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Título original:
Les hommes ivres de Dieu
© Librairie Arthème Fayard, 1975.
Edições Loyola
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Postal 42.335 04218-970 São
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dados sem permissão escrita da Editora.
ISBN: 85-15-01278-2
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 1996
PADRES DO DESERTO
PREFÁCIO ...................................
...........................................................
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..............................................
..................... 13
INTRODUÇÃO ..............................
.......................................................
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................. LZ
UM MUNDO
2 — A GRANDE TRANSIÇÃO 33
Os textos sobre a vida no deserto. A ocupação grega e romana no
Egito. Dois mundos estranhos um para o outro. O exotismo egípcio em
Roma. Primeiros assaltos contra o paganismo. A "morte" do deus egípcio
Serápis.
A cristianização do Egito. Sincretismo dos meios citadinos helenizados.
O meio rural. A aventura copta. Tornar-se cristão permanecendo egípcio.
Panorama da heresia monofisita. As perseguições. O fim de um mundo.
Partida de Antão para o deserto.
3 — A ESTRELA DO DESERTO........................................................... 51
Santo Antão existiu? A Vida de Antão e a tradição aretológica. Onde
começa e onde termina a história? O Chamado: Antão se instala junto de um
ancião.
A experiência das trevas. Permanência de Antão num túmulo. Suas
primeiras tentações. O bestiário fantástico do Egito antigo. Crenças
funerárias e Livro do Am-Duat.
A experiência da luz. Antão parte para a montanha de Colzum. Seus
vinte anos de solidão. Seus primeiros ensinamentos e seus primeiros
discípulos.
Últimos anos de Antão. Suas visões edênicas. Sua
morte.
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querubim. Macário e o cadáver. O ensinamento e os discípulos de Macário o
Antigo: Moisés e os ladrões, Bessarião, Poimém e a estátua. João o Pequeno e
a vara milagrosa. Arsênio, o preceptor.
Proibição oficial de praticar os cultos pagãos. Controvérsia entre
pagãos e cristãos. As violências dos cristãos: pilhagens, incêndios dos
templos, execuções dos sacerdotes. Motins em Alexandria. A última
mensagem do pensamento pagão.
Vida e vocação de Canúcio de Atripé. Seus mosteiros. Suas regras
implacáveis. Sua divisa: forçar os homens a amar a Deus. O porrete e a
salvação da alma. Expedições de Canúcio contra os templos e os sacerdotes
pagãos. Fim do paganismo no Egito.
MUNDO
PADRES DO DESERTO
disser que ela me pareceu de imediato, estranhamente, um mar de gelo.
Porque este deserto ocidental do Egito não é de areia, mas de sal. Mar mineral
e branco, cuja crosta endurecida é insensível aos ventos e ressoa em alguns
lugares sob os pés como uma abóbada de cristal. Oceano atapetado de
sedimentos fossilizados, de cascas imemoriais, como se as batalhas das águas
e da terra, a alternância dos elementos tivessem encontrado aí o seu campo de
repouso. Num tal mundo, o homem é quase excrescência inútil,
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presença absurda. E ele só pode viver ali tornando-se também peso morto do tempo,
hibernando-o num perpétuo inverno. Eis por que durante tantos séculos esse lugar
extremo só abrigou fantasmas hirsutos, sombras andrajosas, engodos de seres
humanos que as testemunhas de então designaram os atletas do exílio e que eu
chamei os homens ébrios de Deus.
