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Modernidade neoliberal*

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Tanto a sociologia da modernidade quanto temas centrais – o individualismo e a individuali-


da pós-modernidade desenvolvidas por alguns dos zação, a falta de valores compartilhados e de solida-
sociólogos mais reconhecidos do presente não são riedade, a culpabilização das vítimas para explicar
uma sociologia neoliberal, mas uma sociologia que, a pobreza e a exclusão, a reação crescente contra os
ao fazer a análise competente da realidade social, imigrantes pobres, a insegurança e o risco por toda
reflete a realidade dos anos neoliberais do capita- parte, o caráter líquido e indefinido das relações
lismo. Ora, como esses anos foram marcados por sociais, o relativismo generalizado combinado com
uma tentativa radical de voltar ao passado – ao li- o fundamentalismo de mercado – são sem dúvida
beralismo do século XIX – esse foi um período rea- características da modernidade, mas de uma mo-
cionário que, por isso, teria caráter necessariamente dernidade neoliberal cujo colapso ocorreu com a
transitório. A transitoriedade é uma condição do crise financeira global de 2008 e a grande recessão
método histórico que é próprio da teoria social, que se seguiu.
mas essa transitoriedade não foi suficientemente Como uma espécie de alternativa às teorias da
assinalada. Trata-se de uma sociologia em que os modernidade, desenvolveu-se, mais ou menos no
mesmo período, a perspectiva pós-moderna – a rea-
* Agradeço a Gabriel Cohn, José Maurício Domingues,
Sérgio Costa e a dois pareceristas anônimos por seus ção de uma esquerda perplexa diante do avanço do
comentários. E a Cecília Heise, pela revisão. neoliberalismo e da crise do marxismo. Uma abor-
dagem que teve o mérito de se conservar crítica do
Artigo recebido em 10/01/2012 capitalismo, e o demérito de, no entanto, adotar
Aprovado em 01/08/2013 um relativismo e revelar uma descrença nas grandes
RBCS Vol. 29 n° 84 fevereiro/2014
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narrativas e nas utopias possíveis, que negava a pró- políticas econômicas passaram a pouco divergir,
pria possibilidade da sociologia. independentemente do partido político no po-
Neste trabalho faço um breve e certamente der. Em nome de uma reforma que denominou
incompleto exame desses dois conjuntos de ideias, “regulatória”, desregulou os mercados em geral e,
situando-as no quadro dos Trinta Anos Neoliberais em particular, os mercados financeiros, o que deu
do Capitalismo (1979-2008) – período no qual origem a uma série de crises financeiras que che-
uma ideologia reacionária foi dominante em garam ao auge na crise financeira global de 2008.
quase todo o mundo. Enquanto o liberalismo foi Diante dessa nova hegemonia, o pensamento
originalmente uma ideologia que nasce no século sociológico contemporâneo reagiu, geralmente de
XVIII para defender os interesses da classe média uma maneira crítica, mas não deixou de ser por ela
burguesa contra a oligarquia militar e religiosa e o influenciada. Meu argumento não é o de que tenha
Estado absoluto ou autocrático, o neoliberalismo defendido o receituário neoliberal; pelo contrário,
surge no último quartel do século XX para defen- vários sociólogos o criticaram – mas devemos assi-
der os interesses dos ricos contra os trabalhadores nalar que sua leitura da modernidade deixou-se im-
e os pobres e contra um Estado democrático. Após pressionar em demasia por um estágio que entendo
o fracasso do liberalismo econômico, que se pa- ter sido transitório do capitalismo.
tenteou no crash da Bolsa de Nova York em 1929
e na Grande Depressão dos anos 1930, tivemos
no pós-guerra os Trinta Anos Dourados do Capi- Um conceito impreciso
talismo (1949-1978) –período em que o Estado
voltou a intervir na economia de forma ativa, ao A literatura sociológica sobre a modernidade é
mesmo tempo em que intervinha também na área hoje extensa, mas o conceito de modernidade está
social; período em que o Estado foi desenvolvi- longe de estar claro. Stuart Hall et al. (1996) or-
mentista e voltado para o bem-estar social, apoia- ganizaram um extenso volume com o título Mo-
do na nova macroeconomia keynesiana e na teo- dernity, mas não encontramos ali uma definição
ria estruturalista do desenvolvimento; período de satisfatória de modernidade. Danilo Martuccelli es-
crescimento acelerado, grande estabilidade finan- creveu outro volume igualmente alentado no qual
ceira e moderada redução das desigualdades eco- fez uma resenha da sociologia do século XX, mas
nômicas nos países ricos; período no qual se for- ficamos apenas com a visão do que ela não é: “a
mou uma ampla coalizão de classes, que a Escola modernidade não se reduz ao ser-presente; ela não é
da Regulação francesa denominou de fordismo, a simples busca de saber o que é o mundo, ou ainda
reunindo empresários, classes médias profissionais o presente enquanto tal” (1999, p. 10). O que é
e trabalhadores. Entretanto, nos anos 1970, uma então? Sua resposta não é substantiva mas metodo-
crise de proporções moderadas, caracterizada pela lógica: é o resultado da ruptura com a ideia simples
queda da taxa de lucro e da taxa de crescimento, e de um presente histórico; é a consciência dela mes-
pela estagflação (inflação com baixo crescimento), ma pela sociologia na medida em que os sociólogos
permitiu que o liberalismo econômico se tornasse compreendem que são parte dessa modernidade e
novamente dominante, patrocinado por uma es- querem lhe dar sentido. E Martuccelli completa seu
treita coalizão de classes formada por capitalistas pensamento: “a sociologia cria e recria a ideia de so-
rentistas e pelos financistas que administram a ciedade em cada período histórico a fim de conferir
riqueza dos primeiros, e legitimado por um gru- sentido às práticas sociais e às mudanças históricas”.
po de economistas e filósofos neoliberais entre Ficamos, assim, com um conceito subjetivo e
os quais Friedrich Hayek, Carl Popper, Milton historicamente limitado de modernidade – com
Friedman e James E. Buchanan. Esse neolibera- a visão que cada sociólogo tem de seu tempo, o
lismo, que se fortaleceu com a queda do Muro de que é, em parte, inevitável, mas que implica negar
Berlim e o colapso da União Soviética, tornou-se objetividade à realidade social – a uma realidade
nos anos de 1990 a tal ponto hegemônico que as social que reflete permanentemente o desenvolvi-
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mento tecnológico, as necessidades, as instituições A modernidade está, portanto, associada à


