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O corpo da palavra não é fixo deixa-se tocar pelo tempo e seus espaços

O corpo da palavra não é fixo


deixa-se tocar pelo tempo e seus espaços

I sabel Setti

M
ylene Pacheco morreu há poucos meses. alunos mesmo quando formados, o orgulho
A beleza imponente das vozes trabalha- quando suas vozes ganhavam projeção e se dis-
das por ela nos deixou antes ou perma- tanciavam da voz banalizada e coloquial contra
nece como eco distante, referência de a qual ela dedicava seus dias.
qualidade que ainda não encontrou cor- Quando a conheci, no final da década de
po de igual grandeza. 1970, já se havia criado um vácuo entre as qua-
Compartilho hoje com Mônica Monte- lidades maduras e indiscutíveis de seu estilo for-
negro o lugar que Mylene honrou por mais de jado em anos de estudo, trabalho e certezas e as
20 anos na Escola de Arte Dramática. A notícia necessidades ainda sem definição, ainda gerado-
de sua morte agitou em meu espírito questões ras de mais perguntas que respostas, de um tea-
presentes desde que, tendo sido sua aluna por tro faminto por naturalidade e conexões, na
dois anos, concluí minha formação nesta mes- ação e na subjetividade, mais claras entre ator,
ma escola em 1981, e comecei a dar aulas pri- personagem e espetáculo.
meiro de interpretação, depois de voz. Essas Vácuo entre a impostação que havia ser-
questões ganharam corpo, urgência e novos vido a deuses e heróis e a voz natural, cotidiana,
contornos a partir de 2000, ano em que assumi do cidadão que agora queria ocupar a cena. Esse
a responsabilidade de um trabalho que, desde cidadão despojado, avesso do herói, do tama-
Maria José de Carvalho, professora da EAD ain- nho de suas incertezas, penetrou a cena buscan-
da antes de Mylene, foi traço marcante na de- do uma relação de intimidade, consigo mesmo
finição de identidade da escola. e com o seu público, na expectativa de compre-
Tudo em Mylene era imponente. Sua voz ensão do significado de suas ações em um mun-
maravilhosa, fruto de técnica precisa, sua com- do muito próximo.
petência, seu rigor, suas exigências, sua figura, As grandes mudanças que se sucediam no
sua maquiagem, suas sobrancelhas, seus brincos, modo de ocupação dos palcos aumentavam a
as cores com que se vestia, a intensidade e cons- distância entre a preparação vocal como a co-
tância de seu interesse pelos trabalhos de seus nhecíamos e as necessidades da nova cena.

Isabel Setti é atriz e professora da Escola de Arte Dramática da USP.

