Na primeira metade do século XVIII, o kabaka Mawanda, rei do Buganda, tentou estender seu poder as ricas regioes situadas a Leste da zona central de seu reino. Empreendeu uma grande campanha militar e imediatamente obteve algum sucesso, colocando a seguir um de seus generais a frente da regiao de Kyaggwe para submete- la ao governo de seu reino. Contudo, o governador de Kyaggwe encontrou alguns focos de resistencia. Durante o mandato de seus sucessores, diversas áreas caíram sob a influencia do Bunyoro, Estado vizinho situado a Noroeste do Buganda, cujo acesso a imensa floresta do Mabira, em Kyaggwe, foi assim cortado. No final do século XVIII, o território do Mabira, situado a menos de 45 quilômetros a Leste do centro da regiao ganda, tornara- se foco de concentraçao das forças de oposiçao aos monarcas do Buganda, lugar de exílio e refúgio. Para muitos súditos do reino e estrangeiros, os meandros obscuros do Mabira constituíam a promessa de uma inversao da situaçao. No final do século XVIII, Kakungulu fugiu dos domínios de seu pai, o rei ganda Semakokiro, sobrinho- bisneto de Mawanda. Tendo conseguido refúgio e apoio no Mabira, Kakungulu criou, com ajuda de seus partidários, toda uma rede de alianças com diversos Estados fronteiriços do Buganda; a seguir, lançou uma série de ataques para conquistar o trono de seu pai. Kakungulu nunca conseguiu apoderar- se do trono, mas suas atividades contribuíram para o aumento da agitaçao em torno dos mais antigos territórios governados pelo Buganda; insti- Povos e Estados da regiao dos Grandes Lagos David W. Cohen 318 África do século XIX a década de 1880 garam os chefes ganda a tomar medidas punitivas e a reunir sob sua autoridade as áreas de oposiçao do Leste e do Oeste; suas atividades talvez tenham, ainda, exacerbado a violencia das relaçoes entre o Buganda e os Estados vizinhos. Kakungulu nao foi o primeiro a tentar transformar um grupo de refugiados no Mabira em força insurgente. De fato, ao recorrer ao Mabira, só estava repetindo uma página do livro de táticas de seu próprio pai, Semakokiro. Cerca de trinta ou quarenta anos antes, Semakokiro tentara recuperar sua posiçao no Mabira, onde soubera obter um poderoso apoio. Seu exílio durara muito tempo. Com o distanciamento proporcionado pelo tempo, esse lugar do Mabira onde Semakokiro organizou seu exílio nos parece ter sido um Estado em gestaçao. O processo de formaçao de um Estado baseado no Mabira foi interrompido pela própria eficácia com que Semakokiro granjeou apoio para seu projeto; acabou destituindo do poder seu irmao Junju e assim se tornou kabaka do povo ganda. A época mais antiga desse exílio de Kakungulu no Mabira e, antes dele, a de seu pai Semakokiro, fazem- nos pensar na comunidade forte, estável e muito numerosa que se organizou em torno do general e administrador ganda Semei Kakungulu em seu “exílio” em Uganda Oriental, no início do século XX 1; ali encontramos esse caráter ao mesmo tempo tenso e complexo das relaçoes entre os dirigentes e seus subordinados que caracterizava a vida política do reino de Buganda no final do século XIX, início do XX. A história de Kakungulu e de Semakokiro no Mabira, as vésperas do século XIX, desperta no historiador várias imagens da vida extraordinariamente rica e complexa da regiao dos Grandes Lagos dessa época. A primeira é a de um Estado da regiao dos Lagos que, ainda em gestaçao, anexa terras e populaçoes novas que coloca sob seu domínio e surge como um conjunto de instituiçoes relativamente jovens. A segunda imagem mostra uma regiao em plena efervescencia que vive com dificuldade a passagem do século XVIII para o XIX. Os soberanos enfrentavam uma oposiçao aguerrida tanto de dentro como de fora de seus reinos. Seus reinados podiam ser breves; eles tinham muito pouco tempo para estabelecer alianças e administraçoes eficazes, ao passo que seus irmaos ou filhos atiçavam a rebeliao. A terceira imagem da regiao é a de feudos ou reinos que nao constituíam entidades sociais e políticas fechadas. As fronteiras políticas eram muito permeáveis. A vida dos soberanos e a qualidade de vida dos cortesaos e dos súditos dependiam da natureza das relaçoes entre Estados. 1 M. Twaddle, 1966, p.25- 38. Povos e Estados da regiao dos Grandes Lagos 319 Figura 11.1 A regiao dos Grandes Lagos (segundo D. W. Cohen) 320 África do século XIX a década de 1880 A quarta imagem, por fim, é a da vida social e política pouco conhecida e mal compreendida, distante das cortes e das capitais da regiao; ela nos dá uma ideia do papel do Estado da regiao dos Grandes Lagos na vida das populaçoes, na vida privada e na produçao, no comércio e nas trocas, no pensamento e na vida religiosa. Hoje, como no século passado, essa regiao da África Oriental e Central hoje é ao mesmo tempo bem irrigada e densamente povoada. Estende- se da bacia do Kyoga (centro e norte de Uganda), das encostas do monte Elgon e do golfo de Winam, no Quenia Ocidental, aos planaltos orientais da bacia do Zaire e as margens do lago Tanganyika. A regiao dos Grandes Lagos é uma regiao histórica e cultural (bem como o ponto de convergencia de duas grandes bacias hidrográficas) definida por uma família linguística que se reflete nas formas culturais e, em particular, nos grandes arranjos comuns da organizaçao política anterior a época colonial. O Estado da regiao dos Grandes Lagos tinha uma cultura política, princípios estruturais e uma ideologia autoritária, determinadas características regionais, notadamente modelos sociais com “castas”, classes e diversos arranjos pluriétnicos. A ordem politica No início do século XIX, e, depois, sete ou oito décadas mais tarde, quando a pressao dos europeus começou a afetar diretamente o destino das pessoas e dos Estados, a regiao dos Grandes Lagos era um conglomerado de Estados com territórios e poder muito diversificados por trás de aparencias bastante semelhantes. Os reinos da regiao dos Grandes Lagos apresentavam- se como domínios organizados em torno de um monarca cuja autoridade provinha de seus laços de parentesco com uma dinastia, e que se rodeava de uma corte e de conselheiros; a organizaçao em si baseava- se em uma rede hierárquica de funcionários, artesaos e senhores. Tradicionalmente centrados nos acontecimentos e funçoes políticas oficiais 2, os estudos sobre a regiao destacaram os atos de insurreiçao de Semakokiro e Kakungulu, bem como dos milhares de seguidores que compartilhavam suas vidas de exilados e rebeldes. A história de ambos e de seu exílio evidencia a existencia de forças latentes de oposiçao a autoridade estabelecida e as capitais 2 Os antropólogos e historiadores interessaram- se, sobretudo, pela história política dos reinos da regiao; infelizmente, há poucos trabalhos sobre a história econômica anterior a época colonial. Povos e Estados da regiao dos Grandes Lagos 321 da regiao, e permite que abandonemos os conceitos excessivamente rígidos da área política. Ao começar o século XIX, bem como antes e depois desse período, o Estado dos Grandes Lagos nao era simplesmente a soma de um rei, uma corte e um país, nem a combinaçao de uma cultura política com uma ordem administrativa e uma organizaçao estrutural. A