e os valores dos atores sociais em cada momento libertação humana ou ao desenvolvimento eco-
histórico. Em outras palavras, existe uma moder- nômico, político, social e ambiental. A um pro-
nidade objetiva, existe um todo social que deriva cesso histórico que, como Therborn (p. 123) sa-
da interação das três classes sociais que constituem lienta, não é linear como são os projetos liberais
as sociedades contemporâneas (a capitalista, a de individualização, racionalização e crescimento,
profissional e a trabalhadora) que até certo ponto mas “uma perspectiva dialética de emancipação –
escapa à sociologia contemporânea da modernida- afirmando explicitamente que o capitalismo e o
de e da pós-modernidade, na medida em que esta colonialismo, bem como o progresso, formam ti-
acaba por ver aquela sob a forma que ela assumiu pos de exploração”. Mas sua afirmação faria mais
nos Trinta Anos Neoliberais do Capitalismo. Sua sentido se excluísse dela a palavra progresso. Não
análise não se refere à modernidade como reflexo há razão para considerar o progresso, que para
da estrutura econômica e social do mundo con- mim é sinônimo de desenvolvimento, como uma
temporâneo, como essa estrutura é nos termos de forma de exploração. Existe aí o reflexo da crí-
uma ontologia social, mas à forma distorcida que tica da escola de Frankfurt ao Iluminismo que,
essa modernidade assumiu no último quartel do a meu ver, estava essencialmente equivocada. É
século XX (o tempo da hegemonia neoliberal) – verdade que a teoria social que oferece “um mar-
período no qual aquelas necessidades e valores se co explanatório compreensivo para determinado
objetivavam nos interesses e na dominação de uma fenômeno social [a modernidade], e, por outro,
restrita coalizão de classes formada por capitalistas dá sentido a esse fenômeno” é ainda o marxismo,
rentistas e financistas e em um individualismo ra- mas isto é assim porque Marx, como Hegel, foi
dical. Tomaram assim a nuvem por Juno e atribuí- herdeiro do Século das Luzes.
ram permanência ao que é provavelmente transi- Os sociólogos que discutirei neste artigo veem
tório, mas dificilmente poderia ter sido diferente, nas transformações por que passou o mundo a
já que o método sociológico é o da análise social partir dos anos de 1970 uma “nova modernida-
enquanto algo que é, que realmente existe, não de”. Estão certos porque houve mudanças estru-
sendo trivial distinguir nesse ser o que é intrínseco turais na sociedade que a modificaram. Essa nova
e o que é transitório.1 Assim, essa sociologia teve modernidade foi chamada por algum tempo,
dificuldade em compreender que a modernidade é não apenas mas especialmente por filósofos e so-
uma totalidade, é um ser social, que só faz senti- ciólogos de esquerda, de “pós-modernidade”, ao
do se for pensado em termos dialéticos, como um mesmo tempo em que eles se autodenominaram
processo histórico em movimento e contraditório, “pós-modernos”. Outros, como Anthony Giddens
que foi marcado pela ideologia neoliberal, mas e Ulrich Beck, denominaram a nova fase “alta mo-
não é intrinsecamente liberal. Conforme assinala dernidade” ou “segunda modernidade” ou ainda
Göran Therborn: “modernidade reflexiva”. Mas misturada com essa
modernidade essencial existiu uma modernidade
Não há uma única definição “correta” de mo- neoliberal – a modernidade que correspondeu aos
dernidade e do moderno. Mas as que mais fru- Trinta Anos Neoliberais do Capitalismo – que não
tificaram – as definições tomadas da linguagem deriva da crescente complexidade das sociedades
comum – tendem a ser as menos idiossincráti- modernas, mas da hegemonia ideológica de então.
cas… Modernidade deveria ser vista, portanto, Nesse tempo muitas das características definidoras
como uma orientação temporal somente. Mo- da ideologia neoliberal, que não são intrínsecas à
dernidade é a cultura clamando por ser moder- modernidade em sentido amplo, tanto assim que
na no sentido de virar as costas para o passado desde 2008 estão em crise, transformaram-se em
– o velho, o tradicional, o superado – e olhar valores e crenças das sociedades modernas, espe-
para o futuro como um horizonte atingível lhando o fenômeno histórico reacionário que foi o
(2007, p. 119) retrocesso neoliberal.
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Modernidade e capitalismo notação sociológica e cultural. Podemos dizer que