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O Arena havia alterado a relação do ator que pudéssemos produzir uma linguagem viva
com o espaço, com a palavra, com a apropria- e, com ela, novo jeito de habitar o mundo. Pre-
ção dos significados, com o público. O Oficina cisávamos aceitar a realidade tão poderosamen-
criara novos paradigmas, desmontando estrutu- te múltipla, tão brutalmente difícil de ser com-
ras, abrindo o espaço do palco para a manifes- preendida. Era preciso buscar novo sentido para
tação das urgências de seus atores cidadãos cria- a palavra transformação. As vísceras expostas de
dores. Antunes varrera do tablado tudo o que um Artaud, mais imaginado que conhecido,
não era corporificado por seu ator e renomeava pareciam a única linguagem razoável.
a função e o alcance de uma poética que se pro- Eu sentia grande admiração pela potên-
duzia no corpo a corpo diretor/ator, fazendo cia, pela clareza, pela bela ressonância das vozes
nascer sua própria impostação, fruto das expe- de Mylene, mas experimentava desconforto
riências que realizava com jovens atores. com a falta de naturalidade daquela expressão,
Tínhamos sido tocados pelas notícias das com a padronização da entonação e, princi-
vivências libertadoras do Living Theatre. De palmente, com a ausência de contato daquela
muito longe, era ainda tudo muito longe, escu- técnica com a experiência da coisa dita. A abor-
távamos o eco das experiências de Grotowski e dagem dos textos clássicos, com os quais encor-
seus atores do Teatro Laboratório, capazes de pávamos nossas vozes, criava antes vazios de sig-
grande potência expressiva em suas experiên- nificação do que ação vocal efetiva, tanto em
cias para provocar o “renascimento” do ator e nosso íntimo como na relação com o público.
potencializar o “encontro” com seu público. Estou certa de que este desajuste, este des-
Nos toca-discos, desde o final dos anos conforto, não era só meu. O vazio entre nossa
sessenta, a Tropicália explodia irreversivelmente formação vocal e as novas exigências estéticas
a idéia de pureza de qualquer linguagem, anun- perdurou, pelo menos, por uma década, talvez
ciava nossa completa mestiçagem, retomava o mais. Foi ao longo da década de 1990 que co-
exercício da antropofagia e levava ao palco cor- meçaram a ganhar corpo social, entre nós, as ex-
pos em si mesmos e por si mesmos musicais. periências em torno de uma voz que se pensa
Vivi, com minha geração, quase um de- orgânica, identificada com o indivíduo que,
sinteresse pelo trabalho com a voz, como se ele nela, se reconhece e se manifesta. Essa voz, em
representasse um peso, uma ligação ao passado, conexão com a experiência do presente, está co-
uma espécie de fardo. Trabalhar a voz confun- meçando a se fazer ouvir, articulando-se deva-
dia-se demasiadamente com a idéia de impos- gar, amadurecendo, conquistando precisão, es-
tação. Palavra que parecia conter uma atitude paços de ressonância e projeção a partir da
em que não nos reconhecíamos mais. Perce- experiência de integração do sujeito expressivo
bíamos o miúdo alcance de nossas vozes, mas a si mesmo, aos novos espaços e aos diferentes
precisávamos dar passagem a uma nova sonori- pactos que estabelece com seu público.
dade. Que apenas intuíamos. Nós a desejáva- As últimas décadas testemunharam trans-
mos comprometida com as urgências e com o formações profundas no pensamento sobre o
corpo novo que se estava construindo. corpo. De sua preparação, objetivando o apren-
Líamos Artaud. E experimentávamos o dizado de seqüências codificadas de movi-
fascínio pelo dilaceramento da palavra e pela mentos, para a construção de um corpo dispo-
explosão dos significados. Foi este, aliás, um nível, plástico, articulado, potente para a ex-
tempo de desmoronamento dos sonhos e práti- pressão do sujeito que dançava, enraizado em
cas mais queridos pelos que “desejavam mudar seu universo afetivo e cultural, foram incontá-
o mundo”. Todas as palavras – e eram muitas – veis as contribuições.
com que inventávamos um mundo livre e belo O conhecimento científico, os conceitos
e em paz precisavam mesmo ser rasgadas para e práticas da fisioterapia e da neurologia, a cons-

