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CHARLES BETTELHEIM

AS

NA .

3~ período: Os Dominantes
1930-1941
LIVRO 1 - EMP. CULTURAIS
TEL. 231.5213
RECIFE
TE L. 271 .3359
UFPE RECIFE
TE L. 221.4249
J. PESSOA TEL. 321 .4930
C. GRANDE
CERTIFICADO DE GARANTIA
PARA DEFEITOS GRÁFICOS Obra n." 10422086 2

Título: AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-


OS DOMINANTES- 3. o Período

Autor: Charles Bettelheim


fJ Colecção: «Estudos e Documentos»

~ ~"": ;~~;;;;:,~;;,: ..... Factura de fornecimento

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VENDA DO LIVRO, PARA SEU CONTROLO DE
7 DAS E REPOSIÇÃO DE NOVO EXEMPLAR.
Este livro só poderá ser devolvido se fornecido em
DE ASSINATURA DE NOVIDADES e de acordo com
dáusulas 12.• a 17.• do Contrato de Agência.
@ PUBliCAÇOES EUROPA·AM~RICA Mod . 12.293- Impresso por Grifica
obras publicadas nesta colecção:

1- Ensaios (vol. VII), António Sérgio. 35 - Educaçi1o Estética e Ensino Bs-


2 -A Ciéncia Económica e a Acção, colar, João dos Santos, Nlldas
P. Mendes-France e G. Ardant. Skapinakis, João de Freitas Bran-
3- Ensaios (vol. V), António Sérgio. co, Luís Francisco Rebello, Nuno
4- A Loucura dos Homens, Jules Portas e Rui Grácio.
Moch. 36 - Aku-Aku - O Segredo da Ilha de
5- Pode-Se Modificar o Homem?, Jean Páscoa, Thor Heyerdahl.
Rostand. 37- Baudelaire, Jean-Paul Sartre.
6- Ensaios (vol. 11), António Sérgio. 38 - Portugal, Pais Macrocéfalo, Silva
7- Cartas de Fernando Pessoa a João Costa.
Gaspar Simões. 39- A Caça aos Sdbios Alemães, Mi-
8- U. R. S. S. -Depoimento Dum So- chel Bar-Zohar.
cialista Francés, Jules Moch. 40- China- De Confúcio a Mao Tsé-
9 - Os Manuscritos do Mar Morto, tung, A. dos Santos Matias.
John Marco Allegro. 41 - Oito Ensaios sobre Arte Contem-
10 -As Maravilhas do Cinema, Georges pordnea, José-Augusto França.
Sadoul. 42 -Ensaios Queirosianos, António
11 -Recordações da Minha Vida Mor- Coimbra Martins.
ta, René Lerich. 43- O Homem em Questão, Claude
12- O Sexo e a Sociedade, Keneth Roy.
Walker e Peter Fletcher. 44- Vietname - Nas Duas Margens
13 - Recordações e Confidéncias do do Interno, Michele Ray.
R. P. Dominique Pire, Hughes 45- Situação da Arte, (organização de
Vehenne. Eduarda Dionísio, Almeida Faria
14- Mais Brilhante Que Mil Sóis, e Luís Salgado de Matos).
Robert Jungk. 46- Mao Tsé-tung, Stuart Schram.
15- Dicionário Critico de Algumas 47- Situações I, Jean-Paul Sartre.
Ideias e Palavras Correntes, An- 48 -Situações II, Jean-Paul Sartre.
tó,nio José Saraiva. 49- Ho Chi Minh, Jean Lacouture.
16 - (} Medo e os Conflitos Emocio- 50- O Macaco Nu, Desmond Morris.
nais no Mundo Moderno, Peter 51 -A Vida e os Homens, Ilya Ehren-
Fletcher. bourg.
17- Hiroshima Renasce das Cinzas, 52- História da Bomba Atómica,
Robert Jungk. Leandro Castellani e Luciano GI-
18- Para a História da Cultura em gante.
Portugal (vol. I), A. J. Saraiva. 53 -América em Fogo, James Hep-
19- Para a História da Cultura em burn.
Portugal (vol. II), A. J. Saraiva. 54 - A Conquista da Lua, Peter Ryan.
20- O Flagelo da Suástica, Lord Rus- 55- Lisboa, Uma Cidade em Trans-
sel of Liverpool. formação, Keil Amaral.
21 - Uma Nova Asia, Anton Zischka. 56- O Zoo Humano, Desmond Morris.
22 - Geografia e Economia da Revo- 57- O Livro Negro da Ditadura Grega.
lução de 1820, Fernando Piteira 58 - A Revolução Cultural Chinesa,
Santos. Alberto Moravia.
23- A República Moderna, Pierre 59- A Batalha do Silêncio, Vercors.
Mendes-France. 60- Os •Hippies•.
24- A História Começa na Suméria, 61 -Anatomia da Nova Europa, An-
Samuel Noah Kramer. thony Sampson.
25- Na Pele de Um Negro, John Ho- 62- O Calvdrio, Péricles Korovessis.
ward Griffin. 63 - O Macaco Louco, Albert! Szentl-
26- Vida. Esplrito e Matéria, Erwin Gyorgyi.
SchrOdinger. 64- Socialismo Africano, Eduardo dos
27- História da Gestapo, Jacques De- Santos.
larue. 65- A Biologia da Arte, Desmond
28- Verdadeira História dos Concl- Morris.
lios, Jean-Louis Schonberg. 66- Coordenadas da Educação Perma-
29- Símbolos & Mitos, Fidelino de nente, Pedro Morais Barbosa.
Figueiredo. 67- Situações III, Jean-Paul Sartre.
30- Situação da Arte Moderna, Jean 68- Do Livro a Leitura, José Palia e
Cassou Carmo.
31- A Margem do Tempo, Michel 69- Situações IV, Jean-Paul Sartre.
Siffre. 70- O Milagre Económico Japonês -
32 -Por Um Novo Romance, Alain 1950-1970, Hubert Brochier.
Robbe-Grillet. 71- O Acaso e a Necessidade, Jacques
33 -Realidade Ficção, Bertrand Monod.
Russell. 72- O Hipnotismo, Karl Weissmann.
34- Gil Vicente e o Fim do Teatro Me- 73- Homens e Macacos, Ramona e
dieval, António José Saraiva. Desmond Morris.
74- Brasil - Mundo em Con.struçilo, U17 - Uri G.zl.,. - Crdnica de Um
A. Sebastião Gonçalves. Enigma, Andrija Puharich.
75- Os Cinco Comuntsmos, Gilles 108 - Operação •Ogro» - Como e Porqul.
Martinet. Executdmos Carrero Blanco, Julen
76- Panjamon- Os Caçadores de Ca- Agirre.
beças, Jean-Yves Domalain. 109- História da Repressão Sexual, Jos
77 - A República E_çpanhola e a Van Hussel.
Guerra CiVtl-1931-1939 (vol. 1), 110- Situações VI, Jean-Paul Sartre.
Gabriel Jackson. 111 -O Berço da Europa- História dos
78 - A República Espanhola e a Etruscos, Werner Keller.
Guerra Civil-1931-1939 (vol. II), 112- Os Charlatães da Nova Pedagogia,
Gabriel Jackson. Lucien Morin.
79 - Reprodução das Espécies, Des- 113 - Situações VII, Jean·Paul Sartre.
mond Morris. 114- O Conflito China-U. R. S. S. (vol. I
80- O Perigo Americano, Christian -Da Aliança ao Confltto), Fran·
Goux e Jean-François Landeau. çois FeJtõ.
81 - O Surrealtsmo na Poesia Portu- 115-0 Confltto China-U.R.S.S. (vol. II
guesa, Natália Correia. - A Chma perante Dois Intmi-
82- A Unidade da Oposição à Dit~ gos), François Feitõ.
dura (1928-1931), coordenação de 116- A Convivenc1alidade, Ivan lllich.
A. H. de Oliveira Marques. 117- Sexualidade e Feminidade,
83- A Pri.metra Legzslatura do Estado B. Muldworf.
Novo (1935-1938), coordenação de 118 -A Ltga de Parts e a Ditadura
A. H. de Oliveira Marques. Mtlitar (1927-1928), organização de
84- O Novo Jogo do Petróleo, Jean- A~ H. de Oliveira Marques.
Marie Chevaher 119- Cristãos e Comunistas, vários.
85- O Poder da Informação, Jean- 120- A Energta Sexual. Robert S. de
Louis Servan-Schreiber. Ropp.
86 - Sobreviver, Dougal Robertson. 121 -Economia do Bem-Estar e Econo--
87 -Júlio Dzms, organ.izaç.ão de Li- mta Soctalista, Maurtce Dobb
berto Cruz. 122- As Lutas de Classes na U R. S. S.,
88 - O Segundo Governo de Afonso Charles Bettelheim.
Costa (1915-1916), coordenação de 123- A Longa Marcha, Claude Hudelot.
A. H. de Oliveira Marques. 124- A Escola e a Repressão dos
89- Antologia da Histonografia Por- Nossos Fzlhos, vários.
tuguesa (vol. I), organização de 125- O Estalintsmo- História do Fenó--
A. H. de Oliveira Marques. meno Estalintano, Jean Elleinstein.
90- A Intervenção Americana no 126- Os Parttdos Comumstas da Eu·
Cht1e, Armando Uribe. ropa Ocidental, Neil Mclnnes.
91- Crescimento Zero?, Alfred Sauvy. 127- Os Poderes do Sobrenatural, Ro-
92- Antologta da Historiografia Por- bert Tocquet.
tuguesa (vol. II), organização de 128- A Democracta Socialista, Roy
A. H. de Oliveira Marques. Medvdev.
93 -O Que Eu Sei de Sol1emtsine, 129- A Economia do Diabo, Alfred
Pierre Daix. Sauvy.
94- Diário de Um Reststente, Mikis 130- O Socialismo do Silêncio. Pierre
Theodorak1s. Datx.
95- Mais além com... (entrevista de 131- A Doença Conjugal, Dr. Gllbert
L'Express com várias personali- Tordtman.
dades). 132- Pedagogia e Educadores Socialts~
96- As Democractas Populares (vol. I - tas. Êmile Chanel.
A Era de Estaline), François Fe1tó. 133- Fui Traftcante de Feras. Jean-Yves
97- As Democracias Populares (vol. II Domalain.
-Depois de Estaline), François 134- Diáno - vol. II (1972-1976), João
Feito. Palma~ Ferreira.
98- A Empresa na Untão Soviética, 135- Suécta -O Rosto da Soctal-Demo-
Erik Egnell e Michel Peissik. cracia, Guy de Faramond.
99- Amanhã, a Espanha, Santiago 136 - A Neurose Cristã, Dr. Pierre So-
Carrillo. lignac.
100- Ltberdade e Ordem Social (con- 137- Documentos - Discursos - Men-
ferências e debates dos XXI En- sagens, Josip Broz Tito
contros Internacionais de Gene- 138- Nas Trevas da Longa Nozte, Ma·
bra). nuel Firmo.
101-1. T. T.- O Estado Soberano, 139- A Economia Obediente, Georges
Anthony Sampson. Sokolo!f.
102- Confesso Que Vwi, Pablo Neruda. 140- Os Russos, Hednck Smith.
103 - Relatórto Stmon, P1erre Simon. 141- Vida Ignorada de Camões, José
104- Chma, Outro Modo de Vtver, Wil- Hermano Saraiva.
fred Burchett. 142- As Lutas de Classes na U. R. S. S.
105- Depoimento Inacabado - Memó- -2. 0 Período: 1923-1930, Charles
nas, Vasco da Gama Fernandes. Bettelheim.
106- Cultura e Dtmensões Polttü.as. 143 -A Mulher Homossexual, Mana La·
Mikls Theodorakis. go-Dr.a France Paramelle.
144- Medicina Liberal ou Nacionalr- 176- A Cadeira de Sidónio ou a Memó-
tada?, Guy-Pierre Cabanel. ria do Presidencialismo, José Frei-
145- O Que E o Mercado Comum, João re Antunes.
Ribeiro Ferraz. 1n -Os Árabes, Maxime Rodinson.
146- As Vias da Democracia na Socie. 178- Caminhos de Evasão, Graham
dade Socialista, Edvard Kardelj. Greene.
147- A Grafologra -Método de Explora- 179- O Movimento Sindical Português
ção Psicológica, Suzanne Bresard. -A Prime~ra Cisão, César de
148- Acreditei na Manhã, Pierre Da.ix. Oliveira.
149- As Forças Armadas e as Crises 180- Alternatzva Económica e Transfor-
Nacwnais - A Abrilada de 1961, mação Social, Augusto Duarte.
Fernando Valença. 181 -Os Donos de Cuba, Juan Vivés.
150- Freud -Introdução à Psicanálise, 182- Socialismo sem Dogma, Sottomayor
Octave Mannonf. Cardia.
151 - Os Sindicatos Americanos - Con- 183- Liberdade para Escolher, Milton
flito ou Cumplicidade?, Jean Pierre Friedman e Rose Fried.man.
Cot e Jean-Pierre Mounier. 184 - Memória da Reforma Agrária, An-
152- Trabalhos Parlamentares, Vasco tónio Barreto.
da Gama Fernandes. 185- Perante a Guerra- As Realida-
153- Um Projecto para Portugal, Vito- des, Cornelius Castonadis.
rino Magalhães Godinho. 186 - Conflitos Sociais nos Campos do
154- Htstóri.a do Movimento Operário Sul de Portugal, José Pacheco
e das I detaS Soczalz.stas em Por- Pereira.
tugal - I. Cronologia, Carlos da 187 -O Diretto da Terra, Maria José
Fonseca. Nogueira Pinto.
155 -A U. R. S. S. e Nós, vários. 188 -História da Legião Estrangeira-
156- Raul Proença e a «Alma Nacio- I, Georges Blond.
nal», Fernando Piteira Santos. 189- História da Legião Estrangeira-
157- História do Movzmento Operdrio II, Georges Blond.
e das Ideias Socialistas em Por- 190- Luz sobre a Idade Média, Regine
tugal- II. Os Primeiros Congres· Pernoud.
sos Operdrios (1865-1894), Carlos 191- •Não Tenham Medo!» - Didlogo
da Fonseca. com João Paulo 11, André Fros·
158 -Tudo ou quase sobre Economia, sard.
J. K. Galbraith e Nicole Salinger. 192- Falsz/icações da Hr.stórúJ, Marc
159- Nasci para Nascer. Pablo Neruda. Ferro.
160- Quando Falar e Escrever Era Pe· 193 - Memórias Secretíssimas do Mar-
rigoso (Antes do 25 de Abril), José quês de Pombal e Outros Escri-
Magalhães Godinho. tos, Sebastião José de Carvalho
161 -Dois Comunistas na União Sovié- e Melo.
tica ou a U.R.S.S. do Outro Lado 194- Da Natureza da U. R. S. S., Edgar
do Espelho, Nina e Jean Kéhayan. Morin.
162 - Portugal e a Guerra Civil de Es- 195 -o Sangue dos Homens, Jean Ber·
panha, Iva Delgado. nard.
163 -A Sua Imagem- O Primetro Clo- 196- A Rede do Terror, Claire Sterling.
ne Humano?, David M. Rorvik
164 - Vodka-Cola, Charles Levinson. l97- Escd.ndalo no Vaticano. Richard
165- Viver sem Petróleo, J. A. Grégoire.
Hammer.
198- A Alucinação Nuclear, Georges F.
166- Sete Sindicalismos, Gilles Martinet. Kennan.
167- História do Movimento Operdrio e 199- Carta a Fidel Castro, Ano: 1984,
das Ideias Socialtstas em Portugal Arrabal.
-III. O Operariado e a Igreja 200- A Soaedade da Abundâ.ncia, John
Militante, Carlos da Fonseca. Kenneth Ga!braith.
168 - Htstória do Movimento Operário 201 - Textos e Ensaios, João Palma-Fer-
e das I deras Soczaltstas em Por- reira.
tugal - IV. Greves e Agitação Ope- 202 - Camões e Pessoa, Poetas da Uto-
rária, Carlos da Fonseca. pia, Jacinto do Prado Coelho.
169- Amanhã, o Capitalismo, Henri Le- 203- Históna do Cative"o dos Presos
page. • de Estado na Torre de S. Julião
170- O Mito Cristão e os Manuscntos da Barra de Lisboa, João Baptista
do Mar Morto, John M. Allegro. da Silva Lopes.
171- O Segredo do 25 de Novembro, 204- Didrro da Reforma AgrdriJl, Teresa
José Freire Antunes. Almada.
172- A Informatização da Sociedade, 205- Revolução e Insti!uiçõe.s- A Ex-
Simon Nora e Alain Mmc. tinção dos Grémws da Lavoura
173- Os Gestos, Suas Origens e Signi· Alentejanos, Manuel de Lucena.
ficados, Desmond MoiTis. 206- A Vida Inteltgente no Universo,
174- O Erro do Ocidente, Solienitsine. Carl Sagan e L S. Chklovski.
175 -A Guerrilha do Remexido, Antó- 2111 - As Lutas de Classes na U. R. S. S.
nio do Canto Machado e António - J.• Perloda: 1930-1941, Charles
Monteiro Cardoso. Bettelheim.
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208- Escritos Intimes- I, Roger Vad- 216 - O Abuso Psiquidtrico na União


land. Soviética, Dr. Sidney Bloch e
209- Escntos lntimos -II, Roger Vail- Peter Reddaway.
land. 217 - Cinzas Dum Templo Perdido -
210- O Cometa de Halley, Donald Ascensão e Queda das FP-25?,
Tattersfield. J. C. Macedo.
211 - Geogr<L/U:! da Reforma Agrária, 218- O Frio e a Escuridão- O Mundo
Maria João Costa Macedo. após a Guerra Nuclear~ Donald
212- O Sangue e a História, Jean Ber· Kennedy, Paul R. Ehrlicb, Carl
nard. Sagan e Walter Orr Roberts.
213 -História Polittca de Portugal de 219- Pausas de Reflexão - Meditações
19JO.J926, Douglas L. Wheeler. para Todos os Dias do Ano, João
214- Uma Solução para Portugal, Diogo Paulo II.
Freitas do Amaral. 220- As Lutas de Classes na U. R. S. S.
215- O Tempo dos Assassinos, Claire - 3. 0 Período: 1930-1941- Os Do-
Sterling. minantes, Charles Bettelhe1m.
Obras publicadas sobre sovietologia

Nesta colecção:

75- Os Cinco Comunismos, Gilles Martinet.


93 - O Que Eu Sei de Soljenitsine, Pierre Daix.
96 e 97- As Democracias Populares, François Fejtõ.
98- A Empresa na União Soviética, Erik Egnell e Michel Peissik.
114 e 115- O Conflito China-U. R. S. S., François Fejtõ.
121 -Economia do Bem-Estar e Economia Socialista, Maurice
Dobb.
125- O Estalinismo, Jean Elleinstein.
126- Os Partidos Comunistas da Europa Ocidental, Neil Mcinnes.
128 -A Democracia Socialista, Roy Medvedev.
130- O Socialismo do Silêncio, Pierre Daix.
139- A Economia Obediente, Georges Sokoloff.
140- Os Russos, Hedrick Smith.
148 -Acreditei na Manhã, Pierre Daix.
155- A U. R. S. S. e Nós, vários.
161 -Dois Comunistas na U. R. S. S., Nina e Jean Kéhayan.
164- Vodka-Cola, Charles Levinson.
174- O Erro do Ocidente, Soljenitsine.
181- Os Donos de Cuba, Juan Vivés.
185 -Perante a Guerra, Comelius Castoriadis.
194-Da Natureza da U. R. S. S., Edgar Morin.
196- A Rede do Terror, Claire Sterling.
198- A Alucinação Nuclear, George F. Kennan.
216- O Abuso Psiquiátrico na União Soviética, Sidney Bloch e
Peter Reddway.

Na colecção «Saber»:

73 - O Socialismo, Claude Willard.


89 - O A teísmo, Henn Arvon.
100/1/2/3 -História da U. R. S. S., Jean Elleinstein.
113/4/5- História do Socialismo, Gian Mario Bravo.
162- A Espionagem e a Contra-Espionagem, Jean-Pierre Alem.
167- O Imperialismo, Philippe Braillard e Pierre de Senarclens.
AS LUTAS DE CLASSES
NA URSS
3. o Período: 1930 -1941
OS DOMINANTES
Título orzgmal: Les Luttes de Classes en URSS
Les Dominés

Capa: estúdios P. E. A.

© MasperofSeuil, 1983

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de pequenos textos ou passagens para apresen·
tação ou critica do livro. Esta excepção não
deve de modo nenhum ser interpretada como
sendo extensiva à transcrição de textos em reco-
lhas antol6gica8 ou similares donde resulte pre-
juízo para o interesse pela obra. Os transgres-
sorea são passiveis de procedimento judicial

Editor: Francisco Lyon de Castro

PUBLICAÇÕES EUROPA-AMBRICA, LDA.


Apartado 8 - 27Z6 MEM MARTINS CODEX
Portugal

Edição n.• 104220/4099

Execução técnica:
Gráfica Europam, Lda.,
Mira-Sintra- Mem Martin!
CHARLES BETTELHEIM

AS LUTAS DE CLASSES
NA URSS
3. o Período: 1930 -1941
OS DOMINANTES
Tradução do Prof. Dr. Henrique de Barros

PUBLICAÇOES EUROPA-AMÉRICA
INDICE

Pág.
Aviso 17
Abreviaturas dos títulos e das indicações de editores .. . 18
Glossário. das siglas e dos abreviaturas complementares do glossário
que figura no tomo primeiro .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . 19

Primeira parte
O SECRETÁRIO ABSOLUTO E O PROLETÁRIO iDOW

Capítulo I. Os temas e as práticas ideológicas do estalinismo 25

I. A ideologia politica e jurídica .. . .. . .. . 26


1. O «papel dirigente do partido» .. . .. . 26
2. O «culto do partido e do seu chefe» .. . 30
3. A idolatria do Estado .. . ... .. . .. . .. . 32
A) A tese estalinista do reforço do Estado 33
B) A negação da «função repressiva» do Estado .. . .. . 34
C) O Estado, os direitos do indivíduo e a Constituição
de 1936 ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 36
D) A forma específica da idolatria estalinista do Estado
e a ideologia bolchevique .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . ... .. . 38
E) O Estado soviético sucessor do Estado russo .. . . .. .. . 39
4. A C!'l!lPOnente nacionalista russa da formação ideológica
estalimsta .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . . . . .. . .. . .. . 40
A) O nacionalismo estalinista e o passado imperial do
czarismo . . . .. . .. . . .. .. . . . . .. . .. . . .. .. . . . . .. . . .. 41

11
Pág.
B) A Constituição de 1936 e o nacionalismo russo 42
C) Nacionalismo, elitismo e nacional-bolchevismo 44
II. A ideologia económica estalinista . . . 48

1. O modo de produção socialista . . . 49


2. A propriedade socialista . . . . . . . . . 49
3. A economia planeada ... ... ... ... 51
4. As «leis económicas do socialismo» 51

Capítulo II. O funcionamento da formação ideológica esta-


linista ... ... ... 55

I. Cientismo e dogmatismo . .. .. . . . . .. . .. . ... .. . 55


II. A fuga perante o real e a mística do partido . . . 59

Capítulo III. A ideologia prática do estalinismo e os seus


efeitos sociais 64

I. A figura da conspiração . .. 64
II. A ideologia do terror e a formação ideológica soviética 67
III. Os dois códigos da ideologia estalinista 72

1. O código de interpretação . . . . . . . . . . . . . . . 73
2. O código de fidelidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
ANEXO: Serão marxistas os direitos do homem? 81

Segunda parte
OS DOMINANTES ENTRE CÃES E WBOS (1928-1938)

Capítulo I. A «revolução cultural» (1928-1931) ... 87

I. A revolução cultural como «guerra de classe» . . . 87


1.As decisões e medidas que inauguram e mantêm a «política
de promoção» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
2. O recrutamento dos «especialistas» antes da aplicação da
«política de promoção» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94
3. As razões imediatas da viragem de 1928 ... ... ... ... 96
II. Os efeitos da política de promoção sobre a estrutura da
nova classe dominante e sobre a classe operária . . . . . . 98
m. A repressão contra a «antiga intelligentsia» ... . . . .. . . . . . . . 101

12
Pág.

Capítulo II. As primeiras tentativas de «acertar o passo»


do partido pelo do grupo dirigente . . . 106

I. A resoluçãn do Plenário de Abril de 1929 . . . . . . 107


II. Os «desvios» e a acção dos «inimigos de classe» 109
III. O «caso» Lomanidzé e Syrstov . . . . . . . . . . .. . . . 110

Capítulo III. A «retirada)) dos anos 1931 a 1934 113


I. A subida aberta do conservantismo . . . . . . . . . . . . 113
l. O abandono da «revolução cultural» na produção . . . . . . 113
2. O abandono da «revolução cultural» na literatura e na arte 116
II. A consolidaç~, d_a situação dos quadros. e a multiplicação
dos seus przv!legzos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 117
III. As resistências ao «acertar o passo» do partido . . . . . . . . . . . . 119
l. O «caso Rioutine» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..
2. A resistência de Ordjonikidzé a diversos aspectos da «linha
industriai» do Gensek, suas condições e seus efeitos . . . . . . 122
3. A nova situação e o XVII Congresso . . . . . . . .. . .. . . . . .. 124
4. O debate sobre a «legalidade revolucionária» . . . . . . . . . . . . 129

Capítulo IV. O endurecimento da ditadura do grupo diri-


gente sobre o partido e sobre os quadros
(Dezembro de 1934-Verão de 1936) ... ... ... 134
I. A primeira vaga de terror exercida sabre os membros do
partido e sobre os quadros (Dezembro de 1934-Verãn de
1936) ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 134
I.A instalação de novos altos responsáveis e a reorganização
dos aparelhos do partido e da repressão .. . . . . . . . .. . . . . . . . 135
2. O início do terror contra os membros do partido e contra
os quadros . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 136
II. O desencadeamento e o desenvolvimento do terror em
grande escala contra os quadros (Verão de 1936-fins de
1938) ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 143
1. O Plenário de Março de 1937 e a renovação maciça dos
quadros ... ... ... ... ... ... ... ... 146
2. O NKVD e o expurgo dos quadros .. . .. . 149
3. O caos administrativo e financeiro . . . . . . 152
III. A amplitude da renovaçãn dos quadros .. . 154
l. Os aspectos quantitativos da renovação 154
2. Os aspectos qualitativos . .. . .. . .. . .. . 156
Terceira parte
A BURGUESIA DO PARTIDO INSTALA-sE

Pág.

Capítulo L A transformação do partido . .. . .. . .. .. . . .. .. . 161

I. A renovação da direcção do partido e dos seus quadros 161


II. A renovação dos efectivos do partido . .. .. . . . . . . . . .. . .. 164
ID. As transformações do modo de funcionamento do partido 167

Capítulo II. O processo de consolidação-sujeição da nova


classe dominante . .. . .. ... . .. ... . .. ... . .. .. . . .. 172
I. O terror e o processo de consolidação-sujeição da nova
classe dominante . . . . •. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . • . . . 172
1. A sujeição como contrapartida de poderes e de privilégios 172
2. A sujeição dos quadros e «a acentuação da luta de classe» 173
3. O sistema da charaga ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... •.. 174
II. Unidade e contradição da classe dominante, sujeição ao
grupo dirigente e constituição de uma burguesia de partido 178
m. A subida dos privilégios da nova classe dominante . . . .. . . .. 182

Capítulo III. A transformação das relações do partido com


a classe dominante ... ... ... ... ... ... ... ... ... 188

I. As formas de subordinação dos gestores da indústria ao par-


tido e à direcção deste . . . ... . . . ... ... ... ... . . . . .. ..• .. . 188
1. A gestão industrial e o papel do partido nas empresas nas
vésperas e no princípio dos planos quinquenais . . . . . . . . . . . . 189
2. A ideia de uma fusão da direcção das empresas e do partido 191
3. A instalação de «secções industriais» (1934) e os seus efei-
tos ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 194
4. Nova tentativa de recurso a um controlo dos dirigentes de
empresas pelas organizações primárias do partido (Março
de 1939) . . . ... . .. .. . .. . ... ... ... ... ... . .• ... .. . ..• •.• 197
5. A reconstituição das «secções de produção» . . . . . . . . . . . . 199
6. As formas de sujeição directa de gestores e de engenheiros
ao grupo dirigente . . . .. . . . . ... .. . ... .. . . .. ... .. . .. . . . . 201
II. A penetração rdpida da nova classe dominante no partido
no fim dos anos 30 . . . .. . . .. .. . .. . .. . . . . .. . . . . 203
1. Os estatutos adoptados pelo XVIII Congresso e os <<inte-
lectuais soviéticos» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . .. . .. 204
2. A «renovação» da intelligentsia e a alteração dos estatutos 204
3. Alguns números relativos à entrada no partido da nova
classe dominante ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... •.. 206

14
Pág.

Capítulo IV. A especificidade da nova classe dominante .. . 209


I. As contradições internas da nova burguesia 209
L As contradições entre aparelhos . . . . . . . . . . . . 209
2. As facções nacionais da burguesia soviética 211
3. Os grupos de solidariedade e o «clientelismo» 211
II. O partido e a regulação das contradições internas da nova
classe dominante ... . . . .. . . . . .. . .. . . .. . . . . .. 213
l. A Nomenklatura .. . . . . . .. ... .. . . . . . . . . . . .. . 215
2. Dominação, exploração social e direcção política 217
III.A hierarquização da classe dominante e o seu carácter
«burocrdtico» . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219
IV. A duplicação dos diferentes aparelhos pelo partido e o esta-
tuto deste último . . . . . . .. . ... .. . . . . . .. . .. ... .. . . . . ... 222
V. O «capitalismo de partido» e os seus traços específicos . . . 225

Quarta parte
ANTES HITLER DO QUE A EMANCIPAÇÃO POPULAR

Capítulo I. O período 1928-1934: a denúncia dos países da


«Entente» e a luta contra o «social-fascismo» 231

I. A luta contra o «social-fascismo» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 232


II. A denúncia dos países da «Entente» e a política alemã
da URSS ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 235
III. As tentativas soviéticas para escapar ao /rente-a-frente com
a Alemanha . .. .. . . .. . . . ... . . . . . . .. . .. . . . . . . . . . . . .. ... 238

Capítulo II. As contradições da política exterior soviética


e da linha política da !C (1934-1939) ... ... ... 240
I. A ideologia nacionalista e a política exterior da URSS 243
II. O VII Congresso da IC e as suas consequências ... ... ... 245
III. A guerra de Espanha e a «ajuda» soviética à República
Espanhola . . . ... . . . ... . . . ... . . . . .. . . . . . . ... ... ... ... 247
IV. Os objectivos da diplomacia soviética . . .. .. . . . . ... ... ... 255
l. O lugar da guerra de Espanha na política internacional
da URSS ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 255
2. As iniciativas diplomáticas soviéticas e a situação interna-
cional na Europa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 256
3. A caminho do pacto germano-soviético . . . .. . . . . . . . . . . . . . 258

15
Ptg.
Capítulo III. Os anos do pacto germano-soviético: Agosto
de 1939-Junho de 1941 ... ... ... ... .. . ... 263
I.O entendimento com Hitler e a expansão territorial da
da URSS no Outono de 1939 ... ... ... ... ... ... ... ... ... 264
II. O pacto, a diplomacia soviética e os partidos comunistas .. . 266
III. A expansão territorial da URSS no principio de 1940 ... ... 271
IV. A transformação progressiva das relações germano-sovié-
ticas ... ... ... ... ... ... ... ... ... 274
V. O principio da guerra ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 278

Posfácio
PARA NÃO CONCLUIR

l. Alguns acontecimentos importantes dos anos de 1953 e se-


guintes . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . . . . . .. .. . .. . .. . 286
2. Continuidade e mudança no sistema e nas prâticas políticas 289
A) O apagamento relativo do papel dos órgãos de segu-
rança e do terror de Estado . .. .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . 289
B) A substituição de uma direcção autocrâtica por uma
direcção oligârquica . .. .. . .. . .. . .. . .. . . .. .. . . .. .. . 291
C) A política de «desanuviamento» . .. .. . .. . .. . 296
3. Continuidade e mudança na ideologia soviética 300
A) O papel dirigente do partido e a denúncia do «culto
da personalidade» .. . .. . .. . .. . . .. .. . .. . . .. .. . .. . 300
B) O recuo relativo do dogmatismo .. . .. . .. . . .. .. . 302
C) As relações ideológicas da população com o poder 304
4. Continuidade e mudança na economia 309
5. A crise geral do sistema 313
A) As crises económicas 313
B) A crise ideológica . . . 320
C) A crise política . .. . .. 325
Bibliografia dos principais artigos e livros... 327

16
AVISO

O estalinismo é uma totalidade que forma sistema.