o capitalismo está associado ao capital, ao lucro e
Modernidade e capitalismo são fenômenos ao progresso técnico; a modernidade, ao raciona-
correlatos que se tornaram realidade no bojo da lismo, ao Iluminismo, à racionalização e ao de-
revolução capitalista. No plano cultural a moder- sencantamento do mundo weberianos. Mas sabe-
nidade surgiu na Renascença e se configurou ple- mos que foi a revolução capitalista que causou o
namente no século XVIII, com o Iluminismo – a racionalismo, porque foi com o capitalismo que a
crença na razão e no progresso. De acordo com o atividade econômica tornou-se “racional” – tendo
otimismo iluminista, a razão traria aos homens li- como objetivo o lucro e, como meio mais adequa-
vres não apenas o progresso material, mas a verda- do para alcançá-lo, a acumulação de capital com
de, a justiça, a beleza, senão a própria felicidade. Os incorporação de progresso técnico e a formação de
conservadores da época opuseram-se ferreamente a organizações empresarias. Podemos pensar que o
essa visão otimista de um mundo em mudança para capitalismo está ligado ao nome de Marx, e a do-
melhor, mas o grande desenvolvimento econômico minação racional-legal em organizações burocrá-
experimentado pelos países que se industrializaram ticas ao de Weber, enquanto a modernidade esta-
durante o século XIX garantiu que a ideia de pro- ria originalmente associada a Hegel que, segundo
gresso continuasse dominante até o início do século assinalou Habermas (2002, p. 8), “foi o primeiro
XX. A irracionalidade das duas guerras mundiais – filósofo que desenvolveu um conceito claro de mo-
guerras sem sentido – abalou esse otimismo.2 Mas dernidade”. Sempre podemos fazer essas distinções,
quando o mundo emergiu dessas guerras mundiais, mas o fato é que os dois conceitos são tão seme-
surgiu uma ideia renovada de progresso, agora pen- lhantes que muitas vezes são usados como sinôni-
sado em termos de desenvolvimento econômico e mos. A Wikipédia em inglês define o capitalismo
de socialismo democrático. Renovava-se, assim, a como “o sistema econômico em que vivemos”, a
crença na força transformadora da razão, mas com modernidade, como “a sociedade moderna”. Pode-
a consciência das suas próprias condicionantes, ao ríamos, a partir daí, concluir que a modernidade é
mesmo tempo em que se valorizava o indivíduo res- o capitalismo do presente. Mas essa solução não é
ponsável de que nos falava Sartre em O existencia- satisfatória, porque quando opomos a Idade Mo-
lismo é um humanismo ([1946] 1964). E se voltava derna à Antiga estamos geralmente nos referindo
a uma concepção emancipadora da modernidade. a um tipo de sociedade que começou a existir com
Mas esse novo otimismo terá pouca duração. A de- a descoberta do “Novo Mundo”, a Renascença e a
cepção com a Revolução Russa demonstrada pelas Reforma, e ganhou plenitude com o Iluminismo,
revoltas de Budapeste (1956) e de Praga (1968) e, a Revolução Industrial e a Revolução Francesa. A
afinal, o fracasso da utopia revolucionária que es- modernidade não é simplesmente a sociedade mo-
tava presente na Revolução Estudantil de 1968 le- derna ou a sociedade contemporânea, mas, em um
varam os intelectuais e a esquerda à desilusão e ao período recente, foi uma modernidade neoliberal.
pós-modernismo, enquanto a direita intelectual se É certo que precisamos entender a lógica do
reorganizava e definia as bases supostamente cientí- tempo presente, a natureza das sociedades capita-
ficas da hegemonia neoliberal em formação. listas aqui e agora, a forma que as sociedades mais
“Modernidade” é um dos nomes que a socio- avançadas assumiram nos últimos quarenta anos,
logia tem dado à sociedade moderna desde o início que foram também os anos da revolução da tecno-
do século XX. Foi precedida do modernismo es- logia da informação e da comunicação, e como elas
tético com o qual tem relações, mas não deve ser refletiram a desilusão que se segue à Revolução Es-
confundido. Na introdução deste artigo salientei tudantil de 1968. Precisamos, portanto, entender
que modernidade e capitalismo são dois conceitos os Trinta Anos Neoliberais do Capitalismo. Mas
muito semelhantes. Podemos distingui-los dizendo para indicar apenas os anos neoliberais, a expressão
que o termo “capitalismo” tem conotação econô- modernidade, usada de maneira isolada, não é ade-
mica e política, enquanto “modernidade” tem co- quada. A modernidade expressa uma realidade mais
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ampla. Por isso, para focalizar o tempo presente, os transformado em sujeito. Para ele (1992, pp. 244-
sociólogos tiveram que adicionar ao termo adjeti- 245) “não há modernidade sem racionalização; mas
vos vários, entre os quais “neoliberal” foi conside- também sem a formação de um sujeito-no-mundo
rado o que melhor define a modernidade recente. que se sente responsável em relação a si próprio e à
Mas o fato de a modernidade referir-se à con- sociedade”. Essa racionalização não pode ser redu-
temporaneidade traz um problema insolúvel: ela zida à sua forma instrumental, nos termos de Max
está sempre mudando. Dessa forma, a moderni- Weber, nem pode ser pensada como o triunfo do
dade, na primeira década do século XX, era uma espírito e da história, como afirmou o pensamen-
modernidade otimista quanto ao futuro e revolu- to hegeliano e o marxista. A ideia da modernidade
cionária quanto às artes; nos anos 1930 e 1940, não é a afirmação de que o homem é aquilo que
tornou-se a modernidade da Escola de Frankfurt, ele faz, de que há uma correspondência necessária
pessimista, descrente do progresso, estigmatizada entre a produção e a organização da sociedade. Não
pela guerra e pelo nazismo; no pós-guerra, trans- existe a correspondência necessária entre a abun-
formou-se outra vez, novamente otimista, acredi- dância, a liberdade e a felicidade. A modernidade
tando agora na revolução socialista e na emanci- não se confunde com os regimes autoritários e em
pação humana; a partir da crise dos anos de 1970, certos momentos totalitários. Mas não é também
tornou-se “pós-moderna” para intelectuais de es- a modernidade do capitalismo triunfante do início
querda novamente descrentes do progresso e da dos anos de 1990, individualista, que procura esta-
razão; e mudou novamente quando se identifi- belecer uma autonomia extrema para as ações eco-
cou com o “fim da história” de Francis Fukuyama nômicas. Não é, em outras palavras, o neoliberalis-
(1989), com o reino reacionário do liberalismo e mo. O mercado é uma instituição necessária, mas
da hegemonia norte-americana; nesses dois últi- não é suficiente para que ocorra a modernização.
mos momentos, ela estava se transformando em O que é, então, a modernidade? Para Tourai-
uma modernidade neoliberal, conceito que, desde ne, ela não pode ser definida pelo sentido da histó-
2008, vem enfrentando profunda crise. ria, como liberação, nem como liberdade negativa,
Neste quadro de uma realidade social em con- liberal. A modernidade é o resultado de uma dupla
tínua e acelerada mudança, identifico alguns so- dialética: entre o racionalismo e o sujeito, e entre
ciólogos eminentes que analisaram a sociedade dos a realidade do processo histórico capitalista e uma
anos neoliberais do capitalismo de uma forma críti- concepção ideal de sociedade moderna. A moder-
ca, mas que talvez tenha confundido elementos que nidade significou um rompimento com a tradição
refletiam a hegemonia neoliberal (que decorriam de e a religião e condenou todas as ações repressivas
“restrições de hegemonia”) com características essen- que se faziam em nome delas. Mas essa moderni-
ciais da modernidade (que se refletem em restrições dade só faz sentido se através dela o indivíduo se
ou determinações econômicas ou políticas) – como transformar em sujeito e em ator social. A defini-
uma característica essencial da modernidade.3 Veja- ção de sujeito para Touraine (pp. 242-245), ain-
mos alguns dos principais teóricos sociais neste qua- da que produto de ampla elaboração intelectual,
dro confuso e contraditório. é simples: “O sujeito é a vontade de um indivíduo
de agir e de ser reconhecido como tal”. O sujeito
não é produto do individualismo, não é a afirma-
A modernidade e o sujeito ção narcisista do self. “A subjetivação é a penetra-
ção do sujeito no indivíduo […] é o contrário da
Alain Touraine desenvolveu uma análise abran- submissão do indivíduo a valores transcendentes.”
gente e dialética da modernidade. Ele a enxerga no Na modernidade o sujeito “torna-se o fundamen-
plano histórico como um grande processo de ra- to dos valores, porque o princípio fundamental da
cionalização que nasce do Iluminismo, mas que só moralidade passa a ser a liberdade, uma criativida-
faz sentido se for compreendido como um processo de que é seu próprio fim e que se opõe a todas as
de subjetivação, do fortalecimento do indivíduo formas de dependência”.
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Essa visão dialética, marcada por um tom apro- mente equivalente àquele outorgado ontem à ideia
priadamente dramático, perdeu força em trabalhos de sociedade. O Sujeito se transforma no critério
posteriores de Alain Touraine. Na medida em que do bem e no princípio da integração”. Há nessa vi-
a teoria do sujeito e do ator social ganhou força, rada um claro elemento filosófico. A modernidade
seu pensamento assumiu um caráter mais liberal e social não foi capaz de se realizar como ideal, cabe
normativo, não obstante ter ele se mantido sempre ao Sujeito fazê-lo. Touraine não está mais interessa-
um crítico do neoliberalismo. Dado o papel que atri- do nos profissionais e nos capitalistas; não ignora as
buiu ao sujeito como ator social e político, o autor restrições econômicas e sociais, mas, apesar de todas
reviu seu conceito de modernidade, definindo-o em as dificuldades, ele encontra espaço para a afirma-
Un noveau paradigme (2005) de forma surpreendente: ção da liberdade de cada indivíduo transformado
em sujeito. Como, na passagem para o capitalismo,
A modernidade se define pelo fato que ela dá os súditos se transformaram em cidadãos, chegou
fundamentos não sociais aos fatos sociais, de que o momento de se transformarem em sujeitos de si
ela impõe a submissão da sociedade a princí- próprios e da sociedade em que vivem.
pios e a valores que, eles próprios, não são so-
ciais (Idem, p. 120).
Segunda modernidade e desencaixe
Isto seria possível porque a modernidade está
baseada na liberdade e na criatividade que se fun- Todas as análises da modernidade partem da
damentam em dois princípios: a crença na razão e ruptura com a tradição e a religião e chegam à mes-
na ação racional e o reconhecimento dos direitos ma conclusão: resultou daí a individualização ou a
do indivíduo. Não estamos de volta aos princípios formação do sujeito, mas que deu lugar ao indi-
liberais clássicos, uma vez que os direitos sociais vidualismo. Os homens e as mulheres sentiram-se
pelos quais Touraine sempre lutou não se incluem mais livres para definir sua própria identidade e para
entre eles, mas, no plano do conhecimento, vemos se tornarem agentes da história, o que resultou em
o abandono da teoria social, que estuda a dinâ- uma visão mais pessoal ou mais voltada para o “eu”