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ciência da relação entre ossos, músculos e dinâ- de de reagir, com abandono e inteireza, aos jo-
mica das vísceras, tudo isso invadiu as salas de gos e projetos cênicos. O improvável, os con-
dança e os estudos sobre o corpo cênico. trastes, a falha.
A aproximação das filosofias e práticas A música também vinha popularizan-
orientais ampliou nossa percepção do indivíduo do experiências radicais de desconstrução dos
como ser íntegro, conectado a seu centro vital conceitos tonais, aproximando-se de outros
tanto quanto às forças, não mais só políticas, modos, novos ou antiqüíssimos, de pensar-se,
que atuam sobre ele. de produzir-se.
A clareza de que a própria ocupação do A voz, a palavra falada, vivia seu momen-
espaço é gesto tão expressivo quanto político to de introspecção, de introversão, acuada, com
aprofundou a responsabilidade da atuação que, um lugar secundário, de coadjuvante nas expe-
com a assimilação das novas dinâmicas, passa a riências profundas, nos largos passos com que o
resultar do compromisso de todos os aspectos corpo ia derrubando suas paredes.
do ser do intérprete no mundo. Sonorizávamos dinâmicas, soávamos, tí-
O próprio conceito de corpo deixou de mida ou visceralmente, nossas paixões, mas,
ser o de um instrumento do sujeito, compreen- pobres de técnicas que sustentassem a ousadia
dendo-se, enfim, como sujeito ele próprio. da experiência, ou ficávamos vocalmente aquém
Senão, quem é o sujeito que dele se diferencia? dela, portanto sem integridade expressiva, ou
Quando Kazuo Ono esteve aqui pela pri- feríamos sem piedade nossas pregas vocais e os
meira vez, compreendemos a eloqüência da ação tímpanos e paciência dos espectadores.
do tempo criando o corpo expressivo. E vimos, Mylene dera forma à voz dos atores. Não
perplexos, como nossa própria idéia de corpo formara professores de voz. Não era sua função
expressivo era limitada e opressiva. Em Kazuo, nem seu objetivo. Os cursos de fonoaudiologia
nem o corpo ideal do bailarino, nem o bailari- dedicavam-se às patologias do aparelho fonador.
no a serviço de uma composição organizada fora No geral, não trabalhavam a estética da voz e,
dele, nem mesmo o bailarino e sua interiorida- principalmente, desconheciam seu múltiplo
de como tema. Mas experiência em tempo pre- universo poético.
sente, silêncio expressivo, entrelaçamento do Os diretores das escolas de teatro, que em
corpo ao tempo e aos vazios, a vida em proces- São Paulo se multiplicavam, tinham clareza so-
so no instante mesmo da comunicação. A his- bre a necessidade de investir sobre a voz de seus
tória do homem e de sua gente expressa nas alunos, mas não sabiam onde encontrar profes-
marcas de seu corpo revelado. A ação do tempo sores que pudessem corresponder às exigências
e do espaço sobre o indivíduo torna-se, ela pró- deste trabalho, fosse com o olhar representado
pria, tema, expressão, significado. O bailarino por Mylene Pacheco, fosse pelas fonoaudiólogas
disponível para deixar-se atuar por forças supe- recém-formadas que apenas começavam a se
riores a ele e a seus comandos. aproximar do teatro, fosse por alunos, recém-
E, então, Pina Bausch. Trazendo a primei- formados pelas escolas de teatro mais consisten-
ro plano as características muito pessoais, idios- tes, que procuravam identificar as delicadas co-
sincráticas, a história, a cultura e, sobretudo, a nexões da voz com idéias, afetos e músculos.
experiência dos sentidos de cada um de seus bai- Foi nesse contexto que comecei a dar au-
larinos. O tecido expressivo produzindo-se na las de interpretação, meu foco de interesse.
investigação sobre a vida que nutre e sustenta a O problema apresentou-se de imediato e crista-
ação cênica. A palavra constituindo-se no ins- lino: os alunos correspondiam aos estímulos
tante mesmo da descoberta, misturando-se ao com intensidade, graça e, até, visceralidade,
ato de concepção da cena. E a qualidade de in- sempre nos aspectos a que nos habituamos a
terpretação intimamente associada à capacida- chamar de corporais. Quando desejavam ou

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eram solicitados a manifestar-se vocalmente, tro, dança, música, artes plásticas e o que mais
abria-se uma fissura que desintegrava seu cor- colabore para efetivar o ato de comunicação
po expressivo. perdem definição e se deixam transformar pela
Essa fissura passou a ser meu desafio. fusão de diferentes linguagens e pela experiên-
A voz do aluno funcionava bem nos exercícios cia da performance.
fonético/musculares, a consciência de suas pos- Momento em que a ciência reconhece a
sibilidades vocais expandia-se, o interesse pelas inteligência das emoções e dos sentidos.
dinâmicas de vibração, ressonância, projeção e Momento em que a própria casa do fazer
ocupação do espaço amadurecia. Experiências teatral, onde antes a voz ressoava, vê cair suas
interessantes eram realizadas, acordando uma paredes e passa a confundir-se com a própria
nova sensibilidade para o universo sonoro. Des- cidade.
cobertas, por vezes emocionadas, se sucediam.
A voz revelava sua potência transformadora.
Mas, no momento de avançar da inves- Da voz do sujeito para o sujeito da voz:
tigação para a cena, lá estava a fissura. Ou o alu- a voz como rreverberação
everberação da vontade
no falava baixinho, pequeno, no esforço de
aproximar o texto de si mesmo – retirando-se, Estávamos habituados a trabalhar a voz do ator
neste ato, do espaço que deveria fazer vibrar – como um aspecto de seu ser, para potencializa-
ou a fala parecia pertencer a outra pessoa, em la e abrir-lhe possibilidades expressivas. Hoje
completa desconexão com a experiência de apa- temos a compreensão de que é o próprio sujei-
rente plenitude que eu presenciara quando o to expressivo que, ao manifestar-se, está se
foco não estava na palavra. constituindo como sujeito no mundo. O foco,
Assim, sem haver feito conscientemente portanto, passa a ser sua ação vocal, capaz de
esta escolha, tornei-me professora de voz. Tal- criar o espaço poético e estabelecer a dinâmica
vez as perguntas que eu me fazia naquele mo- das relações.
mento fossem perguntas necessárias, urgentes. Nessa interação do indivíduo/ator com a
O fato é que, de início, eu tinha muito pouco palavra, com seu interlocutor e com o espaço,
além destas perguntas e, ainda assim, via cres- potencializar a voz passa a identificar-se com o
cer um interesse pelas experiências que as au- exercício de apropriação de significados, com a
las ofereciam. responsabilidade daquilo que é dito, com a vi-
Compreendi que era preciso reencontrar talidade da presença do intérprete no espaço que
os princípios elementares do pensamento de se modifica por sua ação. Não é a fala do sujei-
meus mestres como a dança continuava a fazer to que nos interessa aqui, mas a ação que esta
com os princípios do balé clássico. Perceber fala desencadeia, o corpo, também sonoro, que
como reagiam no contato com as múltiplas se estrutura para falar e como se constitui o su-
desconstruções e ousadias expressivas que ga- jeito enquanto fala.
nhavam a cena e identificar que novos objetivos A clareza do que quer ser dito, as razões
pediam licença para direcionar as investigações. que o ator tem para dizê-lo e o pacto que esta-
Na prática cotidiana das aulas ou salas de belece com seu público no momento da fala são
ensaio, identifiquei importantes deslocamentos os maiores pilares de sustentação da voz. Assim,
de foco que, em tentativas, erros, acertos, repe- a utilização dos instrumentos e condutas técnicas
tições, foram definindo uma atitude nos proce- tem por finalidade expandir o alcance da ação
dimentos de investigação vocal que experimen- do indivíduo cuja voz modificará a si mesmo,
to agora esboçar e que, talvez, venha a ser útil definirá o espaço que ocupa, testemunhará seu
para a organização ao menos de nossas pergun- posicionamento no mundo e efetivará pactos
tas, no momento em que os limites entre tea- claros, e sempre renovados, com o espectador.