A análise das lutas de classes na URSS durante os anos 30
incide sobre uma realidade particularmente complexa e rapida-
mente mutável. Exigiu uma ordem de investigação que a ordem
de eléposição não conseguiria reproduzir. Os resultados da nossa
análise do estalinismo e da sua realidade são, por isso, apresen-
tados em dois tomos: o tomo primeiro foi consagrado aos domi-
nados (os camponeses, os operários), à repressão e ao terror de
massas que os atinge, à acumulação do capital de que são as
vítimas. As análises desse tomo 1, os dominados, mostraram
que, no decurso dos anos 30, foi efectuada toda uma série de
ofensivas contra a classe operária e o campesinato «soviéticos»
(este último cessa mesmo praticamente de existir como tal, uma
vez realizada a colectivização). Assiste-se, assim, à vinda ao mundo
de uma nova forma de capitalismo, na qual um papel excepcional
é desempenhado pela repressão de massa, o terror e o uso, em
larga escala, do trabalho penal e concentracionário. O desenvol-
vimento deste capitalismo é acompanhado por crises de um tipo
particular de sobreprodução do capital.
Este segundo tomo trata dos dominantes, da sua ideologia
e das suas transformações nos anos 30, das formas de existência
da nova classe, das condições históricas da contituição desta,
do papel do partido e da política internacional da URSS *.
Esta ordem de exposição assegura maior clareza à nossa expo-
sição; não pode, em contrapartida, impedir certas repetições
necessárias à compreensão do encadeamento dos diferentes ele-
mentos e factores constitutivos do estalinismo, da base ao vértice.
O leitor dignar-se-â não nos levar a mal.
C. B.

• A arquitectura geral da obra é, portanto, a seguinte: vol. I,


Primeiro pertodo 1917-1923; vol. 2, Segundo perlodo 1923-1930; vol. 3,
Terceiro período 1930-1941, t. 1: Os Dominados, t. 2: Os Dominantes.

Est. Doe. 220-2 17


ABREVIATURAS DOS TíTULOS
E DAS INDICA!ÇõES DE EDITORES

B -Bolchevique.
EJ- Ekonomitcheskaia Jizn.
IVOVSS -História da grande guerra patriótica (em russo).
KP- Konsomolskcüa Pravda.
KPSS ... - Compilação das resoluções e decisões do partido (salvo indica-
ções em contrário, as páginas indicadas remetem para a edição de
1953, se não a data é precisada entre parênteses).
P-Pravda.
PJ- Partinaia Jizn.
PK- Planovoe Khoziaistvo.
PS- Partinoe Stroitelstvo.
MEW- Marx-Engels Werke (Dietz Verlag).
NKh- Narodnoe Khoziaistvo (anuârio de estatísticas económicas, o ano
é indicado nas notas).
SPR - Spravotchnik Partiinogo Rabotnika.
VI- Voprosy lstorii (revista das questões de história).
VIKPSS- Voprosy lstorii KPSS (questões de história do partido).
Zl- Za Indoustrialisatsiou.

18
GLOSSÁRIO DAS SIGLAS, DOS TERMOS
E DAS ABREVIATURAS COMPLEMENTARES
DO GLOSSÁRIO QUE FIGURA NO TOMO PRIMEIRO

BP- Politburo.
CC - Comité Central.
CCC- Comissão central de controlo (do partido).
Charaga ou charachka-Prisão onde são detidos sábios e investigadores
a fim de prosseguirem o seu trabalho sob o controlo e as directivas
do NKVD.
Gensek- Secretário-geral (do partido).
KPSS - PCUS: Partido Comunista da União Soviética.
NKVD- Comissariado do Interior.
Obkom- Comité regional (do partido).
Orgburo- Comissão de organização (do partido).
PB - Partido bolchevique.
Raikom- Comité do partido para um ralon (distrito).
RAPP- Associação russa dos escritores proletários.
RSFSR - República socialista federativa dos Sovietes da Rússia.
Sovnarkom - Conselho dos Comissários do Povo.
VAPP -Associação pansoviética dos escritores proletários.
VTUZ - Instituto do ensino superior de carácter técnico.
VUZ- Instituto de ensino superior.
Vydvijensty -Promovidos.

19
PRIMEIRA PARTE

O SECRETARIO ABSOLUTO
E O PROPRIETARIO !DOLO

A consolidação das posições da nova classe dirigente e a sujei-


ção desta a uma direcção política constituída pelo grupo dirigente
do Estado e do partido (ele próprio tomado aparelho adminis-
trativo) são acompanhadas pelo desenvolvimento de uma nova
ideologia oficial. Afirma-se esta idêntica ao bolchevismo ou ao
Ieninismo. Na realidade, os seus traços diferenciais são de tal
alcance que, embora situando-se no prolongamento da formação
ideológica bolchevique, ela constitui uma formação nova que
se pode classificar como formação ideológica estalinista porque
nasceu na URSS durante o período em que Estaline ocupa o
lugar dominante na cena política soviética; o Gensek desempenha,
aliás, papel decisivo na constituição desta nova ideologia '. Pode
ser cómodo designar pela palavra «estalinismo» esta formação
ideológica e por «sistema estalinista» o sistema das relações
sociais dos países nos quais o «estalinismo» - sob modalidades
mais ou menos «novas»- desempenha papel importante nas prá-
ticas ideológicas e políticas dominantes.
A influência do estalinismo exerce-se muito para além das
fronteiras da URSS e dos anos 1930-1953. Sob formas trans-
formadas, ainda hoje continua activa, tanto na União Soviética
como noutros países reclamando-se de diferentes variantes de um
«marxismo-leninismo» que reproduz certos traços fundamentais
das concepções estalinistas; tal é o caso de países tão diferentes

1
Na última parte do vol. 2 desta obra (1923-1930), antecipei-me,
em parte, sobre as transformações da formação ideológica bolchevique
durante os anos 30. Não voltarei aqui à anâlise que, então, apresentei.
Todavia, parece-me, doravante, mais exacto falar de formação ideoló-
gica estalinista, a fim de ter em conta o alcance das transformações
suportadas pela ideologia oficial a partir dos anos 30.

21
CHARLES BETTELHEIM

como são os da Europa do Leste ou da Europa Central, da Poló-


nia à Albânia, da Roménia ou de Cuba, do Vietname, do
Camboja ou da China, etc. Nestes diferentes paises, a formação
ideológica estalinista influencia mais ou menos profundamente
a ideologia oficial, embora sofrendo transformações ligadas à
cultura política própria destes paises, as contradições sociais e
políticas internas e as contradições mais ou menos agudas que
os opõem à URSS. Além disso, esta ideologia oficial pode, con-
soante os casos, exercer influência efectiva sobre as decisões dos
partidos no poder ou servir, sobretudo, para alimentar um dis-
curso que só tem relação longinqua com as decisões práticas
dos dirigentes. Da mesma maneira, o eco que esta ideologia encon-
tra nas diferentes classes ou camadas da população daqueles
paises pode ser muito desigual, no limite quase inexistente. Nem
por isso deixa de ser menos real o papel desse discurso; serve
de legitimação às práticas do poder - ajudado pela repressão -
faz obstáculo ao desenrolar de um discurso crítico que fica assim
marginalizado, atomizado e reprimido.
No entanto, a influência da formação ideológica estalinista
também se exerce sobre partidos (ou grupos políticos) que lutam
pelo poder visando estabelecer um sistema económico e social
mais ou menos análogo ao da URSS. Reclamam-se, então, tais
partidos desta ou daquela variante do «marxismo-leninismo»
retomando certos traços do estalinismo teórico, embora preten-
dendo denunciar os «abusos» ou os «erros» cometidos na URSS
durante a época de Estaline. De maneira geral, tais partidos dão
preferência a formas sensivelmente transformadas da formação
estalinista. Retomam muitas vezes, modificando-os, os temas
·actuais dos discursos ideológicos dos partidos soviético, cubano,
chinês e vietnamita. O impacte dessas variedades da ideologia
estalinista faz-se principalmente sentir nos países pouco indus-
trializados. Podem elas agir sobre poderosos movimentos de liber-
tação nacional (o que não significa ' -longe disso- que auxiliem
realmente a libertação desses países). Estas observações mostram
que os problemas postos pela formação ideológica estalinista per-
manecem actuais, conquanto os seus aspectos não soviéticos e
contemporâneos saiam dos limites da presente obra.
Aqui, o que reterá a nossa atenção é a formação ideológica
estalinista dos anos 1930-1953 (mas, sobretudo, até 1941). Esta
formação ideológica comporta um discurso em parte teórico e
práticas alimentadas por discursos específicos cujos principais

• Em qualquer caso, não a ajudam quando, chegados ao poder, fazem


cair o seu país na esfera de dominação soviética.

22
I

AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

aspectos examinaremos sem esquecer que eles evoluem no decurso


do tempo, à medida que se transformam as relações sociais e
políticas dominantes na URSS, consoante os períodos e as prin-
cipais contradições que os caracterizam '.
O exame destas transformações, entre 1928 e 1953, permite
sugerir uma periodização aproximada e provisória, que se baseia
na identificação dos deslocamentos mais visíveis de certos temas
ideológicos, o da destruição dos restos das bases do capitalismo
(colectivização, eliminação do sector privado, «deskulaquização»)
e o da «proletarização» do partido, dos aparelhos do Estado e
da cultura- designada pela expressão «revolução cultural», cujas
características e limites descrevemos mais adiante 4 •
Este período inicia a submissão da classe operária, a sua sujei-
ção a uma disciplina de fábrica cada vez mais severa e o reforço
da autoridade e dos privilégios dos quadros dirigentes. Estes traços
da ideologia estalinista reforçam-se no decurso do período 1932-
1934 caracterizado pela «luta contra o igualitarismo» e pela acen-
tuação dada à aquisição de conhecimentos técnicos. De 1935 a
1938, abre-se um terceiro período no decurso do qual os temas
dominantes são o da unidade do partido (que, na prática, está
submetido a uma repressão de extrema brutalidade), o da neces-
sidade do seu «monolitismo», o da luta contra os sabotadores,
conspiradores e traidores infiltrados nas suas fileiras. É o período
em que a glorificação pessoal de Estaline toma plenamente corpo.

3
Deixo, evidentemente, de lado o exame da ideologia soviética dos
anos posteriores a 1953. Sobre este assunto, apresentarei somente algumas
breves observações:
a) A ideologia oficial desses anos sofreu sérias transformações mas
nem por isso deixa de constituir um produto da formação esta!inista, já
que os principais temas do estalinismo continuam a actuar;
b) A relação dos dirigentes soviéticos com esta ideologia modificou-se
seriamente. Já não parece que seja ela a ditar as decisões destes ou fâ-lo
sob outras formas: assim, o expansionismo soviético actual estâ mais
directamente ligado às contradições internas do sistema, ao nacionalismo
russo e às aspirações deste a uma vasta hegemonia internacional baseada
numa relação de forças militares favorável à Rússia do que no papel
«revolucionário internacionalista)) que a URSS tentava imaginariamente
desempenhar através da IC. Todavia, sob uma forma transformada, a
ideologia estalinista ainda serve, em grande parte, para «legitimar» a
política aplicada pelos dirigentes soviéticos;
c) Junto dos trabalhadores da URSS, a credibilidade dos temas teó-
ricos da ideologia estalinista já era fraca: no decurso dos liois últimos
decénios, tornou-se quase inexistente.
' Sobre este período, convém, em particular, consultar o livro de
Sheila Fitzpatrick (ed.), Cultural Revolution in Russia, 1928-1931, Bloom-
ington-Londres, Indiana University, 1978.

23
\

CHARLES BETTELHEIM

IÉ também aquele qae vê desenvolverem-se abertamente os temas


nacionalistas russos e a glorificação dos valores tradicionais da
Rússia. Coincidem estes anos com uma espécie de golpe de Estado
permanente de Estaline; este manda prender a maior parte dos
antigos dirigentes e substitui-os por homens que lhe parecem mais
dedicados à sua pessoa. Por último, a partir de 1939, abre-se um
período conservador, em que a glorificação de Estaline e dos valo-
res nacionais e tradicionais tendem a fundir-se e a dominar as
referências ao «marxismo». Reforça-se este conservantismo durante
a guerra. Em parte, é imposto pela conjuntura mas enraiza na
defesa da nova ordem social e dos privilégios que a caracterizam.
Alimenta-se da afirmação de que o <<modo de produção socialista>>
está estabelecido e de que, doravante, se trata sobretudo de o aper-
feiçoar. Todavia, as contradições económicas e políticas que se
desenvolvem a seguir à guerra dão lugar a novas manifestações
de ideologia com aparência radical que, por exemplo, o tema da
«Ciência proletária» assinala •. O período do pós-guerra não reterá
a nossa atenção.
As indicações que seguem revelam alguns aspectos da comple-
xidade da ideologia estalinista. Esta complexidade está ligada tam-
bém a duas ordens de factos:
1 - Relativamente à grande massa da população, é essencial-
mente uma ideologia oficial e não uma ideologia dominante: fun-
ciona muito mais pelo constrangimento do que pela convicção, a
tal ponto que o grau de sujeição a esta ideologia das diferentes
classes e camadas sociais é extremamente variável, o que se reper-
cute no seu funcionamento e nas formas que reveste.
2 - É uma combinação particularmente contraditória de
temas, retirados uns do bolchevismo e outros da cultura política
russa, e de práticas em parte negadas pelo discurso ideológico.

' Cf. sobre este ponto o livro de D. Lecourt que é consagrado ao


desenvolvimento deste tema através do episódio do «lyssenkismo» em 1948
(D. Lecourt, Lyssenko, Paris, Maspero, 1976).

24
CAPITULO I

OS TEMAS E AS PRÃTICAS IDEOLóGICAS


DO ESTALINISMO

Impõe-se uma observação preliminar: a incapacidade da ideo-


logia oficial para funcionar como ideologia dominante tem como
consequência que, na URSS dos anos 30 (e isto também é verdade
actualmente), a ideologia dominante é, embora sob traços par-
ticulares, a mesma que existe no resto do mundo capitalista. Esta
ideologia tende a produzir os mesmos efeitos fundamentais: a acei-
tação das relações sociais e do poder tais como existem.
Todavia, a ideologia domiante reveste, na URSS, funções muito
específicas a respeito das quais algumas palavras se dirão a pro-
pósito da formação ideológica soviética da época estalinista.
Estão estas formas ligadas à própria história da Rússia e das nações
submetidas ao jugo desta, a história das lutas de classes que a
URSS conheceu e à interacção da ideologia oficial e da ideologia
dominante. A segunda contribui para desenvolver a influência da
primeira na medida em que ambas são ideologias de sujeição ao
poder. No entanto, simultaneamente, a ideologia dominante entra
em contradição com a ideologia oficial e constitui elemento essen-
cial da sua fraca influência, designadamente na medida em que é
portadora de valores individualistas, ao passo que a ideologia ofi-
cial recomenda subordmação completa do indivíduo às decisões
do partido e apresenta este último como um mstrumento da
história que conduz o proletariado de vitória em vitória.
Esta observação assume todo o seu sentido quando se exami-
nam os diferentes domínios em que se desdobra o discurso da
ideologia oficial.
25
CHARLES BETTELHEIM

SECÇÃO I

A ideologia politica e jurídica •

Um dos temas dominantes da ideologia estalinista ê o papel


dirigente do partido. A sua permanência e o lugar importante que
ocupa fazem dele elemento fundamental dessa ideologia.

1. O «papel dirigente do partido»

Estando o partido identificado com o proletariado, a sua dita-


dura é considerada essencial à «construção» e à «consolidação»
do socialismo. O seu papel é apresentado como uma necessidade
ditada pelas «leis objectivas da história», já que ele é o suposto
portador dos conhecimentos indispensáveis à vitória sobre o capi-
talismo e sobre os «inimigos do povo».
A afirmação do papel dirigente já se encontrava na formação
ideológica bolchevique e no Ieninismo, mas revestia outras figuras.
Por um lado, remetia para uma posição de princípio, para a iden-
tificação do proletariado e da sua vanguarda com o partido: ê a
figura do «substituismO>) que conduz a afirmar que o proletariado
exerce a sua ditadura desde que o partido tomou o poder (daqui
o mito fundador de Outubro); esta figura tende a concentrar o
poder no partido bolchevique ao afirmar que este encarna a missão
histórica do proletariado tal como esta é concebida por toda uma
tradição marxista. Por outro lado, ela remetia para uma certa
interpretação histórica concreta: aquela que afirma a coincidência
da vanguarda do proletariado e da direcção do partido bolchevi-
que; no entanto, na época de Lénine, esta coincidência não é apre-
sentada como definitivamente adquirida. A ideia de que o partido
bolchevique possa revelar-se incapaz de desempenhar o papel de
que o revestiu a ideologia oficial, que possa deixar de ser «a van-
guarda do proletariado)), e que possa mesmo ser necessário criar
um outro partido comunista, não é teoricamente excluída (é o caso,
por exemplo, em 1918 e 1919). Em compensação, tais eventualida-

• Nas páginas que se seguem, as citações que permitem ilustrar os


diferentes temas da ideologia estalinista foram limitadas ao máximo por-
que muitas delas aparecem mais adiante nas páginas consagradas às
transformaj;ões das relações políticas. Pode encontrar-se a ilustração disto
muito particularmente nas actas dos XVII e XVIII Congressos do partido
e na imprensa da época, sobretudo a partir de 1935, e também por ocasião
dos grandes processos de Moscovo.

26
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-PI

des não são encaradas pela ideologia estalinista: para ela, o papel
dirigente do partido resulta, implicitamente, de que este ê por
natureza sempre capaz, e atê o único capaz, de enunciar uma linha
política justa baseada em princípios científicos.
A figura do papei dirigente do partido torna-se cada vez mais
a fórmula ideológica que mascara o surgir de uma nova forma
de Estado. Este Estado ê dirigido não «pelo partido» mas sim por
uma oligarquia políticD"-ideoiógica auto-recrutada (numericamente
muito restrita e que, em certos momentos, pode estar estreita-
mente dependente daquele que se apresenta como o seu chefe).
Nesta forma de Estado, as instâncias «dirigentes>> do partido
intervêm essencialmente para ratificar as decisões da oligarquia
dominante de que dependem. Os membros destas instâncias são
nomeados ou demitidos pelo pequeno círculo dos altos dirigentes.
O partido torna-se, assim, um aparelho através do qual a oligar-
quia domina o Estado. Esta oligarquia a ninguém tem de prestar
contas. Controla todos os aparelhos administrativos e económicos,
todas as «organizações de massa» e mesmo a «vida privada» de
cada qual. Afirma-se detentora da ciência e enunciadora única do
direito. O Estado que ela dirige tende a ser totalitário: tudo lhe
deve estar subordinado, e tudo o que a ele se oponha deve ser
qualificado como actividade inimiga (sob as etiquetas de «inimigo
do povo», de «contra-revolucionárim>, etc.), merecendo pena de
morte, deportação, etc. Esta representação do partido e da sua
relação com o poder, em direito e em saber, está em germe na
ideologia bolchevique mas a prática totalitária do partido desen-
volve-se plenamente na época de Estaline quando a alta direcção
pretende controlar o que cada qual pensa, impor-lhe uma conduta,
fazer dele uma simples peça na «máquina» da sociedade e do Es-
tado. Esta prática totalitária oculta a incapacidade reai do partido
para dominar efectivamente os processos sociais que pretende diri-
gir. Semelhante incapacidade não leva senão a que se tornem mais
violentas as suas tentativas de controlo <<Universal» sobre os apare-
lhos de Estado, sobre o corpo social e sobre os indivíduos.
Embora a figura de «partido dirigente» esteja associada a uma
nova forma de Estado, esta só começa a afirmar-se entre Outubro
de 1917 e o princípio dos anos 30. E no decurso destes últimos anos
que esse Estado de tipo novo toma realmente corpo, dando assim
a ilusão de que a formação soviética dos anos 30 ê ela própria
radicalmente nova, que repousa sobre uma «base económica» não
capitalista. Vimos que esta ilusão não corresponde a nenhuma
realidade. Pode, no entanto, alimentar-se do postulado que pre-
tende estabelecer um laço de necessidade entre o aparecimento de
uma forma estatal nova e o desenvolvimnto de uma «base econó-
27
CHARLES BETTELHEIM

mica» que também o fosse. O estalinismo utilizou amplamente


esta ilusão para afirmar o carácter «wcialista» do sistema sovié-
tico.
O recurso a tal postulado pode parecer justificado por certos
textos de Marx, designadamente por aquele em que ele declara:
tÉ sempre nas relações imediatas entre os donos das con-
dições de produção e os produtores directos que é neces-
sârio procurar o segredo íntimo, o fundamento escondido
de toda a estrutura social, bem como da forma politica
das relações de soberania e de dependência, em suma, da
forma de Estado numa dada época histórica'.
A anâlise histórica concreta conduz a pôr em dúvida seme-
lhante postulado e as conclusões que dele possam ter sido tiradas
pelo bolchevismo e pelo estalinismo.
Na URSS dos anos 30, o tema do papel dirigente do partido
remete para uma realidade e uma prâtica. Ele é a figura ideo-
lógica sob a qual é representado e afirmado o papel dominante da
direcção do partido no conjunto das estruturas estatais. Tende este
tema a erigir, sem o dizer, a direcção do partido em órgão supe-
rior do poder de Estado. Tende a legitimar implicitamente a acti-
vidade da direcção do partido que, de facto, prepara e elabora
leis e decretos e que se esforça por controlar todos os aparelhos
de Estado, que decide da nomeação, da promoção e da revogação
dos quadros mais importantes e que vela, mediante os seus pró-
prios aparelhos, sobre a maneira como tais quadros desempenham
as tarefas que lhes incumbam.
Mas o tema do «papel dirigente» do partido mascara, ao mesmo
tempo, essa realidade, ao deixar entender que o partido não do-
mina o Estado, que se limita a guiá-lo. Daqui resultam, por exem-
plo, os temas desenvolvidos nos capítulos III a vm da Consti-
tuição de 1936 que enumeram os diferentes órgãos do poder. Estes
capítulos precisam minuciosamente a composição e o modo de
eleição dos órgãos de Estado; prevêem mesmo a adopção das leis
«por maioria simples» (art. 39). quando a prática da «unanimidade»
estâ estabelecida desde hâ muito tempo.
A função de «órgão superior do poder de Estado» atribuída
pela Constituição ao Soviete Supremo é puramente fictícia e estâ
em contradição com os factos. Na prâtica real, como já se disse,
este «órgão superior>> é a direcção do partido. De maneira indi-
7
Cf. K. Marx, Le Capital, livre III, sixiême section, citado de Oeu-
vres-Economie, Paris, Gallimard, «La Pléiade», 1968, t. 2, pp. 1400-1401.

28
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

recta e camuflada, a Constituição de 1936 permite que seja assim,


já que o seu texto contém, a título incidental, uma proposição
que praticamente concede plenos poderes ao partido. Trata-se de
uma frase do artigo 126, onde se diz que o PC da URSS é a «van-
guarda dos trabalhadores>>, que «representa o núcleo dirigente de
todas as organizações de trabalhadores, tanto sociais como do Es-
tado». Equivale isto a dizer que o Soviete Supremo, como qualquer
outra organização, é dirigido pelo partido e deve conformar-se
com o que este exige.
O artigo 126 da Constituição revela, aliás, que o papel dirigente
do partido diz respeito não somente aos órgãos do poder, mas
também a todas as actividades dos cidadãos. !É a forma ideológica
sob a qual se encontra apresentada a dominação generalizada do
partido sobre todas as organizações sociais (Konsomols, pioneiros,
sindicatos, associações de mulheres, união dos escritores, associa-
ções para o conhecimento científico, etc).
Nos anos 30, o tema do «papel dirigente do partido» é desen-
volvido de forma quase obsessiva devido à acuidade das contra-
dições económicas e politicas às quais a direcção do partido
procura fazer frente.
O tema do papel dirigente do partido permite utilizar a tese
de Marx sobre a missão histórica do proletariado que se torna a
«missão» da direcção do partido. O carácter de «necessidade histó-
rica» atribuído a esta missão implica não dever ela depender dos
acasos inerentes às eleições. Por isso, as eleições não poderiam
ser senão um gesto simbólico visando fazer «ratificar» pelo «vere-
dicto das urnas» o que é decidido pela direcção do partido. Esta
nem sequer pode permitir que um verdadeiro controlo ,popular se
exerça sobre ela e sobre as decisões que toma. Se existe controlo
não pode ser senão simbólico, não visa limitar as iniciativas da
direcção mas sim reforçar a autoridade desta por um simulacro
de democracia.
O tema do papel dirigente do partido visa justificar o mono-
pólio da direcção (e, cada vez mais, o seu chefe, Yojd, pessoal-
mente) não somente nas decisões políticas, económicas e adminis-
trativas, mas em todos os domínios. O papel do V ojd estende-se
também às ciências, à literatura e às artes. Esta extensão do papel
do chefe constitui um dos traços específicos da ideologia estalinista.
A ideologia pós-estalinista tende (mas tende somente) a limitar
o «monopólio» ideológico do partido a um enunciado de formula-
ções ditas «correctas» no domínio da política e da «teoria mar-
xista» (embora o actual PCUS também não hesite, em numerosos
casos, em decidir o que é «justo» no domínio da literatura e das
artes).
29
CHARLES BETTELHEIM

2. O «culto do partido e do seu chefe,.

A ideologia estalinista, ao estabelecer que o único enunciador


do «verdadeiro» e do «justo» é a direcção do partido eleva esta
última a «entidade superior» que todos devem respeitar. A passa-
gem deste respeito forçado à prática de um «culto» efectua-se
através da exigência de obediência absoluta dos membros do par-
tido às decisões da direcção deste, e de um comportamento em
conformidade com as decisões do partido da parte dos operários,
dos camponeses, dos cientistas, dos escritores, artistas, cineastas,
etc. Impõe-se formalmente mediante a repetição das mesmas
frases glorificando o carácter «científicO>> e «histórico» das deci-
sões do partido e, mais ainda, mediante a vigilância sobre a popula-
ção, a omnipresença da polícia e o recurso generalizado à delação.
Em certos momentos, esta prática tende, em parte, a impor-se
realmente devido à desorientação e à inquietação da população
que sossega a pensar que existe uma autoridade capaz de preparar
um futuro melhor.
O modo de funcionamento do partido, a sua extrema centra-
lização, fazem com que a sua autoridade pareça identificar-se com
a do politburo e a do secretário-geral. Quanto mais centralizada
a direcção do partido, mais o «cultm> da sua autoridade toma ca-
rácter pessoal. Este culto é aceite pelo grupo dirigente, pelos qua-
dros do partido e pela classe dominante, não somente porque é
imposto pelo modo de funcionamento do partido e pela repressão
policial mas também porque a dominação de uns e de outros não
se pode consolidar senão perseguindo toda a contestação, afas--
tando, o mais possível, o risco de difusão de outros enunciados
que não sejam os declarados «correctos». Nestas condições, em
que o monolitismo se torna um princípio, é necessário que o diri-
gente supremo do partido monopolize a capacidade de decidir o
que é verdadeiro ou falso, correcto ou incorrecto. O V ojd deve,
pois, aparecer como a encarnação da sabedoria, da ciência e mesmo
de todos os saberes, aquele que decide sem recurso todos os pro-
blemas, quer estes se relacionem com o «marxismo-leninismo», a
«economia política do socialismo», a biologia ou a linguística, a
literatura, a pintura, o teatro ou o cinema •.

• A literatura e o cmema são muito particularmente considerados


como meios de moldar o espírito das massas. Por ocasião do L" Congresso
da União de Escritores, a frase de Estaline segundo a qual os escritores
são «engenheiros das almas» é repetida até à saciedade e o papel dos
responsáveis da União (como da censura) consiste em velar para que esses
«engenheiros» desempenhem a sua tarefa tal como a entende a direcção
do partido. Notar-se-á, aliás, que Estaline, desde 1924, retomando uma

30
.,_ ·~

AS LUTAS DE CLASSES NA URSS- IV

Para a nova classe dominante, não se trata somente de evitar


a difusão de enunciados contraditórios, trata-se de reduzir ao
máximo o risco de uma divisão ideológica, o que a conduz a acei-
tar o mito da direcção infalível. Este aspecto da ideologia esta-
linista aproxima-a da ideologia nazi que, pelo seu lado, proclama
o Führerprinzip, o princípio do chefe.
No entanto, o culto do chefe alimenta-se igualmente de outras
representações não oficiais mas populares. Assim, o culto do chefe
enraíza em formas de representação espontâneas que nascem das
relações dos operários e dos próprios camponeses com o partido
como órgão do poder. Estas relações evidenciam o partido como
uma potência superior de que depende a vida quotidiana de cada
qual é mesmo a sua sobrevivência. O respeito que lhe é testemu-
nhado é sobretudo uma expressão de receios. Concentra-se este
respeito naquele que está no vértice do partido, porque a base do
partido e os trabalhadores, ressentindo mais ou menos a existência
de contradições entre o vértice e os quadros (de onde emanam
o arbítrio e a opressão imediata e quotidiana) consideram, muitas
vezes, o vértice como um recurso contra os «abusos» do poder
local. Este recurso, mais ou menos imaginário, funcionava na
antiga Rússia na qual o «Czar protector» aparecia como um meio
de defesa contra as autoridades locais. No decurso dos anos 30,
a situação é mais contraditória, porque nela coexistem a descon-
fiança e mesmo o ódio para com o vértice e uma certa esperança
colocada neste último mantida, aliás, por um culto oficial do
chefe supremo que alimenta uma política populista. Tal política
produz tanto melhor os efeitos desejados pelo poder quanto a
figura do «protector» ou do «pai dos povos» faz precisamente
parte da tradição absolutista czarista, isto é, da velha política
russa 9 •
Quando o culto do chefe «interiorizado» pelas massas vem
redobrar o culto oficial praticado pelo partido, toma-se uma força
social real, pelo menos em certos periodos (durante uma parte dos
anos de guerra, por exemplo).

ideia de Lenine mas exprimindo-a de maneira mais brutal, declara:


«0 cinema é o instrumento mais eficaz para a agitação das massas.
O nosso único problema é saber manter este instrumento bem na nossa
mão» (cf. Le Cinématographe, n.• 55, Le Cinéma stalinien, que cita Gay
Leda, Kyno, pp. 198 e pp. 351). No início dos anos 30 (e mais tarde ainda),
cada filme é examinado no Kremlin para garantia de que é «ideologica-
mente correcto» e «eficaz».
• Sobre este ponto, ver a contribuição de St. Cohen, «Bolshevism
and Stalinism», em Robert C. Tucker (ed.), Stalinism. Essays in Historical
lnterpretation, Nova Iorque, Norton & Co., 1977, p. 27.

31
CHARLES BETTELHEIM
S. A idolatria do Estado

A ideologia estalinista desenvolve, sob uma forma sistemática,


a idolatria do Estado. Surgiu esta espontaneamente do exercício
do poder mas, ao utilizá-la, a ideologia estalinista funciona, neste
domínio, como uma verdadeira ideologia dominante e contribui,
assim, para confortar a autoridade do partido como aparelho
situado no vértice do sistema estatal.
As ilusões reais que dão corpo à idolatria do Estado funcionam
«à evidência» pois que a entidade abstracta que é o Estado surge
como dispondo de verdadeiro poderio. Tira este das próprias for-
ças que a sociedade lhe confere, sobre a base de uma divisão de
trabalho que dele faz a primeira potência ideológica. Nasce esta
última das relações sociais dominantes e das contradições que estas
relações alimentam. O desenvolvimento das contradições sociais
torna a figura do Estado cada vez mais aparentemente «indepen-
dente» e permite dotar esta potência abstracta, e aqueles que
falam em seu nome, de aparelhos que podem intervir no movi-
mento das contradições e nas lutas de classes. Assim se edifica
uma base cada vez mais extensa para o «poderio sobrenatural»
do Estado.
Numerosos textos de Marx e de Engels (contrariamente à ideo-
logia estalinista) apresentam uma crítica da idolatria do Estado e
desenvolvem a tese do emurchecimento do Estado com o desapa-
recimento das classes antagónicas.
Desde que já não haja classes sociais a manter na opres-
são, desde que, com a dominação de classes e a luta pela
existência individual motivada pela anarquia anterior da
produção, sejam eliminadas as colisões e os excessos que
dela resultam, já não há mais nada para reprimir que torne
necessário um poder de repressão do Estado 10 •
A tese do «desaparecimento» de todo o poder político separado
pode, evidentemente, ser discutida: pode contestar-se a ideia de
que, numa sociedade complexa, não sejam inevitáveis contradições
sociais e que a sua mediação não torne necessárias formas insti-
tucionais estatais. No entanto, mesmo se se contestarem algumas
das conclusões de Marx e Engels, não deixa de ser verdade que o
agudizar ou a redução das contradições sociais deveria, afigura-se-
-nos, ser acompanhado por um processo de reforço ou de «desa-

,. Cf. F. Engels, Anti-Dühring, Paris, ES, 1950, p. 319. Ver sobre


este ponto o vol. 1 da presente obra.

