confusão e acrescentou àquilo uma zombaria cruei E uma
 grande multidão de demônios se reuniu para assistir àquele espetáculo, lançando
 grandes gritos e explodindo de rir.

Mas ocorre de as tentações serem menos espetaculares. O Sedutor não se


torna sempre visível e freqüentemente não passa de uma voz, uma impressão,
um pensamento mesmo, lancinante, insidioso, que nos atrai para o mundo e
nos faz duvidar de nós mesmos. Assim, durante as longas horas passadas na
solidão, há momentos de brusca lassidão durante os quais a angústia e o
desgosto se apoderam do asceta. Esse torpor surge de preferência perto do
meio-dia, quando o deserto irradia um calor insuportável, quando o próprio
tempo parece interminável e a vida parece de repente privada de sentido. Esse
sentimento, os Padres do deserto o conheciam bem e chamavam-no acedia ou
acídia, do grego akedía: indiferença, desgosto, apatia do coração e da alma. "É
sobretudo perto do meio do dia que ele atormenta o monge", escreve Cassiano
nas suas Instituições dos monges do Egito, "tal como uma febre regular cujos
acessos retornam periodicamente. Por isso muitos anciãos chamaram-no o
demônio do meio-dia." O anacoreta começa a "sentir horror do lugar onde
vive, nojo de sua cela, desprezo de seus irmãos. Sente-se incapaz de voltar
para casa, de trabalhar, de orar". Depois, à medida que as horas passam,
"quando o meio do dia se aproxima, o cansaço e a fome tornam-se mais
pesados. O anacoreta se sente tão esgotado quanto após um longo percurso no
deserto ou um jejum de vários dias. Não pára de olhar para o horizonte, de
espreitar algum visitante. Sai, entra, ergue os olhos a todo momento para o
céu, para o sol cujo trajeto lhe parece interminável!"
A acedia é um mal da solidão, um mal da vida ascética do deserto, um
mal do ser — renunciando ao combate, à busca do homem
h omem novo. Mas até onde
pode ir esse mal? Se tem sua origem nas raízes do ser, nas zonas mais
profundas do psiquismo, ele então se confunde com o asceta ou ao menos com
sua parte interna, tenebrosa 3. Assim,
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PADRES DO DESERTO
razões de autenticidade, o assunto implicava o recurso a versões coptas e
traduções literais, eu o fiz e mencionei ao longo do livro. Senão, conservei essa
tradução, que se encaixa plenamente na tradição do gênero aretológico.

Luciano de Samósata (páginas 37, 60, 185 e 226): Luciano de Samósata é um autor
grego pagão do século II cuja obra, essencialmente constituída de Diálogos
satíricos e filosóficos, foi uma das mais importantes de seu tempo. Viajou por
todo o Império romano, até a Gália, antes de instalar-se e terminar seus dias no
Egito como alto funcionário. Seu espírito escarnecedor e racionalista não pou-
pou, com um humor notável e um estilo literário de primeira ordem, as
esquisitices, os excessos, as insuficiências e as imposturas das escolas filosóficas
e religiosas. O Philopseudes (mencionado e citado nas páginas 60 e 226) pode-se
traduzir por O amigo da mentira ou, mais livremente, por O mitômano. Nascido
na Síria romana, Luciano consagrou alguns de seus escritos a esse país, entre os
quais A deusa sitia (citado na página 185).

IV- ;A praclckricx dosscm+os

São Jerônimo (a partir da página 71): Padre da Igreja latina, nascido na


Dalmácia por volta de 347. Fez estudos clássicos em Roma. depois se fez
batizar e, com seu amigo Rufino, autor da História dos monges do Egito,
dedicou-se ao ascetismo por algum tempo perto de Aquiléia, no Vêneto.
Em seguida, parte para Antioquia, onde viverá três anos como eremita na
solidão do deserto de Caleis, entre 374 e 378. Foi lá que escreveu sua Vicia
de Paulo de Tebas, primeiro eremita e, provavelmente, também a de santo
Hilarião e de são Malco. De fato, só se dirigirá ao Egito muito mais tarde
(após uma longa temporada em Roma, onde fundará uma comunidade
ascética, freqüentada também por damas romanas como Marcela e
Paula), por volta de 385. Irá para o deserto da Nítria e depois se fixará em
Belém até morrer, em 420.

Vidas coptas de Pacômio (a partir da página 77): os excertos apresentados no


subcapítulo intitulado Um santo entre os homens: Pacômio
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PADRES DO DESERTO
cTAndilly). Rufino íoi antes de tudo um tradutor de grego em latim, sobretudo
de Origenes. (Ver também páginas 212, 227-228 e 233.)