mica intrínseca e objetiva da vida social em favor do papel de cada indivíduo na sociedade e, por isso,
da teoria política de caráter normativo. Touraine em uma centralidade do indivíduo na trama da so-
(Idem, pp. 133-34), ao contrário de teóricos polí- ciedade, que não existia nas sociedades antigas. Tra-
ticos liberais,4 não decreta a morte da teoria social ta-se de um processo de individuação que é também
e o advento da teoria política liberal, mas vislum- progresso. Mas ao mesmo tempo eles se tornaram
bra “o fim do social”, ou seja, o fim de uma visão individualistas, mais competitivos e mais egoístas,
“determinista” da sociologia. Em suas palavras, “o dificultando sua participação solidária em comuni-
lugar central dado à modernidade, ou seja, à liber- dades. Marx fez a crítica desse individualismo com
dade criadora do ator e não mais às necessidades e a teoria da alienação. A transformação de tudo,
às funções dos sistemas sociais, é de fato a consta- inclusive o trabalho humano, em mercadoria –
tação de que vivemos o ‘fim do social’”. Não po- a força de trabalho – torna o homem um objeto,
demos mais e não devemos pensar socialmente os vítima da exploração, ou então um competidor
fatos sociais, e sim em termos políticos. Só assim implacável sem outros valores senão seus próprios
combateremos a dominação, porque “o que é pró- interesses. Enquanto a sociedade antiga era coorde-
prio das dominações é assumi-las como naturais – nada pela tradição, pelos usos e costumes, ou seja,
e, portanto, não impostas”. por valores e crenças longamente amadurecidos e
Na análise que faz da obra de Touraine, Danilo internalizados, a sociedade capitalista é coordenada
Martuccelli (1999, p. 502) salienta sua mudança de por um mercado impessoal e frio, no qual só exis-
enfoque da sociedade para o sujeito, que ele grafa tem mercadorias cujo valor é uma abstração.
com letra maiúscula: “o papel prático e intelectual Outra forma de pensar que leva à mesma con-
outorgado agora à noção de Sujeito é funcional- clusão parte da divisão do trabalho e da complexi-
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dade crescente das sociedades modernas. A partir de desencaixe interagem com os contextos reencai-
do momento em que, com a revolução capitalista xados da ação, que agem seja para fortalecê-los ou
ou a modernização, o excedente econômico au- para miná-los” (Idem, p. 80). A modernidade não é,
menta, cresce correspondentemente a divisão do portanto, apenas desencaixe, desvinculação social,
trabalho, a qual não ocorre apenas dentro da em- mas envolve um contínuo processo de vinculação e
presa, mas na sociedade como um todo. Surgem integração social.
novos bens e novos serviços, multiplicam-se espe- A tese da “sociedade do risco” e a tese correla-
cialidades e profissões. ta de “modernidade reflexiva” propostas por Ulrich
Anthony Giddens, em The consequences of mo- Beck ([1986] 1992), e depois adotadas por Anthony
dernity, apresenta um conceito novo de moderni- Giddens e Scott Lash (1995), tiveram sucesso rela-
dade que julga ter força explicativa maior do que tivo nos meios sociológicos, mas Beck foi ambicioso
a crescente divisão do trabalho. Trata-se da noção demais ao identificar aí uma nova etapa para a hu-
de “desencaixe” (disembedding): “o processo de manidade.5 A distinção entre sociedade industrial e
afastamento das relações sociais dos contextos de sociedade do risco estaria no fato de que a primeira
interação social e sua reestruturação através de in- produz e distribui bens e serviços, a segunda, riscos.
tervalos de tempo-espaço indefinidos” (1990, p. E os distribui de forma inversa: enquanto a primeira
21). Em outras palavras, o indivíduo se torna dis- distribui os bens em favor dos ricos, a segunda aloca
tante das normas sociais, as quais já não fazem mais os riscos principalmente aos pobres. Riscos sobre-
parte de seu contexto social e se transformaram em tudo tecnológicos que afetam o ambiente natural e,
abstrações; ou, na linguagem do direito e da teo- assim, a sobrevivência da espécie humana – associa-
ria política, tornaram-se normas jurídicas. Segundo dos à poluição, à destruição das florestas, ao aqueci-
Giddens, isso ocorre quando se estabelecem “meca- mento global, à nuclearização das fontes de energia,
nismos de desencaixe” dotados de confiança, entre à guerra nuclear, ao descontrole da natureza causado
os quais os “tokens simbólicos” (por exemplo, di- por culturas transgênicas. Riscos “internos” ao sis-
nheiro) e “o sistema de especialistas”. O indivíduo tema ou “manufaturados”, segundo a definição de
é obrigado a confiar em tais mecanismos para que a Giddens (1998, p. 28).
sociedade possa funcionar de forma adequada. Em- Trata-se de riscos reais, produzidos socialmen-
bora o Estado não seja o eixo de sua análise, esses te, e por isso são objeto da sociologia, assim como
mecanismos fazem parte essencialmente do sistema a crítica oportuna que Beck dirige a cientistas que
constitucional-legal, o qual tem um papel decisivo pretendem decidir qual o risco envolvido nas tec-
na coordenação social e depende necessariamente nologias que desenvolvem. Dado o caráter com-
da confiança para exercer sua função social. O autor plexo dos problemas tratados, é difícil alcançar
desenvolve também o conceito de “reflexividade”: certezas razoáveis quando se fala em riscos. Tudo
“as práticas sociais são constantemente examinadas indica que está havendo o aquecimento global,
e reformadas à luz de novas informações sobre essas mas até que ponto, e a que custo? A maioria dos
mesmas práticas, dessa forma alterando constituti- cientistas afirmou que não há problema na agricul-
vamente seu caráter” (Idem, p. 38). Em outras pala- tura transgênica, mas qual a segurança a respeito?
vras, nas sociedades modernas as instituições e suas O desenvolvimento tecnológico não para de cres-
respectivas práticas seriam permanentemente moni- cer e, por isso, a mudança social também é cada
toradas e reformadas, algo que não acontecia nas vez mais rápida. A tecnologia é certamente pode
sociedades tradicionais. A confiança continua sendo desencadear o aumento de riscos a que estão sujei-
fundamental, mas agora recai sobre normas e con- tos os seres humanos e ajuda a explicar sua insegu-
venções abstratas; é “ontológica” e se estabelece en- rança e ansiedade. Entretanto, o risco tecnológico
tre desconhecidos por meio da lei do Estado, o que e a aceleração da mudança social não justificam a
mostra o afastamento dos indivíduos em relação definição de uma nova etapa da história a partir
às instituições nas sociedades modernas. Por fim, do final do século XX, a não ser que entendamos
Giddens assinala algo importante: “os mecanismos como tal os 30 Anos Neoliberais do Capitalismo,
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o que não faz sentido. O desenvolvimento tecno- tivas para recuperar graus de liberdade. No momen-
lógico e social que transformou os mercados nas to em que os homens criam uma instituição podero-
instituições coordenadoras das atividades econô- sa – matriz das demais instituições formais – como
micas não aconteceu no último quartel do século é o Estado moderno, eles passam também a ter mais
XX, mas duzentos anos antes, quando a Revolu- domínio sobre seu destino. Sociedade civil, nação,
ção Industrial, esta sim foi um divisor de águas, Estado e o resultante Estado-nação passam a ser uma
conforme a análise clássica realizada por Marx. Por construção social e política.
isso a sociologia, inclusive a de Giddens e Beck, Em livro posterior, Beck retoma o problema
deve tanto a esta perspectiva original e poderosa. para afirmar que a modernidade “não é a ‘instru-
Depois da Revolução Industrial, na segunda mentalidade racional’ (Weber), nem o ‘uso ótimo
metade do século XVIII, podemos considerar que do capital’ (Marx), nem a ‘diferenciação funcio-
a Inglaterra completou sua revolução capitalista. nal’ (Parsons e Luhmann), mas suplementando e
Contudo, haveria ainda duas outras revoluções in- conflitando com essas ideias, é liberdade política,
dustriais. A segunda começou nos Estados Unidos, cidadania, sociedade civil” (1998, p. 2). Esta fra-
na virada do século XIX para o XX e, no plano so- se caminha na mesma direção do pensamento de
cial, implicou no que denomino Revolução Orga- Touraine, na medida em que adota uma aborda-
nizacional, que transformou as empresas familiares gem normativa, própria da teoria política em vez
em organizações burocráticas e deu origem a uma da abordagem histórica e holista da teoria social.
segunda classe dominante, a classe profissional. No Temas como liberdade, cidadania e sociedade ci-
final do século XX ocorreu uma terceira revolução vil são fundamentais, mas não é pensando nestes
industrial, a Revolução da Tecnologia da Informa- conceitos de forma normativa que vamos com-
ção e da Comunicação, cujas consequências são preender o que é a modernidade. Esta só faz senti-
ainda difíceis de avaliar. Ela coincidiu com os 30 do quando nasce de um pensamento histórico que
Anos Neoliberais do Capitalismo, mas não há re- supõe o avanço da sociedade rumo ao progresso
lação direta entre um fenômeno e outro. A hege- e seu retrocesso fundamentado no crescimento
monia neoliberal foi um retrocesso histórico que incomensurável do individualismo liberal, como
não tem bases nem tecnológicas, nem sociais, nem aconteceu nos Trinta Anos Neoliberais do Capita-
políticas sólidas. Ela foi uma reação oportunista de lismo. Quando os sociólogos passam a pensar em
capitalistas rentistas, mas que, como a crise global termos normativos e não históricos, eles abdicam
de 2008 demonstrou, não tem condições para se da ciência sociológica. Quando, nos Estados Uni-
manter indefinidamente. dos, John Rawls passou a ser a figura intelectual
Beck tem outro argumento para sua terceira eta- dominante no lugar de Talcott Parsons, quando a
pa, reflexiva, da modernidade. Diz ele que “quanto obra de Marx e Weber deixou de ser a referência
mais as sociedades são modernizadas, mais agentes primordial para entender a sociedade moderna e
(sujeitos) adquirem a capacidade de refletir sobre as foi substituída pela teoria política liberal e nor-
condições sociais de sua existência e, assim, modi- mativa e por uma teoria econômica neoclássica
ficá-las” (1995, p. 207). Mas isso não é novidade. matemática, o mundo adentrava seus tristes Trinta
A sociologia está construída sobre a hipótese de que Anos Neoliberais.
existe nas sociedades uma dinâmica inerente a elas.
Isto ficou definitivamente estabelecido por Marx ao
fundar a sociologia moderna com o materialismo Coordenação social complexa
histórico. A ideia segundo a qual o desenvolvimento
econômico, social, político e cultural estão endoge- José Maurício Domingues relaciona a moder-
namente correlacionados está presente na obra de to- nidade ao aumento da complexidade das sociedades
dos os grandes sociólogos. Com efeito, no momento contemporâneas e, em consequência, à dificuldade
em que o homem se dá conta dos mecanismos que cada vez maior de coordená-las. Em Interpretando a
agem sobre sua existência, ele começa a tomar inicia- modernidade (2002, pp. 223-230), o autor mostra
Modernidade neoliberal  95