32
"'<' ' ' . ' ' ' 'l '-~'

AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

parecimento» do papel coercivo do Estado. lÉ assim que o reforço


deste papel na formação social «soviética» dos anos 30 é, sem ·~
dúvida, o resultado do acréscimo das contradições sociais, em par- '
ticular, da luta da nova classe dominante para aumentar a sua
autoridade e os seus privilégios.
A ideologia estalinista não põe o problema nestes termos. Afir-
ma que o enfraquecimento (suposto) das contradições sociais não
deve arrastar um enfraquecimento correlativo do Estado mas,
pelo contrário, o reforço deste".

A) A TESE ESTALINISTA DO REFORÇO DO ESTADO

!É em 1930, por ocasião do XVI Congresso do partido, que


Estaline enuncia a tese segundo a qual o enfraquecimento do Es-
tado passaria pelo seu reforço ••.
Esta ruptura teórica reencontra-se no relatório que Estaline _,'
elabora, em Janeiro 1933, quando apresenta o «balanço do l.o
Plano Quinquenal». Neste relatório, o secretário-geral do partido '
afirma de novo que o «enfraquecimento do Estado se fará não pelo "'''
enfraquecimento do poder de Estado, mas pelo seu máximo
reforço ... "»
O facto de tal afirmação estar em contradição com as teses
'
clássicas defendidas por Marx, Engels e Lenine torna a posição
de Estaline «teoricamente inconfortável>>, sobretudo quando se
admite ter-se a URSS tornado um «Estado socialista». Explica
l '•
'-,
isto, sem dúvida, que, no relatório que apresenta em 1936 sobre
a nova Constituição, Estaline não aborde frontalmente o problema 1' ~
teórico do Estado numa sociedade supostamente socialista e, por- I
tanto, «liberta dos antagonismos de classes». O secretário-geral ·~~i
mantém o mesmo silêncio sobre estas questões no seu texto de ~1
·'
1938, Matérialisme dialectique et Matérialisme historique. ·1
No entanto, nessa época, as teses sobre o enfraquecimento do
Estado de direito (teses cujo carácter clássico os dirigentes do
~~
11
A identificação do crescimento da autoridade do Estado ao desen-
volvimento da liberdade é uma figura que obceca a autocracia russa e --~
o despotismo em geral. Por isso, não é por acaso que, em La Légende ~11
du Grand lnquisiteur, Dostoievski faz este último dizer que a «organi- ~·~
zação da liberdade total passa pela instauração de uma ditadura absoluta». ·~

I1
" Sobre este ponto ver o artigo «Estaline e o Estado» no n. • 24 de
Communisme, em particular o parágrafo «Le renforcement maximum de
l'atab, como via para o enfraquecimento deste, p. 33.
'' Cf. Estaline, Balanço do 1. • Plano Quinquenal apresentado ao Ple- .,
nário de 7 de Janeiro de 1933, em Questions du Léninisme, Paris, Ed.
Norman Béthune, 1969, t. 2, p. 595. '

Bst. Doe. 220-3 33


'
;!;.t
CHARLES BETTELHEIM

partido tendem a negar, imputando-as ao antigo «teórico oficial»


dos problemas de Estado e do direito, Pachoukanis ") são conde-
nadas pelos ideólogos oficiais e denunciadas como manifestações
de «trotskismo contra-revolucionário» ".
Finalmente, Vychiniski proclama que Estaline fez dar um passo
decisivo ao progresso da teoria do Estado; escreve ele:
Lénine partilhou a ideia do deperecimento do Estado,
mas Estaline introduziu uma correcção e provou que, sob
o socialismo, o Estado deve ser reforçado. Em consequên-
cia, a lei deve também persistir e tornar-se socialista. Por
toda a parte no mundo, aqueles que estão no poder violam
a lei e os direitos individuais. Só um país existe onde, como
o ouro puro, a justiça brota. lÉ na União Soviética 1 ".
Semelhante texto escrito no momento em que se multiplicam
as prisões, as condenações e as deportações arbitrárias ilustra não
somente a glorificação da «nova teoria)) mas também a sua função
de ocultar a realidade.
Finalmente, em 1939, no relatório que apresenta, a 10 de
Março, ao XVIII Congresso, Estaline rompe abertamente com as
,,. posições teóricas «clássicas». Declara, então, que a formulação
L

'- de Engels, precedentemente citada, é uma «fórmula geral» que


"
I
não poderá estender-se «ao caso particular e concreto da vitória
do socialismo num só país», porque - diz ele - este país «deve
ter um Estado suficientemente forte para poder defender as con-
quistas do socialismo contra os ataques do exterior 17 », mas deixa
entender que o deperecimento poderia ocorrer se «a vitória do
socialismo» fosse obtida em escala mais larga do que a de um
só país.

B) A NEGAÇÃO DA «FUNÇÃO REPRESSIVA» DO ESTADO

No relatório acabado de citar, Estaline afasta implicitamente


a questão da «função de repressão» e isto de maneira paradoxal,
visto que nega que o Estado soviético a exerça; declara ele, com
,,
'•
efeito: <<Visto que a exploração foi suprimida, os exploradores já
I•
~
não existem e não há ninguém para reprimir.))

14
Cf. sobre este ponto Sovietskoe gosudartvoi pravo, n.• 4, 1936.
" Cf. N. Timasheff, The Great Retreat, Nova Iorque, E. P. Dutton,
1946, p. 254; este autor cita diversas revistas sov1étacas.
" Citado de N. Timasheff, ibid .• p. 256.
11
Cf. Estaline, Q. L., t. 2, p. 877.

34
•;' • I > > •
'"' ~""""' .... 'l"'l.."l''<)•"~ ..._,..;-,~'\,

'',
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

Esta afirmação, enunciada quando milhões de homens e de


mulheres são deportados, repousa, se assim se pode dizer, sobre
um «jogo de palavras», típico da codificação aplicada pela lingua-
gem oficial. Com efeito, Estaline precisa que «a função de repres-
são foi substituída pela função de protecção da propriedade socia-
lista contra os ladrões e os dilapidadores do bem público», e pela 1
função de «defesa militar>>. São, pois, estas funções (e não a J
repressão!) que requerem a existência de uma policia numerosa, ,j

de um exército, e dos «serviços de informação necessários para


capturar e punir os espiões, os assassinos, os sabotadores ... 18»
Graças a esta linguagem codificada, a actividade dos organis- ~-
mos policiais e punitivos, embora dirigida contra inúmeros operá- '
-·'.~
.,
rios e camponeses, torna-se uma função de «protecção do povo».
Ao identificar Estado e povo, a ideologia estalinista justifica
a mais ampla repressão; não se submeter ao Estado é o mesmo ·1
'
que não fazer parte do povo; é ser inimigo deste, a tal ponto que,
com toda a lógica, se deveria dizer, segundo a fórmula de Soljé- 'l
"~
nitsine, que «O povo se tornou inimigo de si próprio». '!_~

A idolatria do Estado e a negação oficial da repressão condu- ~


zem a outra codificação que faz surgir as figuras da «educação»
e da «reeeducação». Vichinsky -procurador-geral da URSS de -~
'
1935 a 1940- refere-se explicitamente a estas figuras; declara que .,-·
o Estado deve «guiar a grande massa da população» e acrescenta
que se trata de um trabalho educativo no qual «cabe um papel ;'
excepcional a órgãos tais como os tribunais» e «às instituições de ·'
trabalho correctivo» 19•
1
,I
Esta actividade «educativa» deve «purificar a consciência do '
-~
povo». O carácter de classe do Estado dito «socialista» surge aqui '
,\
claramente. Uma das suas tarefas é constranger o povo à disci- ]
plina, forjando"lhe uma «consciência humana» respeitadora dos "'i~
«deveres sociais e cívicos», com a finalidade de uma subordinação .. ~

total de todos ao trabalho 20 • 'i


O fetichismo estalinista do Estado e a apologia deste último ~
~';•
recobrem uma teoria e uma prática de subordinação total dos
trabalhadores e uma autoridade que lhes é inteiramente exterior, ·..
sobre a qual não podem exercer nenhum controlo. Quanto à «de- ''
fesa da legalidade socialista» de que também fala Vichinsky, 1
~
I
j
i
" Cf. Estaline, Q. L., ob. cit., p, 881 (sou eu quem sublinha, C. B.).

~
" Cf. A. Vichinsky, The Law of the Soviet State, edição russa de
1938 aparecida em tradução em Londres, Macmillan, 1948, p. 50; ver
também o prefácio da recolha: Des prisons aux établissements educatifs,
Moscovo, 1934.
" Cf. A. Vichinsky, The Law ... , ob. cit., pp. 49 e 52.
1'
l
35 ·-:
5
·'
•i

"
CHARLES BETTELHEIM

sabe-se que conduz, na prática, a não impor aos indivíduos senão


deveres para com o Estado todo-poderoso sem lhes conceder
quaisquer direitos.
C) O ESTADO, OS DIREITOS DO INDIVíDUO
E A CONSTITUIÇÃO DE 1936
No discurso ideológico estalinista, as coisas não se apresentam
assim, mas antes sob uma forma invertida: a da defesa dos indi-
víduos contra a arbitrariedade do Estado e da polícia. A Consti-
tuição de 1936 e os comentários oficiais que acompanham as suas
discussão e promulgação fornecem um novo exemplo típico da
inversão da realidade na ideologia estalinista. Lembremos alguns
factos.
A 5 de Dezembro de 1936 -quando a repressão de massa se
havia de há muito abatido sobre o país e atingia o próprio par-
tido - o VIII Congresso extraordinário dos Sovietes adopta uma
nova Constituição. Pretende e:.ta incorporar o «saldo das conquis-
tas já adquiridas» e assegurar um «democratismo consequente e
sem falha» 21 •
No que diz respeito aos direitos dos indivíduos, o capítulo IX
da Constituição emite um discurso aparentemente importante: tra-
ta dos tribunais e do ministério público e afirma que os «juízes são
independentes e não estão sujeitos senão à lei» (art. 112), que
«o direito de defesa está assegurado ao acusado» e que «os debates
em todos os tribunais serão públicos» (art. lll).
Ora, este discurso constitucional está em contradição não só
com a prática quotidiana mas também com a doutrina jurídica
oficial. Ê assim que, ao comentar esta doutrina, um jurista sovié-
tico declara:
Deve lembrar-se que a independência dos juízes e a
sua subordinação apenas à lei não significa independência
relativamente ao Estado, ou independência relativamente
à política do partido e do governo, porque os tribunais são
um órgão do poder, e a sua função é uma das funções do
,, controlo de Estado '22 •
! 21
Cf. o relatório de Estaline de 25 de Novembro de 1936 ao VID
'''•,,
f•
Congresso e o texto da Constituição, em La N ouve/le Constitution de
/'URSS, Paris, BE, 1937 (citações do discurso de Estaline em ob. cit.,
pp. 24 e 28).
"' Cf. M. V. Kojnevnikov, lstoriia Sovjteskogo Souda, 1917-1956,
gody, Moscovo, 1957, p. 277. L. S. Schapiro, que cita este texto, nota
também que, desde 1931, quase todos os juízes são membros do partido
(The Communist Party of the Soviet Union, Londres, Methen and Co.,
ed. 1970). Existe uma tradução francesa, Gallimard.

36
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

Nenhuma disposição legislativa é, de resto, susceptível de com-


portar uma qualquer «independência>> dos juízes.
O discurso ideológico da Constituição é particularmente misti-
ficador no que se refere às liberdades civis, enumeradas nos artigos
124 a 128. Incluem a liberdade de palavra, de imprensa, de reu- .,
niões. de desfiles e de manifestações nas ruas, a liberdade de se
associar em organizações sociais, «a inviolabilidade da pessoa»
(art. 127), do «domicílio e da «correspondênda» (art 128). Ora, ',l

todas estas «liberdades» são constantemente calcadas aos pés pelo


NKVD, e os cidadãos de nenhum recurso dispõem contra as
decisões deste.
A mesma mistificação no que se refere às eleições. Segundo
o texto da Constituição (art. 134), estas fazem-se, doravante, pelo
«sufrágio universal, igual e directo, com escrutínio secreto» (art.
.·,
134); todas as anteriores discriminações são, portanto, abolidas,
designadamente aquelas que atingiam os camponeses (cujas vozes
«contavam» menos do que as dos assalariados). Segundo o artigc
141, todas as espécies de associações e de organizações podem apre-
sentar candidatos e -por «decisão da maioria dos eleitores» -
qualquer deputado pode ter o seu mandato anulado (art. 142).
Estas disposições não têm praticamente alcance. Na realidade, os
candidatos não podem ser apresentados senão com o acordo do ·I,
partido, e este só propõe um candidato por cada circunscrição. j
O escrutínio secreto não é respeitado. Como só há um candidato,
o eleitor que entra na câmara de voto pode ser suspeito de o fazer
para riscar o nome do candidato oficial 23 • Aliás, aqueles que são
representados obtêm cerca de 98 'o/o dos sufrágios 24 • Isto não im-
pede que, pouco após a entrada em vigor da Constituição, um
grande número de deputados sejam eliminados como «inimigos do
povo»; é o caso, em particular, de 6 dos 7 presidentes do executivo
eleitos pelo Congresso e de quase todos os membros e suplentes
deste. Tal «eliminação» acarreta, então, a execução ou a depor-
tação.

" Cf. sobre estes pontos, as observações de L. Schapiro, em The


Communist Party, ob. cit., pp. 457-458.
" Por ocasião das eleições de 1937 para o Soviete Supremo, houve
(oficialmente) 98,6% de votantes e os eleitos recolheram em mêdia 98 o/o
dos votos: 81 % dos eleitos são membros do partido (contra 73,8 %,
por ocasião do último Congresso dos Sovietes eleito no quadro da Cons-
tituição de 1925) (cf. Nicholas S. Timasheff, The Great Retreat, ob. cit.,
pp. 99 e segs.).

37
1.} ,~,., -.,' .l, - - .

,,
' CHARI.ES BETTELHEIM

..
...
.i_

A ideologia estalinista sobre o Estado e sobre as relações deste



1!:.
com os cidadãos enuncia, portanto, um duplo discurso: um dis-
curso «democráticm> que está em contradição com os factos e um

~
discurso absolutista e repressivo que é o comentário da prática
efectiva. Esta dupla ideologia é a expressão de uma esquizofrenia
social. Reflecte as contradições profundas de um sistema econó-

tt mico e político que pretende agir em nome das massas trabalha-


doras exactamente quando as oprime, as reprime e as explora com
intensidade raramente atingida na história.
,.
I

~
D) A FORMA ESPECíFICA DA IDOLATRIA ESTALINISTA
~-

DO ESTADO E DA IDEOLOGIA BOLCHEVIQUE

Importa sublinhar que a forma específica da idolatria estali-


~ nista do Estado e as relações políticas que esta alimenta (e de que
f se alimenta) não enraízam somente no passado russo. Elas estão
~ em germe na ideologia bolchevique: são as circunstâncias con-

t cretas pelas quais a formação «soviética» passou que lhe deram
~
a sua forma histórica .estalinista e, depois, pós-estalinista.
' A formação ideológica bolchevique é portadora de uma nova
'~. simbólica que permite à figura do partido encarnar o proletariado,
o povo, a revolução, o saber, a prática, etc. '25 • A insurreição de
~ Outubro actualiza esta simbólica e inaugura, assim, um novo
~- sistema de representação que desencadeia a emergência de um
• novo tipo de Estado no qual a figura do partido se afirma cada
~
~ vez mais como poder social: poder sobre ela própria de uma socie-

'~-

dade cujas contradições são imaginariamente «abolidas», de tal
modo que se apresenta como uma totalidade que só «inimigos»
podem pôr em causa. Este poder apresenta-se como universal é
~-
~ dotado do conhecimento e da capaciçlade de exprimir o direito.
" O partido estalinista, incapaz de dominar realmente as forças eco-
s
nómicas e sociais, esforça-se por quebrar tudo o que constitui obs-
.,.,~ táculo às suas decisões, quer os obstáculos venham do povo, quer
;; dos quadros, quer dos saberes concretos e teóricos, quer das regras
., de uma qualquer moral. Este partido existe como uma organização
..
c: que encarna a unidade do povo.
~ A democracia de que se reclama este tipo de poder é a dita-
ii dura do povo. Ela declara estar, por natureza, ao «serviço do povo»
('.
..
.
\::
" Cf. Claude Lefort, L'Invention démocratique, Paris, Fayard, 1981,
pp. 95 e segs.

38

\,
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

(já que a ideologia oficial oculta as divisões efectivas da sociedade


e do Estado e os privilégios e poderes que proliferam no seio das
divisões assim nascidas). Ela é concebida como uma democracia
de massa (todos são organizados pelo partido a fim de serem mobi-
lizados para realizar as directivas que este fixa). Daqui provém a
representação de uma democracia real oposta à democracia bur-
guesa. Esta democracia real tem a particularidade de não dar a
palavra ao povo (salvo para aprovar o partido). Na sua realidade
concreta, é a negação da liberdade dos indivíduos, mas a ideologia
estalinista afirma que é a forma suprema desta liberdade porque
institui o direito e o dever de todos obedecerem ao partido e que,
ao obedecerem-lhe, mais não fazem do que «obedecer a si pró-
prios».
Tal é a matriz ideológica do totalitarismo estalinista. Ela atira
para «o caixote de lixo da história» as aquisições democráticas
anteriores susceptíveis de servirem de ponto de partida a _uma ver-
dadeira emancipação social: a liberdade de associação, a liberdade
de informação, o direito de greve, o sufrágio universal, etc.

E) O ESTADO SOVIÉTICO SUCESSOR DO ESTADO RUSSO

A ideologia estalinista não se limita a confortar a idolatria do


Estado, ela abandona a concepção de um Estado transitório carac-
terizado pelo papel que desempenharia na transformação social.
A este Estado transitório substitui um Estado duradouro que se
identifica ao Estado russo 26 • Este Estado não nasce em 1917: tem
atrás dele um longo passado, o da Rússia cujos cidadãos são con-
vidados a estudar a história para aprenderem a melhor amá-la".
A partir de 1936, a força e o papel do antigo Estado russo são
apresentados como elementos positivos da história mundial porque
esse Estado «serviu de baluarte à Europa contra as grandes inva-
sões».
Em consequência da glorificação do Estado russo, os dirigentes
das grandes revoltas populares do passado, como Razine ou Pouga-
tchev, ou os dezembristas, já não aparecem a uma luz positiva,
dado que enfraqueceram um Estado que encarnava o «progresso».
Por consequência, os verdadeiros heróis são aqueles que permitem
a edificação do Estado russo: Alexandre Nevski, Dimitri Donskoi,

"" a. H. Carrere d'Encausse, Staline, L'ordre par la terreur, Paris,


Flammarion, 1980, p. 78.
"' Cf. Richard Pipes, «Pierre !e grand et !e systême russe», em
L'Histoire, n." 33, Abril de 1981, pp. 37-46.

39
.,, .. ,

CHARLES BETTELHEIM

Ivã, o Terrível, Pedro, o Grande. As suas figuras são retomadas


pelo cinema de Eisenstein e prefiguram a de Estaline. O Estado
que assim se edifica é aquele no seio do qual se forja a nação
russa cujas capacidades revolucionárias permitiram alcançar as
vitórias de 1917 e as da guerra civil. Esse discurso tende a confor-
tar o Estado soviético ao dar-lhe um passado e uma base geo--
gráfica (a do império czarista) e a identificar Outubro com o
heroísmo do povo russo. Subordina historicamente a este último
as outras nacionalidades que o povo russo protegeu da barbárie,
fazendo--as entrar na via da civilização e protegendo--as no cami-
nho da revolução.
É assim que a ideia de nação é restaurada e enxertada sobre
a do Estado, ao passo que o povo russo se torna o povo guia 28•
A seguir à guerra, desenvolvendo fielmente esta ideologia, o
dirigente comunista do Azerbaijão, Baguirov, declara:
A força dirigente que une, cimenta e guia os povos do
nosso país é o nosso irmão mais velho, o grande povo
rusw ... O povc russo, pelas suas virtudes, merece a con-
fiança, o respeito e o amor de todos os outros povos ••.
É assim que a ideologia oficial vai esconder as contradições
nacionais violentas, o desprezo das outras nações pelos chauvinis-
tas grande-russianos e a colocação sob tutela dos aparelhos do
partido e do Estado das diferentes Repúblicas no quadro da na-
ção--guia.

4. A componente nacionalista russa da formação ldeol6glca. estalinl.sta

A formação ideológica estalinista do fim dos anos 30 é, pois,


caracterizada por uma forte componente nacionalista russa. Esta
I componente não é estranha ao bolchevismo, que põe muito cedo
,.
I.
o problema de uma reconstrução da economia nacional e do lugar
da indústria russa na economia mundial. Além disso, uma parte
dos bolcheviques (entre eles, Estaline) agem, desde os anos 20,
tendo em vista manter o domínio da Rússia sobre os povos que
haviam sido encorporados no império czarista (isto através da do--
minação do partido sobre o conjunto das Repúblicas soviéticas).
No decurso dos anos 30, a componente nacionalista da ideologia
oficial reforça-se e inscreve-se em práticas que visam assegurar a

'2tH. Carrêre d'Encausse, ob. cit., pp. 80-84.


"' Ibid.

40
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

preeminência da cultura e da língua russa sobre as das outras


nacionalidades. Esta ideologia comanda igualmente uma «política
artística» que propõe para modelo as obras literárias russas dos
séculos passados.

A) O NACIONALISMO ESTALINISTA E O PASSADO


IMPERIAL DO CZARISMO

O rosto do nacionalismo estalinista está voltado para o passado


imperiaí e czarda. Cor:t1·ar:amente a;) bolchevi:;mo, o estalinismo
tende, cada vez mais, a magnificar a história da Rússia. Desem-
penha, assim, um papel conservador e me~mo reaccionári::J ;::)
reproduzir (em geral, disfarçando-os mais ou menos) numerosos
preconceitos herdados do passado. Este aspecto da ideologia estali-
nista permite-lhe «produzir consensm> no seio de camadas impor-
tantes do povo russo, cujo nacionalismo é lisonjeado, e contribui
para «legitimar>} o lugar dominante ocupado pelo partido e os .,,.
quadros russos no conjunto do país.
O nacionalismo «produtor de consenso» é um dos elementos
que dão o seu rosto populista ao estalinismo. Durante a Segunda
Guerra Mundial, tornou-se elemento essencial do discurso oficial
que tende a mobilizar em favor do poder o patriotismo do país
agredido pelo hitlerismo. Este discurso não hesita em evocar a
defesa da Pátria, à qual associa o nome do seu dirigente supremo.
Este apelo ao nacionalismo revela-se infinitamente mais eficaz do
que a invocação da defesa de um «socialismo» que tem gosto
amargo para os trabalhadores. Após a guerra, o nacionalismo
será utilizado para lisonjear certos preconceitos «populares» (que,
por outro lado, o discurso oficial condena); o mais significativo
destes preconceitos é o anti-semitismo. Este é oficialmente comba-
tido mas a censura, no entanto, sempre «vigilante», deixa passar, '!
de tempos a tempos, libelos anti-semitas. Nestas diferentes épocas,
a «luta contra o cosmopolitismo» torna-se uma forma quase aberta
sob a qual se desenvolve uma ideologia de facto anti-semita 30 •
O nacionalismo estalinista e a sua glorificação de um certo
passado russo desempenham ainda outra função, visto que apresen-
tam os dirigentes do partido e do Estado soviético como sendo
os «continuadores» dos «grandes homens» do passado, Ivã, o Ter- ..,
-~'

30
A afirmação segundo a qual «iâ não hã anti-semitismo» na URSS
permite perpetuar este. Sabe-se que esta afirmação autoriza os tribunais
a condenar por «propaganda anti-soviética» aqueles que assumem o risco
de denunciar as medidas discriminatórias ou as atitudes anti-semitas.

41
I
·~

J
'
'

·~
CHARLES BETTELHEIM

•' rível, e Pedro, o Grande. Desde 1937, as frases patrióticas tor-


;~--

nam-se correntes. iÊ assim que se pode, então, ler nas Izvestia:


A palavra «pátria» tornou-se um conceito politico fun-
damental[ ... ] A condição mais importante do sucesso é o
patriotismo combatente da nossa nação, a ilimitada fideli-
dade à pátria ... 31
O nacionalismo russo sabe, aliás, tomar a forma de um «inter-
nacionalismo» quando apresenta a Rússia como defensora de outras
revoluções ou como apoiando a luta dos povos coloniais con-
tra a opressão a que o capitalismo «ocidental» os submete. Simul-
taneamente, o antigo internacionalismo torna-se uma frase que
serve para utilizar os diversos movimentos comunistas como ins-
trumentos da politica estrangeira soviética: este internacionalismo
apela, então, .para «defender a pátria soviética» ou para se ser
solidário com a Rússia.
A subida do nacionalismo estalinista traduz o triunfo da com-
ponente capitalista nacional do bolchevismo que concita os explo-
rados a participar na «edificação do país». Assim, o nacionalismo,
ao passo que incita a classe dominante a «construir» um pais pode-
roso, faz entrever às massas um «futuro radioso» e «próspero»,
com o qual elas devem pagar um presente de sacrifícios e de
miséria 32 •

B) A CONSTITmÇÃO DE 1936 E O NACIONALISMO RUSSO

O capítulo n da Constituição de 1936 representou um momento


significativo da penetração do nacionalismo russo na ideologia
jurídica estalinista. Este capítulo mostra o Estado soviético não
como forma politica eminentemente transitória e aberta mas como
realidade duradoura. Enumera as repúblicas que fazem parte da
'..·' União e define os poderes e as tarefas da União e das diferentes
repúblicas (arts. 13 a 16). Reafirma, entretanto, o direito de cada
república «sair livremente da URSS» (art. 17).
Este «direito à secessão», como várias outras disposições da
Constituição, é um puro logro, porque não existe qualquer possi-

'' Citado de N. Timasheff, ob. cit., p. 167.


" B. Kerblay fala de uma «aliança que se opera na consciência
colectiva entre o marxismo-leninismo e o patriotismo» e de <<Um escor-
regar de um para o outro» (cf. La Société soviétique contemporaine, Paris,
A. Colm, 1977, p. 272).

42
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS- IV

bilidade concreta de a população de uma república poder afirmar


abertamente a sua vontade de sair da União. Com efeito, os
dirigentes oficiais de uma qualquer república são membros do
Partido Comunista da União Soviética e devem aplicar a política
do CC deste partido ao qual estão inteiramente subordinados em
virtude das regras do «centralismo democrático». Por isso, pôde
ser oficialmente declarado:
É evidente que a probabilidade de ver uma república
da União Soviética exprimir o desejo de secessão, através
dos órgãos soviéticos democraticamente eleitos, é tão
ínfima que, falando praticamente, é igual a zero"·'.
Na realidade, aqueles que exercem funções reais de direcção
nos partidos comunistas das diferentes repúblicas são, as mais
das vezes, naturais da Grande Rússia porque os dirigentes comu-
nistas dessas repúblicas são facilmente acusados de «desvios nacio-
nalistas». Tais acusações aparecem, aliás, muito cedo·. Assim,
desde 1926, Choumsky, comissário para a educação na Ucrânia,
é acusado de querer «ucranizar» demasiado rapidamente os qua-
dros da república, e também de «lutar contra a cultura russa
em geral e a sua mais alta realização, o leninismm> 34 • Nesta época,
o 1. o secretário do partido ucraniano é íKaganovitch, que substitui
Choumsky nas suas funções, em 1927: em 1933, este último
é preso. No mesmo ano, Skrypnik, sucessor de Choumsky no
Comissariado para a Educação, suicida-se após ter sido acusado
de se ter tornado um instl umento de elementos «nacionalistas
burgueses» (Skrypnik era membro do partido desde 1897). Nos anos
que se seguem, numerosos antigos membros do partido na Ucrânia
e noutras repúblicas sofrem as mesmas acusações e são eliminados.
Quanto às reivindicações nacionais que tendem a exprimir-se
por canais diferentes dos «órgãos soviéticos», estão condenadas
pelo artigo 58 do Código Criminal da RSFSR (e pelos artigos
correspondentes dos códigos das outras repúblicas) a título de
«agitação e de propaganda contra-revolucionárias, destinadas a
minar ou a enfraquecer o regime soviético pela utilização dos
preconceitos nacionais das massas», o que constitui um crime
especificado "".

33
Sovietskoe gosudarstvoi pravo, Moscovo, 1948, p. 254.
" Cf. Estaline, W., t. 8, pp. 157 e segs.
'" Este artigo 58 é substituído, após 1958, pela lei sobre os «crimes
de Estado» que torna estes passíveis de sete anos de prisão no mâximo,
eventualmente de cinco anos de deportação.

43
.. ~~
!J.l:'
t'· CHARLES BETTELHEIM

E' Ao oficializar o carácter duradouro do Estado soviético e ao


tratá-lo como continuador do Estado russo, a «Constituição esta-
linista» rompe com a tradição bolchevique. Inscreve-se esta rup-
tura mais geralmente no discurso ideológico estalinista. Com
efeito, até ao fim dos anos 20, estava oficialmente reconhecido
que o antigo império czarista era uma «prisão dos povos», pior
do que o império britànico. Ainda em 1928, o historiador Pokro-
vski (então oficial) podia declarar: «No passado, nós, os Rus-
sos- e eu sou grande-rm:so a 100 % -, éramos os piores gangsters
1

que se possam imaginar'".»


Em 1936 -no momento em que se elabora a nova Consti-
tuição- é atribuído à Rússia um papel positivo, a tal ponto que
o expansionismo não tarda a ser considerado como um bem,
devido ao «papel civilizador>> da Rússia, de cuja obra a União
Soviética é considerada continm.dom, mas com um novo con-
; . teúdo de classe que permitiria associar os povos da URSS numa
«União livremente consentida» (artigo 13 da Constituição).

C) NACIONALISMO, ELITISMO E NACIONAL-BOLCHEVISMO


t.
'i
A subida do nacionalismo estalinista as.~ume todo o seu signi-
ficado devido à sua combinação com outras componentes da ideo-
logia estalinista: o culto do chefe, um certo populismo e o respeito
de distinções hierárquicas rigorosas fundamentando a eYistência
de uma «élite>>, a que se atribui «natureza diferente da das pessoas
37
COmUllL)) •

A inserção dos elementos nacionalistas e elitistas no estali-


nismo e o papel que nele, cada vez mais, desempenham fazem
progressivamente desta ideologia as um «nacional-bolchevismo» ••.
Este nacional-bolchevismo tem muitos traços comuns com o
fascismo italiano e, sobretudo, com um outro «nacional-bolche-
vismo» que se havia desenvolvido na Alemanha de 1919 a 1922,

,. Citado por H. Carrêre d'Encausse, Staline, ob. cit., p. 81.


'"' O carácter «elitista» do estalinismo mantém relações evidentes com
a noção elitista de «vanguarda», mas o elitismo estalinista nem por isso
deixa de ter caracteres específicos. Tende a justificar a multiplicação dos
privilégios da «élite», isto é, essencialmente dos membros do aparelho do
partido e da nomenklatura.
31
Os sinais são, designadamente, o papel crescente no discurso oficial
desempenhado pelas palavras «pátria», «patriotismo», «país dos nossos
pais».
"' Cf. Mikhail Agoursky, «Une idéologie pour la nouvelle classe
en URSS: !e national-bolchevisme», em Les Nouveaux Patrons, Genebra,
Ed. Noires, 1980, pp. 81-90.

