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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO (UFPE)

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS (CFCH)


PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA (PPGH)
DISCIPLINA: HISTÓRIA ORAL E MEMÓRIA
DOCENTE: ANTONIO TORRES MONTENEGRO

LUIZ HENRIQUE SANTOS FERREIRA DA COSTA

HISTÓRIA E MEMÓRIA – JACQUES LE GOFF

Recife
2019
No início do capítulo, o autor descreve de forma mais ampla como o conceito de
memória é tratado no contexto científico global. “A memória, como propriedade de
conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções
psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas,
ou que ele representa como passadas.” P.366.

Le goff aproxima a discussão da memória ligada a esfera das ciências humanas e


sociais. Citando Pierre Janet, o autor apresenta o pensamento de que o ato mnemônico
fundamental é a narrativa que se caracteriza por sua função social de comunicação.

Para Henri Atlan, a utilização de uma linguagem falada e depois escrita


possibilita uma extensão de armazenamento da memória que ultrapassa os limites do
corpo humano.
Tratando sobre amnésia, o autor afirma que pode ser uma falta ou perda,
voluntária ou involuntária da memória coletiva. Esse pensamento me remete à uma das
dimensões da memória: o esquecimento. O esquecimento voluntário de, por exemplo,
um trabalhador que quer se desvencilhar de um passado seja por um trauma ou por estar
em uma situação de interpelação onde o seu pertencimento a determinado movimento,
sindicatos, partido é visto como algo criminoso e sujeito à repressão do Estado. Le goff
afirma que “Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses
mecanismos de manipulação da memória coletiva”. P.368

1. A memória Étnica
O autor reserva a designação do termo memória coletiva para os povos sem
escrita, mas lembra que a memória fora da escrita também está presente nas sociedades
com escrita.
Le goff argumenta que a memória que a memória coletiva para os povos sem
escrita está relacionada aos seus mitos fundadores/mitos de origem e que essa memória
guardaria os conhecimentos práticos, técnicos e saberes profissionais.
Dialogando com Balandier, o autor diz que nas sociedades sem escrita existem
pessoas com o dever de serem os guardiões da memória cujo papel é manter a coesão do
grupo.
Um aspecto fundamental da memória étinica, é entender que ela não é
transmitida palavra por palavra, pois a rememoração exata não é tão útil quanto a
liberdade e as possibilidades criativas para a narrativa em detrimento da repetição exata.
Le goff também por meio de diferentes exemplos, como o dos druidas gauleses,
que o desapreço pela memória escrita em algumas sociedades estava relacionado com o
fato de não negligenciar a memória confiando na escrita.

2. O desenvolvimento da memória: da oralidade à escrita, da pré-história à


antiguidade
O autor define a utilidade da memória coletiva nas sociedades sem escritas em
três esferas: fundação e perpetuação dos mitos de origem; prestígio das famílias
dominantes pela genealogia; saber técnico e prático transmitido.
Assim, o surgimento da escrita transforma profundamente a memória coletiva.
Agora a memória coletiva ganha o viés de comemoração através de um monumento
comemorativo de um acontecimento memorável. O autor discorre a respeito das
sociedades antigas do oriente onde os reis utilizaram-se de estelas para gravar seus
feitos através de representações figuradas acompanhadas de uma inscrição. Essas estelas
poderiam ser funerárias, jurídicas, religiosas, etc.
Para Le Goff, na Grécia e Roma antiga “as inscrições acumulavam-se e
obrigavam o mundo greco-romano a um esforço extraordinário de comemoração e de
perpetuação da lembrança. A pedra e o mármore serviam na maioria das vezes de
suporte a uma sobrecarga de memória. ” P.373
O autor dialoga com Lerou-Gourhan ao entender que a evolução da memória,
ligada ao aparecimento e difusão da escrita, depende do desenvolvimento social e
urbano, pois cabe a escrita registrar “[..]tudo o que nas novas estruturas das cidades não
é fixável na memória de modo completo, nem em cadeias de gestos, nem em produtos"
Para Goody, o aparecimento da escrita está ligada à mnemotécnicas que
permitem a memorização palavra por palavra. Essa técnica também está ligada ao
desenvolvimento do comércio que exige a memorização de números. Ou seja, o
aparecimento da memória escrita também está dentro da dimensão do surgimento de um
novo poder.
Le goff elucida que para os gregos, a escrita enfraqueceria a memória porque
apoiando-se no escrito, deixa-se de exercitar a memória. Para Platão, A memória perdeu
o seu aspecto mítico, mas não procura fazer do passado um conhecimento: quer
subtrair-se à experiência temporal. Aristóteles distingue “a memória propriamente dita,
a mnernê, mera faculdade de conservar o passado, e a reminiscência, a mcannesi,
faculdade de evocar voluntariamente esse passado –, a memória, dessacralizada,
laicizada, está "agora
incluída no tempo, mas num tempo que permanece.”