Este livro foi escrito e publicado há treze anos. Mas ele nasceu bem mais
cedo em meu espírito, gerado por uma visão noturna. Eu estava então no
monte Atos, no mosteiro da Grande Laura, onde jantava, após o ofício da
noite, no grande refeitório cheio de monges e eremitas para a festa anual de
santo Atanásio o Atônita. As paredes eram cobertas de afrescos antigos, cuja
faixa inferior representava, alinhados lado a lado, os grandes santos do
deserto: Antão, Paulo de Tebas, Pacômio, Macário, Onofre, Poimém. Silhuetas
nuas, longos corpos esquálidos vestidos de barbas e de cabelos caindo até os
pés, com grandes olhos negros cavados na ossatura do rosto. À luz das velas,
suas auréolas realçavam a paüdez de seus traços e todos aqueles santos
retomavam vida, repentinamente, distantes e familiares ao mesmo tempo,
como se, dos continentes seculares de seu afresco, eles surgissem da borda
luminosa daquela refeição noturna. Aquela noite, compreendi que eles não
estavam pintados somente para figurar uma experiência insubstituível, para
se ancorar num tempo passado, mas para surgir também a cada instante no
presente dos homens. E naquela noite senti vir a mim todo um povo da
sombra, cuja existência e história eu havia ignorado até então. Quis
conhecê-los, encontrar um a um os habitantes desse mundo desconhecido do
deserto. Li as Vidas dos santos, os relatos e os testemunhos dos que os
conheceram, inventariei dezenas de textos gregos e coptas que, mais tarde, me
levaram ao Egito. E foi lá, no coração do Wadi-an-Natrun, que decidi escrever
Hoje, não sei muito bem o que pensar deste livro. Ele foi o testemunho de uma
época e de uma vida que me levaram mais freqüentemente ao Oriente que ao
Ocidente. O que então me fascinava continua a me interessar, mas me diz menos
respeito. Nada tenho de asceta e nunca busquei aprofundar melhor aquilo que,
durante anos, me conduziu à procura daqueles homens. Além do mais, sinto-me
totalmente ateu e escrevi a história desses homens sem jamais compar-
PREFÁCIO
tilhar sua opção e sua fé. Empreendimento sempre incerto, já que ele recusa a
identificação sem que o recuo implicado seja por isso revelador. Isto explica
por que, ao lado de um grande número de reações entusiastas e muito
elogiosas, este livro tenha sido criticado, vilipendiado em alguns meios
católicos. De minha parte, não me preocupava muito com isso, pois na história
não existe domínio reservado. Se os crentes fossem os únicos habilitados a
falar de sua fé, se só os monges tivessem de escrever sobre o monaquismo, a
história do pensamento não passaria de uma eterna tautologia. Como não
tenho, aliás, nenhuma pretensão de historiador, encontrei-me mais uma vez
rejeitado diante de mim mesmo. Porque este livro não é um tratado de
história, uma hinologia ou uma critica pretensamente objetiva do fenômeno
que ele estuda. Os homens ébnos de Deus é o diário de um encontro inteira-
mente pessoal com uma época e com homens que até hoje não sei se foram
loucos ou se foram santos. E não sei igualmente se eles foram — e ainda são —
para mim os indígenas de um outro mundo ou os irmãos desconhecidos de
um continente que é o meu. Este estudo é também um livro-testemunha,
quero dizer, o relato de um testemunho pessoal, termos contraditórios para um
ocidental, mas que sempre se confundiram estreitamente em todo o domínio
oriental. Testemunha, em grego, se diz martyr, que também significa mártir.
Como, enfim, meu objetivo em todos os meus livros nunca foi redigir
teses de pretensão universitária nem marcar data para a posteridade, mas
simplesmente, organicamente eu diria, comunicar-me com meus
contemporâneos, relatar o que vivi e pensei, para que outros o vivam e o
pensem por si mesmos, reivindico particularmente as insuficiências — até
mesmo as ignorâncias — deste livro: como as tentativas e os erros das amebas
e dos paramécios, elas são a marca dos titubeios sem os quais nenhuma
verdade faz sentido. É assim que surge finalmente este livro, após tantos anos:
um ensaio para interrogar, pressentir ou delinear os limites do homem. Pois
foi isso, sem dúvida alguma, que me atraiu outrora para a experiência desses
santos do deserto: esse desafio lançado ao nosso destino de hominídeo, essa
recusa visceral da nossa casca antiga e essa busca última de um homem
Esta profecia encontrará tal eco nos meios evangelizados pelo Apóstolo,
que alguns cristãos cessarão todo trabalho e viverão ociosos, à espera do dia
iminente.