44
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

e que foi uma das fontes da ideologia dos «nacionais-revolucio-


nários» e, depois, do «nacional-socialismo» •o.
A existência destes traços comuns não escapou a certos ideó-
logos do nazismo e do fascismo 41 •
Entre os primeiros, encontra-se, desde 1927 (portanto, antes
mesmo de o estalinismo ter assumido o seu rosto dos anos 30),
Erich Mahlmeister. Este último, após a exclusão de Trotski
do BP do partido soviético, fala de um «bolchevismo estalinista»
e acrescenta que ele é, idealmente, o «nacional-socialismo da
Rússia» ••. Este tema é praticamente retomado, em 1934, por
Josef Drexel num artigo da revista Widerstand. Drexel escreve,
então: «A nova Rússia é o terceiro Reich 43.» Bem entendido, o
facto de certos ideólogos nazis admitirem que existem afinidades
entre a ideologia de que se reclamam e o estalinismo não deverá
eliminar os traços específicos que opõem estas ideologias nem as
contradições nacionais que levarão ao confronto entre a Alema-
nha nazi e a Rússia de Estaline.
O problema das relações ideológicas entre o estalinismo, o
fascismo e o nazismo é, evidentemente, demasiado amplo para
poder ser aqui tratado. É necessário, todavia, observar que estas
ideologias alimentam não somente a.~ práticas repressivas mas
também remetem para temas ideológicos de grande similitude.
Isto já foi sublinhado no que se refere ao elitismo e ao culto
do chefe mas pode ser alargado a numerosos outros temas ideo-
lógicos. Assim, a noção de um pensamento e de um discurso
«correctos» reencontram-se na ideologia nazi"· A «abolição» do
proletariado no discurso estalinista, que Estaline declara em 1936
já não existir na URSS, onde foi substituído por um novo tipo
de classe operária, também não deixa de ter analogia com a opo-

" Sobre estas diferentes ideologias, as suas temática e linguagem,


ver Jean Pierre Faye, Langages totalitaires, Paris, Hermann, 1972, desig-
nadamente
41
pp. 5, 83 e segs .. 91 e segs. e 760.
'É o caso, em particular, de Renzo Bertoni, que publica, em 1934,
uma obra intitulada: Triomphe du [ascisme en URSS (citado por
M. Agoursky, art. cit., p. 88).
•, Cf. Erich Mahlmeister, Russland und der Bolschewismus, Russland
und wir, Friburgo, 1927.
•• J. Drexel, «Dostoiewskij-Stimme des Ostens», Widerstand, t. 9,
1939, p. 84. Esta referência e a precedente encontram-se na ob. cit.
de J. P. Faye, p. 432, notas 99 e 100.
.. Este qualificativo figura pela primeira vez num discurso pronun-
ciado em Breslau por Himmler em que este se esforça por determinar
o que é possível considerar como «aceitável nas palavras, nos escritos e
nos actos» (cf. sobre este ponto o artigo de J. P. Faye, «L'archipel total»,
em Recherches, n ... 32-33, p. 27).

45

...'
CHARLES BETTELHEIM

sição entre «proletário» e «operário» que se encontra em Ernst


Jünger, para quem esta segunda figura concentra maior «positi-
vidade» visto ser portadora da técnica. A Ideologia nazi tal como
a ideologia estalinista desenvolvem, assim, um «obreirismo» que
permite exercer, em nome dos «trabalhadores», as práticas opres-
sivas das quais eles são, de facto, a vítima central 4 ".
De notar também que o obreirismo estalinista permite reprimir
os operários concretos sempre que o seu comportamento se afaste
demasiado do operário modelo dos discursos, dos romances e dos
filmes oficiais. Aos olhos das autoridades, tais operários deixam
de ser «verdadeiros operários», são «pequenos burgueses» pregui-
çosos e egoístas. O discurso oficial encontra facilmente a expli-
cação de tais taras nas origens camponesas destes operános.
O obreirismo estalinista recorre também ao mito das origens
como faz o nazismo. Assim, quando um quadro importante do
partido quiser eliminar alguém que o incomode procurará saber
se os seus antepassados não eram operários; neste caso, a sua
«má origem» bastará para o tornar suspeito e, portanto, culpado.
Estas diversas observações esclarecem a especificidade da
ideologia política e jurídica estalinista e mostram que nela se
encontram estreitamente imbricados os mais diversos elementos ••.
Mencionamos, entre outros:
1 -Uma versão largamente dogmática do «marxismo-leni-
nismo». Esta versão evolui, ao longo do tempo, em função das
«exigências» do momento. No entanto, pode considerar-se que ela
encontrou a sua forma canónica no capítulo IV da História do
Partido Comunista (Bolchevique) da URSS". As propostas ali
apresentadas são, aliás, interpretadas consoante as necessidades da
hora pelas autoridades ideológicas do partido, elas própnas escla-
recidas pelo Vojd.
2 - Um nacionalismo russo que glorifica o passado czarista
~
do país, a sua missão histórica e o papel progressista dos seus
''·,. granues homens, compreendendo os czars mais sanguinários e
os mais indiferentes pela sorte dos trabalhadores.
3- Um «demonismo» que faz surgir, cada vez que o poder
o julga necessário, inimigos satânicos que só agem para preJU-

" 1b1d., pp. 17-18 e 27 a 29.


" Uma parte dos desenvolvimentos que seguem foram inspirados por
uma intervenção de Moshé Lewin por ocasião da mesa-redonda consa-
grada à mdustrialização soviética dos anos 30, mesa esta que se reuniu
na EHSS, em Paris, a 10 e 11 de Dezembro de 1981.
" Cf. a tradução (francesa) deste livro, Bureau d'Editions, Paris,
;~ 1939.

46
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-fV '\

dicar: são os «monstros» e os «demónios», as «víboras lúbricas», '
denunciados por Vichinsky e seus colaboradores por ocasião dos
processos de Moscovo. Este «demonismo» não deixa de ter efeito
sobre as camadas .populares ainda submetidas a numerosas supers- .,
tições. Permite denunciar os inúmeros «inimigos do povo» que
se recrutam no seio do próprio povo. 'I
;
4- Uma idolatria do Estado que reveste múltiplos rostos: t
culto do partido e, acima de tudo, do seu chefe; culto da polícia
erigida em «gládio glorioso do proletariado» ou em «protectora
do povo»; a afirmação do «domínio» do partido e do Estado sobre
o desenvolvimento social.
5 -Um discurso sobre as exigências da legalidade socialista,
discurso que se articula -sempre que é possível- com um juri-
dismo minucioso. Este juridismo não exclui um arbítrio completo,
podendo as «confissões» e os «testemunhos» ser arrancados por
todos os meios.
Este discurso sobre a «legalidade>> desenvolve-se principal-
mente na segunda metade dos anos 30 e serve fins múltiplos. No
imediato, permite julgar e condenar membros do partido afir- '\
.;
mando que a lei deve ser igual para todos (quando, até meados
dos anos 30, os membros do partido estavam relativamente prote-
gidos contra as acções da polícia que, para agir contra eles, devia
obter autorização prévia das instâncias superiores do partido).
Mas este «legalismo» contém também, para o futuro, uma pro-
messa de estabilidade e de previsibilidade, promessa à qual os
quadros do partido são particularmente sensíveis à época em que
a legalidade estatal não é respeitada e eles estão constantemente
ameaçados por uma segunda legalidade, a legalidade política,
a do terror inscrito numa legislação de excepção ••.
Assim, durante os anos 30 -ao nível político e jurídico-, -·'
a formação ideológica estalinista representa uma mistura de ele- I
mentos extremamente diversos que permitem a esta formação
ideológica justificar acções altamente contraditórias, e suscitar
ecos em camadas muito diferentes da população que aí podem
encontrar representações e «valores>> familiares, já que elas se
formaram ao longo de séculos de opressão.

" Este ponto foi particularmente desenvolvido por Hélêne Carrêre


d'Encausse na sua intervenção da mesa-redonda da EHESS comagrada
à industnalização sovietica dos anos 30 (cf. a sua comumcação: Perma-
nences et changements du pouvoir politique dans les années de l'indus-
trialisation: 1928-1941).

47
; .
CHARLES BETTELHEIM
SECÇÃO II

A ideologia económica estalinista

A ideologia económica estalinista comporta múltiplas dimen-


sões. Por um lado, evolui no decurso do tempo; reveste aspectos
diferentes consoante os periodos: não é a mesma durante os anos
da «revolução por cima» (1928-1933) em que predomina um volun-
tarismo aberto (que conduz a negar toda a «lei» e mesmo todo
o constrangimento), durante os anos da consolidação da posição
de Estaline através do terror na segunda metade dos anos 30,
onde se assiste à formação de um primeiro esboço de economia
política do socialismo; e durante o exercício conservador da dita-
dura estalinista, dos anos 40 até à morte do Gensek, em que
toma verdadeiramente forma a economia política do socialismo
e o seu cortejo de «leis económicaS».
Por outro lado, a complexidade da ideologia económica esta-
linista é avolumada pelos papéis múltiplos que desempenha. Não
intervém somente como um sistema de representações que «deixa
ven> a realidade ao mesmo tempo que a oculta com um discurso
apologético, mas pretende também, sobretudo quando toma a
forma de uma «economia ·política», ser um guia para a nação.
Não é necessário efectuarmos aqui uma análise do desen-
volvimento histórico da ideologia económica estalinista ••, mas
convém assinalar alguns dos seus temas principais tal como apa-
recem, principalmente a partir de 1936, sem esquecer que alguns
deles são extraídos de autores dos anos 20 ••.

" Foi isto feito recentemente, de forma excelente, por Bernard


i Chavance, no seu livro Le Capital socialiste, Paris, Le Sycomore, 1980.
~~ Bastará ao leitor recorrer a ele.
" Sobre este ponto, igualmente, o livro de B. Chavance é muito
elucidativo. Entre os autores que expõem temas retomados pela ideologia
estalinista, quando eles próprios foram expulsos do partido e «liquidados»,
é necessário citar: N. Boukharine que publicou, entre outros, L'Êcono-
mique de la période de transition (reeditado em Paris, EDI, 1976) e
E. Préobrajensky e o seu livro: La Nouvelle Économique (reeditado em
Paris, EDI, 1966). Encontrar-se-á também uma análise interessante do
desenvolvimento da ideologia económica estalinista na tese de Louis
Baslé, L'Élaboration de l'économie politique du socialisme en Union
Soviétique, 1917-1957, tese de Estado de ciências económicas, Paris, X,
1979.

,,:,· 48

,
..'
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV
1. O modo de produção soclallsta

Um dos temas centrais da ideologia económica estalinista é


constituído pelo modo de produção socialista. Esta noção é uma
inovação importante do estalinismo. Permite desenvolver um dis-
curso que se afirma científico: o da «economia política do socia-
lismo» que é julgada capaz de enunciar as «leis» deste modo de
produção.
Apresentando a noção de modo de produção socialista, o esta- .,
Iinismo rompe com os discursos marxistas anteriores para os quais
o socialismo não é um modo de produção mas uma fase transi-
tória, a primeira face da sociedade comunista.
Esta concepção do socialismo desenha-se progressivamente nos
textos de Estaline"'. Encontra a sua forma acabada no Manual
de Economia Política da Academia das Ciências da URSS (1954).
Apesar da data tardia da publicação deste texto, torna-se neces-
sário referi-lo porque ele expõe de maneira sistemática os temas
principais da ideologia económica estalinista do período da matu-
ridade. Bernard Chavance evidencia bem que o modo de produção
socialista é «definido (no Manual) como uma forma económica
da sociedade inteiramente nova, acabada, que representa o ponto
de chegada da evolução histórica da humanidade. Possuindo as
suas leis particulares, reproduz-se e desenvolve-se a partir das suas
próprias bases, que o distinguem de todos os regimes económicos
e sociais anteriores [ ... ]. Segundo a teoria soviética [ ... ], é um
sistema económico que se apoia na propriedade social dos meios
de produção e que está, ao mesmo tempo, organizado racional-
mente através do planeamento estatal»"'.
Nesta concepção, duas categorias desempenham um papel
chave, a da «propriedade socialista» e a do «planeamento estatal».
:É, pois, necessário demorar-nos sobre o significado destas cate-
gorias e sobre o seu lugar na ideologia económica estalinista.

2 A propriedade socialista

Na Constituição de 1936, diz-se que «a propriedade socialista


na URSS reveste quer a forma de propriedade de Estado (perten-
cendo a todo o povo), quer a forma cooperativa kolkhoziana ,,

n Continua a prevalecer hoje na URSS e nos países do bloco, mas


também na China, no Vietname, na Albânia, em Cuba, etc.
" Cf. B. Ch~vance, Le Capital socialiste, ob. cit. p. 307 (as palavras
sublinhadas foram-no por mim, C. B.). '

Est. Doe. 220-4 49


CHARLES BETTELHEIM

(propriedade de cada kolkhoze, propriedade das umoes coope-


rativas)»". A dita propriedade socialista é igualmente considerada
como «propriedade social», segundo uma tradição que remonta
aos anos 20 e que pode reclamar-se da interpretação de um certo
número de textos de Lénine ••.
A categoria de «propriedade socialista» não pode ser tomada
'
,,'' realidade senão à custa de uma completa subversão das análises
'
e das categorias de Marx. Para este, a propriedade capitalista
não é uma categoria jurídica: é uma categoria social que designa
o conjunto das condições da produção capitalista. Desde a Miséria
da Filosofia, Marx denuncia a ilusão jurídica que reduz a pro-
priedade a uma «relação independente»''. Quase vinte anos mais
tarde, numa carta datada de 31 de Janeiro de 1865, volta a este
tema e escreve que «a propriedade burguesa moderna>> (isto é,
a propriedade capitalista) não pode ser compreendida «senão por
uma análise [ ... ] que abarque o conjunto [das] relações de pro-
priedade não na sua expressão jurídica ou de relações de vontade,
mas sim na sua forma real, isto é, como relação de ,produção» ••.
Embora as «virtudes» socialistas da estatização sejam um lugar-
-comum da maior parte dos marxismos" (cujas afirmações, neste
ponto, a ideologia estalinista se limita a repetir), a crença em
tais «virtudes» está em contradição com o pensamento teórico
de Marx e permite ao estalinismo desenvolver sistematicamente
teses específicas.
A identificação da propriedade de Estado com uma proprie-
dade social constitui um dos pontos de amarra de um raciona-
lismo formalista que pretende mudar a significação das categorias
mercantis e capitalistas colocando-lhes a etiqueta de socialista.
Este procedimento (que se toma sistemático no Manual mas que
aparece bem mais cedo) permite falar, por exemplo, de um «preço
socialista» ou de um «salário socialista» ao afirmar que as «formas»
de preço e de salário existem no socialismo mas que tais «formas»
têm, doravante, «conteúdos» novos que delas fazem «instrumentos
da economia planeada» 58 •

" Cf. o artigo v da Constituição.


" Ct R Chavance, Le Capital socialiste, ob, cit., p, 64, designada-
mente a nota 60.
" Cf. Karl Marx, Oeuvres, t. I, p. 118,
•• Ct ibid., pp. 1453-1454.
"' Designadamente do marxismo kautskista (cf. K Kautsky, Das
Er/urter Program, publicado pela primeira vez, em 1892, Berlim, Dietz
Verlag, 1965, p. 115).
•• Cf. B. Chavance, Le Capital socialiste, ob. cit., pp. 221 e segs.
e 308.

50
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS- IV

Semelhante afirmação conduz a rejeitar uma tese fundamental


de Marx, a saber: que a forma das relações sociais não deve ser
separada da natureza destas últimas, que ela é o seu modo social
de manifestação, o qual acarreta determinados efeitos, o que
exclui a sua redução ao simples papel de «instrumentos».

3. A economia planeada

A categoria de «planeamento» é evocada por Marx em nume-


rosas ocasiões, em particular quando fala da possibilidade que
teriam os <<indivíduos associados [de] controlar o conjunto da sua
produção>} quando tiverem desaparecido o valor de troca e a
moeda ••.
Na ideologia económica estalinista, a categoria de planeamento
designa actividades estatais tendentes, ao mesmo tempo, a «ela-
boran planos económicos e a «aplicá-los>}. No decurso dos anos 30,
os «defeitos» desta «aplicaçãm} não impedem que, doravante, se
fale de economia planeada ou de economia socialista planeada.
Estas expressões supõem que o desenvolvimento socialista está
«submetido» ao plano de Estado e que existe, portanto, um
«domínio da economia» pelo plano.
Este dorninio, como se sabe, é ilusório porque o desenvolvi-
mento efectivo escapa aos «objectivos>} dos planos. Corresponde,
no entanto, a uma aparência real que nasce da combinação da
propriedade de Estado, da idolatria do Estado e das formas de
intervenção que constituem os planos económicos. Exercem estes
uma acção efectiva mas cega sobre o processo de reprodução. ..>
Não fazem com que este processo escape às exigências da acumu-
lação do capital e às contradições que delas resultem, embora
imprimam formas específicas ao movimento dessas contradições ••. .,
<,

4. As «leis económicas do socialismo»

A noção de «leis económicas do socialismo» só progressiva-


mente aparece na ideologia estalinista. No decurso dos anos 20,
admite-se geralmente que existem «leis económicas do período
de transiçãO>}, mas esta ideia é praticamente rejeitada durante os

" Ver, por exemplo, K. Marx, «Príncipes d'une critique de l'écono-


mie g>litique», em Oeuvres-Economie, ob. cit., t. 2, p. 211.
• Sobre este ponto, ver a última parte do t. 1 do presente volume,
Os Dominados.

51
" .

CHARLES BETTELHEIM

dois primeiros Planos Quinquenais, para ressurgir progressiva-


mente a partir de 1937. Assim, ao passo que, numa fase inicial,
domina um voluntarismo aberto, numa segunda fase, a estabili-
zição do sistema parece reclamar a proclamação pelo poder da
existência de leis económicas objectivas.
Não há utilidade em retratar aqui as transformações que a
ideologia estalinista sofreu neste domínio 6' , basta lembrar breve-
mente algumas das formulações «teóricas» correspondendo à
última forma desta ideologia, aquela que é enunciada por Estaline
em Os Problemas Ecanómicos do Socialismo na URSS.
Neste texto, Estaline expõe uma concepção «objectivista» das
leis económicas do socialismo. Declara que estas «reflectem os
processos objectivos que se operam independentemente da vontade
humana», critica aqueles que confundem estas leis com as «edi-
tadas pelos governos, criados pela vontade dos homens e não tendo
força senão jurídica» 62 • Todavia, a existência dessas leis é afir-
mada ou postulada, nunca é demonstrada. Tal é o caso para o que
Estaline chamou «a lei económica fundamental do socialismo»,
a propósito da qual declara:
Os traços essenciais e as exigências [desta lei] poderiam
ser formulados aproximadamente assim: assegurar a satis-
fação máxima das necessidades materiais e culturais sem-
pre crescentes de toda a sociedade, desenvolvendo e aper-
feiçoando sem cessar a produção socialista com base numa
técnica superior 63 •
Vê-se que é apenas de maneira aparente que a dita «lei funda-
\'
mental do socialismo» proclama o primado da «satisfação máxima
das necessidades materiais e culturais», visto que é imediatamente
precisado que esta «satisfação» exige que a produção se aper-

"' As teses sobre as leis económicas de transição tal como são geral-
mente aceites no fim da NEP encontram-se expostas na obra de I. La-
pidus e K Ostrovitianov, Précis d'Écanomie politique (tradução francesa)
Paris, ESI, 1929. As diferentes concepções que aparecem a seguir são
expostas nos trabalhos já citados de B. Chavance (mas mais especial-
mente na sua tese: Les Bases de l'économie politique du socialisme,
Paris-X, 1979, texto policopiado) e de L. Baslé. Ver também A. Smolar,
«L'utopie et la science: l'économie politique dans la version marxienne
du communisme et pendant l'industrialisation», Revue de l'Est, n.• 4,
1974, e Millar, «A Politicai Economy of Socialism in the Marking»,
Soviet Studies. Abril de 1953.
"' Cf. J. Estaline, Les Problemes économiques du socia/isme en URSS,
éditions du PCF, 1952, p. 6.
•• lbid., p. 34.

52
~ ',• '

AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

feiçoe sem cessar. Aliás, o muito oficial Manual de Economia


Política (que aparece dois anos após o texto de Estaline, em
1954) declara:
A lei económica fundamental do socialismo está indis-
soluvelmente ligada à lei do desenvolvimento prioritário,
isto é, um tanto mais rápido, dos ramos que produzem
meios de produção relativamente ao dos ramos que for- :·,
necem objectos de consumo individual ••.
Assim, sobretudo na época de Estaline, esta lei visa justificar .~
o primado da acumulação e um crescimento dos salários reais )
mais lento do que o da produtividade do trabalho. Exprime, assim,
certas tendências profundas da produção e da acumulação capi-
talistas.
Uma outra «lei económica do socialismo» enunciada por Esta-
line, no seu texto de 1952, é a do «desenvolvimento harmonioso
da economia nacional» que afirma ter surgido «em oposição à
lei da concorrência e da anarquia da produção [ ...], com base
na socialização dos meios de produção ... »"".
Estaline opõe esta lei àqueles que consideram que existiria
uma <dei de planeamento» da economia socialista porque, diz ele,
«a lei de desenvolvimento harmonioso da economia nacional
oferece às nossas organizações de planeamento a possibilidade de ·1
planear correctamente a produção social. Mas não deve con-
fundir-se possibilidade e realidade. São duas coisas diferentes» ••.
Semelhante formulação permite desenvolver o tema da «apli-
caçãm> mais ou menos «correcta» das leis, tema retomado tam-
bém a propósito da «lei do valor» que se admite que exista «objec-
tivamente» mas relativamente à qual se precisa que deve ser
«aplicada» de maneira justa para evitar «a confusão na política
dos preços»"'.
Como nota B. Chavance, o raciocínio aqui exposto contém
uma verdadeira ruptura com a forma das teses voluntaristas do
início dos anos 30; postula, com efeito, que as leis do socialismo
existem, em certa medida, independentemente da actividade pla-
neadora do Estado, que procura «aplicá-las» 68 ,

"' Cf. Manual ... , oh. cit., p. 443.


" Cf. Estaline, Les Problemes ... , ob. cit., p. 9.
..7 Ibid., p. 10. As palavras sublinhadas estão no texto de Estaline.
• lbid., p. 19.
61
Cf. B. Chavance, Les Bases ... , ob. cit., p. 461.

53
CHARLES BETTELHEIM

Em globo, a ideologia económica estalinista é, antes de tudo,


apologética. Mesmo sob a sua forma «desenvolvida>>, ela não
abandona senão aparentemente o volzmtarismo do princípio dos
anos 30, porque as leis económicas cuja existência proclama ser-
vem essencialmente para «justificar» as decisões do poder. No
entanto, sob a forma que reveste a partir de 1952-1954, a ideo-
logia económica estalinista desempenha um papel mais complexo.
No que tem de essencial, tende a tornar indiscutível uma polí-
tica económica apresentada como «aplicando» leis objectivas de
que o poder é o único enunciador e intérprete autorizado.
A coberto da «cientificidade», a ideologia económica estalinista
corrobora, pois, as práticas absolutistas da direcção do partido.
Por outro lado, pela intervenção da noção de «aplicação» das
leis, ela abre um campo de justificação aos erros que podem
afectar esta «aplicação»- por exemplo, no domínio dos preços-,
., o que permite explicar certos «desvios» entre o que realmente
se passa e o que «se deveria ter passado», se as leis houvessem sido
•·'
l· correctamente aplicadas.

,.

54
'•
"

CAPíTULO II
O FUNCIONAMENTO DA FORMAÇÃO
IDEOLóGICA ESTALINISTA
'·I
·<,
A análise dos principais temas constitutivos da formação ideo-
lógica estalinista, do seu desenvolvimento e das suas relações
com a prática política sugere, a justo título, que esta formação
ideológica representa uma junção de elementos diversos e con- .)
traditórios cujo papel varia segundo a conjuntura política e -j'
económica. Assim, os temas do estalinismo do periodo da «revo-
lução por cima» são profundamente diferentes dos do estalinismo
consolidado que se instala a partir dos anos 40.
No entanto, a forma cientista e dogmática do discurso esta-
Iinista permite dissimular o carácter heteróclito e móbil da for-
mação ideológica estalinista, cujo modo de funcionamento ele
unifica. Permite aos seus partidários exercer um terror ideológico
(que se apoia no terror puro e simples) e praticar a fuga perante
o real: o discurso estalinista anuncia-se como sendo o da «ciência»;
afirma-se mais verdadeiro do que os próprios factos, do que a
realidade vivida.

SEOÇÃO I

Cientismo e dogmatismo

O discurso contraditório do estalinismo é sistematicamente i,


ossificado por dois corpus que se impõem de maneira dogmática:
o «materialismo dialéctico» e o «materialismo histórico» estali-
nista. Estaline dá-lhes forma canónica ao publicar, em Setembro
de 1938, O Materialismo Dialéctico e o Materialismo Histórico 1 •
1
a. Estaline, Q. L., t. 2, pp. 785 a 822.

55
..~.'1 Y';-!;;;'"t"'"'"',..J. i',.,.ff ..,_l","i""''• ' ~·,·· r-;._ '- ·~"~ ........... r,,·.,;:
,,

CHARLES BETTELHEIM

A concepção estalinista do materialismo dialéctico (ou diamat)


é altamente especulativa. O diama:t apresenta-se como um con-
junto de quatro «princípios» justapostos e sem coerência. O pri-
meiro lugar é atribuído à interdependência geral de todos os
fenómenos. Esta interdependência é construída de maneira redu-
tora, não deixa verdadeiramente lugar ao movimento das contra-
dições que afecta os diferentes níveis do real. A interdependência
funciona, assim, como um princípio metafísico de totalidade.
Por outro lado, a ideologia filosófica estalinista não remete para
a análise concreta: o «movimento» ao qual se refere é apresen-
tado como uma categoria abstracta, separada das contradições,
das suas relações e da sua complexidade; por consequência, parece
decorrer essencialmente de acumulações quantitativas conduzindo
a mudanças quantitativas' que revestem «a figura de uma con-
cepção evolucionista», na qual o movimento «Vai do simples
ao complexo, do inferior ao superior, numa perspectiva neo-
-hegeliana insípida»'.
Este materialismo dialéctico metafísico exerce variadas fun-
ções. Por um lado, a sua existência como dogma fecha a porta
a qualquer discussão pública <mão autorizada» de problemas
filosóficos que não for simples repetição ou mero comentário
de uma teoria já sem nenhum alcance crítico. Por outro lado,
funciona como «garantia teórica de uma linha politica» • e como
justificação de um materialismo histórico, ele próprio dogmático.
Este materialismo histórico não remete para análises concretas:
surge como a «aplicação» à história das «leis universais» da
dialéctica. Consequentemente, a história real só é evocada para
«ilustrar» as teses dogmaticamente formuladas do «materiahsmo
histórico» e para «justificar» o curso dos acontecimentos tal como
é apresentado no discurso oficial.
.;, O papel destes dois corpus «teóricos» do estalinismo é essen-
I'
cialmente instrumental. O diamat tornou-se uma «ciência das
' ciências» em nome da qual se tomam decisões do exterior, à mar-
•'
' gem de toda a prática social, do que é verdadeiro ou falso no
domínio das ciências; é assim que as teorais do biólogo Lyssenko
são proclamadas verdadeiras porque «justificadas» pelo materia-
lismo dialéctico. O diamat constitui um hegelianismo empobre-
cido, para o qual tudo o que é proclamado real é declarado
racional. Simultaneamente, o materialismo histórico pretende

• Cf. Estaline, Q. L., ob. cit., pp. 787-790.


' Cf. Domm1que Lecourt, La Phzlosophie sans feinte, Paris, Albin
Michel, 1982, pp. 146-147.
' lbid., p. 145.

56
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

apresentar as fases (em número de cinco) pelas quais passa a


humanidade no decurso da sua história •. Semelhante evolucio-
nismo repousa sobre uma teleologia subjacente e desempenha um
papel apologético ao apresentar o socialismo como o «fim da
história».
Esta ideologia apresenta retrospectivamente as diferentes fases
do expansionismo czarista como «progressos» que permitiram ao
povo russo levar o socialismo a povos que a este não poderiam
aceder sem a sua ajuda. Nestas condições, considera-se como «indo
no sentido da história» o que é julgado conforme ao papel his-
tórico do povo russo.
Dois factos podem ser aqui sublinhados:
1 -A ideologia estalinista apresenta-se como «científica»; o
que ela proclama é verdadeiro e apresentado como o resultado
de uma análise científica, mas trata-se apenas de uma apresen-
tação que não está justificada por nenhuma análise concreta e
nenhuma experimentação social ou histórica. Ao passo que as
conclusões cientificas são demonstráveis e podem ser discutidas
e contestadas, as propostas adiantadas pela ideologia estalinista
devem permanecer indiscutidas {salvo se a direcção do partido
quiser fazer novas propostas); constituem, assim, um dogmatismo
cientista que acumula afirmações não demonstradas (muitas vezes
indemonstráveis) e apresentadas como «evidências», ainda que
estejam em contradição com o que se pode observar. Tais afir-
mações são equiparadas a «princípios» ou a «conhecimentos»,
devido à autoridade atribuída àquele que as enuncia. Sempre que
possível, esta autoridade procura fortalecer-se reportando-se, por
sua vez e o mais possível, a uma outra autoridade: a dos livros
dos «fundadores do marxismm> (praticamente Marx, Engels e
Lénine), daqui provindo o lugar extraordinário que o estalinismo
concede às citações. Têm estas últimas, designadamente, como
papel dispensar toda a demonstração e contribuem para dar ao
estalinismo a sua forma dogmática.
Pode introduzir-se aqui uma observação mais geral: o carác-
ter dogmático dos enunciados «teóricos» e o recurso às citações
como «provas» da «verdade» do que é afirmado constituem uma
característica comum à ideologia de numerosos partidos ditos '•'·
«marxistas-leninistas». Ao nível teórico, funcionam estes, com
efeito, mais ou menos segundo as normas que tomaram corpo ,,,'
na URSS no decurso dos anos 30 e que, na própria União Sovié-
tica, estão muito longe de ter sido completamente abandonadas
.,

• Cf. Dominique Lecourt, La Philosophie ... , ob, cit., p. 811. '
57
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,.
i
CHARLES BETTELHEIM

após a morte de Estaline (embora o recurso às citações já não


desempenhe, hoje, exactamente o mesmo papel). Pode admitir-se
que este dogmatismo esteja ligado ao lugar ocupado pela ideologia
no sistema de dominação de tipo soviético em geral, assim como
às formas especificas de direcção centralizada que caracteriza os
partidos no poder em tal sistema. A renovação dos órgãos do
poder efectua-se por cooptação: esta requer uma «legitimação»
do discurso dos dirigentes que não dependa das opiniões parti-
culares dos membros do partido mas sim da fidelidade (atribuída
aos dirigentes) a um corpus teórico de que eles são considerados
r'' os mais fiéis depositários e gestionários. Esta é, também, uma
v' das razões do carácter dogmático da ideologia desses partidos.
,•· 2- A forma «cientista» da ideologia estalinista tende, assim,
~
a reforçar o poder do partido cuja direcção é apresentada como
depositária e intérprete das leis da história da sociedade e das
lutas de classes. O partido anuncia-se como instrumento da his-
tória criado pela história. São as leis desta que ele aplica e que
tem mesmo o dever de aplicar de maneira implacável, já que elas
devem libertar os homens e fazer nascer um «homem novo» e
superior.
Os aspectos cientistas e teleológicos de certas concepções de
Marx, e o carácter de verdade indiscutivel que Lénine lhes atribui,
puderam abrir caminho ao cientismo estalinista mas a justificação
implícita das práticas terroristas que Estaline deles extrai é estra-
nha ao pensamento do autor do Capital.
Notar-se-á também que o uso que o estalinismo faz do cien-
,,' tismo é análogo àquele que deste faz o hitlerismo; embora um
deles se reclame das leis da história e o outro das leis da natureza,
ambos têm em vista um certo evolucionismo que encontra o seu
modelo na obra de :Darwin.
Este modelo constitui um dos substractos teóricos dos dois
sistemas totalitários que recorrem ao terror, desprezando todas
as leis positivas (mesmo aquelas que eles promulgam) para asse-
gurar o cumprimento das leis «científicas» que eles proclamam •.
Como escreve Hannah Arendt:
No corpo politico do regime totalitário [o] lugar das
leis positivas é tomado pelo terror total ao qual cabe dar
realidade à lei do movimento histórico ou natural [ ...].
• F. Engels já havia estabelecido um paralelo entre Marx e Darwin,
na sua introdução à Origem da Família ... e na introdução de 1890 ao
Manifesto Comunista; outros autores fizeram o mesmo. Marx não os
recusou. Cf. P. Thuillier, Darwin & Co., Bruxelas, Éditions Complexe,
1981.