história de Semakokiro e de Kakungulu é portadora de uma mensagem: o domínio do Estado se define de maneira essencial pelo conflito interno e externo. A ordem política da regiao dos Grandes Lagos evoluiu consideravelmente durante o século XIX com o surgimento de duas tendencias principais. A primeira foi o fortalecimento da coesao e do poder de determinados Estados por meio do aumento da mao de obra e do comércio, do desenvolvimento de instituiçoes burocráticas, da eliminaçao dos fatores de divisao e, por fim, do controle e do domínio das influencias e das forças novas que penetravam na regiao. A segunda tendencia foi a ascensao decisiva de tres ou quatro Estados Buganda, Ruanda, Burundi e, por fim, o Bunyoro, que vivia o seu renascimento – em detrimento de outros Estados. Essas duas tendencias estavam estreitamente ligadas. No século XIX, a prosperidade desses quatro grandes reinos baseava- se na reorganizaçao da administraçao no sentido de uma maior centralizaçao: o fim das velhas querelas intestinas por meio da eliminaçao da oposiçao e a organizaçao de campanhas de arrecadaçao de tributos e de expansao, que solaparam os conflitos internos; a ampliaçao do reino por meio da conquista de novas regioes; a apropriaçao e incorporaçao de determinados setores da produçao e do comércio da regiao, e a integraçao das forças e elementos novos que ali penetravam. A mudança geral que o século XIX trouxe a esses grandes reinos é ilustrada notadamente pela duraçao do reinado dos soberanos do Buganda, de Ruanda, de Burundi e do Bunyoro. No Buganda, Kamanya reinou durante 30 a 35 anos a partir do início do século, e seus sucessores, Suna e depois Mutesa, durante 20 e 28 anos respectivamente. Como comparaçao, recordemos que onze kabaka ocuparam o trono do Buganda no século XVIII, e muitos deles foram assassinados ou derrubados. A “era dos príncipes” do século XVIII foi sucedida pela dos “longos reinos”: Kamanya, Suna e Mutesa tiveram tempo de implantar um embriao de controle, de sufocar a oposiçao dos príncipes e das facçoes, e de começar a desenvolver os recursos do Estado. Assiste- se a mesma evoluçao em Ruanda, onde uma “era de longos reinos” sucedeu- se aos reinos curtos da era anterior. Mwami Yuhi Gahindiro tomou o poder na última década do século XVIII e reinou durante mais de trinta anos. Seu sucessor, Mutara Rwogera, exerceu o poder durante cerca de trinta anos; a 322 África do século XIX a década de 1880 Figura 11.2 O Buganda em 1875: a capital do kabaka. [Fonte: H. M. Stanley, Through the dark continent, 1878. vol. I, Sampson, Low, Marston, Low and Searle, Londres. Ilustraçao reproduzida com a autorizaçao do Conselho de Administraçao da Biblioteca da Universidade de Cambridge.] Figura 11.3 O kabaka Mutesa, rodeado de chefes e dignitários. [Fonte: H. M. Stanley, Through the dark continent, 1878. vol. I, Sampson, Low, Marston, Low and Searle, Londres. Ilustraçao reproduzida com a autorizaçao do Conselho de Administraçao da Biblioteca da Universidade de Cambridge.] Povos e Estados da regiao dos Grandes Lagos 323 seguir, Kigeri Rwabugiri permaneceu no trono durante quase quarenta anos até sua morte em 1895. O Burundi só teve dois soberanos no século XIX: Ntare II Rugamba, que teria ascendido ao trono no final do século XVIII, e Mwezi II Gisabo, que reinou de meados do século XIX até sua morte em 1908. Acredita- se que quatro soberanos sucederam- se no trono de Burundi durante o século XVIII. No caso do Bunyoro, a longevidade dos monarcas é menos evidente no século XIX, embora Mukama Kabarega, que exerceu o poder de 1870 até sua destituiçao pelo Império Britânico em 1899, tenha encarnado a retomada do poder e da influencia regional do Bunyoro durante a segunda metade do século. Nao se deve ignorar o efeito circular que os longos reinos do século XIX podem ter surtido. O tempo permitiu que soberanos, cortesaos e sua clientela assentassem o poder sobre bases mais firmes e duráveis, e implantassem administraçoes mais confiáveis. Com o tempo, soberanos e administraçoes conseguiram sistematizar a alocaçao de recompensas, remuneraçoes e empregos, e demonstrar ao povo que, para seu futuro e sua segurança, era melhor trabalhar com o regime do que contra ele – o que, em compensaçao, deu aos soberanos, aos cortesaos e aos grandes homens do século XIX mais tempo e meios para consolidar seu poder e sua gestao. As coligaçoes e as rotinas tinham mais chances de perpetuar- se de um reinado a outro, enquanto os soberanos permaneciam mais tempo no trono. No Estado dos Grandes Lagos, a legitimidade e a autoridade nao repousavam apenas em um ritual de acesso: eram adquiridas com o tempo graças a construçao progressiva de redes de relaçoes sociais. A participaçao no Estado envolvia o jogo das instituiçoes do casamento, dos serviços e da clientela; a exploraçao de novas terras; a implantaçao de novos circuitos de troca e o melhor abastecimento das capitais. Todos esses elementos exigiam tempo para serem desenvolvidos. Durante a maior parte do século XIX, o Buganda, o Ruanda, o Burundi e o Bunyoro foram os Estados mais expansionistas da regiao, e foi essencialmente a evoluçao que experimentaram durante esse período que determinou sua configuraçao no século XX. No entanto, na regiao, no sentido mais amplo, existiam mais de duzentos outros feudos, quase todos dotados de instituiçoes políticas análogas a dos grandes reinos. Alguns desses pequenos Estados transformaram-se politicamente no século XIX, aumentando o seu poder em sua esfera de influencia imediata. Outros perderam o controle das forças centrífugas em açao dentro de suas fronteiras e tornaram- se dependentes de centros distantes. As capitais e as cortes dos grandes reinos começaram a atrair os dissidentes e insurgentes dos Estados vizinhos, aventureiros em busca da ajuda de seus anfitrioes 324 África do século XIX a década de 1880 poderosos para derrubar o poder em seu país. Repetidas centenas de vezes, essas iniciativas contribuíram para o enfraquecimento dos pequenos Estados e para a expansao dos maiores. A partir de 1850, a distinçao entre grandes e pequenos Estados se – afirmou a medida que os primeiros monopolizaram os novos recursos vindos de fora mercadorias, sobretudo armas de fogo, comerciantes e aventureiros europeus, árabes e suaílis, missionários cristaos e muçulmanos. Os pequenos reinos da regiao dos Grandes Lagos acabaram parecendo- se cada vez mais com “jardins” cultivados por servos ou escravos para pagar o tributo cobrado pelos grandes reinos, ou simplesmente com campos de manobras para as diferentes forças de dentro ou de fora da regiao. Producao e extracao Essa última observaçao nos afasta de um terreno que seja apenas político. Ve- se que, no século XIX, a principal preocupaçao do Estado era ao mesmo tempo a produçao e as trocas, qualquer fosse o palco desse processo de acumulaçao, no contexto do antigo feudo ou além das fronteiras administrativas reais do Estado. O controle da produçao e do comércio era o centro das preocupaçoes de Estados como Ruanda, Buganda, Burundi e Bunyoro a medida que estes ampliavam seu território e estendiam sua esfera de influencia. Já nos referimos ao programa de expansao