Esse clima escatológico e exaltado não deixará de se ampliar nos séculos
seguintes e com toda certeza está na origem de muitos comportamentos
irracionais e excessivos, como a vocação para o martírio, a obsessão da
virgindade e da ascese, a fuga para os desertos. Todos esses comportamentos
têm entre si o traço essencial de serem antes de tudo uma recusa radical do
mundo, recusa que se compreende facilmente uma vez que este mundo está
destinado a desaparecer de um dia para o outro. Que numa época a ênfase seja
dada ao mártir e, na outra, ao asceta ou ao anacoreta, tanto faz! Pois todas
essas atitudes se prendem a uma mesma e total desafeição para com o mundo
aqui de baixo, conseqüência das conturbações, dos traumatismos operados
nos espíritos pelo medo, pela angústia, pela exaltação do Fim dos Tempos.
Um exemplo disso? Posto que Jesus disse, a propósito dos sinais
precursores de sua segunda Vinda: "Ai das que estiverem grávidas ou
amamentando nesse dia!", muitas jovens permanecerão virgens e inúmeros
casais praticarão os casamentos virginais ou apotâcticos (consistindo em viver
juntos, mas renunciando às relações sexuais), para não serem surpreendidos
impuros no momento do Juízo Final1. Se for necessária uma prova
suplementar desta ligação, operada em muitos espíritos, entre o zelo da
virgindade e o temor do fim do mundo, eis um texto muito revelador de santo
Hipólito, bispo de Roma, extraído do seu Comeniáúo sobre Daniel, escrito no
início do século III:
primeiros séculos de nossa era, terão o seu Egito, tal como o século XVI teve as suas
índias ocidentais e o século XIX a sua Polinésia: terras paradisíacas onde se
cristalizam essa amargura inconsciente e essa nostalgia da inocência que afetam as
civilizações nas épocas de êxito material e de conquista.
PADRES DO DESERTO
que fugiam dos lugares habitados para escapar das corvéias, dos impostos, de
seus amos ou da justiça. Mas sua
s ua temporada no deserto era apenas passageira.
No caso de Antão, esta partida tomava um sentido bem diferente, pois o que o
atrai não é a realidade concreta, e sim a realidade simbólica do deserto.
Como todos os anacoreias que o imitarão a seguir, Antão viveu numa
época e num meio profundamente impregnados de símbolos e de imagens
bíblicas. Toda a realidade material circundante (o deserto, o céu, os sons, as
luzes, as sensações mais quotidianas) possui um valor e um sentido
simbólicos, por ter servido, de uma maneira ou de outra, a este ou aquele
episódio da história divina. O deserto, antes de tudo, é um lugar inóspito,
tórrido, onde ninguém poderia levar uma existência normal. Lá o homem está
nu, apanhado entre a terra e o céu, entre os dias extenuantes c as noites
gélidas, prisioneiro de uma paisagem abstrata, que não é a imagem de
nenhum mundo familiar. O deserto é um lugar inumano. Mas que quer dizer
inumano para um copta? Quer dizer um lugar habitado por outras criaturas
que não homens: por anjos e demônios. No deserto, nenhum homem pode
viver se não for ajudado por Deus ou por seus anjos, ninguém pode morar ali
sem enfrentar mais cedo ou mais tarde os assaltos do Diabo: tem de viver ali
com os milagres e as tentações. Mas, de tanto freqüentar os anjos, acaba-se
parecendo com eles. O que os homens do deserto perdem em humanidade
ganharão em angelismo, e compreende-se que os pintores bizantinos que
representarão estes homens do Egito nos afrescos dos mosteiros da Capadócia
ou da Grécia os tenham pintado sob este duplo aspecto de selvagens c de
anjos: rosto emagrecido, trajes esfarrapados, cabelos que caem até os pés, mas
também olhares perdidos na contemplação de uma outra realidade, carne que
quase não é mais carne. Todas as convenções da arte bizantina terão como
meta fazer dos grandes ascetas não criaturas impassíveis, fantasmas ou
ilusões, mas seres que já pertencem a uma outra espécie de humanidade, a
meio caminho do outro mundo. O deserto é o lugar de uma experiência
suprema, uma provação que conduz fatalmente o homem para além de si
mesmo, rumo ao Anjo ou à Besta, rumo ao Diabo ou a Deus.