58
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

O terror é a realização da lei do movimento [ ... ]. Este


movimento [ ... ] distingue no género humano os inimigos
contra os quais é dado livre curso ao terror [...]. Culpa-
bilidade e inocência tornaram-se noções desprovidas de
sentido: «culpado» é aquele que levanta obstáculos ao
progresso natural ou histórico [...] '.
A estrutura e o desenvolvimento da ideologia estalinista cor-
respondem às funções extremamente diversas que esta exerce (e
às quais voltaremos): apresenta, sob uma forma sistemática, algu-
mas das aparências reais do sistema, incluindo aquelas sobre as
quais se baseia a acção do partido; tende a ocultar as contradições
sociais, a investir o partido no monopólio do poder e a preencher
o campo ideológico de tal forma que nenhum outro discurso possa
inscrever-se nele.
Ao desenvolver-se, o dogmatismo do discurso estalinista assume
forma cada vez mais clerical. Mais exactamente, como observou
Victor Serge, apresenta-se como um discurso «beato» que sustenta
uma <<Ordem clerical» •.
Nos seus últimos textos, Estaline condenará aqueles cujas ideias
rejeita, afirmando que eles «pecam contra o marxismo» •.

SECÇÃO II

A fuga perante o real e a mística do partido

A formação ideológica estalinista combina de forma específica


um discurso que dá conta de um certo nível de realidade e dos
constrangimentos que neste se manifestam com um discurso que
contradiz não só o movimento real mas a própria realidade vivida.
O modo sob o qual se opera esta combinação está estreitamente
articulado com dois mitos fundadores: o da instauração, após Ou-
tubro de 1917, de um «poder proletário» e o da «construção doso-
cialismm>, que se impõe no decurso dos anos 30. Estes dois mitos
não se limitam a proclamar que a classe operária alcançou grandes

• Cf. H. Arendt, Le Systeme totalitaire, Paris, Seuil, «Points», 1972,


PP. 209-210.
• Cf. Victor Serge, Mémoires d'un Révolutionnaire, Paris, Seuil,
«Points», 1979, pp. 294-296.
• Cf. J. Estaline, Les Problemes ... ob. cit., 1952.

59

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CHARLES BETTELHEIM

vitórias sobre as classes inimigas, comportam também a promessa


de êxitos imediatos e importantes para os trabalhadores; esta pro-
messa está muito longe do movimento real que, nos anos 30, se
caracteriza pela descida do nível de vida dos operários e dos cam-
poneses; o endurecimento da disciplina nas fábricas, a penalização
do trabalho, etc.
A ideologia estalinista é uma ideologia alienada, incapaz de
manter coesas as suas promessas e a realidade vivida. O seu dis-
curso decorre entre o modo de inverter o real e o de o ocultar.
Instaura-se, assim, uma linguagem convencional, codificada, na
qual uma parte do que é dito significa o contrário do que é afir-
mado (estas afirmações, todavia, nem por isso devem deixar de ser
repetidas porque está nelas a verdade oficial, e outra não poderia
haver). Esta linguagem codificada reveste, pouco a pouco, a forma
de uma língua de madeira, de uma língua morta da qual a vida se
retirou porque perdeu de todo o contacto com a realidade.
Embora os mecanismos da inversão e do derrube ideológico
estejam claramente a actuar, fazem-no de maneira especifica por-
que o discurso da ideologia oficial é levado a ir para além do
campo de uma simples ideologia alienada para se mover no terreno
das contraverdades patentes, da mentira pura e simples. :É o que
sucede com os discursos que apresentam a «emulação socialista>>
como uma «assistência entre camaradas» quando do que se trata
é de uma verdadeira concorrência 10 , daqueles que, em plena su-
bida dos preços, afirmam que «a moeda soviética é a mais estável
do mundo», sem contar os discursos sobre a adesão voluntária
maciça aos kolkhozes ou sobre a Constituição mais democrática
do mundo.
Está-se perante exemplos evidentes de fuga perante a reali-
dade. No entanto, parece impossível optar, em cada caso, entre o
que -nesta fuga- cabe à ilusão ideológica, à auto-intoxicação
't de dirigentes que quereriam que as coisas se passassem como eles
I desejam, e o que são mentiras cientemente proferidas.
' É necessário, todavia, sublinhar aqui que a fuga perante o real,
que caracteriza, em larga medida, a ideologia estalinista, não pode
,, ser separada da mística do partido. Tende esta a postular como
verdadeiro aquilo que é enunciado «pelo partido», ocultando, por
isso mesmo, a questão dos erros e das mentiras aos olhos daqueles
que aderem a essa mística (e tornando cada vez mais difícil a
correcção dos erros e a denúncia das mentiras).
Uma das primeiras declarações (testemunhando a subida da
mística do partido e o principio de um processo de adesão «unâ-
•• Cf. a segunda parte do t. 1 da presente obra, Os Dominados.

. 60

.
;
·,' t>-r·: •..,. ~

AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

nime» às afirmações deste) é muito anterior ao regime absolutista


do Gensek. Remonta ao XIII Congresso do partido (23-31 de Maio
de 1924). Este Congresso, reunido quatro meses após a morte de
Lénine, quis ser um «modelo de unanimidade»; por isso, nenhum
dos porta-vozes da oposição presentes no Congresso participa no
voto. tÉ nesta ocasião que Trotski enuncia uma proposta que devia
impor-se ulteriormente de maneira mais ou menos brutal:
Sei que não se pode ter razão contra o partido [ ... ]
porque a história não criou outro meio para a realização
do que é justo 11•
Começa, assim, a nascer um novo «critério de verdade», pelo
menos de uma «verdade» com alcance político prático.
Cerca de ano e meio mais tarde, por ocasião do XIV Congresso
(18-31 de Dezembro de 1925), o desenrolar dos debates conduz
Boukharine a evocar, por sua vez, o papel do partido no enunciar
da «verdade». Fê-lo num discurso durante o qual se opõe à viúva
de Lénine que defende opinião diferente da da maioria. Boukha-
rine declara, então:
N. K IKroupskaia diz a verdade no que corresponde à
realidade, cada qual pode olhar e ouvir, e responder por si
mesmo. Mas o que acontece, então, ao partido? Desapa-
receu com um golpe de varinha de condão 12 •
Não se podia dizer melhor, na época, que aquilo que é «verda-
deiro» não é o que está «conforme à realidade», mas sim o que
o partido como tal declara.
!É certo que estas formulações de Trotski e de Boukharine de
nenhum modo representam a «doutrina oficial». Traduzem, no
entanto, pontos de vista que estão bastante generalizadamente
admitidos no partido, em especial pela direcção deste.
A partir de 1930, quando a ideologia estalinista começa verda-
deiramente a impor-se, a suposta capacidade do partido para dizer
o «verdadeiro» e, portanto, enunciar a «ideologia correcta», toma
dimensão sem precedentes. Doravante, a capacidade do partido
para optar entre o verdadeiro e o falso já não corresponde somente
ao que admitem tais ou tais dirigentes mas, sem que seja enun-
ciado explicitamente, torna-se um dogma cuja «aceitação» é obri- t
.. ~

:l
11
Citado por L Schapiro,
pp. 288-289.
The Communist Party ... , ob. cit., .•
i
'
" Cf. ibid., p. 298.

61
.,
'I
CHARLES BETTELHEIM
,.
gatória e que conduz praticamente a interditar qualquer discussão
aberta sobre um número crescente de problemas.
No entanto, o grau de adesão efectiva ao discurso do partido
é evidentemente de impossível avaliação porque varia de maneira
considerável consoante os temas apresentados pelo partido, os mo-
mentos, as camadas sociais e os indivíduos.
Por outro lado, para aqueles que aderem ao discurso oficial, a
ideia de se afastar deste surge como criminosa: o próprio deste
dogma é afirmar que duvidar é trair 13 ; por isso, quando a dúvida
surge não pode ser confessada.
Para aqueles que queiram estar com o partido, ou não se lhe
opor, é, portanto, necessário que o discurso oficial seja fundamen-
talmente «Verdadeiro» (seja qual for a sua relação com o real),
e é por isso que continua a ser aceite pelos próprios membros do
partido presos ou deportados. Para eles, aderir ao dogma e «iden-
tificar-se com o partido» faz nascer a certeza de que este último
não pode agir senão para o bem, e que o que vai mal não passa
de «acidente». Perante determinado testemunho ou determinada
realidade da vida quotidiana que contradiz o discurso, aquilo que
é entendido ou visto é declarado exterior à realidade soviética, é
a excepção necessária à regra, de onde estas frases típicas:

Trata-se de uma herança do antigo regime; não é ver-


dadeiro; as vossas testemunhas são falsas testemunhas; tra-
ta-se de um efeito do burocratismo total; o facto não tem
alcance geral; o Estado que pertence aos trabalhadores não
pode explorá-los nem oprimi-los; o mal é o inverso de um
bem; sem violência ou injustiça, o novo Estado não se teria
aguentado ".

Aquele que adere a esta ideologia e que se vê preso pelo


NKVD sob falsas acusações pode continuar a estar persuadido de
que só ele é vítima de um erro policial ou judiciário e de que todos
os outros prisioneiros são realmente culpados.

" Inspiro-me aqui na expressão utilizada por Moshé Lewin que


escreve para enunciar a mesma constatação: «dúvida = traição». Ele
vê nesta equação um dos instrumentos mais mortíferos da reacção moral
e cultural que atinge o país nos anos 30 [cf. M. Lewin, «Society, State
and Ideology during the first five year plam>, em Sheila Fitzpatrick (ed.),
Cultural Revolution in Russia 1928-1931, ob. cit., p. 69].
14
Cf. Claude Lefort, Un homme en trop, Paris, Seuil, 1975, p. 171.

62
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

Ao permitir a fuga perante o real, o discurso da ideologia esta-


linista é portador de uma certa ordem, mas para que esta seja
..
)

.1
mantida, é necessário repetir continuamente tal discurso.
Daqm provêm os ritos que rodeiam a repetição: devem estes
ritos contribuir para mascarar as contradições entre o discurso e a
realidade. Repetições e ritos dão ao discurso uma «carga de rea-
lidade» que ele não contém em si mesmo.

63
~·,. ~' 1"''""""';"'-~~"r"'J. _''>::,. \
,/'.•

CAPITULO III
A IDEOLOGIA PRATICA DO ESTALINISJ.\W
E OS SEUS EFEITOS SOCIAIS

As contradições do movimento social real dos anos 30 e a dia-


léctica que se desenvolve entre este movimento e a ideologia
estalinista abstracta fazem nascer práticas políticas e ideológicas
' que exercem efeitos poderosos sobre as diferentes formas da cons-
t ciência social. Toma, assim, forma um processo cujos efeitos
reagem sobre as suas próprias condições de existência. A comple-
xidade deste processo é tal que só poderemos descrevê-lo imper-
!
feitamente, mediante a descrição pormenorizada de alguns dos
~' seus momentos e das suas características.

SECÇÃO I

A figura da. conspiração

A figura da conspiração é inerente à ideologia prática do esta-


linismo. Nasce de urna contradição aguda entre a ilusão de um
domínio que se exerceria sobre o desenvolvimento e as transfor-
mações sociais, e a ausência real deste domínio. Esta contradição
dá dimensão excepcional à ilusão política que parece transformar
o Estado «num poder aparentemente autónomo»' e todo-poderoso.
Semelhante ilusão tomou dimensão semelhante no decurso da
Revolução Francesa, a tal ponto que, em certos momentos, toda
a resistência ao que querem os homens no poder se apresenta como
' Marx observa como esta ilusão se havia desenvolvido na Alemanha
do fim do século XVIII (cf. K. Marx, ldéalogie allemande, em Oeuvres
philosophiques, Paris, "Éditions Costes, 1938, pp. 182 e segs., em particular
p. 185).

64
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

I
devida a actividades hostis. Como Engels nota, o medo dessas acti-
vidades hostis gera, em França, em 1793 e até JuU10 de 1794, o
que ele chama «o terror como meio de autoconservação» 2 •
A ideologia estalinista produz formas ainda mais exacerbadas
desta ilusão política. Com efeito, desenvolve-se quando o poder de
Estado está concentrado no seio da direcção de um único partido
imaginariamente investido de certa missão histórica. Além disso,
Jeve este partido desempenhar a sua missão tanto melhor quanto
mais for guiado por uma visão científica do mundo e da história
e tiver à sua testa um homem que é «o chefe do proletariado
mundial» e é dotado de capacidade excepcional («genial») para
aplicar os princípios de uma política justa.
Nestas condições, era inevitável que surgissem de forma obses-
s;va as figuras da conspiração e da sabotagem como explicação da
não realização dos projectos e das promessas de um poder que se
diz e acredita ser todo-poderoso. A crença na sua potência conduz
o poder a imputar as dificuldades e os malogros a conspirações
ou revoltas que o impediriam de cumprir a sua missão histórica.
Daqui provêm o medo e a repressão que castiga resistências reais
ou actos considerados criminosos no próprio momento em que se
produzem (por exemplo, a resistência camponesa à colectivização).
'É, também, a repressão que pune actividades passadas e mais ou
menos imaginárias. 'É o que acontece com a multiplicação, no
decurso da segunda metade dos anos 30, dos processos-espec-
táculos de Moscovo e das inúmeras acções policiais e processos
locais levando à condenação de centenas de milhares de crimino-
sos sem crime. Esta repressão não é apenas o produto das contra-
dições sociais objectivas, da luta para eliminar homens julgados
«incapazes» ou insuficientemente leais, ou de tentativas visando
acalmar o descontentamento dos trabalhadores (aos quais são
apontados os «responsáveis» por uma situação material difícil ou
mesmo insuportável). Estes processos, as prisões e condenações
sem processo provêm igualmente de um fantasma ideológico: o
poder e o seus agentes estão persuadidos de que, se «as coisas
não vão como deveriam ir», tal não se deve nem ao sistema eco-
nómico nem à sua própria política, mas sim à actividade subver-
siva de sabotadores e outros agentes do inimigo. Surge, assim,
uma multidão de «adversários» e fautores de «conspirações>> que
estão votados à morte, à prisão ou à detenção nos campos. O fan-
tasma da multiplicação das conspirações amplia-se nos períodos
de crise económica ou de crise política, invadindo a maior parte dos

' Cf. a carta de 20 Fevereiro 1889 de F. Engels a K. Kautsky, em


'
:~
MEW, t. 37, p. 156.

Est. Doe. 2:0-5 65


CHARLES BETTELHEIM
,,f
). dirigentes e uma parte dos serviços policiais. Isto não impede que,
subjectivamente, se encontrem em situação ambivalente agentes
destes serviços: conhecem, muitas vezes, demasiados factos con-
cretos que os impedem de acreditar realmente na culpabilidade
daqueles que são acusados de conspiração, mas não lhes é per-
I
mitido duvidar pois que duvidar é trair; passam, portanto, à frente,
aparecendo-lhes como necessária a figura da conspiração para
«explicar>> dificuldades e incoerências de que a ideologia oficial
não consegue dar-se conta.
O I'ledo dos dirigentes incide, ao mesmo tempo, sobre o pas-
sado e sobre o futuro. Ê assim que a repressão após a Segunda
Guerra Mundial, que está ligada às acusações de «Cosmopoli-
tismo», acusação esta com forte componente anti-semita, visa
eliminar milhares de homens que nada têm a ver com o sionismo
(mas cujo eventual espírito crítico o poder teme) e aniquilar aque-
les que são testemunhas vivas do anti-semitismo do período de
colaboração com Hitler.
O fantasma das conspirações não está limitado às esferas diri-
'' '
gentes, invade também uma parte dos operários e camponeses
'
f
que não chegam a imaginar que as dificuldades com as quais se
debatem possam não ser devidas, pelo menos em parte, à sabo-
tagem e à subversão. Por isso, ao desmascarar «conspirações ima-
ginárias» (cujos pretensos autores são, as mais da~ vezes, forçados
a «confessar>>), o poder longe de enfraquecer a sua autoridade
reforça-a. A figura da conspiração torna-se um dos elementos de
uma política «populista» e conforta o «culto do chefe», homem
poderoso, perspicaz e sem piedade '.
A partir do assassínio de Kirov (Dezembro 1934), a figura da
conspiração desempenha papel cada vez mais invasor na ideologia
prática do estalinismo. Este assassínio ocorre num momento em
que se torna aguda a crise aberta pelo comportamento de certos
dirigentes que se permitem pôr em causa a política estalinista,
quando Estaline e os seus partidários querem, pelo contrário, ins-
talar um poder que não encontre oposição. O assassínio de Kirov
é o ponto de partida de um novo tipo de terror'.
A partir de então, as figuras da conspiração, da traição e da
sabotagem tornam-se familiares da ideologia prática do estali-
nismo. O seu aparecimento não é devido apenas às «manobras»
policiais e judiciárias (embora elas sejam necessárias à «desco-
berta» dos acusados); é, antes de mais, o produto de uma forma

~- 3
Cf. o livro de Nicolas Werth, P:tre communiste en URSS sous
Sta/ine, Paris, Gallimard/Julliard, 1981, em particular pp. 269 e segs.
~· • Cf. sobre este ponto o t. I da presente obra, Os Dominados.
'
66
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

particular da ilusão política: aquela que a própria crise do sistema


estalinista desenvolve.
Como nota F. Furet, as formas exacerbadas da ilusão política

'I
I
desenvolveram-se pela primeira vez por ocasião da Revolução
Francesa. Esta «inaugura um mundo onde toda a mudança social
é imputada a forças conhecidas, inventariadas, vivas; como o pen-
samento mítico, ela investe o universo objectivo de vontades
subjectivas [ ... ], isto é, de responsáveis e de bodes expiatórios.
A acção já não encontra ali obstáculos ou limites mas somente
adversários, de preferência traidores ... "»
O bolchevismo já era portador desta concepção jacobina da
história, criticada por Marx e por Engels •; ela é retomada e exa-
cerbada pelo estalinismo que lhe introduz uma carga ideológica
sem precedentes ao fazer funcionar a idolatria do Estado e do
dogmatismo cientista, daqui provindo, ao nível da prática, uma
obsessão igualmente sem precedentes das «conspirações» e dos
«traidoreS)). Pode pensar-se que a inscrição de semelhante obses-
são numa certa tradição ideológica francesa explica que os pro-
cessos e o terror estalinistas hajam sido acolhidos por numerosos
franceses como uma prática política natural, e não como o sinal
do desregramento de um sistema atingido pela «loucura ideoló-
gica)) e atravessando uma crise política grave, cuja aposta é a con-
solidação de uma nova classe privilegiada.
A partir do Inverno de 1936-1937, o terror torna-se uma verda-
deira arma ideológica: já não se trata apenas de eliminar inimigos
reais e supostos, passados ou vindouros. Na impossibilidade de con-
vencer as pessoas de que o sistema edifica um mundo melhor, é
necessário convencê-las de que a sua existência é inevitável e que
todos devem dobrar-se perante ele.
,]
I
SECÇÃO II

A ideologia do terror
e a fo~ão ideológica soviética
A ideologia da conspiração e da traição, o esforço dos diri-
gentes estalinistas para estabelecer um poder ao qual ninguém se

' F. Furet, Penser la Révolution française, Paris, Gallimard, 1978,


p. 43. ··.
• Este facto havia sido notado por Trotski, em 1904, em Nos tdches .i
politiques (reeditado, em 1970, por Pierre Belfond); notava ele então que
esta concepção era estranha a Marx e analisava os «impasses e [as]
loucuras ideológicas do terrorismo jacobino», ob. cit., p. 189), citado em
F. Furet, ob. cít., p. 119.

67
CHARLES BETTELHEIM

arriscasse a opor-se abertamente desenvolvem, no conjunto da


sociedade, a ideologia do terror. Tende esta a reduzir ao silêncio

'
toda a contestação, e mesmo toda a crítica. Paralisa a resistência
dos operários e dos camponeses a uma exploração e a uma opres-
são acrescidas, permite impor aos trabalhadores e aos quadros
constrangimentos e exigências que não poderiam ser suportados
noutras condições, e aos quais eles tentam escapar não por uma
resistência organizada (tornada impossível pela amplitude da re-
pressão policial) mas por múltiplos actos de «desobediência» e de
«indisciplina», que os tornam a todos culpados de alguma infrac-
ção.
Nas condições do terror, o discurso estalinista sobre a «disciplina
de ferro» tem por contrapartida práticas sociais altamente con-
traditórias: a disciplina cega, o servilismo e a «lealdade» pessoais,
mas também a indisciplina, a desobediência, a mentira, a dissimu-
lação e o cinismo. Não são estas práticas meras «sobrevivências
do passado»; são o produto do sistema e fazem integralmente
parte da formação ideológica soviética do período estalinista. Não
só são geradas pelo sistema mas, além disso, este nem sequer
poderia sobreviver sem elas, já que, para funcionar, deve escapar,
em parte, às regras que proclama formalmente. Desta maneira,
alimenta «delitos» e «crimes» que fornecem «razões objectivas» à
perpetuação do terror e à multiplicação das práticas ideológicas
que este faz nascer naqueles que o exercem ou o suportam.
[É igualmente impossível analisar aqui a formação ideológica
soviética da época estalinista (mesmo limitand(}-se aos anos 30)
porque esta é caracterizada por um afastamento extremo das
formas da consciência social'.

7
Ver no t. 1 do presente volume as poucas observações apresen-
tadas sobre esta questão. Acrescentemos-lhes agora: as manifestações das
diversas formas da consciência social esfacelada são particularmente
difíceis de apreender porque estão, em geral, reprimidas. Consegue-se,
no entanto, apanhar-lhes certos traços, através das memórias, das recor-
dações e dos relatos soviéticos e, também, dos escritos de estrangeiros que
permaneceram bastante tempo na URSS, que ali trabalharam e que man-
tiveram contactos prolongados com cidadãos desse país. Certos dos traços
dessas formas esfaceladas da consciência social aparecem também atra-
vés dos escritos publicados na URSS, principalmente entre 1958 e 1965,
num momento em que as normas impostas ao conteúdo das obras lite-
rárias foram um pouco menos severas, em particular para aquelas que
se ocupam do período de antes da guerra. Quase todos estes textos salien-
tam como as formas espontâneas da consciência social são múltiplas e
diversas e estão em contradição com a ideologia oficial. Para disso se
aperceberem, basta ler as poucas obras seguintes: Bielox, A//aire d'habi-
tude, Paris, Julliard, 1969; Ciliga, Dix ans au pays du mensonge décon-
certant, Paris, Champ Libre, 1977; Boris Mojaiev, D'ans la vie de Fédor
•'
"'
68

''

AS LUTAS DE CLASSES NA URSS- IV

I
Na falta de uma análise desta formação ideológica, é indispen-
sável- para apreender certos traços do funcionamento do sistema
estalinista - mostrar alguns aspectos das práticas sociais que eles
ocasionam, em particular ao nível da nova classe dominante, isto
é, daqueles que geram a reprodução das relações sociais funda-
mentais.
Um destes aspectos é a «lealdade exterior incondicional» dos
quadros de cada nível para com os seus superiores. Esta lealdade
e esta incondicionalidade exteriores encobrem relações ideológicas
muito diversas mas a sua existência contribui para a reprodução
de um respeito formal pela hierarquia que é a fonte de uma dis-
ciplina feita de servilismo lembrando as práticas do despotismo
oriental, do qual a sociedade czarista estava longe de se ter liber-
tado. Inicialmente, o bolchevismo havia tentado promover uma
disciplina de outra natureza, mas não o tendo conseguido, o esta-
linismo voltou a dar todo o seu vigor à velha disciplina baseada
na hierarquia e na autoridade que esta confere às pessoas em
função da sua posição. Esta posição é cada vez mais «materia-
lizada» por insígnias, uniformes e outros símbolos do lugar ocupa-
do na hierarquia social e, sobretudo, por múltiplos privilégios
materiais.
No seu romance, L'Affaire ToulaevA, Victor Serge põe nota-
velmente em cena certas manifestações de autoridade: mostra
como se transforma o comportamento de um contabilista soviético,
personagem medíocre e apagada, logo que é promovido a «1. 0
subchefe» e beneficia dos sinais exteriores do seu posto. A des-
crição que dá desta metamorfose merece ser resumida:
«Da sua mesa (insignificante) ... Romachkine (é o nome da
personagem) passava para uma secretária envernizada que enfren-
tava outra semelhante mas maior, a do director das tarifas e salá-
rios do trust. Romachkine passou a dispor de um telefone in-
terno [ ... ] que era também um símbolo inesperado de autoridade.»
Investido de algum poder, Romachkine -personagem até então
tímida- exerce-o sobre os seus subordinados com uma «firmeza
simples e sem apelo». «Descobria [ ...] a autoridade que engran-
dece o homem, cimenta a organização, fecunda o trabalho, eco-
nomiza o tempo, faz baixar os gastos gerais [ ...] .» Faz estas refie-

Konzmine, Paris, Gallimard, 1966; Emilio Guamaschelli, Une petite pierre


(l'exil, la déportation et la mort d'un ouvrier communiste italien en
URSS, 1933-1939), Paris, Maspero, 1979; Valentin Raspoutine, L'Adieu
à l"ile, Paris, Laffont, 1979; Moshé Zaleman, Histoire véridique de Moshé,
Paris, Encres, 1977; A. Soljénitsyne, La Maison de Matriona, Paris, Jul-
liard, 1965.
• Cf. V. Serge, Les Révolutionnaires, Paris, Seuil, 1980, pp. 657 e segs.

69
•,"': -.

CHARLES BETTELHEIM

xões e conclui que «o princípio que confere valor ao homem


outrora sem valor» é o «princípio da hierarquia». Nas suas rela-
ções com os seus superiores, é dominado por este princípio, em
particular relativamente ao presidente do trust. Quando este o
chamava ao telefone, «Romachkine sentia alguma dificuldade
em responder sentado, sem se curvar, sem sorrir amavelmente. Se
estivesse sozinho, ter-se-ia certamente levantado para melhor assu-
I
mir uma atitude deferente» •.
Estas poucas linhas evidenciam notavelmente a forma de dis-
ciplina que se espalha através do conjunto dos aparelhos do poder
numa ocasião em que o terror acelera a modelação dos compor-
..·.- tamentos.
Um individualismo exacerbado constitui a outra face de uma
disciplina formal rígida. O desenvolvimento deste individualismo
acompanha a expansão rápida dos aparelhos administrativos, eco-
nómicos e ideológicos e exaspera-se também com o avanço do
.•. terror da segunda metade dos anos 30. Em pouco tempo, os apa-
r relhos de Estado são penetrados por quadros e por pequenos e
médios funcionários que já nada têm de comum com os antigos
militantes do partido bolchevique (já largamente afastados das
responsabilidades entre 1917 e 1930). Nos meados dos anos 30, as
publicações oficiais denunciam, cada vez mais, o que se conven-
cionou chamar a <<mentalidade pequeno burguesa>> dos novos admi-
nistradores, quadros e funcionários ' 0 •
A disciplina formal e a caça aos privilégios formam uma uni-
dade e favorecem a ascensão nos aparelhos de quadros cínicos
e medíocres que preferem rodear-se de elementos servis ainda que
l incompetentes. Assim se aceleram e se consolidam transforma-
ções que já estavam esboçadas antes do terror dos anos 30. Con-
"' duzem elas à instalação de uma hierarquia de pessoas que são
r. déspotas para os seus subordinados e servos face aos seus supe-
• riores, segundo a justa observação de Moshé Lewin n •
A hierarquização dos privilégios não limita os seus efeitos
aos membros da classe dirigente. Influencia também uma parte
dos explorados e, em particular, num período de grande mobili-
dade social. As promoções de operários e camponeses a postos de
pequenos chefes, e de «responsáveis» de toda a ordem e a outorga
"c.

• V. Serge, Les Révolutionnaires, ob, cit., pp. 938-939.


10
Encontram-se queixas desta ordem designadamente na revista so-
viética Za Sotsí'alisticheskouiou Zakonnost, por exemplo, no vol. 7, de
1936, onde figura um artigo de Vichinsky (em particular pp. 74-76).
11
Cf. Moshé Lewin, «The social background of Stalinism», em Ro-
bert C. Tucker (ed.), Stalinism, Essays in Historical Interpretation, Nova
Iorque, Morton & Co., 1977, p. 120.

70
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

I de privilégios mínimos (por exemplo, de postos de trabalho menos


penosos) dizem respeito também uma proporção não despicienda
de explorados. Estas promoções e estes privilégios, ou a esperança
de os obter, influenciam as relações ideológicas de uma parte dos
trabalhadores com o poder, conduzindo-os muitas vezes a «apoiá-
-lo» e a alargar, portanto, sensivelmente a sua base social.
O mesmo acontece com as campanhas de denúncia e de dela-
ção. Embora parte dos denunciadores actuem por «patriotismo»,
outros - e não são talvez os menos numerosos- actuam por
ciúmes dos seus superiores ou por «arrivismo». Solidarizam-se,
assim, com o poder. Nos períodos em que se multiplica a descoberta
de «conspirações», muitos daqueles que, geralmente, se compor-
tam com servilismo estão prontos a derrubar os quadros colocados
acima deles, esperando, muitas vezes, substituí-los, se as circuns-
tância' a tal se prestarem. Durante o período de repressão dos
quadros da segunda metade dos anos 30, assiste-se a um «ataque
ávido dos jovens lobos» que denunciam, os «erros», os «crimes»
(reais ou imaginários) daqueles que os comandam ou dirigem.
Durante este período, verifica-se também que os quadros em fun-
ções, querendo proteger-se contra possíveis acusações e dar provas
de zelo, desenvolvem uma disciplina puramente formal que reduz
ao mínimo a eficácia dos aparelhos. Os quadros cumprem qualquer
tarefa e repetem os slogans do momento. Chega-se, então -se-
gundo a expressão de Claude Lefort -, ao «controlo daqueles que
produzem, seja qual for o domínio de produção, por profissionais
da incompetência» 12 •
Forja-se, deste modo, um «estilo de comando» brutal, quase
militar, muitas vezes descrito e até glorificado pelos dirigentes
soviéticos da época. Visa atingir os objectivos fixados não importa
a que preço (Vo chto by to ne stalo), a actuar duramente contra
os dirigentes responsáveis em posições inferiores que não «rea-
lizam os objectivos fixados», a não aceitar nem discussão, nem
reserva, nem explicação. Trata-se de «fazer pressão» (najat) sobre
os escalões inferiores, de ter «pulso firme que organize c con-
troic», de não aceitar objecções, e de punir fortemente a ponto
de fazer sofrer, a fim de que os outros aprendam a lição (bolno
stouknout kogo sleduet, v primet i naoukou drougim) 13•
" Cf. Claude Lefort, Éléments d'une critique de la bureaucratie,
Libratrie Droz, 1971, p. 158.
" Cf. M. Lewin, «L'Êtat et les classes sociales en URSS, 1925-1933»,
em La Recherche en sciences sociales, Fevereiro de 1976, pp, 2 e segs.
O autor cita, designadamente, um discurso pronunciado em Kharkov por
Postychev e reproduzido no n." 5 de PS, 1933. Como ele observa, as
expressões usadas resumem o que se considera, então, «a arte bolchevique
de governar».

71
••
I''
CHARLES BBTTELHEJM

I
~;
I· Inserem-se estas práticas soc1rus na formação ideológica da
época estalinista, desenvolvendo-se a partir das contradições do
...' sistema e das características da ideologia oficial que submete o
conjunto das transformações e das relações sociais a um duplo
código.