de Mawanda no Kyaggwe. Esse projeto, elaborado no século XVIII, visava as regioes de produçao que escapavam ao controle do reino do Buganda. O Kyaggwe possuía fibra de casca de árvore, minério de ferro e artesaos capazes de trabalhar o ferro, além de ter acesso as terras férteis das ilhas do Norte do Lago Vitória. As Ilhas Buvuma, na costa do Kyaggwe, eram bastante ligadas as redes comerciais estabelecidas a Leste do Lago Vitória. A conjunçao de forças de produçao, materiais, técnicas e mao de obra, assim como o acesso aos circuitos comerciais regionais ou seu domínio, eram as principais preocupaçoes dos Estados da regiao dos Grandes Lagos na época pré- colonial. As taxas arrecadadas nas regioes sob administraçao regular e fora dos reinos enriqueciam as cortes e os regimes no poder. No século XIX, a percepçao de tributos e a resistencia contra as taxas cobradas pelo Estado criaram, entre as zonas de produçao e as regioes de consumo, um tecido de relaçoes conflituosas que se superpunha (as vezes desfigurando- as) as redes comerciais que cobriam a totalidade da regiao na época pré- colonial. No século XIX, o jogo das cobranças Povos e Estados da regiao dos Grandes Lagos 325 efetuadas pelo Estado e da resistencia dos produtores e zonas de produçao a prática coercitiva do tributo de Estado é particularmente evidente no âmbito da produçao de alimentos, das trocas de generos alimentícios e de seu consumo. Nessa regiao, merecidamente famosa pela abundância de seus produtos, é, paradoxalmente, o controle do aprovisionamento em generos alimentícios que se torna o escolho das relaçoes entre Estados, e das relaçoes entre o Estado e os produtores3. Nos reinos sob administraçao regular do Estado, tanto a produçao especializada como a nao especializada forneciam generos alimentícios, bem como uma grande quantidade de outros produtos, as capitais e cortes. A arrecadaçao parece ter sido ora regular, ora irregular, conforme a época. O recebimento de mercadorias devia acontecer a cada estaçao; no entanto, em alguns casos específicos – por ocasiao, por exemplo, de campanhas militares, de cerimônias e festas do rei, ou ainda em caso de fome –, coletavam- se mercadorias de forma especial para redistribuí- las por intermédio das cortes e das capitais. No Buganda, parece ter sido criada uma espécie de fazenda do Estado gerenciada por funcionários nomeados que tinham de garantir o abastecimento das cortes de determinados chefes e do palácio do kabaka4. Em Ruanda, Nkore, Karagwe e Burundi, os rebanhos reais, que faziam parte das riquezas do Estado, forneciam carne, gorduras, leite e manteiga destinados as festas de senhores e funcionários, suas clientelas e famílias. Nesse caso, tratava- se de uma “produçao gerenciada”, isto é, organizada e regulada pelo Estado. As fazendas de Estado eram capazes de produzir quantidades consideráveis de alimentos e bebidas em prazos bastante reduzidos, o que faz supor que os níveis de produçao eram elevados – assim podiam dar conta de altas demandas momentâneas – e que os organismos de abastecimento eram necessariamente dimensionados com capacidade ociosa5. Longe de limitar- se a esses setores especializados na produçao de alimentos, os sistemas de arrecadaçao estendiam- se a outras áreas de atividades e a “percepçao de tributos”. Seria interessante considerar as atividades econômicas 3 Esse fenômeno é detalhadamente examinado no estudo de D. W. Cohen, 1983. Os dados incluídos no presente capítulo foram tirados desse estudo, apresentado em junho de 1981 em uma conferencia organizada em Naivasha (Quenia) pela Universidade das Naçoes Unidas. 4 Esperamos para breve a publicaçao de um estudo sobre este assunto; apresenta o modo de abastecimento em suas linhas gerais após o exame de várias fontes. 5 J. Tosh (1980, p. 9) chamou a atençao sobre a produçao de excedentes alimentares na África pré-colonial, refutando a tese segundo a qual os excedentes que serviam para alimentar os artesaos especializados, os caçadores, as caravanas de comerciantes e as cortes eram excedentes normais da produçao de subsistencia. 326 África do século XIX a década de 1880 Figura 11.4 A casa do Tesouro e os ornamentos reais do rumanyika, rei do Karagwe. [Fonte: H. M. Stanley, Through the dark continent, 1878. vol. I, Sampson, Low, Marston, Low and Searle, Londres. Ilustraçao reproduzida com autorizaçao do Conselho de Administraçao da Biblioteca da Universidade de Cambridge.] do Estado como um continuum: de fato, a passagem progressiva da cobrança ocasional dos impostos a um sistema mais regular de arrecadaçao muitas vezes anunciava o início de um processo de integraçao das áreas fronteiriças e de zonas de produçao totalmente novas aos Estados da regiao dos Grandes Lagos. Nesse continuum, há exemplos de taxaçoes efetuadas no Busoga Central por agentes do Buganda6. Sem dúvida, essas práticas nao faziam parte de um programa regularmente gerenciado; contudo, eram suficientemente correntes e bem organizadas para nao precisarem da intervençao de forças armadas e para produzirem volumes consideráveis de generos alimentícios preparados – o que nos permite supor que havia uma notificaçao prévia, seguida de um trabalho de preparaçao. O Busoga Central taxava essencialmente a banana seca (em idioma lugosa: mutere), transportada sob forma de farinha ou de bolachas secas ao sol. Essa prática de arrecadaçao regular de impostos em uma determinada área teria obrigado as zonas taxadas a produzirem em proporçoes muitíssimo superiores as necessidades do consumo local. Esses “excedentes estratégicos” teriam dado aos 6 O tributo cobrado pelo Buganda é estudado em S. N. Kiwanuka, 1972, p. 139- 153; J. Kasirye, 1959; F. P. B. Nayenga, 1976; D. W. Cohen, 1977. Povos e Estados da regiao dos Grandes Lagos 327 primeiros viajantes europeus a impressao de que havia abundância ilimitada na regiao e autossuficiencia dos pequenos produtores, bem como a impressao, mais conhecida, de pompa das cortes7. Mas esses observadores nao teriam percebido a estrutura do “excedente estratégico”: quem arcava com os verdadeiros custos de produçao de todos os bens e serviços “recíprocos” que o Estado arrecadador de tributos oferecia as áreas taxadas eram os contribuintes. Além disso, esses “excedentes estratégicos” nao constituíam uma garantia de segurança para os produtores, pois, no século XIX, o Estado- arrecadador da regiao dos Grandes Lagos tinha condiçoes de mandar apreender os produtos se, por alguma razao, os produtores nao os entregassem. Outro exemplo: o da coleta do sal fino proveniente das fontes salinas do Lago George para as cortes dos reinos do Bunyoro e do Toro8, que, mesmo distantes, nao deixavam de exercer um controle vigilante (e as vezes protetor). Sempre nesse continuum, é preciso apontar a cobrança de tributos irregulares e inesperados em regioes mais longínquas9. Pode- se supor que esses tributos incluíam menos alimentos preparados, como o mutere ou outros alimentos e bebidas que exigiam muito trabalho de colheita e preparaçao. Nas regioes remotas, essas arrecadaçoes eram realizadas como operaçoes militares. Bandos armados, ou mesmo verdadeiras expediçoes, esquadrinhavam uma área, recolhiam