Orígenes — que dirigiu por muito tempo a célebre Didascália de
Alexandria e foi um dos espíritos mais eminentes do século III —
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PADRES DO DESERTO
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PADRES DO DESERTO
serpentes "com rostos de centelha, fogo na face e fogo no olho", o senhor do
cetro, o que está no país, o falcão macho e o falcão fêmea. De cada lado da margem,
assistindo à passagem do cortejo divino, aparece uma multidão de criaturas:
numa das margens, estão todos aqueles que "criam o Oceano e fazem a
marcha do Nilo"; são, na ordem, três deuses, quatro mulheres, quatro múmias
chifrudas e aladas, quatro nobres, um objeto de aparência estranha
(provavelmente uma haste de papiro), mas que é na realidade um ser vivo, já
que se chama aquele que é cheio de magia, um homem ajoelhado chamado
aquele que traz o despertar, Anúbis, um carneiro chamado o matador de seus
inimigos, um carregador e uma carrcgadora de olhos, o deus-orictéropo* Set e
um cinocéfalo** (na mitologia egípcia, os cinocéfalos abrem e fecham as portas
do Reino dos Mortos). Na outra margem se erguem aqueles que cortam as
almas e apnsionam as sombras. Dtstinguem-se o deus Órion, um deus chamado
o Ocidental, uma deusa que está sobre a chama, cinco criaturas com cabeça de
pássaro carregando facas, mais oito Osíris e o deus-carneíro Khnum. E isso se
repete em cada uma das doze horas do Am-Duat! Além disso, só
mencionamos aqui os deuses e as criaturas mais aparentes, as que estão nas
margens do rio. Ao longe, nas trevas desse mundo estranho, o brilho do
deus-Sol ilumina de passagem, como um projetor varrendo a noite, criaturas
de pesadelo: mortos sepultados na areia, dos quais só a cabeça emerge,
serpentes montadas em patas tão altas quanto pernas-de-pau, o dragão Apófis
enroscado num penhasco que ele envolve com suas espirais, homens
estendidos na terra, decapitados ou manietados (os "inimigos" do Sol), outras,
enfim, que mal adivinhamos, sepultadas sob montículos de areia.
Essa imaginação funerária não era somente visual, mas sonora. Nesta ou
naquela hora do Am-Duat, os textos descrevem os ruídos múltiplos que
acompanham a passagem da barca divina: gritos de alegria dos mortos
enquanto o Sol atravessa sua "hora", gemidos e
PADRES DO DESERTO
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PADRES DO DESERTO
ele apareceu fora daquele castelo àqueles que vinham até ele, e ficaram cheios de
assombro ao vê-lo num vigor maior do que jamais tivera. Não tinha nem
engordado pela ausência de exercício nem emagrecido por tantos jejuns e combates
sustentados contra os demônios. Tinha o mesmo rosto de antes, a mesma
tranqüilidade de espírito e o humor agradável. Não estava nem abatido de tristeza
nem numa excessiva alegria. Seu rosto não era nem demasiado jovial nem
demasiado severo. Não dava mostra nem de desagrado de se ver rodeado de
tamanha multidão nem de satisfação de ser saudado e reverenciado por tanta
gente. Era de uma perfeita igualdade de alma, num estado conforme à natureza.
Ele forma então seus primeiros discípulos, que decidem renunciar ao mundo
e se agrupar em torno dele. Desta época — que podemos situar aproximadamente
em 305 — data a fundação da primeira comunidade cristã no Egito. Ainda não é um
mosteiro, mas, no máximo, uma laura, um agrupamento de anacoretas, submetidos
a uma ascese e a um modo de vida relativamente livres. Esta primeira comunidade,
Antão a estabelecerá às margens do Nilo, não longe da fortaleza de Pispir, perto da
atual aldeia de Deir-el-Maimum.