É importante ressaltar que os gregos dessacralizaram a memória e a colocaram a


serviço da organização, contribuindo assim para o aperfeiçoamento de técnicas de
memorização que associam imagens a uma posição, como o alfabeto. Esse povo
também foi responsável pela mnemotécnica de distinção entre memória das coisas e
memória das palavras.

3. A memória medieval no Ocidente.

Na idade média, a memória coletiva sofre profundas transformações. O autor


atribui ao cristianismo papel fundamental nessas mudanças. A saber: “Cristianização da
memória e da mnemotecnia, repartição da memória coletiva entre uma memória
litúrgica girando em torno de si mesma e uma memória laica de fraca penetração
cronológica, desenvolvimento da memória dos mortos, principalmente dos santos, papel
da memória no ensino que articula o oral e o escrito, aparecimento enfim de tratados de
memória (artes memoriae), tais são os traços mais característicos das metamorfoses da
memória na Idade Média.” P. 382.
Le goff explica que o cristianismo possui a dimensão da lembrança como tarefa
fundamental, pois em várias passagens bíblicas, Deus exige à lembrança dos homens
aos seus ensinamentos. Uma outra via da memória cristã é negar a experiência temporal
e a história em prol de um pensamento escatológico.
É possível notar que a memória cristã se manifesta na “comemoração de Jesus,
anualmente na liturgia que o comemora do Advento ao Pentecostes, através dos
momentos essenciais do Natal, da Quaresma, da Páscoa e da Ascensão, cotidianamente
na celebração eucarística, a um nível mais "popular" cristalizou-se sobretudo nos santos
e nos mortos.” P. 385
O historiador medievalista também observa que nesse período os velhos eram
venerados por serem homens-memória.
Ainda sobre o medievo, o autor explica que “Durante muito tempo, no domínio
literário, a oralidade continua ao lado da escrita e a memória é um dos elementos
constitutivos da literatura medieval. Tal é particularmente verdadeiro para os séculos XI
e XII e para a canção de gesta que não só faz apelo a processos de memorização por
parte do trovador (troubadour) e do jogral, como por parte dos ouvintes, mas que se
integra na memória coletiva como bem o viu Paul Zumthor a propósito do "herói"
épico: "O herói não existe senão no canto, mas não deixa de existir também na memória
coletiva, na qual participam os homens, poeta e público.
Em uma época que saber de cor é saber, multiplicam-se os glossários, listas de
cidades, montanhas, rios, etc.
Le goff destaca que as teorias da memória se desenvolvem na retórica e na
teologia. O autor oferece ao leitor um avanço diacrônico da idade média e coloca em
perspectiva diferentes entendimentos sobre a memória. Surge então técnicas que ajudam
na recordação: criação de simulacros, ordenação das coisas que se deseja lembrar e
meditação.

4. Os progressos da memória escrita e figurada da Renascença aos nossos


dias.

Nesse ponto do texto, o autor argumenta que "Até o aparecimento da imprensa...