tudo que pudesse ser taxado, principalmente gado e homens, mas também as reservas de objetos de ferro e tecidos de fibra de casca de árvore dos artesaos e comerciantes. Eram vastas operaçoes de saqueio. Uma das expediçoes militares organizadas no Buganda penetrou até o Busoga, onde acampou por vários meses, enviando grupos de busca aqui e acolá. Dessa vez, o exército encarregado de arrecadar o tributo permaneceu tempo suficiente naquela área para obrigar a populaçao a produzir e preparar alimentos e bebidas em tal quantidade que nao se tratava mais de um butim propriamente dito. Os alimentos eram apreendidos pelo exército de ocupaçao tanto para sua própria subsistencia como para a das cortes do Buganda. Neste caso em particular, é muito provável que o exército ganda nao tenha permanecido tempo suficiente para incentivar, ou para impor, um aumento permanente da produçao de generos alimentícios e outros na regiao ocupada. No entanto, permaneceu tempo suficiente para desmantelar boa parte das estruturas de produçao do Busoga Central – que levará vários anos para 7 Ver, por exemplo, F. D. Lugard, 1893, vol. I, p. 366; H. H. Johnston, 1902, vol. I, p. 248; H. M. Stanley, 1878, vo1.II, p. 142- 143. 8 E. M. Kamuhangire, 1972a, 1972b 9 D. W. Cohen, 1977, p.73- 80. 328 África do século XIX a década de 1880 se reorganizar. Expediçoes similares foram organizadas a partir da regiao da capital de Ruanda no intuito de subtrair provisoes preciosas e gado das regioes independentes do Norte e do Leste, inclusive em torno das margens ocidentais do Lago Kivu10. Acabaram aniquilando tanto a produçao como as atividades de comercializaçao, e tiveram de ir ainda mais longe a procura de novas fontes de riquezas. Essas expediçoes militares acarretaram, notadamente, o surgimento de rotas de passagem relativamente regulares em direçao as regioes- alvo. Dois ou tres Estados do Sudoeste do Busoga constituíam, antes de mais nada, postos de aprovisionamento das expediçoes do Buganda. Esses pequenos Estados podiam fornecer aos exércitos enormes quantidades de víveres em pouco tempo, e parecem ter- se abastecido nas áreas limítrofes. Por volta de 1860, as áreas situadas imediatamente ao Norte dessa rota de passagem foram abandonadas, pois tinham deixado de oferecer a capacidade de produçao necessária para que os Estados encarregados de garantir o abastecimento da populaçao e do reino o Buganda pudessem ali se aprovisionar11. Em algumas décadas, sob o efeito do tributo cobrado por grandes reinos como o Buganda, as regioes taxadas teriam se dividido em duas categorias: aquelas onde a demanda externa de generos alimentícios estimulava a produçao e aquelas onde essa demanda enfraquecia ou destruía suas estruturas produtivas. Segundo as fontes de que dispomos sobre o século XIX, esse sistema de tributaçao suscitou uma vigorosa resistencia nas áreas de produçao. Diversas regioes do Busoga Setentrional e Oriental se opuseram as poderosas expediçoes militares ganda, e as vezes conseguiram até repeli- las. No intuito de sugar ainda mais as ricas regioes do Leste, o Buganda procurou por todos os meios obter armas de fogo, participou ativamente dos conflitos locais e instalou príncipes vassalos no trono de vários Estados da regiao. Multiplicou as expediçoes militares, que precisavam ir cada vez mais longe a medida que ruíam os antigos Estados pagadores de tributos. H. M. Stanley testemunhou a resistencia a derrama ganda nas Ilhas Buvuma, ocorrida quando ele se encontrava no Buganda em 187512. Durante a maior parte do século XIX, os povos e Estados situados 10 D. S. Newbury 1975, p. 155- 173; anonimo, s.d.; M. C. Newbury, 1975. 11 Faz- se breve alusao a este ponto em D. W. Cohen, 1977, p.116- 117. Esta questao será retomada no estudo que o autor está preparando sobre o Busoga, 1700- 1900. 12 H. M. Stanley, 1878, vol. II, p. 304- 342. Povos e Estados da regiao dos Grandes Lagos 329 Figura 11.5 Batalha naval no Lago Vitória entre os Baganda e o povo das Ilhas Buvuma, 1875. [Fonte: H. M. Stanley, Through the dark continent, 1878. vol. I, Sampson, Low, Marston, Low and Searle, Londres. Ilustraçao reproduzida com a autorizaçao do Conselho de Administraçao da Biblioteca da Universidade de Cambridge.] 330 África do século XIX a década de 1880 nas fronteiras oeste e Noroeste de Ruanda se opuseram a arrecadaçao regular de tributos por esse Estado13. Coercao, violencia e mercado A resistencia, no século XIX, contra as exigencias aparentemente insaciáveis dos grandes Estados da regiao dos Grandes Lagos teve como consequencia principal a queda da produtividade em praticamente todas as regioes taxadas, o que transferiu para as cortes reais o ônus dos excedentes da produçao de alimentos. De fato, meios mais aperfeiçoados eram necessários para manter em um nível muito elevado os tributos arrecadados fora das zonas regulares de produçao dos reinos. É claro que essa resistencia acarretou um aumento da violencia em toda a regiao, e parece ter desestabilizado as antigas práticas comerciais em vigor nas margens – e entre elas – dos lagos Vitória, Kyoga, Lutanzige e Kivu, bem como ao longo dos lagos salgados do Sudoeste de Uganda; os excedentes de produçao dessas regioes geravam, há muito tempo, trocas organizadas 14. No século XIX, a regiao aparece como teatro de uma concorrencia acirrada entre dois sistemas regionais de troca de produtos alimentícios: um baseado no mercado, o outro, na força militar e na coerçao política. No terceiro quartel do século XIX, foi essencialmente o segundo que se desenvolveu a custa do primeiro. Os soberanos e as cortes parecem ter desistido de depender dos mercados para seu aprovisionamento intrarregional. No século XIX, as zonas de produçao da regiao dos Grandes Lagos muitas vezes eram cobiçadas por dois ou tres Estados arrecadadores de tributos, e assim se tornaram palco de rivalidades e conflitos intensos. O tributo sobre as salinas do Sudoeste da atual Uganda era reivindicado ao mesmo tempo pelo velho Estado do Bunyoro e pelo novo reino Toro. Portanto, a riqueza desses dois Estados, baseada no sal, conheceu altos e baixos periódicos durante todo o século 15. 13 Ver nota 10 acima. 14 Na época pré- colonial, a rede comercial da regiao dos Grandes Lagos abrangia tres circuitos de trocas que se entrecruzavam: o circuito oriental, que começava nas Ilhas Buvuma e margeava o Lago Vitória pelo Leste e pelo Sul até Usukuma; o circuito Bunyoro-Kyoga, que se estende do Monte Elgon em direçao as campinas de Uganda Ocidental; e o circuito do Kivu, que vai da orla da floresta da atual República Democrática do Congo, ao redor dos lagos do Rift ocidental, até o Burundi, Ruanda e as campinas a Oeste da atual Uganda (ver mapa 11.6). Sobre os circuitos de troca da regiao, ler os excelentes artigos de J. Tosh, 1970; A. D. Roberts, 1970b; C. M. Good, 1972; B. Turyahikayo-Rugyeme, 1976; E. M. Kamuhangire, 1976; D. S. Newbury, 1980; J.-P. Chrétien, 1981. 15 E. M. Kamuhangire, 1972b. Povos e Estados da regiao dos Grandes Lagos 331 Figura 11.6 Circuitos comerciais da regiao dos Grandes Lagos (segundo D. W. Cohen). 