A reputação de Antão, nesta data, já é enorme no Egito. Ela atinge todas
as camadas da população e não mais apenas um punhado de devotos e
admiradores. Uma multidão de pessoas aflui ao "mosteiro" de Pispir, deita-se
ao longo da entrada, na esperança de ver o asceta aparecer para lhes falar,
curá-las ou exorcizá-las. Já corre o boato de que basta se aproximar do
"mosteiro" de Antão para voltar de tá imediatamente curado. Mas Antão não
suporta nem a multidão, nem os milagres, nem a glória e decide partir de
novo para mais longe no deserto, "num lugar onde não fosse conhecido de
ninguém".
^0m
É ali que Paulo de Tebas viverá durante cem anos. Cem anos de uma existência
quase milagrosa, ainda que são jerônimo, no que lhe diz respeito, ache tudo muito
natural:
A palmeira de que falei lhe fornecia tudo o que era necessário à sua alimentação e à
sua vestimenta, o que não deve ser visto como impossível, já que Jesus Cristo e seus
anjos são testemunhas de que, nesta parte do deserto que pertence às terras dos
sarracenos e se junta à Síria, tenho visto solitários dos quais um, recluso há trinta
anos numa caverna, só vivia de pão de cevada e de água lodosa, e um outro,
trancado numa velha cisterna, vivia de cinco figos por dia.
Paulo de Tebas viverá decerto com menos que isso. Levará nesta gruta
uma existência angélica que o universo teria ignorado se, pouco antes de sua
morte, Deus não tivesse avisado Antão da existência de Paulo. Antão tinha já
noventa anos, mas decidiu imediatamente pôr-se a caminho, à procura dele.
A partir deste episódio, a Vida de Paulo de Tebas torna-se uma espécie de
sonho acordado em pleno deserto.
Para começar, onde vive Paulo de Tebas? Antão não sabe e parte às
cegas. Mas às cegas, quando alguém se chama Antão e vive no deserto, quer
dizer o olho de Deus. A Providência guarda o caminho do asceta e nele coloca
estranhas balizas:
Ao despontar o dia, santo Antão começou a caminhar sem saber aonde ia e o sol,
chegado o meio-dia, já tinha escaldado o ar de tal sorte que parecia todo inflamado
quando ele viu uma criatura que tinha em parte o corpo de um cavalo e era como
aquelas que os poetas chamam Hípocentauros. Tão logo o vislumbrou, Antão ar-
mou sua fronte com o sinal salutar da cruz e lhe gritou: "Olá! Em que lugar da
terra mora aqui o servo de Deus?" O monstro, então, murmurando não sei o que de
bárbaro e entrecortando suas palavras mais do que proferindo-as distintamente,
esforçou-se por fazer sair uma voz doce de seus lábios eriçados de pêlos e,
estendendo a mão direita, lhe mostrou o caminho tão desejado. Depois, dissipou-se
diante dos olhos daquele a quem tinha enchido de espanto. Quanto
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PADRES DO DESERTO
A Vida de Pacômio chegou até nós num grande número de versões
escritas nos diferentes dialetos coptas: boháirico e menfitico (Delta e Baixo
Egito), akhmínico e sub-akhmínico (no Médio Egito) e sahídico (no Alto
Egito). Estas Vidas apresentam entre si certo número de variantes, mas todas
concordam no essencial: os principais episódios da infância de Pacômio e sua
regra são, em todas elas, os mesmos. Por eles, podemos reconstituir com bases
históricas bastante seguras a espantosa existência do primeiro dos monges.