um argumento bem estruturado a esse respeito. Ele sões mútuas ou acordos (compromises). Na medi-
afirma que “a complexificação das relações sociais da em que a sociedade se torna mais diferenciada
foi conduzida pela modernidade, principalmen- e complexa, os sistemas de regulação também se
te em sua fase contemporânea. Uma pluralização tornam mais complexos e eficientes. O Estado
social intensificada e em decorrência uma maior aumenta sua capacidade regulatória, mercados
abertura das identidades sobrevêm, o que torna bem regulados são capazes de coordenar novas
menos previsível a interação social”. Decorre daí atividades, as convenções sociais se multiplicam e
“a redução da capacidade de ‘condução’ do Esta- a disposição dos indivíduos em obedecer a lei e
do […] que é excessivamente grande e desajeitado estabelecer compromissos com seus concidadãos
para lidar com problemas finos de coordenação”, torna-se maior. Não há razão para imaginar que
uma vez que o mercado é o “elemento típico de nessa corrida entre a complexidade crescente e a
coordenação da modernidade liberal” . Em contra- regulação crescente a segunda perca para a primei-
partida, “alianças em rede entre governos, centros ra. As instituições reguladoras formais e informais
de pesquisa e firmas comerciais são absolutamen- vão se afinando cada vez mais. Instaura-se o que
te centrais para o avanço científico e tecnológico”, poderíamos chamar uma “coordenação comple-
o que leva Domingues a concluir que “entramos xa”, na qual os sistemas de regulação informais e
na terceira fase da modernidade”. A primeira fase formais, provenientes diretamente da sociedade
– “modernidade liberal” – teve como base da soli- ou através do Estado, se tornam tanto mais fortes
dariedade a família nuclear, enquanto a sociedade e claros, como também mais interdependentes.6
abrangente era coordenada pelo mercado e pelo Mas não há na coordenação complexa perda de
Estado. A segunda modernidade é organizada pelo liberdade. A liberdade como ausência de regulação
Estado, diminuindo a importância do mercado. A é uma tese neoliberal sem sentido. Nas sociedades
terceira, contemporânea, “desenhou as fronteiras e modernas tende a prevalecer a democracia; quanto
funções entre Estado e sociedade, viu ambos se tor- mais desenvolvida forem do ponto de vista eco-
narem mais fluidos e plurais, bem como tem sido nômico, mais democráticas tendem a ser, e mais
testemunha das mudanças dos padrões de família”. fina e complexamente reguladas serão elas pelos
A análise é competente: a modernidade contempo- três tipos de instituição regulatória.
rânea, após a crise dos anos de 1970, representou A sociedade moderna é certamente individua-
uma mudança ao deixar mais porosa a distinção lista, mais do que qualquer uma outra no passa-
entre o Estado e o setor privado, como as parceiras do. E essa individualização é um avanço, porque
público-privadas demonstram. Houve ainda uma significa que os homens e as mulheres tornaram-
mudança nos padrões sexuais, com grande aumen- -se mais livres, ganharam autonomia, tornam-se
to da autonomia das mulheres, decorrente da pílula mais senhores de seu destino. Há, de fato, uma
anticoncepcional, o que refletiu sobremaneira nas dialética permanente entre o egoísmo e o espírito
relações familiares. de solidariedade inerentes aos seres humanos. Isso
A ideia de que o aumento da complexidade exige de todos uma capacidade de fazer concessões
social, da divisão do trabalho ou da diferenciação mútuas, pois as leis, as convenções e as determi-
dos papéis sociais que caracterizam o desenvolvi- nações do mercado são muitas vezes inaceitáveis
mento econômico torna, segundo Domingues, a em face de nosso egoísmo ou espírito republicano
coordenação social mais precária e fluida é uma de solidariedade, mas elas precisam ser legitimadas
preocupação muito comum entre os sociólogos socialmente e, para tanto, é necessário que com-
da modernidade, mas a meu ver exagerada. Não promissos sejam feitos. E são feitos. Aprendi isto
há razão para pensar que a complexidade social com uma médica suíça, quando lhe falei sobre a
impede a coordenação social. A regulação das so- coesão e a força da sociedade e do Estado de seu
ciedades modernas é realizada por três instituições país. Ela concordou. Apesar de toda a complexi-
– Estado, mercado e convenções sociais e morais dade das sociedades modernas, a Suíça não tem
– e pela disposição das pessoas de fazer conces- uma sociedade fluida, líquida, frouxa. Contudo,
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além da legitimidade da lei e das demais institui- aumento substancial da segurança social, da segu-
ções, é necessário que os cidadãos tenham espírito rança contra a fome, a miséria, a doença e a velhi-
republicano, capacidade de crítica indignada e ca- ce, que foram conquistas do Estado do Bem-estar
pacidade de fazer concessões. Social. Houve, depois, um retrocesso neoliberal,
que creio ter sido temporário e, hoje, relativamente
superado. Subjaz à lógica do Estado a ideia de se-
Modernidade e insegurança gurança desde o Estado antigo. Hobbes fundou a
teoria contratualista sobre o Estado na troca que os
A ideia de sociedade do risco pode ser associa- homens teriam da sua liberdade pela segurança que
da à crescente insegurança que haveria nas socieda- o soberano lhes oferecia. A lógica fundamental do
des contemporâneas. Não é o que defendem Beck e Estado Liberal foi a da combinação de liberdade in-
Giddens, mas é uma tese bastante difundida na so- dividual com segurança; a do Estado Democrático
ciedade contemporânea. De fato, desde os anos de e Social foi a de estender o conceito de segurança
1980 houve um grande aumento do risco econômi- para a vida pessoal e para o campo da política eco-
co –crises financeiras, flexibilização e precarização nômica, tornando as economias menos sujeitas a
do trabalho, desemprego, perda de segurança dian- crises. A lógica do Estado Neoliberal será a da inse-
te da doença e da velhice. A multiplicação das crises gurança transformada em princípio, a da competi-
financeiras foi fruto da desregulação neoliberal. A ção e do risco que premiarão os mais capazes. Se na
precarização do trabalho foi decorrência da tentati- visão social-democrata o Estado deve dar proteção
va neoliberal bem-sucedida de diminuir a proteção aos mais fracos ao mesmo tempo em que estimula
oferecida pelas leis trabalhistas, cujo custo é incor- a competição regulada, reconhecendo, portanto, a
rido principalmente sobre as empresas, e pela ten- relação dialética entre defesa dos interesses indivi-
tativa malsucedida de reduzir o tamanho do Estado duais e solidariedade em relação aos mais fracos, na
do Bem-estar Social. A primeira teve êxito porque visão neoliberal a competição de todos contra todos
as empresas necessitavam reduzir seus custos diretos se torna um bem maior. A única proteção que o
para continuarem competitivas em relação aos paí- Estado deve oferecer é a liberal, contra o inimigo
ses em desenvolvimento; já a diminuição dos gastos externo e contra o crime; é garantir a propriedade
sociais financiados por impostos falhou: na verda- e os contratos. Contrariando o processo histórico
de, nos países ricos, os gastos sociais aumentaram de busca de segurança razoável, a lógica era a de
nos Trinta Anos Neoliberais do Capitalismo, por- premiar os mais fortes – os vencedores no mercado.
que o Estado do Bem-Estar Social é a forma mais Não é surpreendente que tenha fracassado.
eficiente ou barata de se atender necessidades bási- Entretanto, há uma sociologia atual que as-
cas de educação, saúde e previdência social. socia modernidade à insegurança, ou que acredita
Não devemos, portanto, relacionar moder- que as sociedades contemporâneas sejam intrin-
nidade com aumento da insegurança. Podemos secamente “fluidas”, “líquidas”. Refiro-me a Zyg-
relacioná-la com o neoliberalismo, mas esse foi um munt Bauman, que é, a rigor, um pós-modernista,
período transitório na história das sociedades mo- e a quem me referirei na seção seguinte em que tra-
dernas. A rigor, a revolução capitalista e o Estado to do retrocesso pós-modernista. Ainda que o pós-
moderno trouxeram uma segurança substancial- -modernismo seja principalmente um movimento
mente maior para a nações. Não é por outra razão intelectual filosófico e estético e Bauman um so-
que as nações lutam tanto por ter seu Estado. Antes ciólogo, seu livro Liquid modernity (2000, pp. 2-8)
da formação dos Estados-nação, a ameaça de guerra é hoje uma referência na discussão acerca do con-
era muito maior do que é hoje para as sociedades ceito de modernidade. O autor afirma que “o cará-
desenvolvidas. A segurança interna contra o crime ter líquido é a metáfora principal da era moderna”.
também aumentou muito em relação aos primeiros Fluidez, liquefação, indeterminação são os termos
momentos da revolução capitalista. Esta foi uma que melhor se ajustam ao mundo em que vivemos,
conquista do Estado Liberal. Em seguida houve um onde não há mais por que esperar revoluções, os
Modernidade neoliberal  97