332 África do século XIX a década de 1880 É muito provável que as regioes do Bugerere, a Oeste do vale do Nilo, e do Budiope, ao Norte do Busoga, tenham despertado a cobiça tanto do Estado de Buganda como do Estado do Bunyoro, que procuravam apropriar- se dos cereais, dos tubérculos, do gado, das bananas e dos produtos elaborados nos quais aquelas regioes eram ricas. A resistencia das regioes do Bugerere e do Budiope atrasou a integraçao de sua produçao aos Estados do Buganda e do Bunyoro durante quase todo o século16. É ocioso dizer que a invasao simultânea das regioes produtoras por esses dois Estados foi o núcleo do conflito que os opôs durante grande parte do século. Em certas áreas, esse clima de rivalidade entre várias potencias da regiao desejosas de garantir para si os “direitos ao tributo agrícola” suscitou diversas estratégias de alianças e de defesa entre os grupos tributários; em outras, por sua vez, traduzia- se simplesmente em uma diminuiçao da populaçao e da produçao nas áreas contestadas. Em outras, ainda, as rivalidades entre as diversas potencias que procuraram apropriar- se dos recursos, e entre os cortesaos desejosos de obter privilégios de arrendamento, certamente levaram a imposiçao de taxas muito superiores as possibilidades de consumo17. Um dos primeiros efeitos da atividade dos europeus na regiao dos Grandes Lagos seria o de reforçar a capacidade das grandes potencias regionais de cobrar seu tributo nas áreas afastadas, pelo menos no curto prazo. Se certas partes da regiao eram obrigadas a produzir muito mais do que o consumo local exigia, outras, em compensaçao, sofriam períodos de escassez que, longe de serem excepcionais, podiam ocorrer tanto no início da estaçao chuvosa como durante anos de colheitas magras. Na parte ocidental do Quenia, mercados ocasionais eram abertos durante os períodos de crise 18. Situavam- se nas zonas compreendidas entre as terras altas, úmidas e seguras, e as terras baixas, secas e menos seguras, que se estendem em arco de círculo entre o golfo de Winam, a Oeste do Quenia, e o Sul do Busoga; nessa regiao, eram organizados mercados ocasionais em tempos de crise para a troca de gado, cereais, peixes, verduras e produtos manufaturados. Essas trocas estavam nas maos de grandes famílias da regiao onde o mercado era instalado. Foi assim que, no início do século XX, surgiram os “homens fortes” ou os “pseudochefes”, bem conhecidos por quem estava familiarizado com a África. 16 A situaçao do Bugerere é muito significativa. A. F. Robertson a expoe com muito clareza, 1978, p. 45-47. 17 As intrigas de corte em reinos como o Buganda bem parecem ter contribuído para levar até áreas remotas as campanhas de arrecadaçao de tributos na época pré- colonial. Ver D. W. Cohen, 1983. 18 M. J. Hay, 1975, p. 100- 101. Ver também o livro de L. D. Shiller sobre Gem e Kano no Quenia Ocidental, e The Jolue before 1900, livro de R. Herring. O autor do presente capítulo, trabalhando em Siaya, e Priscilla O. Were, trabalhando em Samia, reuniram provas que apoiam essas informaçoes. Povos e Estados da regiao dos Grandes Lagos 333 Nos arredores do golfo de Winam, a escassez de alimentos básicos era frequente, sobretudo nas terras situadas as margens do lago, que só tinham uma estaçao chuvosa e uma longuíssima estaçao seca. Pelo menos desde o século XVIII, as populaçoes foram se deslocando de forma lenta e constante das margens do lago para as terras altas a procura de áreas mais seguras e mais produtivas, com duas estaçoes chuvosas. Seu avanço só era freado pelos moradores já instalados nessas terras altas, pelos bandos que lá iam saquear periodicamente as riquezas e pelo fato de os migrantes estarem insuficientemente organizados para tirar proveito de novas terras nas regioes montanhosas. Essa migraçao ainda hoje continua. Ela acarreta modificaçoes na produçao e no regime alimentar das populaçoes que se refugiam nas terras altas, uma concentraçao da populaçao nessas áreas e o desenvolvimento das comunidades linguísticas do grupo luo. No século XX, essa regiao apresentava uma das maiores densidades populacionais da África rural; daí o esgotamento dos solos e dos recursos em madeira 19. Os que nao emigravam para as terras altas continuavam a sofrer com a escassez decorrente de um sistema agrícola precário. Os mercados ocasionais remediavam um pouco a situaçao, pois permitiam que a populaçao trocasse o gado criado nas terras baixas por cereais e raízes alimentícias cujo cultivo prosperava mais nas terras altas. Dado que, nas terras baixas, o período de fome correspondia a época de lavrar a terra e semear no momento das primeiras chuvas, o que exigia mais mao de obra, esses mercados eram um meio de compensar bastante depressa os efeitos de uma estaçao seca prolongada ou de uma colheita fraca. Graças as trocas regionais, o gado criado pelos habitantes das terras baixas garantia a continuidade do trabalho agrícola e da alimentaçao. Para eles, era fonte de riquezas transformáveis. As redes comerciais Em Ruanda, remediava- se a precariedade da situaçao agrícola por meio de trocas entre diferentes áreas, etnias e classes 20. A complementaridade entre produçao e consumo das zonas onde havia excedentes e havia déficit ocasionou o surgimento de toda uma rede de comunicaçoes, trocas e interaçoes que reforçou 19 É preciso estudar de forma mais detalhada a situaçao social e econômica do Quenia Ocidental no século XX, em particular aspectos relativos a demografia, economia rural e problemas de higiene. Para a Tanzânia, ver H. Kjekshus, 1977. 20 H. L. Vis e al., 1975. 334 África do século XIX a década de 1880 os alicerces do Estado ruandes. Essas trocas regulares propiciaram a manutençao de economias locais especializadas, bem como de hábitos alimentares próprios as diferentes etnias ou classes, o que acentuou as segmentaçoes sociais na parte ocidental da regiao dos Grandes Lagos. O Estado de Ruanda arrecadava seu tributo em regioes mais longínquas, saqueando com frequencia as regioes ricas do Norte, do Noroeste e do Oeste, algumas das quais foram submetidas a sua administraçao no transcurso do século XIX. Além disso, Ruanda participava de um sistema comercial centrado no Lago Kivu. Os comerciantes levavam aos mercados das margens do Lago Kivu e das Ilhas Ijwi as butega, pulseiras tecidas provenientes do Butembo, situado a Oeste do lago Kivu. Essas pulseiras do Butembo aos poucos foram sendo consideradas como moeda e, a partir da segunda metade do século XIX, foram amplamente utilizadas nas trocas da regiao do Kivu, enriquecendo os comerciantes de Ijwi e os fabricantes de pulseiras do Butembo enquanto, ao mesmo tempo, facilitavam as trocas de gado, generos alimentícios e outros produtos em toda a regiao, que abrangia o Kivu e Ruanda, onde talvez tenham incentivado a produçao 21. Parece que um circuito de troca que interligava as regioes situadas na margem oriental do Lago Vitória passou por processo análogo. Tudo leva a crer que, no início do século XIX, uma vasta rede de troca de generos alimentícios e outros produtos ali já funcionava há séculos. Essa rede interligava o litoral do Buganda, do Sul do Busoga e das Ilhas Buvuma, no Norte, ao interior do país (hoje o Quenia Ocidental) e as regioes de Buzinza, Usukuma