SECÇÃO III

Os dois códigos. da ideologia estalinista

Uma das particularidades da ideologia estalinista, tal como se


impõe na URSS nos anos 30, refere-se ao seu estatuto: é uma
ideologia oficial, não é uma ideologia dominante cuja influência
sobre a população seja directa (no sentido de a população dela se
ter apropriado, de a ter feito sua, ainda que transformada). Não
é senão muito parcialmente que a ideologia oficial coincide com a
ideia que a população faz da situação real, da política seguida e
da história do país. Manifesta-se esta coincidência sobretudo
quando a ideologia oficial incorpora representações espontâneas
da consciência social, como as associadas à idolatria do Estado ou
da moeda ou, para uma parte da população russa, as que atribuem
largo quinhão à grandeza da Rússia e à sua missão histórica.
Quando assim acontece, a ideologia oficial desempenha papel activo
no apoio que parte da população dá ao sistema de dominação.
Se a ideologia oficial não funciona geralmente como uma
ideologia dominante, é porque as contradições são demasiado
fortes entre o movimento social real, e mesmo a realidade apa-
rente, e o discurso da ideologia oficial. Por isso, apesar do «res-
peito» formal de que beneficia, a ideologia do partido não con-
segue funcionar como sistema de representação, valores e normas
a que estaria efectivamente sujeita a classe dominante e, sob for-
mas diferenciadas, as classes dominadas 14•
A ideologia oficial funciona, portanto, muito mais «pelo cons-
trangimento» do que pela adesão, a «evidência» ou o consenso.
Uma das suas funções pode mesmo ser a de ajudar a descobrir
aqueles que não estão interiormente submetidos ao partido porque
'')"

" Ressalta dos vols. 1 e 2 da presente obra que a ideologia bol-


chevique também não funcionou como ideologia dominante de 1917 a
1930. Isto não foi, então, formulado explicitamente com suficiência; pare-
ce-me, pois, necessário indicá-lo aqui claramente.

72
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS -IV

exprimem o seu desacordo com tal ou tal proposta do discurso


ideológico deste. Para bem exercer esta função, não é inútil que
algumas de tais propostas sejam mais ou menos absurdas"'.
À escala internacional, a da Internacional Comunista, dos par-
tidos nesta filiados e dos meios que estes partidos influenciam
(isto, fora da URSS), a ideologia soviética oficial desempenha
outro papel e é susceptível de obter uma adesão muito mais real
do que a conseguida na própria União Soviética. Esta ideologia,
com efeito, desempenha um incontestável papel activo fora das
fronteiras soviéticas onde não pode funcionar sob constrangimento.
Aliás, os não Soviéticos ignoram mais ou menos a amplitude das
contradições que opõem o discurso da ideologia oficial às reali-
dades que vive a população da URSS e às formas de consciência
espontânea que correspondem a tais realidades. Todavia, até
mesmo esta adesão exterior só se obtém à custa de grande «vigi-
lância», afastando sistematicamente do vértice da Internacional e
dos partidos filiados os dirigentes que não estejam pron1 .>s a acei-
tar sem discussão o discurso da ideologia oficial sovié' ,ca. A his--
tória da IC é a das múltiplas exclusões e da elimina.;ão dos ele-
mentos «desviacionistas», em particular no decurso dos anos 30.
Esta história é também a da eliminação física de grande número
daqueles que poderiam testemunhar no estrangeiro sobre o carác-
ter profundamente falacioso da ideologia oficial, e sobre o que era
a realidade concreta da vida na URSS. Isto, e a preparação da
futura anexação de uma parte da Polónia, explicam o aniquila-
mento físico -que ocorreu na URSS, em 1938 - da antiga direc-
ção do partido polaco.
Ao funcionamento maciço da ideologia oficial, «ao constran-
gimento», corresponde o uso de um duplo código inscrito nessa
ideologia: um código de interpretação e um código de fidelidade,
ambos indispensáveis à reprodução das relações de dominação do
sistema.

1. O código de interpretação

Em larga medida, a ideologia estalinista constitui um sistema


de mitos. Este sistema é constituído em redor do mito fundador
da Revolução de Outubro proclamada revolução «proletária». Por
sua vez, este mito articula-se com todo um código de interpretação
e de identificação. O estalinismo tende a imobilizar este código e

" Cf. infra o parágrafo consagrado ao «Código de fidelidade».

73
···'
CHARLES BETTELHEIM
,E

a fazer dele um sistema totalizante. A linguagem oficial fica, assim,
' subvertida e empobrecida. Produz uma língua morta: uma língua
de madeira portadora de múltiplos mitos. É assim que a indus-
trialização e a colectivização, que são consideradas como origi-
nando abundância de produtos agrícolas e o bem-estar dos cam-
poneses, mas que trouxeram as penúrias, a baixa do nível de vida
dos operários e camponeses e mesmo a fome, não deixam de ser
proclamadas como fonte de uma «vida mais alegre». Ao voltar as
costas ao princípio da realidade e ao usar uma linguagem codificada
que nega esta última, o discurso do partido entra na via de uma
«ficcionização» progressiva que lhe dá um conteúdo cada vez mais
mítico'".
A ideologia estalinista também desenvolve o mito de uma eco-
nomia dominada pelo plano; o mito dos kolkhoúanos que «tomam
em mão colectivamente o seu destino»; o dos operários «entusias-
tas da produção» (simbolizados sucessivamente pelos oudamiki e
pelos stakhanovi~tas); e o mito de uma União Soviética que
«fecunda o progresso» em todos os domínios, conseguindo «trans-
formar a natureza» e «forjar um homem novo» 17 •
Como a realidade opõe incessantes desmentidos a estas afirma-
ções. o partido é conduzido a usar um discurso cada vez mais
mentiroso, a falsificar cada vez mais a realidade e a história, daqui
provinha a reescrita desta última que caracteriza o regime esta-
linista (e pós-estalinista).
Uma vez metida na via da falsificação em grande escala, a
direcção do partido é levada a codificar a quase totalidade do
campo de expressão e a saturar o mais possível o espaço do dis-
curso público porquanto um discurso diferente poderia entrar vio-
lentamente em contradição com a ideologia oficial; quando tal
saturação está mais ou menos obtida, fica praticamente interdita
qualquer expressão coerente às formas espontâneas da cons-
ciência social, o que desencadeia um processo de encerramento
interno 18 e bloqueia a enunciação de um discurso crítico siste-
mático, deixando sem voz as diferentes classes sociais.
...,.,

'" Cf. Stephen F. Cohen, «Bolchevism and Stalinism», em Robert


C. Tucker (ed), Stalinism, ob. cit., p. 26.
17
Cf. Marc Ferro, L'Occident devant la Révolution soviétique- L~
histoire et ses mythes, Bruxelas, Éditions Complexe, 1980, pp. 88 e segs.
" Num texto intitulado «Le régime idéologique soviétique et la dis-
sidence» (texto que visa o período actual), Claude Orsini evocou, justa-
mente, este tema. Cf. o seu texto em Chronique des petites gens d'URSS,
Paris. Senil, 1981, pp. 165 e segs.

74
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

Nas condições dos anos 30, que são as de forte mobilidade


social e de repressão maciça, o funcionamento da ideologia oficial
constitui um elemento de estabilização da ordem existente. Produz
uma dessociali::.ação específica, uma «atomização social» diferente
daquela que se desenvolve nos países de capitalismo à moda antiga,
mas tal dessocialização é, pelo menos, tão eficaz como esta. Para
lhe escapar, o necessário é assumir o risco de negar o discurso
oficial 19 e de desenvolver práticas sociais independentes deste.
Isto só é possível em certas condições. Na ausência destas, o dis-
curso oficial torna-se também vector de um código de fidelidade.

2. O código de fidelidade

O monopólio ideológico que se atribui à direcção do partido


desempenha também uma função de fidelidade. Ao obrigar todos,
o mais possível, a repetir o que o partido diz (mesmo quando se
sabe que é falso) e a agir, pelo menos na aparência, segundo as
suas directivas políticas, científicas, artísticas, etc., o vértice do
partido transforma o discurso oficial num código de fidelidade
cujo não respeito significa «falta de lealdade» e «desvio». Quando
alguém se desvia, torna-se facilmente um inimigo, pelo menos
potencial.
A subordinação assim obtida tem tanto maior alcance quanto
mais o discurso oficial estiver em contradição com aquilo que é
«pensado» como «verdadeirO>} ou como «justO>} por uma parte
daqueles que a ele «aderem}} publicamente. Assim, quando o par-
tido afirma -numa ocasião em que faltam os objectos de con-
sumo mais correntes- que «a vida se tornou mais bela>>, ou
quando declara que os cidadãos da URSS (constantemente amea-
çados de prisão arbitrária) vivem sob «a Constituição mais demo-
crática do mundo>}, e que exige que cada qual repita tudo isto,
põe em acção uma prática específica de sujeição. Aceitar o que
parece evidente não implica qualquer subordinação, visto que a
pessoa se limita a dizer o que acredita ser verdadeiro. Em com-
pensação, inclinar-se perante um discurso no qual se não acredita
é reconhecer a autoridade do enunciador do discurso. Ao funcio-
nar como funciona, o discurso oficial exerce o papel de instru-
mento de submissão social que não poderia exercer se suscitasse
espontaneamente a adesão.

" Em diferentes épocas, escritores oficialmente publicados na URSS


conseguem-no, mas é -geralmente - copiando o discurso oficial e. ao
mesmo tempo, afastando os termos do seu sentido real (cf. G. Svirski,
Les Êcrivains de la liberté, Paris, Gallimard, 1981).
'
',1

75
l.

CHARLES BETTELHEIM

O papel de instrumento de submissão social do código de fide-


lidade que caracteriza o estalinismo é constituído pelas acusações
absurdas e mortíferas que os órgãos policiais e judiciários lançam
contra «opositores» reais ou imaginários, aos quais são atribuídos
epítetos insensatos, como o de «trotskistas-boukharinianos» ou de
«trotskistas-hitlerianos» (isto quando Trotski e Boukharine foram
os primeiros a denunciar a ameaça nazi e a propor uma política
que permitiria opor-se-lhe melhor do que a política estalinista,
a qual fazia da social-democracia o inimigo principal) ou sofrem
injúrias absurdas e grosseiras como a de «víboras lúbricas». Esta
dimensão do discurso oficial não visa somente «justificar» a con-
denação daqueles que são assim acusados, visa também obrigar
cada qual a repetir essas frases insensatas, fazendo deste modo,
aparentemente, «um acto de fé», obrigando todos a uma espécie
de credo quia absurdum (acredito porque é absurdo).
Bem entendido, este aspecto da ideologia oficial não diz res-
peito senão a um aspecto desta última, pois que certos fragmentos
dela mais não são do que a sistematização das aparências imedia-
tas, das ilusões reais produzidas pelas relações sociais e são, por-
tanto, espontaneamente aceites.
Todavia, os fragmentos de uma ideologia que funciona com
clareza não são característicos da ideologia estalinista. Apenas são
específicos os elementos ideológicos que funcionam sob constran-
gimento: somente eles são instrumentos de sujeição e de submis-
são social.
A função de fidelidade da ideologia oficial exige, em última
instância, a intervenção da polícia, mas esta só ocorre em casos
limites (aliás, bastante numerosos na época estalinista). Mas antes
que a polícia actue, a submissão social obtém-se através da acção
de uma rede apertada de aparelhos ideológicos. Cada um destes
vigia a parte particular da população com a qual está em contacto
regular, chama-a à ordem, «guia» os seus comportamentos obser-
váveis, ensina-lhe as «verdades» do dia, repete-lhe o «discurso cor-
recto», aquele que deve preencher as conversas havidas em público
(na época, graças à intensidade da acção policial, quase toda a
conversa é potencialmente pública). Os aparelhos ideológicos obri-
gam praticamente todos e cada um a «participar» em reuniões,
exposições, conferências e «debates» onde deve tomar a palavra
e fazer o que dele se espera: os aparelhos encarregados destas
tarefas de sujeição ideológica são múltiplos. Trata-se, primeiro,
do próprio partido, depois, dos numerosos aparelhos administra-
tivos de Estado (como a escola, as universidades), as «associações»
de todas as espécies (Konsomol, uniões dos escritores, dos cineas-
tas, sociedades para a difusão dos conhecimentos, etc.). Todos
76
. I .. v ·~ '

AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV •I


;
,,
estes organismos, nos quais a polícia política tem os seus informa-
dores, estão colocados sob a «direcção do partido». Quase nin-
guém escapa a estes aparelhos de sujeição ideológica: mesmo os
«não organizados», pouco numerosos, encontram-se sob vigilância
graças à rede de delatores e informadores, tanto mais «prontos»
a relatar quaisquer comportamentos ou afirmações incorrectos,
já que, se o não fizerem, poderão eles próprios ser denunciados.
O funcionamento da ideologia como código de submissão implica,
por consequência, a vigilância estreita da população.
A especificidade do sistema resulta, como já foi notado, de
que a eficácia da ideologia oficial como instrumento de submissão
social e de sujeição é tanto melhor assegurada quanto numerosos
aspectos dessa ideologia não são aceites espontaneamente. 'É do-
brando-se abertamente àquilo que se recusa subjectivamente que
se dão prova~ da fidelidade ao poder.
Deve sublinhar-se que se opera um deslizar importante no
funcionamento do código de fidelidade entre a época estalinista e
a época actual. Hoje, o poder contenta-se geralmente com uma
subordinação pública à ideologia oficial (que parece ter perdido
grande parte da sua autoridade mesmo sobre aqueles que dela são
os mais «autorizados>> porta-vozes); na época estalinista, o poder
exige, além disto, uma subordinação privada; quer que tudo se
passe como se a sua ideologia houvesse sido verdadeiramente inte-
liorizada. Provém daqui o esforço exercido para descobrir o que
cada um pensa e para desmascarar aqueles que têm um «pensar
duplo».
Assim, no decurso dos anos 30 e até à morte de Estaline, uma
preocupação constantemente formulada nos discursos e na im-
J
prensa é a da luta contra os homens de duas caras, a fim de que o '•

partido se torne uma «fortaleza inexpugnável» onde nenhum de '


tais homens consiga penetrar 20 •
Na época estalinista, esta luta contra os indivíduos com «duas
caras» reveste aspectos múltiplos: insere-se na «rotina» dessas
inúmeras reuniões de que falámàs acima e no decurso das quais
cada um é chamado a tomar a palavra e a associar-se à denúncia
pública de tal ou tal personagem (militante conhecido ou cama-
rada de trabalho) que os serviços de segurança prenderam como
«inimigo» ou «sabotador». Servem tais reuniões a «polícia do
pensamento», permitem detectar aqueles que não manifestam
«fervor» suficiente, o que pode valer-lhes a acusação de serem,
eles também, «homens com dupla cara».

" Cf. Estaline, L'Homme, le capital /e p/ua précieux, Tirana, 1968,


p. 26.

77

.
'
CHARLES BETTELHEIM

A polícia política desempenha papel essencial na descoberta


de indivíduos suspeitos de «pensar mal». Agentes provocadores
estabelecem «relações de confiança» com aqueles cujos «pensa-
mentos secretos» estão encarregados de descobrir; esforçam-se por
os levar a falar «com o coração nas mãos», e se o que lhes é,
então, confiado está em contradição com as concepções do par-
tido, chegada a ocasião apropriada, denunciam os seus interlocuto-
res; o NKVD saberá bem o que fazer para os obrigar a confessar
os «crimes» ou «delitos» que se julga terem cometido. Para efec-
' tuar este «trabalho», os serviços de segurança podem contar com
i
provocadores a eles sujeitos e com múltiplos delatores ocasionais
que denunciam afirmações «Subversivas» que ouviram (ou imagi-
naram); as razões destas denúncias são múltiplas: hostilidade pes-
soal, ciúme profissional ou outro, esperança de ser promovido ou
de conseguir um alojamento (que, em geral, estava habitado pela
pessoa denunciada) 21 •
A minúcia com a que a «polícia do pensamento» se exerce na
época estalinista pode dar a ilusão de que a ditadura do partido
seria antes de mais nada uma «ideocracia». Esta ilusão contribui
para ocultar a realidade das relações de exploração e do poder. Com
efeito, o «respeito» exigido pelas ideias oficiais não visa mais do
que submeter todos ao poder. O que é exigido é a constância desta
sujeição e não a «fidelidade» a «ideias» que mudam no decurso
do tempo.
,( A metáfora dos «homens com dupla cara» designa uma rea-
lidade que a ideologia oficial repele: o facto de o discurso da
ideologia estalinista ser muito pouco e muito mal interiorizado,
a tal ponto que é frequentemente negado nos discursos privados.
O discurso oficial é, desta forma, dobrado por múltiplos outros
discursos parcelares: os discursos dos camponeses, das classes mé-
dias, da intelligentsia, etc. Estes discursos múltiplos e atomizados
incorporam uma parte das «explicações» do discurso oficial mas

/
" As descrições destas declarações e provocações, bem como as do
papel das reuniões repetitivas são inúmeras. Não se encontram geral-
mente na literatura «oficial» mas nas recordações daqueles que viveram
e trabalharam na URSS cujas memórias foram publicadas no exterior;
encontram-se também na literatura soviética editada no estrangeiro.
Asstm, o livro já citado de louri Dombrovski, La Faculté de l'inutile,
Paris, Albin Michel, 1979, constitui um testemunho notável sobre o fun-
cionamento da delação e da provocação, que visa surpreender os «pen-
samentos secretos». O livro jâ citado de N. Werth, ~tre communiste ... ,
fornece numerosos exemplos do funcionamento da «polícia do pensa-
mento» na época estalinista; tem o mérito de se apoiar num estudo apro-
fundado de importantes documentos de arquivo.

78

'',.,
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

sob uma forma fragmentária. Não mantêm uma relação com o


real idêntica à do discurso do partido, mas não chegam a formar
um contradiscurso social unificado que pudesse ajudar a formar
uma resistência organizada ao poder. No entanto, aqueles que
fazem em privado um discurso diferente do do poder são inúmeros
e têm efectivamente um «duplo pensar»: a sua personalidade tende
a dC'compor-se. Por isso, o «novo homem soviético» é um homem
duplo, facto de que provém uma esquizofrenia social específica,
que ocasiona uma grave disfunção social, inerente ao modo de
dominação ideológica que se instaurou.
No entanto, o poder não renuncia a obter uma adesão plena
ao seu próprio discurso. Com esta finalidade, procura imobilizar a
literatura, o cinema e a arte para «transformar o pensamento»
daqueles que mantém submetidos. Por isso, segundo a frase de
Estaline, ele quer que os escritores sejam «Os engenheiros das
almas».
O principal efeito desta palavra de ordem é o de fazer surgir
um «realismo socialista» que o discurso oficial deve ilustrar.
A secção cultural do comité central vigia o respeito por esse «rea-
lismO>> e pelas «normas» fixadas pelo partido ' 2 • Uma das tarefas
deste «realismo» muito particular é a de, segundo uma fórmula
de Alexandre Fadéev, «mostrar de maneira verídica o homem da
nossa terra, mostrá-lo tal como deve ser ... '"».
O «realismo socialista» dos anos 30 exerce, todavia, uma
influência limitada porquanto os autores preferidos pelos Soviéti-
cos continuam a ser os do século XIX, bem como alguns que con-
seguem escapar às normas desse realismo. De um modo geral,
pensa-se, a justo título, que ele institui um ritual de falsificações
não somente do presente, constantemente glorificado, mas de um
passado constantemente reescrito (segundo as exigências do mo-
mento); não consegue modificar profundamente o que as pessoas
pensam porque o discurso imaginário do «realismo» oficial opõe-se
demasiado à realidade concreta; não é, portanto, geralmente cre-
dível ••.
No total, o funcionamento da ideologia estalinista (saído das
contradições do sistema) faz viver os dirigentes e os dirigidos num
mundo duplo: o das relações reais e o do discurso oficial. Procura

22
Cf. Victor Serge, Mémoires ... , ob. cit., pp. 280 e segs.
•• Citado por G. Svirski, Les Écrivais de la liberté, ob. cit,, p. 76.
" Sobre o nascimento da concepção estalinista do «realismo socia-
lista» ver as observações de S. Cohen no seu livro Bukharin and The Bol-
chevique Revolution, Nova Iorque, Alfred A. Knopf, 1974, pp. 355-356.
Existe uma tradução francesa nas edições F. Maspero.

79
CHARLES BETTELHEIM

este último comandar um conjunto de acontecimentos parcial-


mente inadaptados ao real mas necessários ao «respeito» pelo
poder e pela direcção do partido. Encontra-se aí a fonte de uma
crise ideológica permanente e grave, que contribui para dar forma
específica ao movimento das contradições características do sis-
tema estalinista e que pesa sobre as condições das lutas políticas.
O período pós-estalinista é menos rígido no plano ideológico, mas
deixa subsistir uma pressão maciça do discurso oficial, que é acom-
panhada pelos efeitos perversos precedentemente indicados.

80
~ ~;:,-,
1
'.-,1'"';- cr't"'"P•<•"";"'''

'

ANEXO

Serão marxistas os direitos do homem?

A análise da formação ideológica estalinista faz ressaltar as rupturas


que marcam a sua constituição. Tais rupturas permitem distinguir clara-
mente esta formação ideológica do bolchevismo, do Ieninismo e do pen-
samento de Marx. Situam-se a diferentes níveis: concepção da dialéctica,
concepção da história, papel desta última no desenvolvimento das forças
produtivas e das lutas de classes, concepção do Estado, das suas caracte-
rísticas e do seu papel, concepção das leis económicas, afirmação da
existência de um «modo de produção socialista», etc.
A verificação destas rupturas permite rejeitar a tese simplista (de
tipo evolucionista-estalinista) que pretende que Marx teria «gerado»
Lenine, e Lenine, Estaline, e, portanto, o Gulag e o sistema totalitário
soviético.
Esta verificação vai mais longe do que a mera afirmação de que
Marx não teria querido ver edificar-se uma formação social similar à
formação soviética e de que, se fosse vivo, rejeitaria esta última como
estranha a todas as aspirações que se exprimem nos seus hvros.
No entanto, o facto de serem admitidas ideias como as que acabam
de ser enunciadas não permite considerar como resolvido um outro pro-
blema: o dos efeitos perversos que podem exercer alguns dos enunciados
de Marx quando aplicados de maneira privilegiada e unilateral. Não basta,
pois, rejeitar a ideia evolucionista de uma «geração» de Estaline por
Marx para poder afirmar que os escritos deste último - em particular os
de conteúdo utópico- não contribuíram para o que se fez em seu nome
na União Soviética. Na realidade, não foi sem alguma razão que o secre-
tário-geral do partido bolchevique e os seus sucessores puderam invocar
Marx.
Não é contestável que houve diversos Mar>: em Marx; os textos deste
último nem sempre são coerentes entre si. Toma-se, pois, possível desen-
volver discursos e práticas conformes com certos textos e, ao mesmo
tempo. em contradição com outros. Pode citar-se, como exemplo de um
texto que não exprime ideias dominantes em Marx, o Prefácio de 1859
da Crítica da economia política. A luta de classes está ausente deste texto,
as forças produtivas aparecem como o motor da história e esboça-se ali
uma espécie de «teoria geral das revoluções» 1 • Ora, Estaline recorre

1 Cf. sobre este ponto, as minhas observações no vol. 2 desta obra e as obser-

vações de Domlnlque Lecourt, em La Philosophie sans feinte, ob. cit., p. 140.

E!t. Doe. 220..6 81

,•
'·'"
CHARLES BETTELHEIM

largamente a este Prefácio para justificar as concepções que põe em


prática durante os anos 30. Desenha-se aqui uma certa relação histó-
rica entre o texto de Marx e a prática estalinista.
Existem outros exemplos dessa «pluralidade» de Marx. O mais signi-
ficativo - relativamente à questão de que nos ocupamos - é constituído
por certos textos da juventude de Marx, como A Questão Judaica •.
Neste escnto, Marx consagra-se sobretudo à função ideológica dos «direi-
tos do homem». Aos seus olhos, estes visam, essencialmente, a defesa
do «homem egoísta, do homem tal como é, membro da sociedade bur-
guesa, isto é, um indivíduo separado da comunidade [ ...], preocupado
unicamente com o seu interesse pessoal e obedecendo ao seu arbítrio
privado» J.
Enunciados deste género, e a crítica dos direitos do homem em geral,
foram explorados por Estaline e seus partidários que tratam com desprezo
o que eles chamam o <<liberalismo podre» e que assimtlam os direitos do
homem a «liberdades burguesas», incompatíveis com o «socialismo» (isto
,. mmto antes de Estaline -na Constituição de 1936- ter proclamado
que esses direitos seriam respeitados na URSS, embora os violasse siste-
maticamente). Esta maneira «estalinista» de tratar os direitos do ho-
mem - a liberdade de expressão, a liberdade de se organizar para defen-
der os seus interesses e opiniões - caracteriza ainda hoje o sistema
soviético. Pode ela, sem dúvida, reclamar-se de alguns textos isolados
de Marx, mterpretando-os de maneira muito parttcular, mas não pode
reclamar-se dos princípios gerais defendidos por Marx, seja quando ele
sublinha o papel positivo dos direitos democráticos na luta das classes
exploradas e opnmidas ' ou, mais geralmente, quando ele sustenta que
as formas democráticas, designadamente o sufrágio universal, são neces-
sárias à «emancipação do trabalho» '.
Em globo, existe uma «utilização estalinista» dos textos de Marx •.
Esta utilização permite estabelecer uma relação histórica entre Marx e
certas práticas estalinistas, e os traços da formação soviética ligados a
essas práticas, mas trata-se de uma utilização que privilegia textos isola-
dos e a respectiva letra a fim de os aproveitar para visar alvos diferentes
daqueles em que Marx pensava, o que acabou por os voltar contra as

2
' Cf. Marx, Oeuvres phzlosophzques, Paris, Éditions Costes, 1927, t. 1, pp. 163 e
segs.; cf. também Marx, Oeuvres lll- Philosophie, Paris, Gallimard, «La Pléiade~.
1982, em particular pp. 366-367.
' Cf. p. 195 do t. 1 das Éditions Costes, e pp. 366 e segs. de Marx, Oeuvres III,
ob. czt .
.f. Ver, por exemplo, o que Marx escreve sob o título «Observações sobre a


'
'·'
recente regulamentação da censura prussiana», em Oeuvres phzlo:;;:ophiques. t. t.
ob. cit., pp. 120 e segs.; cf. também Oeuvres III- Philosophie, ob. cit., pp. 111
e segs.
15 A este propósito, ver o plano de um trabalho que Marx se propunha fazer

e que devia ser uma «.crítica da política», em MEW, t. 3, p. 537; este texto foi
reproduzido por Maximilien Rubel, em Oeuvres- Economie, t. 2, pp. LXVII-LXIX.
16
Ver a este propósito as observações de Claude Lefort em «Droits de l'homme
et politique», L'Jnvention démocratique. ob. ctt .• pp. 5 e segs.

82
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

concepções fundamentais de Marx •. Bem entendido, se semelhante uso


de Marx conseguiu impor-se, deve-se isto não somente ao facto de que
alguns dos seus textos a tal se prestarem mas sobretudo à conjuntura das
lutas de classes que penmtm que tal ou tal escrito de Marx haja podido
ser sistematicamente privilegiado ou deformado com o objectivo de dotar
a classe dommante soviética com um aparelho de Estado cada vez mais
repressivo.

7
Quando Marx e Engels participaram nas actividades do movimento operário,
sublinharam sempre, cada vez mais, a importância das liberdades democráticas. Em
1865, num texto destinado ao partido operário alemão, Engels escreve: «0 movimento
operário é impossível sem liberdade de imprensa, sem direitos de coalizão e de reu-
nião» (MEW, t. 16, p. 73). Em 1871, após a experiência da Comuna de Paris, Marx
insistirá mais que nunca sobre os direitos dos cidadãos e sobre a subordinação neces-
sária dos funcionários que não devem ser nomeados mas sim eleitos pelos cidadãos
(cf. K. Marx, La Guerre civile en France, Paris, ES, 1968).

83
SEGUNDA PARTE

OS DOMINANTES ENTRE CÃES E LOBOS


( 1928-1938)

A partir do fim dos anos 20, o grupo dirigente do partido cons-


tituído em torno de Estaline trava luta sem mercê contra algumas
das camadas burguesas existentes na época na NEP e contra
outras camadas sociais assimiladas à burguesia. Esta luta - que
acompanha a colectivização e a liquidação das «empresas priva-
das» - é julgada como destinada a «fazer desaparecer>> a burgue-
sia (resultado proclamado como tendo sido atingido em 1936) mas
permite somente transformar as suas condições de existência.
É acompanhada por graves contradições económicas e sociais que
conduzem, em diversos momentos, a modificar as formas e os
objectivos da luta, ao mesmo tempo que, no seio do próprio par-
tido, se desenvolvem sérios conflitos internos.
No fim dos anos 20, a direcção do partido desencadeia a ofen-
siva contra algumas das camadas capitalistas da sociedade nepiana
e contra aqueles considerados como burgueses. A ofensiva é prin-
cipalmente dirigida contra os Nepmen, os industriais privados, os
artífices e os comerciantes, que alargaram suficientemente as suas
empresas para se apropriarem de uma parte da mais-valia, e contra
os Kulaks, como empresários capitalistas, aos quais são assimi-
lados numerosos componentes ditos pró-kulaks ou sub-kulaks.
Sabe-se que, em poucos anos, a «burguesia privada» nepiana é
liquidada'. As suas empresas são extintas e os seus membros l
transformados em ~lariados, quando não são deportados ou j
presos. :<

' Este processo de liquidação foi descrito nos vols. 2 e 3 da pre-


sente obra. Acrescentamos uma indicação quantificada: segundo as
estatísticas oficiais, os comerciantes e os kulaks representariam, em 1928,
4,6% da população soviética (cf. N. K h ... v 1956 g, p. 19), ou sejam 7,5
milhões de pessoas com as suas famflias. Em 1935, estas categorias ha-
viam desaparecido.

85
CHARLES BETTELHEIM
i
r
No entanto, a luta desencadeada pela direcção do partido visa
também outros «alvos», cujas situações e sorte são mais com-
plexas. Trata-se de uma parte dos dirigentes e gestores dos apare-
lhos de Estado e dos seus colaboradores imediatos (directores de
empresas, engenheiros de produção, técnicos superiores) e também
de parte dos intelectuais.
A ofensiva dirigida contra estes «alvos» não é determinada
principalmente pela sua posição nas relações de produção e de
reprodução, mas pelas suas posições ideológicas ou políticas; é em
virtude destas posições que, em parte, são eliminados aqueles que
são declarados como pertencendo à «intelligentsia burguesa».
A amplitude destas operações de eliminação e de «saneamento»
explica-se, em larga medida, pela resistência (prudente, mas real)
que a política de industrialização acelerada e de sobreacumulação
encontra no seio dos quadros (do partido, da economia, da indús-
tria, etc.). Muitos deles julgam perigosos para o futuro do país
ou do regime alguns dos «objectivos», dos planos ou os métodos
que visam atingi-los.
Os dirigentes do partido, que querem dispor de quadros dóceis,
atacam aqueles que tomam uma atitude crítica (ou suposta crítica).
Consideram-nos impregnados de «cultura burguesa» e esforçam-se
por os eliminar para disporem de aparelhos saneados, reestrutura-
dos, renovados e «colocados na forma».

86
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CAPíTULO I

A «REVOLUÇÃO CULTURAL» (1928-1931)

A expressão «revolução cultural» é de Lénine ', que a emprega


em alguns textos de 1922 e 1923. Durante a maior parte da NEP,
não é utilizada senão ocasionalmente e, sobretudo, para falar de
um desenvolvimento rápido e amplo do sistema de ensino. A par-
tir de 1928, o vértice do partido quer, pelo contrário, dar a esse
termo uma significação «radical»: a de designar uma forma de
luta proletária de classe no domínio da cultura. Na realidade, esta
luta é desencadeada pelo grupo dirigente formado em redor de
Estaline. Desenrola-se como uma «revolução por cima» à qual
está particularmente associada urna parte da juventude e dos estu-
dantes de origem operária. Apesar das ambições inicialmente anun-
ciadas, este movimento teve, sobretudo, por efeito modificar o
recrutamento dos quadros e a disciplina que lhes é imposta.