Cassiano (páginas 101, 213 e 214), autor das Entrevistas com os Padres do Egito
(citadas também na tradução de Arnauld d'Andilly), é um autor de origem
gaulesa para quem a temporada no Egito não foi senão uma peregrinação às
fontes da anacorese e do monaquismo. Foi em Marselha que, ao regressar do
Oriente, ele fundou dois mosteiros. Nesta cidade, ainda hoje é venerado como
santo. Cito aqui, a título indicativo, um trecho de uma outra obra de Cassiano,
intitulada Instituição dos monges, escrita também com base em sua experiência
egípcia, e onde figura este curioso simbolismo da vestimenta no deserto: o cinto
representa o combate espiritual; a veste c só necessidade e, se for perdida,
ninguém deve recuperá-la; o capuz representa a inocência das crianças; a pele
de cabra, a modificação das paixões; o cajado é uma arma espiritual; andar
descalço significa avançar na via espiritual.

Sulpício Severo (páginas 109, 162 e 163) é um autor cristão do século V, nascido
na Aquitânia. Consagrou-se à solidão após a morte de sua mulher e
tornou-sc amigo de são Martinho de Tours, cuja Vida escreveu. Anexou a
esta Vida dois textos intitulados Diálogos e Virtudes dos solitários do
Oriente, donde são extraídos os trechos citados.

V I  -  O s  atletasdoexílio( I I ) 

Vida copta de Macário o Antigo (páginas 130 e s. e 201). As citações são extraídas
desta Vida, escrita em copta por Serapião, discípulo de Macário, e traduzida
por Robert Amelineau. A maioria das traduções do copta de Robert Amelineau
foram publicadas em duas coletâneas essenciais para o conhecimento do Egito
cristão: Monumentos para servir à história do Egito cristão e Memórias publicadas
 pelos membros da missão arqueológica no Egito.
FONTES E TEXTOS

V I I  -Ofimdosídolos

Clemente de Alexandria (páginas 143 e 147). Nascido de pais pagãos, Clemente


de Alexandria se converteu ao cristianismo e desempenhou um papel
importante na Didascália, escola de exegese cristã de Alexandria. Morreu
na Ásia Menor por volta de 215. As citações da página 141 e da página
147 são extraídas de suas duas obras principais: o Protréptico ou
Exortação aos gregos, e o Pedagogo, onde exorta os gregos pagãos a se
converterem traçando um quadro assustador — e totalmente falso, por
sinal — das religiões pagas e prescrevendo ao pagão convertido o modo
de vida e de prática que deve seguir. Compôs igualmente uma obra
intitulada Estrômatos (isto é, Tapeçarias), onde trata de múltiplas
questões a respeito do cristianismo e do paganismo.

Libânio (página 146). Libânio é um autor pagão do século IV e um dos


grandes nomes da eloqüência da época. Foi o mestre de são João
Crisóstomo. Nascido na Síria (seu nome significa "libanês"), cresceu em
Antioquia, depois estudou retórica em Atenas. Em seguida, instalou-se
em Antioquia até a morte, ocorrida em 393. Sua obra compreende uma
enorme quantidade de Cartas (cerca de 1.600) dirigidas às principais
personagens políticas e religiosas do seu tempo e que constituem
documentos de primeira ordem sobre a vida diária da época. Sua obra Pro
Templis (de onde é tirado o trecho citado) foi composta por volta de 384 e
dirigida ao imperador Teodósio o Grande. Mencionemos que outro autor
pagão desta época —  Temístio —, que foi um dos correspondentes de
Libânio, escreveu, acerca das atrocidades cristãs, num de seus Discursos:
"Que cada qual seja livre para tomar o caminho que crê o bom, quando se
trata de religião. Nem o confisco dos bens, nem a fogueira, nem a estaca
podem prevalecer contra a lei de Deus. Pode-se quebrar e matar os corpos
se se quiser. A alma escapa, levando consigo o pensamento livre, mesmo
que se tenha feito violência à linguagem".
FONTES E TEXTOS
265
Nos desertos do Egito e da Síria, quinze séculos atrás,
vê-se um mundo árduo e nu, hostil ao homem, lugar de
provas inesquecíveis, onde o impossível parece
possível. No século IV d.C, dois homens, Ântão e
Pacômio, deixaram um mundo que julgavam em agonia
para exilar-se por toda a vida no deserto e ali fundar os
primeiros mosteiros da história cristã. Milhares de
outros os seguirão, povoando as solidões com suas
silhuetas emanciadas, queimadas pelo ardor e pelo sol,
enfurnando-se em buracos "como hienas", fechando-se
em grutas ou buracos de grandes árvores, instalando-se
sobre colunas como os estilitas ou só se alimentando de
ervas e raízes. Eram anjos ou animais? Essa história
nunca revelou o seu segredo, mas o fascínio da recusa do
mundo cotidiano atua sobre nós mais que antes, ao
considerarmos essa vida vivida a cada dia na fronteira da
morte, essa experiência sem precedente em busca de um
mundo e de um homem novos.

O autor: nascido em Limoges, cm 1925, Jacques


Lacarrière concluiu seus estudos universitários em 1950,
mas logo abandonou os diplomas e o ensino para viajar
pelo Mediterrâneo. De suas viagens surgirão várias
obras sobre a Grécia antiga e moderna, numerosas
traduções
de autores gregos contemporâneos e este ensaio sobre os
9788515012787

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