e Unyamwezi, situadas ao Sul do lago (atual Tanzânia). O elemento determinante da configuraçao dessa rede parece ter sido a revoluçao agrícola realizada no Estado insular do Bukerebe, ao Sul do lago, no final do século XVIII ou começo do XIX22. De fato, o Estado do Bukerebe adotou vários cultivos novos, como o milho e a mandioca, e introduziu na regiao novas variedades de sorgo e milhete. Determinadas mudanças estruturais – inclusive a organizaçao da mao de obra servil (oriunda do continente) – acarretaram um forte aumento da produçao agrícola. O continente oferecia um mercado para os excedentes do Bukerebe, que também comercializava metais trabalhados do Buzinza e gado do Usukuma. As populaçoes do Buzinza e do Usukuma contavam com a agricultura e o comércio do Bukerebe para paliar a frequente escassez de alimentos que as afligia. Parece que essa dependencia as vezes levou os agricultores usukuma a acusarem os comerciantes bukerebe de tirar proveito de sua miséria, pura e simplesmente 21 D. S. Newbury, s. d. 22 G. W. Hartwig, 1976. p. 62- 83. p. 104- 111. Povos e Estados da regiao dos Grandes Lagos 335 aumentando, em tempos de fome na regiao, os preços dos generos alimentícios que lhes forneciam23. Os comerciantes bukerebe eram os principais intermediários no Sul, mas os transportes e as trocas estavam nas maos dos Basuba na parte mais setentrional dessa rede oriental do lago. Extraordinariamente engenhosos e corajosos, percorriam as águas do Lago Vitória transportando sal, escravos, banana secas, cereais, feijao, gado, peixe e ferro dos mercados bukerebe, no Sul, para os mercados busoga e buvuma, no Norte24. O monopólio das trocas que os Basuba elaboraram no século XIX nas vias setentrionais da rede oriental do lago lembra os monopólios criados pelos comerciantes bagabo e bashingo da regiao dos lagos salgados no que hoje é Uganda Ocidental25. Em ambos os casos, esses povos organizaram, no correr dos anos, uma diáspora da troca, muito bem estruturada, que lhes garantia o controle político global da produçao e da comercializaçao de sal, sob a proteçao e com autorizaçao dos longínquos reinos de Nyoro e Toro. Nos dois casos, os monopólios comerciais eram desenvolvidos fora da área de influencia dos Estados da regiao dos Grandes Lagos; nao utilizavam nem o esquema nem as estruturas do Estado para implantar suas redes comerciais; e só lhes acontecia de obedecerem as exigencias dos Estados limítrofes nas raras vezes em que suas áreas de produçao, mercados ou frotas sofriam ataques. As estruturas comerciais bukerebe – na parte sul do circuito oriental – eram tao interessantes para os outros comerciantes que os mercadores suaílis e árabes que operavam no Unyamwezi integraram- se a elas. Estimulando o comércio de escravos e de marfim na regiao, os recém- chegados acabaram empurrando para o Sul do lago os comerciantes bukerebe e seu sistema de troca baseado na produçao de alimentos. Foi graças a esses movimentos em direçao ao Sul que os comerciantes suaílis e árabes tiveram seus primeiros contatos com a regiao dos Grandes Lagos. Primeiro as mercadorias, depois os comerciantes, invadiram os mercados e os Estados da regiao, percorrendo as mesmas estradas estreitas que os vendedores de sal, a Oeste do Lago Vitória. Contudo, o mais importante talvez seja que com eles, o marfim e os escravos chegaram ao centro da regiao dos Grandes Lagos, onde serviriam de moeda de troca contra armas de fogo. Professores muçulmanos e cristaos, exploradores, aventureiros e funcionários 23 lbid., p. 107. 24 M. Kenny, 1979. 25 E. M. Kamuhangire, 1972b. 336 África do século XIX a década de 1880 europeus depois trilharam o mesmo caminho, criando novas forças de mudança em toda a regiao dos Grandes Lagos. Enquanto, no litoral leste, o tráfico subia para o Norte através das pradarias do Oeste, chegando as populaçoes e capitais da margem setentrional do lago, navios buganda iam roendo pelas beiradas os monopólios basuba e bukerebe a Leste e ao Sul, abrindo assim caminho para relaçoes ativas e diretas entre o coraçao da área buganda e os comerciantes árabes e suaílis da margem sul. Assim, o Bukerebe era repelido para o Sul por grupos vindos do Unyamwezi e da costa leste, e sua influencia recuava no Norte e no Leste diante das iniciativas expansionistas do Buganda. A comparaçao do Buganda com o Bukerebe no século XIX evidencia um contraste interessante. Em ambas as regioes, houve, em um determinado momento, transformaçao da agricultura com vistas a garantir a produçao de consideráveis excedentes de generos alimentícios. Porém, enquanto os excedentes do Bukerebe eram destinados as zonas onde a escassez era grande, mas que podiam proporcionar-lhe alimentos que o Bukerebe necessitava e nao tinha como produzir, os do Buganda eram apenas instrumento de uma açao política e social. Nao serviam de moeda de troca. A notável organizaçao dos meios de transporte implantada pelo Bukerebe e pelo Basuba foi gravemente abalada pela intrusao dos Baganda no sistema; estes nao procuraram criar novas estruturas comerciais: impuseram-se pela força. No século XIX, havia outra ampla rede de trocas centrada na regiao do Bunyoro, que se estendia ao Norte e a Noroeste a regiao de Acholi e do Oeste do Nilo; a Leste, para além do Lago Kyoga, até o Monte Elgon; e a Sudoeste, a regiao dos lagos salgados, e até Kivu. O ferro e o sal parecem ter sido os elementos básicos desse sistema comercial, mas os generos alimentícios e o gado provavelmente tiveram uma funçao capital em sua elaboraçao e seu funcionamento. Ao Norte do Lago Kyoga, por exemplo, os Lango produziam excedentes alimentares intencionalmente, em particular gergelim, para fins comerciais 26. No século XIX, essa produçao era encaminhada para o Oeste, para Bunyoro, em troca de enxadas de ferro, que ajudavam a aumentar ainda mais a produçao de gergelim na área de Lango. Um exame atento mostrou que essa superproduçao muito provavelmente era combinada com toda uma série de inovaçoes e aperfeiçoamentos em matéria de produçao e utilizaçao do solo e da mao de obra, bem como em termos de colheita, cultivos e semeaduras, no intuito de otimizar o rendimento27. De certa forma, tratava- se de uma revoluçao agrícola comparável, 26 J. Tosh, 1978. 