Pacômio nasceu em 286 na aldeia de Esneh (atualmente Isna), no Alto
Egito, a uns cinqüenta quilômetros de Tebas. Ao contrário de Antão, teve uma
infância paga. Mas, como não se poderia admitir que um futuro santo
pudesse, mesmo inconscientemente, adorar os ídolos, sua Vida toma o
cuidado de assinalar que ele só os adorava na aparência. Vomitava a cada vez
o vinho dos sacrifícios, seu estômago se recusava a ingurgitar alimentos
oferecidos aos ídolos. Antão, aos vinte anos, teve a revelação de uma vida
consagrada a Deus. Em Pacômio, o fenômeno é invertido: ele é consagrado a
Deus sem ao menos saber disso. Inversão que se opera até nos detalhes mais
concretos: Antão ouvia o chamado de Jesus; Pacômio, ao penetrar num
templo pagão, aos oito anos de idade, não ouve voz alguma; ao contrário, são
os ídolos que param de falar ou de profetizar. A vocação de Pacômio é essa
voz paga que se cala em sua presença.
Em nada surpreso com tantos prodígios, Pacômio continua a crescer:
aos vinte anos, é alistado à força no exército romano e parte um belo dia para
a guarnição, em Antinoé. Lá, pela primeira vez, fica sabendo que existem no
mundo seres chamados cristãos, que se devotam voluntariamente aos outros
e se deixam martirizar, em vez de renegar sua fé. Tocado por sua
generosidade e sua gentileza, Pacômio os freqüenta assiduamente e decide,
nesta época, consagrar-se ao Deus dos cristãos.
Assim que foi dispensado, dois ou três anos mais tarde, ele regressou ao
sul e chegou um belo dia a Sheneset (em grego Khenobóskion),
m %tm
PADRES DO DESERTO
ditou ver, conforme sua imaginação, restos de gigantes mumificados ou
grandes veleiros petrificados no fundo dos mares.
"Encontram-se ali", escreve Coppin, "pedaços de ossos humanos que
mudaram sua natureza para a das rochas. Eles nada têm de reconhecível além
da forma, mas a quantidade em que se encontram não deixa dúvidas de que
tenham sido ossos verdadeiros."
Um século depois dele, Maillet percorreu por sua vez a região e
escreveu: "É na rota desse canal (o canal do Faium) que se achava o deserto de
são Macário c aquele vale chamado Baharbalaama, termo árabe que significa
mar sem água, porque o mar outrora encheu esse vale. Isso ainda se reconhece
pela quantidade de embarcações que encontramos petrificadas com seus
mastros e que, provavelmente, tinham naufragado ali no tempo em que a
superfície do mar cobria com suas águas o golfo. Conserva outra prova
incontestável dessa origem
nas conchas marinhas de que suas margens pedregosas estão carregadas. É no
meio desse deserto horrível e estéril que se encontra ainda
hoje o mosteiro de são Zacarias e dois ou três outros habitados por alguns
religiosos coptas. É a esse pequeno número que estão reduzidos hoje aqueles
mosteiros famosos que povoaram aquelas soledades no tempo em que o Egito
era cristão"1.
Ossadas humanas, barcos naufragados... Os viajantes dos séculos XVII e
XVIII tinham a imaginação assombrada pelos desastres humanos. Rufino, que
percorreu esses desertos no século IV, na época em que os anacoretas
começavam a se multiplicar ali, interpretou de modo bem diferente a estranha
atmosfera do lugar:
PADRES DO DESERTO
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PADRES DO DESERTO
os pecados dos outros. Eu os ponho à frente para só olhar para eles." E os anacoretas
mudaram de assunto.
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Em meio àquelas celas, algumas não tinham qualquer abertura, salvo um buraco
para se escorregar dentro, pois se situavam no deserto interior, onde não se
admitiam visitantes. Era nessas que Macário morava durante a Quarentena. Eram
cavernas escuras situadas sob a terra, como tocas de hienas, e eram tão estreitas que
nem mesmo era possível estender os pés.
pequeno, muito fraco e muito delicado. Só tinha barba nos lábios e muito pouco no de
cima, pois suas extremas austeridades impediam que ela lhe crescesse no queixo.
da preocupação que dizia respeito a seu alimento e lho fornecia por sua
Providência. Quando, impelido pela fome, ele entrava em sua caverna,
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PADRES DO DESERTO
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PADRES DO DESERTO
Um dia em que Macário estava em sua cela, olhou para a direita e viu. Eis que um
querubim de seis asas e olhos inumeráveis estava perto dele. E, quando apa
Macário começou a olhá-lo assim e a dizer: "Que é isso? Que é isso?", então, pelo
esplendor e pela claridade de sua glória, ele caiu sobre o rosto, o santo apa
Macário, e ficou como morto.