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Não se trata, portanto, de forjar uma voz relações e das estruturas de poder tão fortemen-
para um sujeito segundo um padrão e uma ex- te expressas na fala?
pectativa exterior ou anterior a ele, mas em en-
riquecer, com procedimentos de investigação
também técnicos, a construção da identidade, Da máscara da voz impostada para a
também vocal, do mesmo. multiplicidade de depoimentos

“...pois não há nada que altere tanto as quali- Uma voz impostada pode constituir uma más-
dades materiais da voz como possuir um con- cara de alta definição, desobrigando o sujeito do
teúdo de pensamento: isso influi na sonori- contato de nervos expostos com seu público.
dade dos ditongos e na energia das labiais.” Em contraponto, a dilatação de uma presença
natural e humana pode ganhar altura poética e
Essas palavras de Proust em À Sombra das efetivar fortes laços com o espectador.
Raparigas em Flor dão colorido a uma percep- Há, quase sempre, uma confusão entre os
ção já madura em sala de aula. Sempre que o hábitos de fala de um ator e a idéia que ele faz
gesto vocal se produz como reverberação da de sua voz, ecoando, muitas vezes, as impres-
vontade daquele que o realiza, manifestando a sões de seu círculo de relações. A voz de alguém
qualidade de presença deste homem no mun- é uma unidade complexa, um universo em que
do, as possíveis limitações técnicas se resolvem interagem tanto as manifestações do presente
com consciência e músculos. como as múltiplas e potenciais ampliações em
A clareza de objetivos organiza a qualida- extensão, timbres, intensidades, volumes e ex-
de da presença, em corpo, voz e movimento, perimentações poéticas de que aquela pessoa é
para a eficácia da ação que se quer realizar. capaz. A voz é testemunho do passado tanto
Por outro lado, se esta clareza, se esta von- quanto indicador do porvir. Ela é sua história,
tade, se esta apropriação de sentido não ocorre, sua manifestação presente e seu potencial. A rea-
nem a técnica mais elaborada poderá ocupar, lidade da voz é seu movimento.
com integridade, seu lugar. Poderá mascarar e, Parece-me necessário que, antes de tomar
neste ato, esconder, silenciar ainda mais o ho- para si modelos, o ator adquira consciência da
mem por trás da máscara. natureza de sua expressão e de seus hábitos de
Portanto, ao invés de eleger uma forma fala, analisando-os no contexto que lhes deu
para dizer algo, o ator provocará a ação vocal, origem. Compreendendo as atitudes, a história,
com todas as suas surpresas, enquanto se ocupa a geografia, os ritmos, os conteúdos afetivos, a
com o que tem a dizer, com o que acontece em riqueza expressiva que estes hábitos traduzem.
si quando diz e com as reverberações, no outro, E, principalmente, os vínculos que sua fala ex-
da ação desencadeada por sua palavra. Cada ob- pressa e revela. Assim, ele perceberá que está tra-
jetivo constrói um corpo, também vocal, para balhando sobre uma herança e que suas esco-
atingir sua meta. lhas são mais que vocais.
Se, ao constituir realidades poéticas, a fala Por outro lado, enquanto os velhos hábi-
do ator objetiva criar laços, configurar relações, tos vão cedendo lugar à viva plasticidade, um for-
testemunhar acontecimentos, desencadear expe- te processo de auto-conhecimento é desencade-
riências em seus espectadores, como não consi- ado e a voz potencial do ator vai sendo revelada.
derar, então, um treinamento que privilegie e Não se trata de adquirir novos hábitos ou
atue sobre sua vontade, sobre suas responsabili- de “aprender” uma voz, mas de liberta-la de
dades, sobre as dinâmicas corpo/sonoras que se tudo que a fixa, mecaniza, obscurece, escraviza.
constituem no presente da ação, sobre sua qua- Trata-se de ampliar a potencialidade téc-
lidade de presença, sobre o equacionamento das nica pela investigação que não dissocia expe-