SECÇÃO I
A revolu9ão cultural como «guerra de classe»

A nova significação que o termo «revolução cultural» toma


no fim da NEP aparece claramente numa intervenção de E. I.
1
No vol. 2 da presente obra (1923-1930), faz-se alusão a esta «revo-
lução cultural». Cf. também sobre esta questão o vol. 1. Lénine evoca
uma <<revolução cultural» em textos bastante pouco explícitos. Global-
mente, recorre a esta expressão para designar um processo de assimilação
rápida, e de massa, da «cultura burguesa». Com efeito, ele desconfia
muito daqueles que preconizam, de maneira abstracta, o desenvolvimento
de uma «Cultura proletária». Considera as suas propostas como muito
perigosas. A seus olhos, elas só poderiam conduzir a «fabricar», sob o
nome de proletária, uma «cultura» que seria artificial. Por isso, se opõe
aos partidários do Proletkult e de Bogdanov (sobre estes diferentes pontos,
ver a última parte do vol. 2 da presente obra).

87
CHARLES BETTELHEIM

iKrinitskii, chefe do departamento de agitprop («agitação e propa-


ganda») do Comité Central. Por ocasião de uma reunião que
decorre em Moscovo, entre 30 de Maio e 3 de Junho de 1928, sob
a égide deste departamento, Krinitskii declara que a «revolução
cultural» só pode ser uma «guerra de classe» conduzida pelo pro-
letariado contra os elementos burgueses que sobrevivem à antiga
sociedade e que, diz ele, organizaram um ataque na frente cul-
tural, «combatendo para acrescer a sua parte, lutando pela sua
própria escola, a sua própria arte, os seus próprios teatro e
cinema, e tentando utilizar com esta finalidade o aparelho de
Estado» 2 •
!Krinistskii censura os responsáveis do Narkompros («Comis-
sariado para as Luzes», dirigido por Lounatcharski) • de ter estado
paralisado por «uma concepção contra-revolucionária, oportunista,
da revolução cultural [que se reduziria] a uma elevação pacífica,
sem conteúdo de classe, do nível cultural -uma concepção que
não distingue entre os elementos burgueses e os proletários da
cultura [ ... ] e que não vê o combate encarniçado do proletariado
contra o seu inimigo de classe, combate travado na vida quoti-
diana, na escola, na arte, na ciência, etc.»•.
Se se compararem estas formulações de A. I. Krinitskii com
as até então usadas, vê-se que elas revelam o aparecimento de
uma linha política visando alterar completamente a «vida cul-
tural», o recrutamento e a formação dos quadros e, mais profun-
damente, as relações entre os quadros, a «intelligentsia» (tomada
esta palavra no seu sentido mais lato), e a camada dirigente do
partido.
Quando, em Junho de 1928, A. I. !Krinitskii aborda o tema da
«revolução cultural>>, a sua declaração sucede-se a algumas outras
que emanam das mais altas instâncias do partido. São os primei-
ros sinais de uma mudança de linha destinada a lançar a suspeita
sobre os «especialistas burgueses» cuja lealdade havia sido mais ou
menos admitida após o início da NEP.
A declaração mais significativa a este respeito é a enunciada
por Estaline, por ocasião da «questão Chakhty» • que leva a que

' Cf. a acta desta reunião por B. Olkhovyi, Zadatchi agitatsii pro-
pagandi i kulturnogo stroitelstva, Moscovo, Leninegrado, 1928, citada por
Sheila Fitzpatrick (ed.), (Cultural Revolution in Russia, 1928-1931, ob. cit.,
p. 10).
' Este Comissariado tem, designadamente, a seu cargo os estabele-
cimentos
4
de ensino dos diferentes níveis.
lbid.
• Cf. sobre este ponto Pravda, 10 de Março de 1928, e vol. 2 da
',, presente obra.

88
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~~

AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV ' ~

seja acusado um grupo importante de engenheiros das minas de


Donbass.
Quando Estaline fala do caso Chakhty no Plenário de Abril
de 1928, não põe somente em causa os «especialistas burgueses».
Denuncia igualmente a «incompetência» dos quadros comunistas
encarregados de os controlar. Afirma que esta incompetência é - ''
tão preocupante como a traição dos especialistas. Ela mostra, diz
ele, que por falta de conhecimentos técnicos os quadros comunis-
tas podem ser enganados. Para o Gensek, chegou agora o momento
de acabar com a dicotomia entre «vermelhos» e «especialistas» 6 •
A questão Chakhty, o Plenário de Abril de 1928, a intervenção
de A. I. IKrinitskii em Junho assinalam os primeiros passos da
«revolução cultural» dos anos 1928-1931. Esta reveste simulta-
neamente dois aspectos essenciais.
Por um lado, desenvolve-se no terreno da produção, no qual
abrange o enquadramento dos produtores directos, as condições
de recrutamento daqueles a que Estaline chama os «oficiais e sar-
gentoS>> da produção. Refere-se também à formação destes qua-
dros e à maneira como estão subordinados às ordens vindas da
direcção do partido.
Por outro lado, a «revolução cultural» tende a alterar comple-
tamente as condições de funcionamento dos aparelhos ideológicos
(escola, edição, investigação científica, etc.). Este segundo aspecto
reveste a forma imaginária de uma luta por uma «Cultura prole-
tária». No entanto, o núcleo real desta «revolução» é constituído
por uma «política de promoção operária».
Ê esta executada de 1928 a 1931 e impulsionada por decisões
tomadas pelas instâncias dirigentes do partido. Torna-se neces-
sário examinar algumas.

1. As declsiles e medidas que inauguram e mantêm


a «política de promoção»

O Plenário de Abril de 1928 adopta uma resolução sobre a


«questão Chakhty». Este texto convida a tornar mais firme a
«vigilância» relativamente aos «especialistas», a incitar ao acrés-
cimo dos conhecimentos técnicos dos quadros comunistas da eco-
nomia, a dar nova dimensão à promoção operária para postos
administrativos e técnicos e a favorecer o avanço de «especialistas
vermelhos proletários» saidos das fileiras. Quando se compara

• Cf. o relatório de Estaline de 13 de Abril de 1928, em W, t. 11


(1949), pp. 57 e segs.

89
."' ,_- - ...... ' ,. •'. '

CHARLES BETTELHEIM

'
. esta resolução com a política de promoção extremamente «pru-
dente)) seguida até então, deve constatar-se que se abre uma vira-
gem muito séria na política de formação dos quadros políticos e
técnicos'.
Uma outra resolução, adoptada por um Plenário reunido em
Junho de 1928, precisa esta viragem. Tem por titulo: «A melhoria
na preparação dos especialistas.)) Prevê que o recrutamento dos
engenheiros e dos técnicos se deverá fazer em condições tais que
passe a ser dado um lugar muito mais largo do que anteriormente
aos membros do partido e aos candidatos de origem operária •.
Uma resolução adoptada pelo Plenário de Novembro de 1928
prolonga as duas resoluções precedentes: vista reforçar a base ope-
rária do partido e multiplicar as promoções de quadros saídos das
fileiras •.
A estas resoluções seguem-se medidas que asseguram a apli-
cação das decisões tomadas pelo Plenário de Abril de 1928.
Ê 1i!Ssim que, para facilitar a nomeação para postos com res-
ponsabilidades técnicas de jovens operários e de quadros de base
sem conhecimentos técnicos à partida, são criadas novas «acade-
mias industriais)). Com a mesma finalidade, são abertos numerosos
cursos a tempo parcial para jovens operários e quadros desejosos
de adquirir uma formação especializada ' 0 •
Simultaneamente, a ascensão de quadros e de técnicos mem-
, bros do partido ou de origem operária é celebrada pelos expurgos
"
"( operados nos aparelhos administrativos. Os «elementos burgueses
suspeitos)) são expulsos destes aparelhos, e estes últimos «conso-
t.
lidados)) pela promoção de operários «saídos da fileira)).
A palavra de ordem «vermelho e perito)) é, assim, colocada na
ordem do dia, ao mesmo tempo que são modificadas as condições
de admissão e os programas dos estabelecimentos de estudos supe-
riores (em particular, das escolas de engenheiros). Uma nova polí-
tica de recrutamento dos alunos e dos estudantes é, pois, aplicada,
concedendo forte prioridade aos candidatos comunístas ou «saídos

' Cf. KPSS, vol n, pp. 380 e segs., mais especialmente pp. 385 a 388.
Os factos aqui lembrados foram analisados em pormenor por Sheila
Fitzpatrick, em Education and Social Mobility in the Saviet Union, 1921-
1934, Cambridge UP, 1979; e por Kendal E. Bailes, Technology and
Society under Lenin and St'alin, Princeton UP, 1978.
• Cf. KPSS, vol. n ob. cit., pp. 398 e segs.
• lbid., pp. 420 e segs.
'" Cf. S. Fitzpatrick, «Stalin and the Making of a New Elite», Slavic
Review, Setembro de 1979, p. 382; e, do mesmo autor, Education and Social
Mobility ... , ob. cit.; ver também P. M. Mikhailov, «lz Istorii deiatelnosti
Kom partii ... », VI KPSS, n.• lO, 1976, pp. 76-86.

90
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

da classe operária». Estes candidatos podem ser admitidos mesmo


se for fraco o seu «nível de preparação». As organizações do par-
tido e os sindicatos são encarregados de encontrar pretendentes
em número suficiente entre os seus próprios membros, e cumpre-
-lhes assegurar a selecção.
A aplicação destas medidas permite a «promoção maciça>> a
postos administrativos ou técnicos de trabalhadores considerados
«isentos de toda a influência burguesa». Uma parte importante das
promoções ocorre directamente: os trabalhadores promovidos não
passam por nenhum «estágio educativm>. Estes «promovidos» cons-
tituem aquilo a que se chama os praktiki. São convidados a for-
mar-se no trabalho exercendo, imediatamente, funções de técnicos,
de engenheiros ou de directores nas fábricas. Entre 1928 e 1933,
140 638 «Operários das fileiras» são assim promovidos, mais de
metade dos quais não são membros do partido. Ao mesmo tempo,
procede-se a numerosas outras «promoções)) de trabalhadores 'l
manuais que são afectados a trabalhos de escritório. Somente entre
1930 e 1933, 660 000 operários comunistas deixam a fábrica para ,.,
se tornarem empregados ou funcionários ou para frequentar estu- ·,
dos. Um número mais elevado de operários não membros do par-
tido recebem promoções análogas. No total, aqueles que são assim
promovidos a postos administrativos, que frequentam estabeleci-
mentos de ensino, e se tornam engenheiros, técnicos e directores
entre 1930 e 1933, são cerca de um milhão e meio 11 • ·~
A «promoção de massa>> do início dos anos 30 representa o 1
,_,
aspecto mais espectacular da «viragem>> tomada em 1928. Teve um ';
impacte económico, social e político considerável; contribui, em
particular, para dar a impressão a uma parte da classe operária
de que o país entrou numa «era nova» na qual se abrem largas
perspectivas de «avanço» aos simples trabalhadores que querem
tornar-se técnicos ou funcionários. Na realidade, esta promoção de
massa a mais não conduz, muitas vezes, senão a lugares burocrá-
1l
'l
ticos ou de «sargentos da produção>>. iJ
No entanto, em 1928 e 1929, são adoptadas outras medidas
que permitem a promoção rápida a postos de alta responsabilidade
de alguns milhares de comunistas que passam por estabelecimen- ·i
tos de estudos superiores. Na aplicação destas medidas, que têm
carácter selectivo, uns 10 000 comunistas são admitidos, entre 1928
e 1931, em escolas de engenheiros e outras instituições do mesmo .,
tipo; cerca de outros 8000 comunistas são igualmente admitidos
'1
11
Cf. S. Fitzpatrick, «Stalin and the Making of a New Elite», art. ·1
cit., pp. 386 e segs., onde é feita referência a Sosfav rukovodiachtchikh ;I
rabotnikov i sptesialistov SSRR, Moscovo, 1936. '
'i
91 '
CHARLES BETTELHEIM

em virtude de medidas análogas, em escolas militares superiores.


Da mesma maneira, os sindicatos fazem «sair das fileiras» 5000 a
6000 operários comunistas e perto de 4000 não comunistas ".
No total, esta «mobilização» de futuros quadros destinados a
receber a formação técnica ou militar superior, e mais o afluxo
maciço de operários, comunistas ou não, em estabelecimentos de
ensino de todos os níveis, fazem aceder a uma formação escolar
especializada ou a uma formação superior dezenas de milhares de
jovens provenientes de um meio profundamente diferente da an·
tiga «intelligentsia>>. Assim, no decurso dos anos 30 forma-se
uma nova classe dominante que tem origem diferente da dos anos
20, já que sai, em grande parte, das fileiras destes «promovidos».
Os estudantes e alunos das escolas de engenharia constituem o
contigente mais significativo dos «promovidos», dos Vydvijentsy.
Representam estes a «nova inteligência técnica», a que assegura a
substituição não só dos antigos «especialistas» mas também, e so-
bretudo, dos membros da velha guarda bolchevique que assumiam
tarefas de direcção na economia e na indústria. Esta nova «intelli-
gentsia» deve o seu avanço não à sua participação nas lutas passa-
das mas à selecção que sofreu no momento em que a direcção do
partido se envolveu num esforço de industrialização que dá pri-
mazia à acumulação e à técnica. A sua ideologia é profundamente
diferente da dos antigos bolcheviques e distingue-se também da da
antiga «intelligentsia burguesa».
Devido ao seu modo de selecção e à formação que lhe é dada,
a «nova intelligentsia» não possui espírito crítico igual ao da «intel-
ligentsia burguesa». A sua autoridade depende muito mais do
poder de que está investida pelos dirigentes do partido do que da
sua experiência e dos seus conhecimentos, facto de que provém
uma série de consequências. Por um lado, esta <<nova intelligentsia>>
tende a estar estreitamente subordinada à direcção do partido, à
qual deve o facto de ocupar o seu actual lugar: ela quer ser, antes
de tudo, uma executante fiel das ordens recebidas, discute-as o
menos possível, mesmo quando as julga pouco realistas. Procurou-
-se, aliás, persuadi-la de que duvidar da validade das ordens rece-
bidas já é trair. Por isso, esta nova intelligentsia está geralmente
t·- impregnada do respeito pela hierarquia e de um espírito burocrá-
' tico e militar. Por outro lado, comanda igualmente de maneira

" Cf. S. Fitzpatrick, «Stalin and the Making of a New Elite», art.
cit., p. 384. O autor cita documentos de arquivo (TsGAOR, f. 5451, op. 15,
d. 785, p. 65, VTs SPS. Sector dos quadros industriais) e duas outras
fontes: S. Fedinkin, Sovietskaia vlast i bourgouaznie spetsialisty, Moscovo,
1965, p. 243, e B. S. Telpukhovskü, VI KPSS, n.• 8, 1976, p. 93.

92
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

quase militar. Justifica «politicamente» as responsabilidades que


assume, já que as mais das vezes não pode justificá-las pela sua
«competência técnica», razão pela qual não admite que se discuta
o que ela ordena. Considera que pôr em causa as suas ordens é
pôr em causa a autoridade política, portanto, comportar-se de
maneira «anti-soviética». Forma uma camada de chefes mais do
que de dirigentes. A direcção do partido espera daqueles que no-
meou que obtenham os resultados que lhe são pedidos «qualquer
que seja o preço». Devem mostrar-se brutais, prontos a impor aos
seus subordinados as mais severas sanções, e até prontos a fazer
apelo à polícia para prender, por «sabotagem», aqueles que não
cumprem as tardas que lhe são atribuídas. Constitui-se, assim,
uma camada de quadros que agem despoticamente 13 •
A ideologia desta nova intelligentsia é, evidentemente, também
muito diferente da dos antigos bolcheviques que assumiam, desde
hC: an~s, responJabilidadcs técnicas ou de gestão. Devido ao seu
passado, estes antigos bolcheviques sentiam-se no direito de for-
mular um juízo sobre as decisões da direcção do partido. Ao ,.
mesmo tempo, os combates de classes travados outrora ao lado
dos operários tornavam-nos ainda muitas vezes sensíveis às dificul-
dades que estes podiam encontrar no seu trabalho ou na sua vida
quotidiana. Pelo contrário, a nova intelligentsia dos promovidos,
embora geralmente «sa!da das fileiras», sente-se rapidamente muito
afastada dos simples trabalhadores, dos quais acredita diferen-
ciar-se por «méritos» e «competências» particulares. Sente facil-
mente um respeito cego pelos diplomas e os títulos, respeito que
os antigos bolcheviques, em geral, ignoravam. De maneira geral,
aceita estar estreitamente subordinada ao vértice do partido por-
que sabe que este dispõe de muito maior experiência de que a sua
e, sobretudo, porque lhe é devedora da sua «promoção». Depen-
dendo a sua «carreira» do partido, está pronta a testemunhar-lhe
lealdade e espírito de disciplina. Esforça-se por se mostrar ainda
mais «dedicada» na segunda metade dos anos 30, quando os
expurgos recaíram também sobre as suas fileiras.
Em globo, a ideologia da nova intelligentsia está largamente
dominada por preocupações de «promoção social>>, de «ascensão»
a postos cada vez mais importantes. Numerosos vydvijentsy («pro-
movidos») estão persuadidos de que a sua «dupla qualidade» de
membros do partido e de homens com uma «formação técnica»
deve abrir-lhes uma carreira que os levará a altas responsabilida-

" Sobre estes pontos, ver a contribuição de M. Lewin, «Society,


State and Ideology», para a obra Cultural Revolution in Russia, S. Fitz-
patrick (ed.), ob. cit., sobretudo pp. 69 e segs.

93
CHARLES BETTELHEIM

des políticas. É, aliás, o que se passará com um certo número


deles. Com efeito, após uma dezena de anos, é entre esses vydvi-
jentsy que será recrutado o «render>> dos velhos membros do par-
tido, os da «velha guarda». IÉ também das fileiras que saem aqueles
que ainda dirigem o partido no princípio dos anos 80.
Os vydvijentsy destinados às mais altas responsabilidades vêem
o seu futuro desenhar-se principalmente no momento da repressão
de massa e dos «expurgos» (quando eles próprios lhes escapam);
alguns deles figuram rapidamente na lista dos quadros superiores,
dos membros do BP e do governo. É o caso de Nikita Serguiévitch
Khrouchtchev e de Leonid Illitch Brejnev 14, de Aleksei Nicolae-
vitch Kossiguine, de Dimitrí Federovitch Oustinov, de Nikolai
Semenovitch Patolitchev e de numerosos outros. ~
A «ascensão» destes «vydvijentsy de choque» ocorreu através
de uma série de convulsões e de uma repressão de massa que
também «renovou» o partido. A carreira excepcional dos vydvijen-
tsy que ascenderam à direcção superior do partido não deve fazer
esquecer que a política de promoção perturba profundamente a
composição de grande parte da classe dominante.

2. O recrutamento dos «especialistas» antes da aplicação


da «política de promoção»

Para medir a amplitude da viragem ocorrida na Primavera de


1928, é necessário colocar a questão dos «especialistas» numa pers-
pectiva histórica.
14
Nascido em 1906, filho, de operário. Passa em muito novo para
uma escola técnica de agricultura e exerce funções de técnico e de buro-
crata. Ê «candidato» ao partido em 1929 e torna-se membro pleno deste
em 1931. Em 1930, entra na Academia Agrícola Timuiazev de Moscovo
(que é um instituto superior de ensino e investigação). Abandona, aliás,
muito depressa esse instituto, é durante algum tempo operário numa
fábrica metalúrgica, o que lhe permite tornar-se estudante num instituto
metalúrgico e lhe abre melhores perspectivas do que a sua passagem por
um instituto agrícola, mesmo tão prestigioso como a Academia Timtriazev.
Di;;loma-se em 1935. Entra no aparelho do partido durante os expurgos
de 1936-1938 e trabalha, então, com Khrouchtchev. Durante a guerra, é
director de fábrica, depois, tenente-general. No fim da guerra, prossegue
uma carreira de apparitchik. Ê membro do CC e torna-se suplente do
Presidium e secretário do CC em 1952. Após a morte de Estaline, assume
funções políticas no exército sendo. depois, responsável pela campanha
de arroteamento de terras. Em 1956, pertence ao Presidium do partido
e torna-se presidente do Presidium do Soviete Supremo (chefe de Estado)
em 1961. Três anos mais tarde, suplanta Khrouchtchev que havia feito
uma carreira mais rápida ao passar pela Academia Industrial de Moscovo
que o diplomara em 1931, para ingressar directamente no aparelho do
partido como secretário do rdion de Moscovo, entrar no C'C em 1934
e tornar-se suplente no BP em 1938.

94
•.

AS LUTAS DE CLASSES NA URSS- IV

Desde o início do regime soviético, numerosos dirigentes bol-


cheviques desconfiam dos «especialistas>> (engenheiros e quadros
técnicos e administrativos) formados antes da Revolução. Quando
não são membros do partido, são qualificados de «especialistas
burgueses» e sofrem toda uma série de discriminações. No entanto,
assaz rapidamente, a direcção do partido admite que é necessário
recorrer a esses «peritos burgueses» para se ficar apto a enfrentar
as tarefas científicas e técnicas com as quais o poder se acha con-
frontado.
Em 1920, Lénine insiste sobre a questão destes «especialistas»
e enuncia como sendo ilusória toda a tentativa visando dispen-
sá-los, para edificar o socialismo «apenas com as mãos dos comu-
nistas».
Durante a NEP, assiste-se ao abandono progressivo dos esfor-
ços tentados durante a guerra civil e que visavam recrutar e for-
mar quadros técnicos saídos da classe operária'".
Em 1927, a política de recrutamento é a seguinte:
Para os quadros administrativos, o partido continua a praticar
uma política de promoção operária relativamente ampla. Nessa
época, cerca de 20 000 comunistas abandonam anualmente as fábri-
cas para seguirem cursos e se tornarem quadros. Estes recrutas
são essencialmente orientados para as carreiras burocráticas e para
o exército '".
Opostamente, para o acesso a postos implicando reais respon-
sabilidades técnicas e os correspondentes conhecimentos, o partido
exige a passagem po·r escolas e institutos especializados. Nessa
época, tais estabelecimentos não abrem praticamente as suas por-
tas (graças à natureza dos concursos de entrada e ao tipo de «cul-
tura» que estes últimos exigem) senão aos filhos da intelligentsia
científica e técnica e da antiga burguesia; a admissão de filhos de
operários é excepcional.
Desta forma, por um lado, os «quadros administrativos» (aque-
les que os aparelhos burocráticos formam) têm largamente origem

" Durante a guerra civil, havia sido inaugurado um sistema de recru-


tamento preferencial de quadros operários. Este sistema concedia uma
certa priondade para entrada na Universidade aos jovens saídos da classe 'J
operária e recomendados pelas organizações do partido. Era a komandi-
rovanie. Esta começa a não ser praticada em 1925, desaparece comple-
tamente em 1926 (ver, sobre este ponto, D. Lidenberg, L'Internationale
·''
'
.,,•
communiste et l'École de classe, Paris. Maspero, 1972; e R. Pires, Di ;j
Russische lntelligentsia, Estugarda, 1962). As medidas tomadas em 1928
surgem, pois, como um retorno em força a uma política que havia sido
praticada em escala muito reduzida entre 1920 e 1925. ~
•• Cf. S. Fitzpatrick, «Stalin and the Making of a New Elite»,
ob. cit., pp. 378-379. ·~
'
95
CHARLES BETTELHEIM
" proletária 17, ao passo que, por outro lado, os «quadros técni-
f cos» -que desempenham papel importante na produção- são
quase inteiramente estranhos ao partido e à classe operária 18•
Até 1927, a direcção do partido parece acomodar-se a este es-
tado de coisas e declara a sua confiança na maior parte dos mem-
bros da antiga intelligentsia. Assim, por ocasião do XV Congresso
do Partido (Dezembro de 1927), Estaline afirma:
Centenas de milhares de trabalhadores intelectuais [... ]
aderem ao poder soviético'" (acrescenta que é necessário
consolidar a aliança [com o que chama] a intelligentsia
trabalhadora).
É impressionante o contraste entre tais afirmações e as reso-
luções e medidas adoptadas no decurso de 1928. Trata-se realmente
de uma viragem então operada: porque se iniciou ela em 1928?

3 As razões imediatas da viragem de 19~8


l
t A nova «política de promoção» é inseparável da viragem polí-
tica geral representada pelo abandono da NEP. Constitui um as-
pecto particular da entrada em acção de uma política de indus-
trialização que dá prioridade à indústria pesada. Mais geralmente,
responde a duas preocupações: dar a uma parte dos operários o
sentido de que podem melhorar o seu nível de vida entrando na
via da promoção; fazer pressão sobre a antiga intelligentsia técnica
e, eventualmente, eliminá-la, já que, no seu conjunto, esta con-
sidera (justificadamente, como os factos confirmarão) que é impos-

17
Em 1927, cerca de dois terços dos quadros da indústria e metade
dos quadros do aparelho do partido são de origem operária. Ver Kom-
munist v sostave apparata gosutchjdenii i obchtchestvennykh organizatsii,
Moscovo, 1929, p. 25, cit. por S. Fitzpatrick, «Stalin and the Making of
a New Elite», art. cit., p. 381, n.• 25.
" Segundo um recenseamento efectuado em 1928, menos que 1 o/o
(8396) dos membros do partido concluíram estudos superiores, e cerca
de metade deste fraco contingente ocupa funções puramente administra-
tivas. Somente 7,8% dos comunistas que terminaram estudos superiores
possuem diplomas técrucos. Em 1928, havia apenas 138 engenheiros
comunistas a trabalhar em empresas industriais. Sobre estes pontos ver:
Sotsialnyi i natsionalnyi sostav VKP (b), Moscovo, 1928, p. 41; Kom-
munist v sostave apparato ... , ob. cit., p. 15; Partiinia Jizn (mais adiante
PJ), n.• 21, 1977, p. 30; e Molotov, em Krasnoestudentchestvo, Outubro,
1928, p. 21, cit. por S. Fitzpatrick, art. cit,, p. 378.
10
Cf. XV Congresso do PC (b) da URSS, BE, Paris, 1928, p. 55.

96
'1', ,_

AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

sível levar a cabo nos prazos e com os meios de que se dispõe


todos os projectos postos em marcha simultaneamente no fim dos
anos 20 e princípio dos anos 30. A maior parte dos antigos enge-
nheiros e técnicos sublinha que lançar simultaneamente tantos
projectos não pode senão acrescer fortemente as despesas de inves-
timento, alongar de maneira considerável os prazos de construção
e, finalmente, retardar o momento em que as norvas fábricas esta-
rão concluídas e entrarão em produção, de modo que a «rapidez»
da industrialização proposta é apenas aparente. Estas opiniões são,
aliás, largamente partilhadas pelos directores vermelhos, pelos nu-
merosos quadros bolcheviques dotados de certa experiência dos
problemas da economia e da indústria e por numerosos quadros
sindicais, conscientes das consequênciass que a tentativa de realizar
todos esses projectos industriais fará pesar sobre as condições de
trabalho e de vida da classe operária.
A fracção da direita agrupada em redor de Estaline recusa-se
a tomar em consideração esses argumentos. Não vê neles senão
«derrotismo» devido à origem de classe dos «peritos» e à influência
que estes exercem sobre os quadros bolcheviques da produção.
Está persuadida de que quanto mais se investe e quantos mais pro-
jectos se iniciam, mais seguro se estará de aumentar a produção
industrial. Por isso, considera grande parte da antiga intelligentsia
técnica como hostil, e pouco digna de confiança, e decide promo-
ver o mais depressa possível novos quadros industriais de origem
operária dos quais espera mais «cooperação» e «entusiasmo».
Na realidade, desde 1928, a alta direcção do partido tende a
reduzir ao silêncio os antigos quadros industriais e económicos
que emitam reservas (ainda que prudentes) relativamente à ampli-
tude dos projectos industriais. Quando não os demite, coloca-os
em situação difícil, ao reactivar a animosidade latente dos traba-
lhadores contra a antiga intelligentsia técnica. É assim que, a par-
tir de 1928, a fracção maioritária da direcção do partido ataca
cada vez mais vigorosamente os «peritos burgueses», denunciando
a sua «falta de confiança nas possibilidades do socialismo» e até
a sua suposta «hostilidade» ao regime soviético. É então que são
forjados processos (como o de Chakhty) destinados a «demons-
trar» que alguns de tais peritos são sabotadores e espiões.
Entre 1928 e 1931, dois elementos incitam a direcção do par-
tido a eliminar uma parte dos antigos quadros técnicos e a substi-
tuí-los por «promovidos» de origem operária.
O primeiro elemento é a confirmação pelos factos da pertinên-
cia dos avisos formulados pelos peritos que haviam indicado que
projectos demasiado «ambiciosOS>> provocariam a usura prematura
dos equipamentos existentes e numerosas «dificuldades técnicas».
Est. Doe. 220-7 97
CHARLES BETTELHEIM

Quando tais dificuldades sobrevêm, os dirigentes do partido con-


sideram que tais avisos anteriores só serviram para lesar a sua
autoridade e que afectam a confiança dos trabalhadores na linha
política da industrialização. São levados, assim, a tratar como «ini-
migos» os «peritos burgueses».
O segundo elemento é a multiplicação dos acidentes de traba-
lho, a descida do nível de vida, a deterioração das condições de
alojamento e de trabalho. Tudo isto ocasiona um descontenta-
mento crescente da classe operária. A direcção do partido esfor-
ça-se por voltar este descontentamento contra os antigos quadros,
tornados responsáveis pelo que se passa, e qualificados de «sabota-
dores»; até os velhos quadros do partido, designadamente certos
«directores vermelhos», são denunciados pela sua «cegueira» e a
sua «incompetência».
Ao agir desta maneira, a direcção do partido desenvolve uma
política «obreirista» que se combina com a viragem ocorrida em
1928 no domínio da «promoção», visto que esta favorece o acesso
de certo número de «operários das fileiras» a postos técnicos e
administrativos.

SECÇÃO II

Os efeitos 4a politica de promoção


sobre a estrutura da nova cla~se dominante
e sobre a classe operária

i··.
Na prática, a «política de promoçãm> desempenha papel deci-
sivo no processo de constituição da nova classe dominante que se
desenvolve no decurso dos anos 30.
i
Das fileiras operárias faz sair chefes. Faz surgir novos «espe--
L cialistas» que deixam de ser operários e se tornam quadros técni-
cos, económicos, administrativos e políticos. Assumem estes a
direcção da promoção, da apropriação e da acumulação da mais-
-valia e também se integram na nova classe dirigente, ao mesmo
tempo que a antiga burguesia é eliminada.
Uma das consequências da «política de promoção» orientada
para a formação de «chefes» é a seguinte: ao passo que um milhão
e meio de operários e de comunistas se tornam quadros ou espe-
cialistas e abandonam a fábrica entre 1928 e 1931, o nível médio
'· de qualificação dos trabalhadores de fábrica baixa rapidamente,
já que os operários que ficam na produção ou que a esta chegam
98
-,. "

AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

para substituir os primeiros não recebem senão um ensino técnico


rápido e superficial "".
A «política de promoção» tal como é praticada a partir de 1928
comporta numerosas consequências para a classe operária: esva-
zia-a de parte importante dos seus elementos mais experimentados,
daqueles que teriam podido (graças à sua familiaridade com a vida
das fábricas) ajudar os milhões de recém-chegados à produção
industrial a formar-se no próprio local e a assimilar as tradições
de solidariedade que permitem aos trabalhadores fazer frente ao
autoritarismo dos dirigentes, dos quadros e dos especialistas. Por
último, esta política faz penetrar a ideologia individualista do
«avanço», o que contribui para reduzir a resistência operária ao
endurecimento do despotismo de fábrica e para modificar pro-
fundamente as relações entre os quadros e a classe operária.
Com efeito, quando a classe operária se esvazia dos seus ele-
mentos considerados como «Os melhores» pela direcção do partido, ··."
é aumentada com milhões de trabalhadores vindos do campo"'.
Ora, a ideologia dominante do partido conduz a não «reconhecem
como «verdadeiros operários» senão aqueles que desde há muito
tempo estão presentes na indústria e que - como afirma a ideo-
logia oficial- testemunham, pelo seu comportamento, respeito
pela «saudável disciplina da fábrica».
Entre 1928 e 1932, a proporção dos operários com estas carac-
terísticas baixa rapidamente. A mudança de composição da classe
operária desempenha papel não despiciendo no desenvolvimento
de um processo ideológico e político com consequências impor-
tantes: a «desvalorização» da classe operária real aos olhos dos
quadros. Estes últimos têm tendência cada vez maior para iden-
tificar a grande massa dos operários a «camponeses» (quando estes
últimos são maciçamente considerados como elementos «duvido-
sos>>, «pró-kulaks» ou «pequenos burgueses») e, portanto, a tratá-
-los como elementos «estranhos>> ao proletariado.
Ao esvaziar as fábricas de boa parte do «antigo proletariado»,
o «obreirísmo» aparente que preside à política de promoção con-
tribuí, portanto, para que aumente o desprezo dos quadros pela
classe operária, a qual não seria um «verdadeiro proletariado»,
o que facilita a extensão de práticas antioperárias.