Na noite seguinte, eis que todo o lugar se tornou luminoso como à hora do
meio-dia nos dias de verão, e apa Macário soube que era o querubim que voltava
para ele. A princípio, aquela Virtude ficou algum tempo sem lhe falar, para que ele
não se amedrontasse...
aconíeceu que nosso pai Pacômio foi arrebatado por ordem do Senhor para fazê-lo
contemplar os castigos e os tormentos pelos quais são torturados os filhos dos
homens. Foi arrebatado no corpo? Fora do corpo? Em todo caso. Deus sabe que ele foi
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O ROSTO DE SATÃ
mas cujo corpo fantástico só se compunha de ar, evaporou-se entre suas mãos
lançando urros apavorantes; e, como o infeliz o perseguisse de maneira
ma neira vergonhosa,
ele o deixou cheio de confusão e acrescentou àquilo uma zombaria cruei E uma
grande multidão de demônios se reuniu para assistir àquele espetáculo, lançando
grandes gritos e explodindo de rir.
Luciano de Samósata (páginas 37, 60, 185 e 226): Luciano de Samósata é um autor
grego pagão do século II cuja obra, essencialmente constituída de Diálogos
satíricos e filosóficos, foi uma das mais importantes de seu tempo. Viajou por
todo o Império romano, até a Gália, antes de instalar-se e terminar seus dias no
Egito como alto funcionário. Seu espírito escarnecedor e racionalista não pou-
pou, com um humor notável e um estilo literário de primeira ordem, as
esquisitices, os excessos, as insuficiências e as imposturas das escolas filosóficas
e religiosas. O Philopseudes (mencionado e citado nas páginas 60 e 226) pode-se
traduzir por O amigo da mentira ou, mais livremente, por O mitômano. Nascido
na Síria romana, Luciano consagrou alguns de seus escritos a esse país, entre os
quais A deusa sitia (citado na página 185).
Cassiano (páginas 101, 213 e 214), autor das Entrevistas com os Padres do Egito
(citadas também na tradução de Arnauld d'Andilly), é um autor de origem
gaulesa para quem a temporada no Egito não foi senão uma peregrinação às
fontes da anacorese e do monaquismo. Foi em Marselha que, ao regressar do
Oriente, ele fundou dois mosteiros. Nesta cidade, ainda hoje é venerado como
santo. Cito aqui, a título indicativo, um trecho de uma outra obra de Cassiano,
intitulada Instituição dos monges, escrita também com base em sua experiência
egípcia, e onde figura este curioso simbolismo da vestimenta no deserto: o cinto
representa o combate espiritual; a veste c só necessidade e, se for perdida,
ninguém deve recuperá-la; o capuz representa a inocência das crianças; a pele
de cabra, a modificação das paixões; o cajado é uma arma espiritual; andar
descalço significa avançar na via espiritual.
Sulpício Severo (páginas 109, 162 e 163) é um autor cristão do século V, nascido
na Aquitânia. Consagrou-se à solidão após a morte de sua mulher e
tornou-sc amigo de são Martinho de Tours, cuja Vida escreveu. Anexou a
esta Vida dois textos intitulados Diálogos e Virtudes dos solitários do
Oriente, donde são extraídos os trechos citados.
V I - O s atletasdoexílio( I I )
Vida copta de Macário o Antigo (páginas 130 e s. e 201). As citações são extraídas
desta Vida, escrita em copta por Serapião, discípulo de Macário, e traduzida
por Robert Amelineau. A maioria das traduções do copta de Robert Amelineau
foram publicadas em duas coletâneas essenciais para o conhecimento do Egito
cristão: Monumentos para servir à história do Egito cristão e Memórias publicadas
pelos membros da missão arqueológica no Egito.
FONTES E TEXTOS
V I I -Ofimdosídolos