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riência muscular dos afetos e das idéias. Assim, nexão com o poder encantatório da palavra, se
o campo, antes ocupado pela impostação, ali- vamos para o palco com o texto decorado ou
mentar-se-á agora da dilatação do próprio su- levamos o papel nas mãos ao ensaiar a cena, cada
jeito expressivo. A expansão de sua presença e o ponto de partida inaugura um plano de investi-
consequente alcance de sua voz serão fruto da gação que produzirá diferentes relações entre o
multiplicidade de experiências de contato do sujeito que fala, aquilo que ele diz e a experiên-
ator com suas vozes e suas poéticas ou, ainda, cia do espectador.
com as atitudes vocais das figuras humanas so- A separação das disciplinas, especialmen-
bre quem ele fará seu depoimento. te Corpo, Voz e Interpretação, se nos ajuda a
O ator fará contato consigo mesmo, e focar aspectos da investigação e organiza proce-
com sua gente, pela interioridade, pela expe- dimentos, por outro lado cria forte dificuldade
riência, pela observação, pelo jogo, pela imagi- para o aluno de integrar, num todo dinâmico, a
nação, pela fantasia. Deste contato, resultará seu riqueza e complexidade de suas experiências.
testemunho. Sua fala que é única. Na multipli- Essa separação colabora para a permanência da
cidade que a constitui. idéia de que há um corpo que produz uma voz
O poder de ressonância e projeção da voz e não um corpo que, em sua integridade, é tam-
deste ator integrado a si mesmo resultará, por- bém sonoro. O conjunto de ossos, tecidos, ca-
tanto, não de impostação conforme determina- vidades, cartilagens e músculos que produzem
do modelo, mas de sua capacitação para respon- o som está em plena conexão com os outros os-
der íntegra e criativamente aos estímulos, tanto sos, tecidos, cavidades, cartilagens e músculos
no aprendizado de diferentes técnicas como no que precisam atuar solidariamente na produção
contato com sua própria interioridade. Assim, deste som. Há sempre um processo de transfor-
não se perderá, na dinâmica de ocupação do es- mações que se realizam em cadeia até alcançar a
paço, a riqueza de seu testemunho pessoal. totalidade da ação expressiva.
Esse processo pode ser acionado, por
exemplo, por dinâmicas de estruturação óssea,
Voz é corpo: mas os procedimentos ditos vocais são, eles tam-
da voz no corpo para o corpo da voz bém, estruturadores do corpo e podem dar iní-
cio à organização em cadeia que, naturalmente,
A técnica não é neutra. Não há inocência nas só se realiza quando o princípio de investigação
escolhas que determinam os procedimentos de é o comprometimento da totalidade do sujei-
criação de uma obra. E isto é também verdade to expressivo.
quando se trata de ossos ou músculos. A arte Assim, as ações vocais não serão produ-
do fazer, a eleição de um conjunto de procedi- zidas pelo esforço de um grupo de músculos,
mentos, o modo de estruturar, aquecer e alon- o que tende a sobrecarregar a sonoridade. Sua
gar o corpo, o caminho para abrir os espaços da intensidade expressiva resultará de uma reorga-
sonoridade, a qualidade sonora perseguida, o nização integral do ator para a consecução de
modo de habitar o espaço, a especificidade do seu objetivo.
engajamento solicitado para a realização dos tra- Somos ainda demasiadamente reféns de
balhos, a relação entre todos os parceiros ou en- um conceito de corpo como parte visível, car-
tre parceiros e condutores do processo, todas nal, muscular e óssea da pessoa. Mas já sabemos
estas direções já contém em si a totalidade do que a vontade que anima o sujeito, a condição
fenômeno teatral. de seu espírito, suas emanações, o arfar de sua
Se construímos atmosferas buscando respiração, o pulso e o tônus de sua fala, o modo
tessituras poéticas, se partimos da multiplicida- como integra o espaço e o habita, o objetivo de
de de significados, se experimentamos uma co- suas ações, são também corpo. A presença e as