27 Isso pressupoe uma revoluçao social no plano de cada entidade familiar ou coletiva para reestruturar as relaçoes sociais no trabalho, a definiçao das tarefas e o ritmo de trabalho. Povos e Estados da regiao dos Grandes Lagos 337 sob certos aspectos, a que ocorreu quase simultaneamente no Bukerebe e nas Ilhas Ijwi, do Lago Kivu28. Pode- se supor que as pessoas e os grupos que participavam das redes de troca da atual Uganda ocidental tenham visto no desejo dos Lango de aumentar a produçao de gergelim para fins comerciais um meio para atingir tres objetivos: primeiro, estimular o comércio do ferro com o leste, vencendo o concorrente de Samia – centro estabelecido a margem do Lago Vitória, perto da atual fronteira entre Quenia e Uganda – e, portanto, uma forma de estimular a produçao de ferro no Bunyoro; segundo, criar laços mais estreitos entre o Bunyoro e o Lango, e talvez até laços de dependencia baseados na desigualdade das trocas; terceiro, por fim, enriquecer com esse comércio, o que, na segunda metade do século XIX, atrairia para a regiao o marfim valioso, vindo das encostas noroeste do Monte Elgon. Até aproximadamente 1875, as redes comerciais da atual Uganda Ocidental constituíram a base da influencia do Bunyoro sobre uma ampla regiao, mesmo durante os períodos em que conflitos internos enfraqueciam o poder dos soberanos. Em áreas como o Busoga, a atividade comercial se transferiu dos antigos mercados do Lago Vitória para as feitorias recentemente criadas na bacia do Lago Kyoga, com ferro dos Nyoro substituindo o dos Samia nos mercados do Norte e do nordeste do Busoga. Novos estabelecimentos foram criados na bacia do Lago Kyoga, cuja produçao alimentava o mercado nyoro. A expansao da rede do Kyoga completava o processo de emigraçao para o Norte, para o Busoga, e permitia que uma populaçao acossada se afastasse da área onde o Buganda cobrava tributo. Mais tarde, essa rede de troca do Bunyoro – ou seja, a rede comercial ocidental que cobria a regiao do Kyoga – oporia uma forte resistencia aos britânicos que pressionavam a populaçao para faze- la cultivar algodao. No Oeste, as atividades comerciais do Lago Kyoga se somavam as trocas feitas através das campinas da atual Uganda Ocidental e se concentravam na produçao de sal dos lagos do Sudoeste da atual Uganda. Funcionários do reino do Bunyoro, ou dos pequenos Estados que lhe pagavam tributo, arrecadavam os impostos sobre a produçao, o transporte e a comercializaçao dos produtos, dos generos alimentícios e do gado, e depois os usavam para financiar seu próprio comércio29. Os soberanos do Bunyoro e do Toro cumpriram um papel ativo no sistema comercial da regiao ocidental dos Grandes Lagos sem desmontar as redes e trocas tradicionais. Alguns livros de história apresentam o Bunyoro 28 Ver G. W. Hartwig (1976) para o Bukerebe, e D. S. Newbury (s.d.) para Ijwi. 29 E. M. Kamuhangire, 1972b. 338 África do século XIX a década de 1880 como reino de pastores e Estado guerreiro; no entanto, o Bunyoro parece ter-se integrado, em grande medida, ao mercado regional do qual dependia para abastecer suas cortes e para continuar a exercer seu controle e sua influencia sobre regioes remotas. O Buganda do século XIX é mostrado, ao contrário, como exemplo típico do Estado guerreiro, ou do Estado arrecadador de tributos, que desenvolve dois processos, sem tentar conciliá- los: o de implantaçao de uma burocracia interna complexa, e o de estruturaçao dos mercados externos. As atividades do Estado do Buganda tendiam a desfigurar ou arruinar as atividades comerciais no nível sub- regional em torno dos lagos, mas foi também nessa época que o Buganda começou a ter uma participaçao mais ativa no que poderíamos chamar de trocas internacionais na zona que vai das margens do Lago Vitória a costa leste da África. No entanto, isso talvez nao baste para definir as diferenças que separam o Buganda e o Bunyoro em termos de mercados comerciais no século XIX. A diferença essencial entre eles reside sem dúvida na utilizaçao que cada um faz das diversas possibilidades de que dispoe para passar a frente, em diferentes níveis, na atividade comercial da regiao. O Bunyoro participava das atividades dos mercados da regiao dos Grandes Lagos segundo modalidades que reforçavam e desenvolviam a organizaçao comercial existente, ao passo que o Buganda procurava sistematicamente resolver pela via militar as suas crises de abastecimento em bens e serviços locais. Além disso, o Buganda entrou na rede comercial internacional que avançava constantemente, a partir da costa leste, em direçao a regiao dos Grandes Lagos; recorreu a meios que ajudaram a reforçar e desenvolver, no interior de seu território, o sistema em vigor na costa leste, e acabou conseguindo, em grande medida, excluir o Bunyoro desse sistema de troca em “nível muito alto”. Na verdade, durante a última década do século, o Buganda conseguiu fazer com que as forças ligadas ao mercado da costa leste se rebelassem contra o Bunyoro, arruinando definitivamente sua influencia na regiao, e eliminando desta última o “fator setentrional”, ou seja, os interesses anglo- egípcios e sudaneses. Este sistema de troca de “alto nível” que funcionava da regiao dos Grandes Lagos até a costa da África Oriental gravitava em torno do comércio proveniente dos planaltos e para lá destinados: marfim e escravos trocados na costa por armas de fogo importadas por intermédio da rede comercial de Zanzibar. As armas de fogo eram entregues junto com alguns magros lotes de mercadorias essencialmente reservadas ao consumo da aristocracia: texteis, pulseiras, louça e, mais tarde, livros. Durante a maior parte do século, a corte do Buganda conseguiu manter sob seu controle a distribuiçao desse tipo de importaçoes, tanto dentro como fora do reino, reforçando deste modo seu domínio (e, assim, sua Povos e Estados da regiao dos Grandes Lagos 339 influencia sobre todos os visitantes que ali se encontravam) sobre toda a vida social. Aspecto importante: o gosto passou por uma fase de “extroversao” durante o período imediatamente anterior a chegada dos europeus a regiao onde os Baganda procediam com sucesso – conscientemente em alguns casos, inconscientemente em outros – a integraçao de sua sociedade ao Império Britânico. O aumento das desigualdades e das tensoes No último quartel do século XIX, os novos gostos e os imperativos de consumo emergentes entre as camadas inferiores da nobreza facilitariam a influencia europeia na vida nao apenas do Buganda, mas de quase todas as partes dessa vasta regiao. Durante meio século, as armas de fogo que haviam sido conseguidas asseguraram a dominaçao dos Estados mais poderosos sobre as áreas vassalas e, como em todo o resto da África, abriram caminho para uma concentraçao do poder político- militar nas maos de uma parcela mais limitada da populaçao. As desigualdades, particularmente flagrantes nas incursoes para capturar escravos, mas importantes em todas as áreas, acentuaram- se em toda a regiao dos Grandes Lagos durante as últimas décadas do século. Assim, os europeus, quando começaram a chegar em grande número a regiao, viram seu apoio solicitado nao apenas pelos centros detentores de crescente poder, mas também pelos fracos e pelos desvalidos. Da mesma forma que havíamos observado, cá e lá, no final do século XVIII, diversas forças e correntes tentarem resistir aos soberanos dos Estados da regiao dos Grandes Lagos e procurarem derrubá- los, as duas ou tres últimas décadas do século XIX assistiram ao surgimento de uma nova onda de resistencia e conflitos. Durante o último terço do século, era evidente que a crescente concentraçao do poder e das engrenagens de comando nas capitais e cortes provinciais da regiao dos Grandes Lagos tornava- se cada vez mais insuportável para a populaçao. A Leste e a Oeste do Buganda, pequenos Estados resistiram repetidamente as campanhas de arrecadaçao de tributos realizadas pelo Estado buganda. Em 1875, H. M. Stanley testemunhou o desastre em que culminou a campanha do Buganda contra as Ilhas Buvuma. No mesmo momento em que o Buganda conseguia colocar rapidamente a regiao visada de joelhos, alguns ali sabotavam a entrega regular dos tributos ao vencedor 30. 