dificilmente se distingue entre a transmissão oral e a transmissão escrita. A massa do
conhecido está mergulhada nas práticas orais e nas técnicas; a área culminante do saber,
com um quadro imutável desde a Antiguidade, é fixada no manuscrito para ser
aprendida de cor... Com o impresso... não só o leitor é colocado em presença de uma
memória coletiva enorme, cuja matéria não é mais capaz de fixar integralmente, mas é
frequentemente colocado em situação de explorar textos novos. Assiste-se então à
exteriorização progressiva da memória individual; é do exterior que se faz o trabalho de
orientação que está escrito no escrito”
No séc XVIII, Le goff explica a importância dos dicionários e enciclopédias que
constituem uma forma muito evoluída de memória exterior que se constitui de forma
alfabética e parcelar. Entre o Século XVII e XVIII o culto a memória dos mortos entra
em declínio. Pierre Muret atribui isso ao protestantismo. Após a revelução francesa,
essa memória dos mortos volta à tona e começa uma nova era dos cemitérios,
monumentos fúnebres e a volta do rito de visitar os mortos.
Assim, surgem pontos fundamentais para a compreensão dessa parte do texto: O
surgimento da imprensa, a matematização da memória que se assemelha com a atual
cibernética, o surgimento da fotografia, que revoluciona a memória: multiplica-a e
democratiza-a, dá-lhe uma precisão e uma verdade.
É importante lembrar que “Ao mesmo tempo, o movimento científico, destinado
a fornecer à memória coletiva das nações os monumentos de lembrança, acelera-se. Na
França a Revolução cria os Arquivos nacionais (decreto de 7 de setembro de 1790). O
decreto de 25 de junho de 1794, que ordena a publicidade dos arquivos, abre uma nova
fase, a da pública disponibilidade dos documentos da memória nacional.
O século XVIII criara os depósitos centrais de arquivo” p. 400
A primeira guerra mundial funda o Túmulo do soldado desconhecido, a fim de
ultrapassar a memória associada ao anonimato e buscando a coesão da nação.

5. Os desenvolvimentos contemporâneos da memória

Leroi-Gourhan dividiu os processos de constituição da memória coletiva da


seguinte forma: "o da transmissão oral, o da transmissão escrita com tábuas ou índices,
o das fichas simples, o da mecanografia e o da seriação eletrônica”.
“A memória coletiva tomou, no século XIX, um volume tal que se tornou
impossível pedir à memória individual que recebesse o conteúdo das bibliotecas. ”
p.403
O autor argumenta que o surgimento da memória eletrônica é espetacular, pois
existe uma capacidade gigantesca para armazenar dados bem como a praticidade da
entrada e de acesso aos registros.
Ao tratar do século XX, o autor discorre sobre a expansão do conceito de
memória no campo da sociologia, filosofia e literatura, elencando as obras de Bergson,
Marcel Proust, Freud e Maurice Halbwachs.
A memória coletiva não mais será pesquisada nos acontecimentos, mas ao longo
do tempo, acontecendo então a busca dessa memória menos nos textos do que nas
palavras, nas imagens, nos gestos, nos ritos e nas festas; é uma conversão do olhar
histórico.
Para Nora, a memória coletiva, é "o que fica do passado no vivido dos grupos,
ou o que os grupos fazem do passado".
Le goff defende que “a história dita "nova", que se esforça por criar uma história
científica a partir da memória coletiva, pode ser interpretada como "uma revolução da
memória" fazendo a cumprir uma "rotação" em torno de alguns eixos fundamentais:
"Uma problemática abertamente contemporânea... e uma iniciativa decididamente
retrospectiva", "a renúncia a uma temporalidade linear" em proveito dos tempos vividos
múltiplos "nos níveis em que o individual se enraíza no social e no coletivo"(lingüística,
demografia, economia, biologia, cultura)P.408. Uma História que fermenta a partir dos
lugares da memória coletiva. Para o autor, os verdadeiros lugares da história são os
“Estados, meios sociais e políticos, comunidades de experiências históricas ou
de gerações, levadas a constituir os seus arquivos em função dos usos diferentes que
fazem da memória". P.408

6. Conclusão: O valor da memória.

O autor atenta para “a memória coletiva que não é somente uma conquista, é
também um instrumento e um objeto de poder. São as sociedades cuja memória social é
sobretudo oral ou que estão em vias de constituir uma memória coletiva escrita que
melhor permitem compreender esta luta pela dominação da recordação e da tradição,
esta manifestação da memória.” P.410
Le goff defende que “Nas sociedades desenvolvidas, os novos arquivos
(arquivos orais e audiovisuais) não escaparam à vigilância dos governantes, mesmo se
podem controlar esta memória tão estreitamente como os novos utensílios de produção
desta memória, nomeadamente a do rádio e a da televisão. Cabe, com efeito, aos
profissionais científicos da memória, antropólogos, historiadores, jornalistas,
sociólogos, fazer da luta pela democratização da memória social um dos imperativos
prioritários da sua objetividade científica”.p.411
Podemos ver nesse trabalho como o historiador monta sua narrativa através de
vários exemplos para cada problemática levantada. O texto faz com que o leitor
caminhe acompanhado da cronologia das discussões acerca da memória bem como dos
muitos exemplos que fundamentam a argumentação do autor.

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