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reações que a presença desperta dizem respeito Se, como espectador, é dela que me ocu-
a uma grandeza que é fruto da interação de to- po, então o ato não se deu, a comunicação não
dos estes elementos. aconteceu.
Clareza de objetivos, consciência da estru- A voz está a serviço do ato que se quer
tura óssea, correspondência entre musculatura compartilhar. Daquilo que se modifica, naque-
externa e interna, disponibilidade das vísceras, le que fala e naquele que escuta, pela ação que a
exploração das cavidades, alento, fluxos de ener- fala contém. A voz é o tecido, a trama do espa-
gia, tônus e foco funcionam como uma orques- ço poético a ser compartilhado.
tra que dilata o campo expressivo do ator, dan- Ela é fruto da totalidade do ser em escu-
do realidade à experiência poética. E o corpo ta. Do estado pleno de atenção. De nervos ex-
da voz age. postos, disponíveis para reagir aos estímulos em
Para ampliar, otimizar as características tempo presente.
vocais de um desempenho, as qualidades perse- Criou-se um campo de ação entre todos
guidas resultarão de um corpo que se reorgani- os presentes? A fala materializou-se em ação vo-
za na mesma medida em que produz seu duplo cal? O foco migrou daquele que fala para o
sonoro. Este, por sua vez, revela o conjunto de acontecimento que, fazendo vibrar o espaço,
ações que o torna possível. contém e modifica a todos?
O corpo sonoro, ao projetar-se no espa- Então a voz cumpriu o seu papel.
ço, já não se pode diferenciar da estrutura que o
sustenta. As emanações produzidas, agindo sobre
o espectador, dão testemunho desta totalidade. A experiência da palavra

Apoios, dilatação dos espaços internos, tridi-


A poesia está no “entr
“entree ” mensionalidade.
Fluxos de energia, direcionamento do
A linguagem se realiza no momento em que o sopro, sonoridade das vogais, precisão das
“entre” se constitui: este campo, esta dimensão consoantes.
que se abre entre aquele que fala e aquele que A boca, seus espaços, sua mobilidade.
escuta, entre aquele que propõe as imagens e Flexibilidade e plasticidade da articulação.
aquele que as deixa ecoar em si produzindo sig- Apropriação da palavra e das idéias.
nificados. O espaço poético não pertence a ne- Ressonância. Assertividade.
nhum dos jogadores. Instaura-se. É energia que Presença: uma espacialidade dentro de
conecta. É compartilhamento. outra espacialidade; uma espacialidade gerando
No teatro, lugar por excelência de cons- e conectando espacialidades.
trução e experimentação de linguagens, nada Identificação do sujeito que fala à coisa
está circunscrito ao indivíduo. A dinâmica da dita. Necessidade. Urgência.
comunicação acontece ao criar-se o campo ati- Escuta ativa: maturar a palavra no silên-
vo entre dois atuadores, entre atuador e público cio. Deixar-se tocar por seu corpo vivo. Instinto.
ou entre atuadores e público. São composições Relação do intérprete com as poéticas de
diferentes os “entres” que estas relações criam, seu mundo. Testemunho.
mas trata-se sempre da dimensão poética ins-
taurando-se e multiplicando significados entre Aprender a ouvir.
um e outro, entre uns e outros. Dar-se a conhecer.
A voz, portanto, não é em si: “Como es- Vocalizar a experiência de ocupação
tava a minha voz?”; “O que você achou da mi- da polis.
nha voz?”.

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