30 Essas operaçoes sao mencionadas em diversas fontes do Buganda e do Busoga. 340 África do século XIX a década de 1880 No Bunyoro, em Ruanda e no Buganda, assim como nos pequenos Estados do Busoga, o povo se defendia contra as arbitrariedades cometidas pelas capitais e pelas cortes seja emigrando para áreas mais distantes das regioes habitualmente atingidas pelas campanhas de coleta, ou para zonas que ofereciam melhores possibilidades de acesso a terra, a funçoes oficiais ou ao poder, seja reunindo- se e fortificando as aldeias, como foi o caso na fronteira entre os atuais Quenia e Uganda. Na regiao do Busoga, circulam milhares de relatos sobre pequenas migraçoes de gente do povo que deixa seu Estado para procurar refúgio ou novas condiçoes de vida em outro lugar; alguns tiveram de mudar- se várias vezes de Estado durante sua vida. Esses relatos parecem indicar que, já nos anos 1820, a “busca de novas condiçoes de vida” era concomitante com uma redefiniçao das relaçoes do indivíduo e da família com o Estado no que diz respeito a terra, as funçoes administrativas e ao poder31. No contexto dessa considerável mobilidade das pessoas e dos pequenos grupos que caracterizava o Busoga do século XIX, a corte, como campo de possibilidades mais amplas, cumpria um papel privilegiado na vida dos habitantes dos diversos Estados, ou das populaçoes que residiam fora de suas fronteiras reconhecidas; mas essa situaçao nao permitia que o Estado afirmasse sua autoridade. Na verdade, durante todo o século XIX, os esforços feitos pela corte do Busoga no intuito de consolidar seu poder ou ampliar sua zona de influencia foram minados pela facilidade com que numerosos indivíduos abandonavam seus laços clientelistas e suas terras e partiam em busca de melhores condiçoes de vida. É possível que, durante esse período, e ligada a problemas desse tipo, uma noçao evoluída do “Estado” ou “reino” tenha- se tornado um elemento importante do discurso popular. Essa atitude da coletividade em relaçao ao poder talvez tenha compensado, até certo ponto, o aumento do poder das capitais decorrente da monopolizaçao das armas e do fato de as pessoas das cortes se armarem. Lá e cá, esse distanciamento do poder político central sem dúvida facilitou importantes modificaçoes nas relaçoes comerciais e nas atividades de produçao; o fato é que, particularmente no âmbito local, a atividade econômica libertou- se muito do aparelho estatal. Manifestadamente, no século XIX a resistencia a autoridade política estabelecida muitas vezes acarretou, mesmo que apenas por algum tempo, um fortalecimento da autoridade dos centros religiosos e um endurecimento das relaçoes entre poder político e poder religioso em diversos lugares da regiao dos Grandes 31 D. W. Cohen, 1986. Povos e Estados da regiao dos Grandes Lagos 341 Lagos. Esse clima de oposiçao ou de luta entre diversas instâncias do poder é muito bem ilustrado pela história da criança possuída Womunafu, na regiao de Bunafu, no Busoga, em torno da qual se reuniu uma pequena comunidade. Em Bunafu, o domínio de Womunafu permaneceu durante várias décadas a margem do mundo político circundante ao qual se opunha. No entanto, as capitais políticas vizinhas compartilhavam, em grande medida, as ideias e instituiçoes em que repousava a autoridade de Womunafu32. No Bushu, a Oeste, os conflitos entre as fontes religiosas e políticas do poder foram em grande parte resolvidos por meio da integraçao de elementos antagonistas em um conjunto de pequenos territórios sob autoridade ritual de chefes tradicionais 33. Em Ruanda, no Bunyoro e no Sudoeste da atual Uganda, as ideias e as estruturas kubandwa há muito eram os esteios da oposiçao a autoridade das capitais políticas. Fechadas a ingerencia do Estado e ferozmente opostas a seus princípios e atividades, as organizaçoes kubandwa cumpriram um papel decisivo e as vezes tiveram poder suficiente para se oporem ao poder político de uma regiao e triunfar sobre ele. O mais importante de todos os movimentos kubandwa conhecidos girava em torno da deusa Nyabingi. Esse movimento nyabingi exprimia a oposiçao ao Estado ruandes, que estava institucionalizando sua influencia para além do antigo centro de Ruanda, em particular em direçao ao Norte e ao Oeste. Na fronteira entre as atuais República Democrática do Congo e Uganda, na regiao de Kigezi, assim como em algumas partes do Nkore, os adeptos de Nyabingi organizaram- se para se oporem a expansao do Estado ruandes em seus domínios. No final do século XIX, Nyabingi cristalizou a resistencia a autoridade política em geral, bem como as atividades coloniais europeias tais como eram sentidas pelas populaçoes da regiao34. Conclusao No século XIX, a regiao dos Grandes Lagos apresentava- se menos como um cadinho de organizaçoes estatais centralizadas do que como o palco de lutas e conflitos entre os interesses e as forças ali presentes, tanto dentro como fora de um determinado conjunto. Por um lado, os Estados rivalizavam- se para impor sua autoridade sobre as zonas agrícolas vassalas que lhes forneciam produtos tais 32 D. W. Cohen, 1977. 33 R. M. Packard, 1981. 34 I. Berger, 1981. 342 África do século XIX a década de 1880 como sal, gado e ferro, e disputavam as vias de acesso as redes de distribuiçao e o domínio sobre as mesmas. Essa luta nao opunha apenas os Estados entre si, mas fazia com que também se enfrentassem Estados e organizaçoes ou empresas constituídas com base em modelos muito diferentes das estruturas estatais da regiao. Por outro lado, os cidadaos comuns esforçavam- se, por meio de um jogo complexo de participaçao e oposiçao, para definir o espaço político, social e econômico que podia ser o de suas atividades e de sua segurança. Tanto para o indivíduo como para a família, o Estado da regiao dos Grandes Lagos apresentava- se mais como explorador do que como protetor. As populaçoes reagiam em funçao de suas limitaçoes e possibilidades, reorientando a produçao e o comércio de forma a escapar das exigencias do Estado; evacuando os territórios submetidos a excessivas pressoes externas; aderindo as novas comunidades religiosas; procurando refúgios seguros; ou, ainda, apoiando tentativas de derrubada do poder constituído. No século XIX, a regiao dos Grandes Lagos nao era só um conjunto de Estados, pequenos e grandes, mas também um mundo onde o indivíduo e a família mudavam incessantemente – de mil maneiras e as vezes de forma imperceptível – de atitude em relaçao a autoridade do Estado, a participaçao social, a produçao e ao comércio. O tempo transcorrido dificulta muito a observaçao precisa da vida cotidiana no século XIX na regiao dos Grandes Lagos. Contudo, as tendencias a mudança e as forças de mudança – identificáveis na produçao e no consumo, no comércio, nas relaçoes entre Estados, e nas relaçoes entre o povo e as cortes – geravam na vida cotidiana tensoes que nao podem ser ignoradas. Essas tensoes penetraram no âmbito doméstico, desencadeando toda uma série de pressoes e reviravoltas, muitas das quais seriam mais tarde interpretadas como consequencias do colonialismo europeu.