indivíduos e as organizações estão livres de qual- no momento da Criação, da individualidade reali-


quer comprometimento, desengajados. “A tarefa de zada, da liberdade afinal alcançada. Ou nos levaria
construir uma ordem nova e melhor ou de substi- a isso, já que agora vivemos os tempos do capita-
tuir a antiga não está atualmente na agenda […]. A lismo leve, dos serviços, dos softwares, do mundo
‘fusão dos sólidos’, a característica permanente da digital. Mas afinal – o critico precisa continuar
modernidade, adquiriu um novo significado […] crítico – Bauman volta à velha sociedade de con-
dissolver as forças que poderiam manter na agenda sumo, à felicidade baseada em “gadgets”, drogas,
política a questão da ordem e do sistema”. Os indi- na necessidade de apoio psicoterápico, enfim, na
víduos já não teriam mais grupos de referência em compulsão por consumir. De fato, isto acontece na
que basear seu comportamento e seus projetos. O modernidade. Mas essa já era a crítica da Escola
processo de autoconstrução foi incuravelmente mi- de Frankfurt, corroborada pela contracultura dos
nado, mas o indivíduo é responsável por tudo: “A anos de 1960. Não vamos entender a modernidade
nossa é uma versão individualizada, privatizada da líquida dessa maneira.
modernidade, na qual o encargo de definir padrões Mais recentemente, Bauman voltou ao tema
e a responsabilidade por fracasso cai principalmen- em Liquid times: living in the age of uncertainty
te sobre os ombros do indivíduo”. (2007). Sim, vivemos nos tempos da incerteza.
A análise é correta, mas muito do que Bauman Mas quando estávamos certos a respeito da vida?
afirma não é inerente à modernidade e sim ao neo- No tempo da religião e da tradição? Não creio. Não
liberalismo introduzido em todo o tecido social e havia nenhuma certeza então, apenas a construção
valorativo da sociedade entre as décadas de 1970 de certezas asseguradoras. No tempo do capitalis-
e 2000. Referindo-se a um texto de Claus Offe mo clássico ou liberal e do positivismo científico
(“Biding, shackles, brakes”), ele define o caráter que eclode no início do século XX? Tampouco en-
fluido da sociedade por termos como “desregula- tão. Havia apenas a tola certeza de que a verdade
ção, liberalização, ‘flexibilização’”, que são todos estava ao nosso alcance. No fordismo? Mas essa foi
típicos da proposta neoliberal. Depois da crise fi- apenas uma coalizão política ampla e um momento
nanceira global de 2008, o tempo da desregulação de otimismo do vencedor no momento da grande
e da liberalização de todos os mercados, não ape- expansão e chegada à condição hegemônica de um
nas os financeiros, passou. Agora todo o esforço é Estados Unidos que então encarnara a democracia
para conseguir uma regulação eficiente. Quanto à e derrotara os autoritarismos. No stalinismo? Mas
flexibilização, ainda se fala em reduzir as garantias afinal esse foi o momento da revolução nacionalista
trabalhistas das empresas, mas, de acordo com o russa, da acumulação primitiva e da industrializa-
princípio da “flexiseguridade”, qualquer movimen- ção – ou da emergência retardatária da classe pro-
to nessa direção deverá, de maneira geral, ser com- fissional. No próprio capitalismo profissional ou
pensado por maior proteção social do Estado. capitalismo do conhecimento e da organização?
Bauman não diz uma palavra sobre o neolibe- Sempre houve e sempre haverá incerteza. Esta
ralismo em seu livro sobre o caráter fluido do ca- não é uma condição da modernidade, nem mesmo
pitalismo, mas afinal ele é seu ideólogo. Ele opõe da modernidade neoliberal, mas uma condição da
o “capitalismo pesado” que Marx e Weber conhe- humanidade que se acentuou com o capitalismo e
ceram, ao “capitalismo leve” dos nossos dias, e daí a competição. John Maynard Keynes, diante da ar-
conclui que saímos da “ordem”, da “racionalida- rogância do pensamento neoclássico que supusera
de instrumental”, “do comportamento racional haver construído uma ciência precisa, matemática,
orientado para valores”, que estão associados aos assinalou com ênfase o caráter essencialmente incer-
“politiburos” que “tornam absolutos os valores” do to dos comportamentos econômicos. A vida social é
mundo racional e autoritário previsto por George uma busca permanente de segurança, que pode ser
Orwell e Aldous Huxley, do fordismo, de tudo o relativamente alcançada pela diminuição da incer-
que caracteriza o capitalismo pesado, e entramos teza. E para isso a humanidade descobriu há muito
no tempo da boa desordem, daquela que prevalecia qual era a solução imperfeita mas essencial: as nor-
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mas sociais. Normas que nas sociedades modernas e todas as atividades econômicas monopolistas ou
ou capitalistas se transformaram no Estado ou no quase monopolistas que os mercados não têm con-
sistema constitucional-legal que, somado à adminis- dições de coordenar. E para enfrentar problemas
tração pública, constitui o Estado moderno. Nor- globais, como a mudança do clima, as máfias da
mas que tornam relativamente previsível o compor- droga e as epidemias globais.
tamento humano e, por isso, reduzem a incerteza. Wendy Wheeler tem uma visão bem diferen-
Com o neoliberalismo, a incerteza aumentou, te da modernidade e seu pensamento é uma boa
mas isso porque os homens acreditaram que esta- introdução para o pós-modernismo. Sua aborda-
vam vivendo em tempos líquidos, nos tempos do gem tem um aspecto psicanalítico com origem em
individualismo triunfante, do mercado regulador Freud e em Donald Winnicott que o enriquece.
garantindo a eficiência ótima, a distribuição ótima, Sua contribuição não é tanto para a compreensão
a felicidade ótima. Custou caro essa crença. Ape- da “nova modernidade” que está no título de seu
nas uma ínfima minoria aproveitou-se dela para livro de 1999 que termina com um ponto de in-
enriquecer. Foi nesse período, sintetiza Bauman, terrogação (A new modernity?). A autora argumen-
que, primeiro, passamos da modernidade “sólida” ta que a modernidade envolveu “perdas”, ou seja,
para a “líquida”; segundo, movemo-nos do poder as certezas oferecidas pela tradição e pela religião,
concentrado no Estado-nação para o poder espa- que ocorreram antes de a sociedade haver-se torna-
lhado de forma não controlável por todo o mundo; do capaz de, em termos psicanalíticos, “elaborar” a
terceiro, mudamos de uma sociedade na qual os perda. Só mais recentemente, graças à evolução da
fracassos e a falta de sorte são assegurados pelo Es- ciência, principalmente da neurociência e da ciên-
tado para um mundo em que tudo é cada vez mais cia da complexidade, que nos oferecem uma cos-
inseguro, para uma sociedade na qual investimen- mologia dotada de grande sutileza e profundidade,
to de tempo e de esforço no estabelecimento de e começamos a compreender nós mesmos e a cul-
uma segurança compartilhada já não parece valer tura em que estamos imersos. Ao envolver perda, a
a pena; quarto, que planejamento e pensamento a modernidade implica melancolia e luto – conceitos
longo prazo faliram, e não resta alternativa para novamente psicanalíticos. Neste quadro de referên-
indivíduos e organizações senão a definição de cias, acentua Wheeler,
interesses a curto prazo; quinto, que a respon-
sabilidade em resolver os problemas insolúveis […] a pós-modernidade é um código para a
dessa sociedade líquida cabe aos indivíduos, que modernidade, na medida em que essa melan-
a agora são “livre-escolhedores” e devem assumir a colia [que fora ensaiada com o romantismo]
total responsabilidade por suas escolhas. O autor coloca novamente em cena uma queixa cul-
está, definitivamente, descrevendo um outro admi- tural expressa sob os mais diferentes aspec-
rável mundo novo. Um mundo da insegurança e tos, mas com baixa intensidade, sob a forma
do medo, no qual não há nem guardas florestais, de uma melancolia punitiva e, mais recente-
nem jardineiros, apenas caçadores. Um mundo que mente, em uma tentativa de completo luto
ele não defende, nem critica. A sociedade é agora (1999, p. 8).
vista como um sistema de redes em vez de um sis-
tema de estruturas, o que, segundo ele, é inevitável Uma melancolia, eu acrescentaria, justificada
na modernidade. pelo retrocesso que modernidade neoliberal re-
Não é verdade. A análise não é apenas pessi- presentou.
mista e conservadora, mas definitivamente equivo-
cada. Desde quando, por exemplo, o planejamen-
to e o pensamento de longo prazo faliram? Nunca A desorientação pós-moderna
eles foram mais necessários. Não para planejar
tudo, como se tentou na União Soviética, mas para O otimismo renascido com o fim da Segunda
organizar os esforços de pesquisa científica e social Guerra Mundial durou pouco. A percepção do
Modernidade neoliberal  99

fracasso do socialismo já começara a aparecer filósofo, não era voltar-se para o pós-modernismo,
nos anos 1950, com a repressão da revolta em mas completar o projeto modernista.
Budapeste em 1956 e com o aniquilamento da Entretanto, a década de 1980 viveu uma pro-
Primavera de Praga, em 1968. A perda de dina- funda confusão que o pós-modernismo acentuava.
mismo da economia soviética ficou evidente nos A contrarrevolução neoliberal e o retrocesso inte-
anos de 1970. Com a queda do muro de Ber- lectual neoclássico desorientavam a todos. Con-
lim e o colapso da União Soviética, encerrou-se forme assinalaram Steven Best e Douglas Kellner,
o projeto comunista de 1917. Antes disto, já no nessa década e na seguinte,
final da década de 1970, enquanto grandes in-
telectuais liberais, como Isaiah Berlin, decreta- […] principalmente os jovens adotaram o dis-
vam o fim das grandes utopias e prenunciavam curso pós-moderno, com frequência de forma
o neoliberalismo, os filósofos pós-modernos de agressiva e extremada, renunciando à teoria e
esquerda, desorientados e sem esperanças, decre- à política modernas […] paradoxalmente, os
taram o fim das grandes narrativas. Irmanavam- discursos pós-modernos eram ao mesmo tem-
-se, assim, na descrença no progresso. A análise po parte da virada conservadora para o indivi-
clássica de Jean-François Lyotard, La condition dualismo, o empoderamento local, a rejeição
postmoderne (1979), inaugurou o pós-modernis- do Estado do Bem-Estar Social e uma maneira
mo. Dessa maneira os filósofos pós-modernistas de expressar oposição às teorias conservadoras
manifestavam sua decepção com o marxismo e, (1997, p. 11).
mais amplamente, com a modernidade. Partiam
do pressuposto de que o marxismo e o socialismo Havia no pós-modernismo uma necessária
teriam sido a manifestação mais avançada da mo- crítica à epistemologia positivista que dominara o
dernidade racionalista e que, portanto, não bas- mundo afirmando o primado da ciência sobre to-
tava criticá-los, era preciso também criticar o ca- das as coisas, mas essa crítica foi longe demais. Para
pitalismo e a modernidade que nasceram juntos David Harvey, “não podemos aspirar a nenhuma
com o marxismo e a proposta socialista. A partir representação unificada do mundo […] como a
da contribuição seminal de Michel Foucault, era representação e a ação são repressivas ou ilusórias,
preciso criticar o poder que estava em toda parte, o pragmatismo (do tipo de Dewey) se torna a úni-
ainda que não se tivesse uma alternativa a ele. A ca filosofia de ação possível” (1992, p. 55). Não
crítica volta a ter prioridade sobre a construção é essa, entretanto, a posição de John Dewey, mas
social e política. O pós-modernismo será destru- de seu discípulo David Rorty que, apesar de admi-
tivo. Para Bauman “é acima de qualquer outra rar profundamente seu mestre, acabou sendo víti-
coisa um estado de espírito que zomba de tudo, ma de um relativismo radical, pós-moderno,7 ao
que tudo solapa, que tudo dissolve, que é marca- contrário dos três grandes pensadores pragmáticos
do pela destrutividade”. (Charles Sanders Peirce, William James e Dewey),
Jürgen Habermas reagiu cedo às ideias pós- os quais eram filósofos históricos realistas. Para
-modernas. Para ele o projeto moderno do Ilumi- Dewey, por exemplo, a razão não é o órgão trans-
nismo não se completou. Foi o Iluminismo que, cendental suposto pelos filósofos idealistas, nem o
pela primeira vez, distinguiu com clareza as três elemento impotente dos relativistas:
esferas da razão – ciência, moral e artes – e seus
respectivos critérios normativos: verdade, justiça e […] a razão tem tarefa a cumprir, que liberta
beleza. “Entretanto”, assinalou Habermas, “o sécu- os homens da escravidão do passado, devida à
lo XX sombreou esse otimismo. A diferenciação da ignorância e enrijecimento do acidente trans-
ciência, da moral e das artes acabou por significar a formado em costume, e que projeta um futuro
autonomia de segmentos tratados por especialistas e melhor e ajuda os homens a concretizá-lo. E
sua separação da hermenêutica da vida quotidiana” sua atividade é sempre submetida à prova da
(1985, p. 9). A solução para o problema, segundo o experiência (Dewey, 1962, p. 108).
100  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 29 N° 84

Em outras palavras, a razão e a experiência mo mundo, onde os indivíduos, confusos senão


têm um compromisso com a verdade e com a perplexos diante da incrível variedade dos insumos
modernidade. informativos que recebem todos os dias, deixaram-
O pós-modernismo expressou a descrença e -se dominar por uma modernidade neoliberal. A
a falta de esperança que se tornaram dominantes recusa das grandes narrativas e das ideias e normas
depois do auge utópico que foi a Revolução Es- universais se tornaram parte da nova visão do mun-
tudantil de 1968 e do mal-estar experimentado do, assim como um individualismo feroz e uma in-
nos anos posteriores. Nesse processo, a ideologia segurança generalizada. O individualismo foi visto
pós-moderna identificou-se com o individualismo como única alternativa; os conceitos de emancipa-
radical que tomara conta das pessoas. Segundo ção e solidariedade tornam-se ideias fora do lugar.
Gilles Lipovetsky, trata-se de uma “explosão das Nesse momento, como sugere Frederic Jameson
aspirações de autonomia subjetiva em todas as ca- ([1982] 1985, pp. 111-125), o pós-modernismo
madas sociais, nas diversas categorias etárias e de assumiu a forma do pastiche: além de ser reflexo do
sexo. É assim que se impõe a figura de um indivi- “capitalismo multinacional e do consumo”, consti-
dualismo pós-moderno, desligado tanto dos ideais tuiu uma reação aos excessos da modernidade e se
coletivos quando do rigorismo educativo, fami- aproximou do neoconservadorismo.
liar, sexual” (1993, p. 316). Enquanto na moder- Terry Eagleton (1987, p. 19), citado por David
nidade do pós-guerra um novo otimismo e uma Harvey, resumiu a proposta do pós-modernismo
nova crença na racionalidade prevaleceram, em como o fim das grandes narrativas, das tentativas de
um momento em que as grandes figuras do mo- entender a história de forma mais ampla. É possível
dernismo cultural do início do século já estavam compreender a frustração de Eagleton a esse respei-
consagradas, reconstruindo o mundo e a razão to, mas é evidente que a alternativa não resvala em
de maneira inovadora e crítica, na modernidade pensar o mundo como a soma de meros jogos de
dos críticos pós-modernos a crença na razão e na linguagem. O pós-modernismo atraiu a esquerda
prática volta a se perder.8 Por isso Boaventura de porque era uma forma de se criticar o capitalismo
Souza Santos, que também foi crítico do positivis- com a mesma força que a Escola de Frankfurt havia
mo, rejeitou o pós-modernismo social que, afinal, feito um pouco antes. Mas ela não pode se alimen-
invalidava a própria crítica ao torná-la relativa: “o tar apenas da crítica, nem pretender que essa crítica
pós-modernismo nessa acepção incluía na crítica possa ser feita sem se valer de critérios éticos e episte-
da modernidade a própria ideia do pensamento mológicos razoavelmente claros. Ademais, a esquer-
crítico que ela tinha inaugurado” (2006, p. 24). da precisa de um horizonte a se pautar, de grandes
Assim, quando o pós-modernismo assume caráter narrativas que nos permitam vislumbrá-lo, as quais,
filosófico, assistimos a uma nova onda de relativis- entretanto, devem ser tomadas com um grão de sal –
mo radical que, por fim, privou a sociedade de cri- jamais devem ser levadas ao pé da letra. Precisamos
térios críticos. Em contrapartida, quando assume delas para entender a sociedade em que vivemos –
caráter sociológico, sobressai a ideia multicultura- e não é à toa que os pensadores mais fecundos são
lista – conceito que expressa demandas legítimas inevitavelmente orientados por uma visão do mun-
das culturas minoritárias ou subordinadas, mas do –, mas não devemos transformá-las em verdade
entra em conflito com o compromisso histórico absoluta. Sua verdade é necessariamente provisória.
do Estado-nação de integração nacional e se revela Venho trabalhando no que se pode chamar de “gran-
incapaz de pensar tal contradição de maneira dia- de narrativa do capitalismo e da modernidade”, na
lética para chegar a soluções que assegurem razoa- qual as duas classes dominantes (classe capitalista e
velmente os dois objetivos. classe profissional) e a classe trabalhadora seguem ló-
Ficou então claro, como assinala Stuart Hall gicas diferentes: do capital/mercado, da organização/
(1996), o conflito entre as aspirações de raciona- planejamento e da democracia/realização individual
lidade e universalidade do mundo moderno e a solidária. O embate e a cooperação entre essas cate-
crescente fragmentação e complexidade desse mes- gorias resultam na construção da nação, do Estado
Modernidade neoliberal  101

e de um sistema político global. Nesse processo, a (1980), e ficou absolutamente explícito na conferên-
crítica, sobretudo aquela que incide sobre questões cia que pronunciou em São Paulo, “Relativismo: en-
centrais de nossa sociedade, como o poder, o capita- contrar e fabricar” (1994).
lismo e a modernidade neoliberal, é imprescindível, 8 Refiro-me a artistas plásticos, músicos e poetas como
mas só ganha força quando abre espaço para a pro- Picasso, Matisse, Kandinsky, Oscar Kirchner, Moore,
posta, para o projeto, para a utopia. Giacometti, Joyce, Fernando Pessoa, Carlos Drum-
mond de Andrade, Lloyd Wright, Niemeyer, Stra-
vinsky, Alban Berg, entre outros.

Notas

1 Conforme Lucáks (1979, p. 77), “a profunda ver- Bibliografia


dade enunciada por Heráclito, segundo a qual nin-
guém pode se banhar duas vezes no mesmo rio, fun- Bauman, Zygmunt. (1992), Intimations of post-
da-se sobre o ininterrupto movimento da matéria, modernity. Londres, Routledge.
sobre o fato ontológico básico de que matéria e mo- _______. (2000), Liquid modernity. Cambridge,
vimento representam dois lados da mesma relação Polity Press.
de substancialidade”. _______. (2007), Liquid times: living in the age
2 As guerras da antiguidade visavam o saque, ou a re- of uncertainty. Cambridge, Polity Press.
dução do povo vencido à escravidão, ou à condição Beck, Ulrich. ([1986] 1992), Risk society. Lon-
de colônia que devia pagar impostos ao vencedor;
dres, Sage.
as guerras durante o período de formação dos Es-
tados-nação modernos visavam definir o território
_______. (1995), “Réplicas e críticas”, in Anthony
nacional; a Primeira e a Segunda Guerra Mundial Giddens, Ulrich Beck e Scott Lash, Moderni-
não tinham qualquer objetivo que pudesse ser con- zação reflexiva. São Paulo, Editora da Unesp.
siderado racional. _______. (1998), Democracies without enemies.
3 Entendo como uma restrição econômica ou política, Cambridge, Polity Press.
uma restrição que, dada a estrutura econômica e social Best, Steven & Kellner, Douglas. (1997), The post-
existente, se não for observada, implicará mau funcio- modern turn. Nova York, The Guilford Press.
namento da sociedade, ao passo que uma restrição de Dewey, John. (1962), A filosofia em reconstru-
hegemonia, se não for observada, não atenderá apenas ção. São Paulo, Companhia Editora Nacional
os interesses da coalizão de classes hegemônica (orig. em inglês 1919).
4 Alain Renaut (1999, p. 20), por exemplo, afirma que Domingues, José Maurício. (2002), Interpre-
“a presente revitalização da filosofia política não deixa tando a modernidade: imaginário e instituições.
de estar relacionada com, senão uma crise, o refluxo Rio de Janeiro, Editora FGV.
das ciências sociais. Em relação aos anos de 1960, Eagleton, Terry (1987), “Awakening from
uma certa sociologia perdeu uma parte de sua visão
modernity”. Times Literary Supplement, 20
imperialista herdada de Auguste Comte”. Esta é uma
boa tese quando se quer criticar o cientificismo das
fev. 1987.
ciências sociais, mas é enviesada quando coloca no Fukuyama, Francis. (1989), “The end of his-
mesmo cesto as pequenas pesquisas “científicas” e a tory?”. The National Interest, 56, verão.
grande teoria social de um Marx, um Weber, ou de Giddens, Anthony. (1990), The consequences of
um Wright Mills. modernity. Cambridge, Polity Press.
5 Para ele a história se divide em uma pré-modernidade, _______. (1998), “Risk society: the context of
a modernidade ou sociedade industrial, e a moderni- British politics”, in Jane Franklin (org.), The
dade reflexiva ou de risco. politics of risk society, Cambridge, Polity Press,
6 Devo essa expressão, “coordenação complexa”, a pp. 23-34.
Gabriel Cohn. Giddens, Anthony; Beck, Ulrich & Lash, Scott,
7 O caráter radical do relativismo de Richard Rorty está Modernização reflexiva. São Paulo, Editora da
presente em seu Philosophy and the mirror of nature Unesp (orig. em inglês 1994).
102  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 29 N° 84

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RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS  205

Modernidade neoliberal NEOLIBERAL MODERNITY ModernitÉ nÉolibérale

Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Carlos Bresser-Pereira

Palavras-chave: Modernidade; Pós-mo- Keywords: Modernity; Postmodernity; Mots-clés: Modernité; Postmodernité;


dernidade; Neoliberalismo; Sociologia; Neoliberalism; Sociology; Social Theory. Néolibéralisme; Sociologie; Théorie
Teoria social. Sociale
This paper surveys the recent literature
Este trabalho analisa a literatura recente on modernity and postmodernity, and Cet article analyse la littérature récente
sobre modernidade e pós-modernidade, relates it with the neoliberal ideology sur la modernité et la postmodernité et
relacionando-a com a ideologia neoli- that for thirty years was dominant in the la compare à l’idéologie néolibérale qui,
beral que por trinta anos foi dominante world. In relation to modernity, it claims pendant 30 ans, a été celle dominante.
no mundo. Em relação à modernidade that major sociologists who analyzed En ce qui concerne la modernité néoli-
neoliberal, mostra que a maioria dos neoliberal modernity failed to acknowl- bérale, l’auteur soutient que la plupart
notáveis sociólogos que a analisaram e edge that it was a reactionary and, conse- des remarquables sociologues qui l’ont
criticaram não compreenderam que se quently, a transitory form of modernity. analysé et critiqué n’ont pas compris qu’il
tratava de uma modernidade reacioná- In relation to postmodernity, it criticizes s’agissait d’une modernité réactionnaire
ria e, em consequência, transitória. Em its excessive relativism and pessimism, as et, en conséquence, transitoire. En ce
relação a pós-modernidade, o artigo faz well as its rejection of the great narratives qui concerne la postmodernité, l’article
uma crítica a seu excessivo relativismo e and of the possibility of progress. The pa- critique son excès de pessimisme et de
pessimismo, como também sua rejeição per acknowledges that society turned to relativisme, ainsi que son rejet des grands
das grandes narrativas e da possibilidade be increasingly complex, but emphasizes discours et de la possibilité de progrès.
de progresso. O trabalho reconhece que that this problem is coped with an equal- L’étude reconnaît que la société est deve-
a sociedade se tornou progressivamente ly complex social coordination system in nue davantage complexe, mais souligne
complexa, porém enfatiza que este pro- which informal and formal regulation are que ce problème est donné par une coor-
blema é enfrentado por um sistema co- intertwined. dination sociale également complexe
ordenação social igualmente complexo, dans laquelle les réglementations for-
onde a regulação formal e informal estão melle et informelle sont interconnectées.
interligadas.

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