"' Cf. M. Anstett, L'Enseignement professionnel et la Main d'oeuvre


quali/iée en URSS, Paris, Marcel Riviere, 1958, pp. 126 e segs., citado por
Jacques Sapir na sua tese do 3." ciclo, Organisation du travail, classe . }:
ouvriere, rapports sociaux en URSS de 1924 a 1941, Paris, EHESS, Feve- 'ii
reiro de 1981, p. 383. l
" Cf. Sobre este ponto, a segunda parte do t. 1 do presente volume,
Os Dominados.

99
,,,,·t-
~Í''

,;,' CHARLES BETTELHEIM


•,1'
'
Uma das componentes da ideologia que domina, então, no par-
tido é, como jâ foi dito, a identificação postulada entre pertencer
verdadeiramente à classe operária e o espírito de disciplina que
atribui prioridade à produção.
O movimento dos oudarniki (trabalhadores de choque) no prin-
cípio do 1. Plano Quinquenal concretiza alguns dos efeitos desta
0

ideologia que é a de numerosos quadros do partido. Aos olhos


destes, para se ser oudarniki, é também preciso submeter-se a
certas normas ideológicas, de obediência e disciplina. Ê com refe-
rência a estas normas (explícita ou implicitamente) que os quadros
designam os oudarniki. Para tais quadros, como para a direcção
do partido, os audarniki são os verdadeiros proletários. Só eles
formam o «proletariadm): um proletariado que é, pois, «cooptadm)
pelo partido.
Ê antes de tudo neste «proletariado cooptadO)) que são esco-
lhidos os «promovidoS)), donde esta paradoxal consequência:
22
«Tornar-se proletário para deixar de ser operárim) •
Em resumo, os critérios que definem o «proletariadm) por um
certo tipo de submissão, pela conformidade com certo número de
normas ideológicas, também intervêm, sob formas transformadas,
na política de promoção e, portanto, na constituição da nova
classe dominante, Os «promovidOS)) são, prioritariamente, aqueles
que, segundo os critérios da ideologia oficial, são os «mais avan-
çadoS)), isto é, os mais «aptos)) a assimilar a técnica e, sobretudo,
os mais «aptos a comandar)). Os «promovidoS)) que «progridem))
funcionam, por consequência, perante os seus subordinados, como
símbolos do saber e do poder. Na época, o acento é colocado neste
último termo, a fim de obviar aos efeitos do fraco nível de conhe-
cimentos técnicos dos novos quadros. Aqueles que se incorporam
na nova classe dominante devem, pois, estar fortemente submeti-
dos às normas ideológicas do sistema hierárquico: ao mesmo
tempo, respeitadores do sistema e desejosos de franquear os seus
diferentes degraus, embora aceitando, pelo menos na aparência,
os constrangimentos que se impõem para satisfazer tal «ambi-
çãm) '2 '. As normas ideológicas que estruturam o sistema de selec-
ção permitem ao núcleo dirigente do partido juntar à classe domi-
nante elementos que formam o que é oficialmente chamado uma

'· " Estas observações são desenvolvidas por J. Sapir na sua tese já
' citada.
" No livro de A. Ciliga, Dix ans au pays du mensonge déconcertant,
ob. cit., encontra-se uma notável descrição das relações ideológicas domi-
nantes no seio de diferentes categorias de estudantes «saídos da classe
operária» (cf. ob. cit., pp. 86 a 90)

100
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

«nova intelligentsia», diferente da antiga pelo seu respeito pela


autoridade que a direcção do partido encarna e, pelo menos na
aparência, pela sua ausência de espírito crítico.
Em suma, a política de promoção dos anos 1928-1931 desem-
penha papel considerável na forinação da nova classe dominante •''
e na sua estruturação. No entanto, estas transformações de classe ·~
exigiram também outros desenvolvimentos, designadamente diver- '~
.,
sas fases de repressão destinadas, entre outras finalidades, a asse-
gurar a subordinação dos quadros à direcção do partido. No fim l
dos anos 20 e no princípio dos anos 30, uma primeira fase de -l
repressão e de terror dirigidos contra os quadros atinge principal-
mente o que é chamado a «antiga intelligentsia», dita também l
«intelligentsia burguesa». •1

SECÇÃO III

A repressão contra a «ant1ga intelligent~ia»

No decurso do 1. Plano Quinquenal, um grande número de


0

antigos quadros económicos, industriais e administrativos são


submetidos a uma forma particular de repressão e terror com
aspectos múltiplos: processos públicos ou à porta fechada, prisões
pelos órgãos de segurança e deportações (de que, geralmente, não
se fala na imprensa e que só se conhecem através de relatos de
antigos prisioneiros e deportados).
Um dos primeiros processos públicos instaurados contra espe-
cialistas industriais é aquele (a que já fizemos menção) que se
abre, em Março de 1928, sob a presidência de Vichinsky contra
engenheiros e técnicos das minas de Chakhty no Donbass ••. Estes
especialistas são acusados de actos de sabotagem e de organização
voluntária de acidentes nas minas, os quais teriam sido provocados
cumprindo directivas de organizações de «guardas brancos» insta-

" André Vichinsky (1883-1954) é um antigo advogado menchevique,


que só no fim da guerra civil entra no partido bolchevique. A principio
confinado a tarefas de administração no ensino superior, entra na «car-
reira judiciária» a partir do fim da NEP e ocupa postos cada vez mais
importantes. Nos anos 30, será procurador-geral e acusador público.
:É ele quem requer a condenação à morte para os antigos dirigentes bol-
cheviques então acusados. Torna-se o «teórico do direito soviético» e faz
das confissões a principal prova de culpabilidade. Acaba a sua carreira
na diplomacia.

101
CHARLES BETTELHEIM

:ados no estrangeiro. Os réus teriam sido pagos por tais organiza-


ções. Em quar.::nta c três arguidos, onze são condenados à morte
(cinco serão fuzilados e cinco perdoados pelo Comité Executivo-
TsiK), os outros são condenados a penas de prisão, algumas
suspensas, e outros são indultados"'.
Segundo numerosos testemunhos e declarações feitas posterior-
mente, embora tivessem havido actos isolados de sabotagem, parece
que o conjunto do proces~:::> é falseado. O essencial das acusações
repousa sobre «factos» fabricados, e sobre «confissões» extorqui-
das por todas as formas possíveis de pressão (interrogatórios em
cadeia, privação contínua de sono, etc.).
De 1923 a 1931, decorrem outros processos deste género, ba-
seados no mesmo tipo de acusações e conduzidos nas mesmas con-
dições.
Em 1929, trata-se designadamente do processo contra o SVU
ou a «União de Libertação da Ucrânia». Embora tivessem sido
formuladas contra os supostos dirigentes desta organização acusa-
ções muito graves, alguns deles nem sequer são presos. O processo
é, sobretudo, utilizado para reforçar a actividade de conjunto dos
órgãos de segurança e criar uma atmosfera de terror conduzindo
uma campanha contra a <<intelligentsia burguesa».
Em 1930, quando são presos e deportados milhões de campo-
neses, muitos «grandes processos» são or~anizac'os contra técnicos
da agricultura e da indústria. Estas acções judiciárias são apre-
sentadas como sendo «processos políticos» públicos. Simultanea-
r mente, decorrem outros processos à porta fechada, os quais são,
muitas vezes, aqueles que conduzem às condenações mais severas.
Um destes processos volta a servir de pretexto a uma vasta
campanha contra os especialistas (sábios e técnicos superiores) da
agricultura. Alguns deles são acusados de ter formado uma orga-
nização contra-revolucionária, a TKP («Partido camponês do tra-
balho>>). Supõe-~e que este último tenha efectivos de 100 000 a
200 000 membros, entre eles numerosos antigos SR. É anunciado
.· um processo público mas, finalmente, os réus são julgados e con-
dcnauos à ~c·~ta fechada e a imprensa. p::tra justificar estas conde-
nações, invoca sobretudo escritos teóricos dos acusados.
Sempre em 1930, quando as dificuldades de abastecimento se
multiplicam, outro processo ocorre à porta fechada. Os réus (em
número de 46) ocupavam. até então, funções diversas no VSNKh
(Conselho Superior da Economia Nacional), no Comissariado para
o Comércio, nos serviços da carne, do peixe, etc. Todos são conde-
nados por «sabotagem do abastecimento», «má qualülade)) dos pro-
" Cf. Roy Medvedev, Le Stalinisme, Paris, Seuil, 1972, pp. 160-161.
'··.
102

(
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV
20
dutos e da distribuição, responsabilidade na alta dos preços, etc. •
IÉ na mesma época (Novembro-Dezembro de 1930) que decorre
o processo público do pretenso «partido industrial» (Prompartiia)
no decurso da qual cerca de 1000 especialistas são postos em causa.
Oito técnicos superiores são acusados de formar o «comité exe-
cutivo» deste partido. «Confessam» ter organizado a subversão,
a sabotagem e a espionagem por instigação de embaixadas estran-
geiras, entre elas a da França. A maior parte são condenados à
morte, mas o TsiK comuta estas condenações, o que é sinal de
certa alteração no seio da direcção quanto à maneira de tratar os
antigos especialistas. Esta alteração está ligada à penúria crescente
de «especialistaS)) na ocasião em que a indústria se desenvolve e
os grandes estaleiros se multiplicam. Com efeito, os especialistas
condenados, embora geralmente conservados prisioneiros, são, do-
rava:lte, muitas vezes reagrupados e são-lhes atribuídas -sob a
direcção dos órgãos de segurança- tarefas que correspondem
mms ou menos à sua e~pecialidade. Esta primeira utilização de
engenheiros, de técnícos e de cientistas (por exemplo, microbiólo-
gos) em trabalhos a efectuar num quadro de encarceramento cons-
titui a pré-história da charaga 27 •
Alguns meses após o processo do Prompartiia -em Março
de 1931- abre-se o processo público do pretenso «Bureau federal
do CC do partido menchevique». A maior parte dos inculpados
ocupa funções importantes no Gosplan, no Gosbank e no Comis-
sariado do Comércio. Outros são teóricos marxistas (é o caso de
I. I. Roubine '') ou escritores. São acusados de ter constituído uma
«frente única» com o TKP e o «partido industrial» e de ter «sabo-
tado» os planos económicos ao proporem «objectivos demasiado
fracos». Os acusados «Confessam» tudo o que lhes é censurado,
incluindo terem organizado contactos com os antigos grupos de
oposição no seio do partido bolchevique, com a oposição de «di-
reita» e com os trotskistas (como Riazanov, então director do
Instituto Marx-Engels-Lénine). São condenados a penas de cinco
a dez anos de prisão 29 •

" Le Stalinisme, pp. 162-163


"' Encontrar-se-ão um Lucienne Félix, La Science au Goulag, Paris,
Christian Bourgeois, 1981, numerosas informações sobre a charaga e ..:
a sua h1stóna. O autor assmala que é em 1930 que se inicia a pré- í:
-história desta mstituição (ob. cit., p. 23). Ver também sobre esta questão
Mark Popovski, URSS- La Science manipu/ée, Paris, 'Éd. Mazarine, 1979.
'" I. Rouhine trouxe importante contribuição à teoria marxista do
valor, designadamente no seu livro: Otcherki po teorii stoimosti Marksa,
Moscovo, 1928, traduzido para francês sob o título Essais sur la théorie
de la valeur de Marx, Paris, Maspero, 1978.
"" R Medvedev, Le Stalinisme, ob cit,, PP. 164-165.

103
CHARLES BETTELHEIM

A inverosimilhança e as contnidições dos autos de culpa, tal


como a forma e a natureza das «confissões», revelam não terem
fundamento as acusações formuladas no decurso destes processos.
Na realidade, estes processos satisfazem diversos «objectivos»:
reduzem ao silêncio quadros e conhecidos dirigentes administra-
tivos, económicos ou técnicos, que não se inclinam perante as
medidas do governo, designadamente perante aquelas que, no seu
entender, são prejudiciais ao desenvolvimento económico e indus-
trial «projectado»; obrigam, outrossim, a calar-se quadros ou técni-
cos menos conhecidos mas que, ao nível das suas instituições ou
empresas, teriam podido formular críticas que o poder não estâ
preparado para tolerar (sobretudo quando são justas). Além disso,
como se sabe, aqueles processos permitem criar «bodes expiató-
rios», aos quais é imputada a deterioração das condições de vida
dos operârios e dos camponeses. Tendem, por último, a apresentar
o poder como estando a conduzir uma «luta resoluta contra a bur-
guesia».
A repressão contra os antigos quadros industriais, económicos,
técnicos e científicos exerce também uma «função social»: permite
a ascensão de novos quadros escolhidos pelo partido, que vão subs--
tituir mais ou menos os antigos e constituem uma das camadas
da nova classe dominante em vias de formação.
A política que leva a este resultado difarça-se sob um discurso
que louva os méritos de uma «intelligentsim> doravante devotada
ao regime soviético, devido à sua «origem proletâria» (real ou
suposta). Tende esta política também a «unificar» a classe domi-
nante ao subordinar estreitamente à direcção do partido a camada
dos novos técnicos, engenheiros e quadros.
No decurso dos anos 1928 a 1932, a política de substituição
de antigos por novos quadros não se limita aos engenheiros, espe-
r cialistas, administradores, cientistas, etc. Atinge também a arte e
,,.t a literatura. Ê assim que, a partir de 1928, a «Associação dos Escri-
tores Proletârios» (V APP) conquista praticamente, graças ao apoio
do poder, posição hegemónica no domínio literârio, ao passo que
os outros escritores são não somente submetidos a chamadas à
ordem e perseguições mas frequentemente presos. As chamadas
à ordem e as perseguições atingem não só escritores até então con-
siderados como «proletários» mas também aqueles a quem se cen-
sura terem abandonado as formas de expressão «clâssicas». É o
caso de Maiakovski que deixa de ser chefe da redacção da revista
N ovy Lef e, desesperado pela mediocridade e o sectarismo da
época, se suicida. De 1928 a 1933, a VAPP (e as RAPP, para os
escritores de língua russa) ocupa a frente da cena e denuncia
aqueles que designa por «escritores burgueses». Ao apoiar seme-
104
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV -.i

lhante política, a direcção do partido favorece a constituição de


uma camada de «escritores oficiais», os únicos tolerados. O seu
papel essencial é o de glorificar o regime e respectivos dirigentes,
em contrapartida do que lhes são atribuídos múltiplos privilégios.
No entanto, em 1928-1931, está-se apenas no princípio deste
processo. Assiste-se, sobretudo, ao estabelecimento das condições
de um «terrorismo intelectual» que se desenvolverá ulteriormente
-mesmo quando já tiverem desaparecido a V APP e a RAPP - ,,
e que constrange a quase totalidade dos quadros a «aderir» ver-
balmente àquilo que o partido afirma. Este «terrorismo» tende,
então, a tornar-se típico das condições do «trabalho científico e
cultural» na URSS. Não satisfaz, de modo algum, as exigências
.,
do que Marx chamava «a livre investigação científica».
Em resumo, no decurso dos anos 1928-1931, ocorre a primeira
fase da formação de uma nova classe dominante e de uma <mova
intelligentsia», que já não desempenha o papel da antiga 30 : sabe
ela que, a todo o momento, pode ser atingida pela repressão e que
lhe cumpre submeter-se às decisões da direcção do partido, inclu-
sive (pelo menos durante certos períodos) no que se refere aos
critérios «científicos» ou de «qualidade artística».
O recurso às práticas que acabam de ser descritas é acompa-
nhado por uma das primeiras tentativas de fazer «acertar o passo»
do partido pelo do grupo dirigente formado à volta de Estaline, o
que introduz novas relações e novas práticas no seio do partido.

,. O processo de substituição da antiga por uma «nova intelligentsza»


(processo que não exclui necessanamente a «adesão» de numerosos antigos \
intelectuais) e o papel desempenhado pela repressão e pelo terror neste
processo foram observados também após a Segunda Guerra Mundial
nos diversos paises do bloco soviético. Para a Polónia, encontrar-se-â
uma descrição deste processo no artigo de Maria Hirszowics, «lntelli-
gentsia versus Bureaucracy? The Reviva! of a Mith in Poland», em
Soviet Studies, Julho de 1978, designadamente pp. 344 e segs.

105
•"•'· :{

I

••

CAPíTULO II

AS PRIMEIRAS TENTATIVAS
DE «ACERTAR O PASSO» DO PARTIDO
PELO DO GRUPO DIRIGENTE

Os anos 20 haviam sido marcados pela progressão da auto-


nomia do aparelho do partido relativamente às decisões do
Congresso e mesmo do BP, por um controlo crescente exercido
sobre este aparelho pelo secretário-geral e pela criação da N omen-
klatura '. Confere esta estatuto particular a certos quadros do par-
tido e do Estado cujas promoções são geridas pelo secretariado
do partido e pelos responsáveis dos quadros; é por isso que a prá-
tica das nomeações dos quadros substitui a das eleições. Durante
estes anos, o partido atravessa várias crises que levam, muitas
vezes, a expulsar os órgãos centrais dirigentes que manifestaram
divergências com o secretário-geral (Gensek). Esforça-se este tam-
bém, cada vez mais, por ser ele próprio quem exclusivamente
determina a linha política, económica e ideológica do partido.
O processo que, desta forma, desencadeia tende a impor-se através
principalmente de uma «aplicação» unilateral e levada ao extremo
da «resolução sobre a unidade do partido» adoptada pelo X Con-
gresso e que proíbe as fracções.
Em princípio, esta resolução não proíbe aos membros do par-
tido que emiéam críticas à linha seguida pela direcção em exeT-
dcio, ou contra tal ou tal medida por esta tomada. Algum tempo
após o X Congresso, as críticas passam a ser cada vez menos
toleradas. Dão frequentemente ocasião a sanções que vão desde
a despromoção de membros do partido que ocupam «postos res-
ponsáveis» até à expulsão da URSS (caso de Trotski), passando
pela exclusão do partido e a deportação. Estas sanções são, geral-
mente, realizadas em nome da «disciplina do partido». De 1923 a
1928, elas atingem, sobretudo, as oposições ditas «de esquerda».

' Cf. a terceira parte da presente obra, cap. IV, secção n.

106
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV ;;

Entre aqueles que são sancionados, figura um certo número de


dirigentes que estavam à testa do partido em Outubro de 1917, em
particular Trotski, Linoviev e 1Kamenev 2 •
Todavia, até 1929, ainda são possíveis debates políticos e ideo-
lógicos mais ou menos abertos, dentro de certos limites e sob
condição de se usar uma linguagem prudente. Estes debates são
essencialmente acessíveis aos altos dirigentes -que formam o que
se poderia chamar uma oligarquia- e aos seus partidários mais
conhecidos.
A partir de 1929, o processo de «acertar o passo» do partido
leva a uma intolerância ainda maior. Como «correcto» tende
somente a ser considerado o que o secretário-geral enuncia e as
suas decisões ou as suas interpretações das resoluções dos órgãos
estatutários dirigentes. Ele impõe estas suas interpretações mesmo
quando estão em contradição evidente com o texto das resoluções.
Abre-se, assim, uma nova fase na transformação do modo de fun-
cionamento do partido (os efeitos desta primeira fase atenuar-se-ão
momentaneamente próximo do fim de 1931) 3 •

SECÇÃO I

A resolução do Plenário de Abril de 1929

No decurso de 1929, desenha-se uma concepção condenando


toda a crítica dirigida à «direcção do partido» (isto é, de facto à
fracção dirigente, cujo núcleo é o secretário-geral), mesmo quando
emana de membros dos órgãos dirigentes. As críticas são cada vez
mais identificadas a «desvios» e «actividades fraccionais» (inter-
ditas). Só a linha e as propostas sustentadas pela fracção dirigente

2
Sobre estes diferentes pontos, ver o vol. 2 da presente obra.
' No presente volume, como nos precedentes, a atenção incide sobre
os momentos essenciais do processo de transformação do partido. Não
,)
se encontrará, p01s, aqui, uma «htstória do partido» que exigma desen-
volvimentos mmto mais longos. As obras htstóncas sobre o partido bol- '
chevique não faltam Entre outras podem citar-se: Pterre Broué, Le parti
bolchevique, Paris, Êditions de Minuit, 1963; L. Schapiro, The Commu-
nist Party ... , ob. cit.; T. H. Rigby, Communist Party Membership in the
URSS 1917-1967, Princeton UP. 1968. Quanto às obras soviéticas, só são
utilizáveis, sob condição de serem decifradas, Já que tran•formam ou
ocultam os factos segundo as necesstdades da linha política do momento.

107
f,-C( ,,t.,' "!l•,;_T" .~ 1'
f,·
'
CHARLES BETTELHEJM

são consideradas «justas», «ortodoxas» no sentido etimológico da


palavra.
A identificação a um «desvio» e a uma «actividade fraccionai»
das críticas feitas por membros do BP à «direcção do partidO>}
exprime-se de maneira sistemática em dois discursos de Estaline
do princípio de 1929: o pronunciado na sessão conjunta de Janeiro-
-Fevereiro de 1929 do BP e do Presidium da CCC •, e o pronun-
ciado em Abril perante o Plenário do CCE da CCC 5 • Neste último
discurso, o secretário-geral denuncia, numa fórmula destinada a
ter grande futuro, «o grupo dos três»; afirma que as suas críticas
,f .. são a expressão de um «desvio de direita», e que eles formam um
<<grupo-facção» •.
Os três membros do BP assim denunciados são: Boukharine,
que havia estado, até uma época recente, estreitamente associado
à direcção do partido ao lado de Estaline e era considerado um
teórico eminente; Rykov, sucessor de Lênine ne presidência do
Conselho dos Comissários do Povo; e Tomski, presidente do Con-
selho Central dos Sindicatos.
No seguimento do relatório de Estaline, o Plenário de Abril
condena severamente «os três», recomendando a sua exclusão de
todos os postos que ocupam. Somente Rykov permanece como
presidente do Sovnarkom até ao fim de 1930, momento em que
é também excluído do BP 7 •
As resoluções do Plenário de Abril de 1929 constituem um
passo importante na afirmação de que só os pontos de vista e as
i decisões da maioria do BP são «justos» (ainda que, de facto, se
~' oponham às conclusões dos Congressos do partido) e de que toda
a crítica, ainda que emitida no interior de um círculo limitado,
constitui uma «actividade faccionai» •. Alguns meses mais tarde,
as decisões do Gensek começam, na prática, a beneficiar do
mesmo estatuto.

• Cf. Estaline, W, t. 11, pp. 332 e segs.; este texto foi publicado pela
primeira vez em 1949. -
• Cf. Estaline, Q. L., pp. 331 e segs.
• Cf. Estaline, Q. L., p. 399.
7
Cf. KPSS, vol. 11, ob. cit., p. 445, e L. Schapiro, The Communiste
Party ... , ob. cit., pp. 378 e 648.
• Com efeito, as sanções tomadas anteriormente contra outros diri-
gentes como Linoviev, Trotski e 'Kamenev, embora utilizando abusiva-
mente a etiqueta de «actividade faccionai», visavam tomadas de posição
mais nitidas e com difusão mmto mais larga no partido do que ab tomadas
de posição muito «prudentes» dos três.

JCB
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

SECÇÃO IJ

Os «desvios» e a acção dos «inimigos lle classe»

Já durante os anos 20, as actividades dos opositores ao grupo


dirigente são muitas vezes denunciadas como favorecendo os
«inimigos de classe». No entanto, em Junho de 1930, por ocasião
do XVI Congresso do partido, um passo suplementar é dado:
Já não se afirma somente que as críticas constituem desvios sus-
ceptíveis de conduzir a uma actividade de «fracção»; já não se diz
somente que tais críticas podem «ajudar os inimigos de classe»;
doravante, acusações muito mais graves são feitas aos opositores.
No seu relatório político de 27 de Junho de 1930 apresentado
ao XVI Congresso do partido", Estaline não se contenta em dizer
que a resistência das classes exploradoras (doravante chamadas -.\
«classes moribundas>>) encontra «reflexo» no partido. Acrescenta
que «todos os vários desvios da linha Ieninista nas fileiras do par-
tido são um reflexo da resistência das classes moribundas». Este
discurso vai ainda mais longe nas acusações. Com efeito, Estaline
acrescenta: «É impossível desenvolver uma verdadeira luta contra
os inimigos de classe havendo agentes deles nas nossas filei-
ras [ ... ] '"»
Em claro, isto significa que os qualificados de «desviacionistas))
são identificados a «traidores)) infiltrados no partido. No entanto,
até ao fim de 1934, as relações de forças do BP são tais que ainda -::
não podem ser tiradas todas as consequências dessa identificação.
Os «desviacionistas>> perdem os seus lugares e as suas responsa- ·t
bilidades, mas não são automaticamente excluídos do partido e ~:
votados aos mais severos castigos. Na época, "SÓ uma parte dos ,;
«opositores)) ou dos «críticos» membros do partido é objecto de ~~

sanções e de medidas policiais brutais; aqueles que sofrem tais


sanções não são sistematicamente tratados como «inimigos do
povm>. Em comparação com o que se passará mais tarde, a repres- j
são, sem deixar de ser real, ainda não é uma brutalidade extrema;
isto é também verdade, em geral, no que se refere à repressão 'l

-~
que recai sobre certos antigos bolcheviques e SR 11 •

• Cf. Estaline, W, t. 12, pp. 242 e segs. ~l


" Ibid., p. 363 (sou eu quem sublinha, C. B.).

I
u Encontrar-se-á no livro de A. Ciliga, Dix ans au pays du men-
songe déconcertant, ob. cit., pp, 203 e segs. e 249 e segs., uma visão de
conjunto sobre a repressão política dos anos 30, sobre as condições de
detenção e sobre as principais concepções das diferentes correntes ideo-
lógicas.
~
109 ,.,l
,,J

.. ,'
;i CHARLES BETTELHEIM
,l
L
' Embora os «desviacionistas» do partido já sejam acusados de
«agentes)) dos inimigos de classe, são, no entanto, considerados
como sendo-o «objectivamente»; não são, por isso, tratados como
•:
elementos «Conscientemente hostis>> e «a soldo» do inimigo, o que
acontecerá mais tarde.
Nem por isso deixa de verificar-se uma viragem muito impor-
tante em 1929, a qual se acentua em 1930. Até Junho de 1930,
ainda se encontram na imprensa traços dos protestos de certos
·quadros, em particular daqueles que não aceitam ser acusados
por Estaline e pelo BP de não terem aplicado correctamente a
linha do partido durante o Inverno de 1929-1930, e de se terem
deixado levar pela «vertigem do sucesso)) '', alguns destes quadros
chegam a pôr em causa o conteúdo das directivas dadas anterior-
mente pelo CC (que os incitavam a agir com uma brutalidade
que depois lhes será censurada). Os outros vão até mais longe,
deixando entender que as medidas de «retirada)) decididas em
Fevereiro-Março de 1930 têm carácter «direitista))". No fim de
Maio, um editorial da Pravda põe praticamente termo a tais
tomadas de posição, declarando constituírem elas uma tentativa
que visa «desacreditar a direcção Ieninista do partido)) 14 •
Não obstante, ainda se vêm manifestar abertamente outros
desacordos com a política seguida pela direcção do partido. É assim
que, durante a preparação do XVI Congresso, são oficialmente
publicadas «folhas de discussão» que põem em causa o que se
convencionou chamar a «linha geral>>. A 28 de Junho de 1930,
põe-se brutalmente termo à discussão: quando aparece na Pravda
o que parece bem ter sido a última crítica aberta dirigida ao CC.
Nesta época, Trotski constata que a direcção do partido estabelece
o princípio da sua «infalibilidade» 15•

SECÇÃO II

O «caso» Lomanidzé e Syrstov


...
É, no entanto, muito diferente a condenação oficial de toda
a crítica e a ausência efectiva de oposição às decisões do grupo

" Cf. o vol. 2 da presente obra.


13
Cf. R. W. Davies, Socia/ist Offensive: The Collectivisation of So-
viet Agriculture 1929-1930, Londres, Macmillan, 1979, pp. 319-323.
" Cf. Pravda, de 27 de Maio de 1930, cit. em ibid., p. 323.
" Writings of Léon Trotsky (1930), cit. em ibid., p. 328.

110
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

dirigente e à sua linha política. Próximo do fim de 1930, uma


das manifestações desta oposição é constituída pelo «caso»
Lomanidzé e Syrstov, nome dos seus protagonistas 10 , então, res-
pectivamente, 1. o secretário do Comité transcaucasiano do par-
tido e membro suplente do BP. Ambos são objecto de sanções
em Dezembro de 1930 por motivos que parecem ser essencial-
mente os seguintes:
Em Outubro de 1930, Syrstov pronuncia um discurso (não
autorizado pelo BB) no qual -por ocasião da discussão do plano
económico de 1930-1931- recomenda prudência no prossegui-
mento da colectivização e se mostra céptico relativamente aos
planos de mecanização e de criação animal (que, efectivamente,
não serão realizados) 17 • De acordo com outra versão, Syrstov
- até então muito próximo de Estaline- teria intervido brutal-
mente contra este numa sessão do BP; teria também tido, pelo
menos, uma reunião secreta com Lomanidzé 1'8 •
Por outro lado, nesse mesmo Outono de 1930 (numa data
que é impossível precisar com as informações actualmente dis-
poníveis), numa intervenção perante o Comité do partido da
Transcaucásia, embora apoiando a «linha geral>}, Lomanidzé for-
mula uma série de «reservas» que reaparecem numa declaração
aprovada por aquele Comité. A declaração denuncia a atitude
«senhorial-feudal perante os interesses dos operários e dos cam-
poneses» que prevalece nos Sovietes da Transcaucásia, a maior
parte dos quais são acusados de mais não serem do que orga-
nismos policiais e de tributação. Além disso, argumentando com

,. Lomanidzé (1898-1934) é membro do partido desde 1917. Ocupa


rapidamente funções importantes. Em 1927, é um dos representantes do
Komintern em Cantão. no momento da insurreição e, em Fevereiro de
1928, é censurado pelo CE da IC pelo fracasso desta última. Após ter sido
sancionado em 1936 pelas suas críticas ao grupo dirigente, reaparece no
XVII Congresso do partido, em 1934, mas em Dezembro é compelido ao
suicídio. S. I. Syrstov (1893-1938), membro do partido desde 1913, exerceu
numerosas funções. Em Maio de 1929, torna-se presidente do Sovnarkom
da RSFSR, em substituição de Rykov. Em Julho 1930, a seguir ao XVI
Congresso, é eleito membro suplente do BP. A seguir às suas decla-
rações de Outubro de 1930, é excluído do BP e do CC. mas continua a
ocupar, pelo menos até 1936, funções de direcção administrativa relati-
vamente importantes. «Desaparece» durante os expurgas, sendo então
acusado de «conspiração» (cf. L. Schapiro, The Communist Party ... ,
ob. cit., pp. 395-396 e 401).
11
Só mdirectamente se conhece o texto deste discurso, através das
críticas que lhe são feitas (ver o hvro citado de R. W. Davies sobre a
colectivização, pp. 375-376).
" Cf. Cahzers Léon Trotsky, Diffusion EDI, 1." trimestre, 1980,
pp. 11-12.

111
CHARLES BETTELHEIM
,,
•·'
o carácter não plenamente socialista dos kolkhozes, Lomanidzé
põe em causa a afirmação oficial segundo a qual o país entrou
no «período do socialismo>> 19•
Estas declarações e os contactos e conversações que Syrstov
e Lomanidzé teriam tido com outros membros do partido são
apresentados como uma «conspiração», o que dá origem a uma
intensa campanha ideológica 20 • A questão termina pela expulsão
do Syrstov e Lomanidzé dos organismos dirigentes de que eram
membros '', em particular do CC.
Do outro ponto de vista das condições de funcionamento do
partido, esta questão marca uma data, já que -pela primeira
vez- membros do CC dele são excluídos não em reunião ple-
nária (isto é, por um corpo relativamente numeroso e único habi-
.. litado pelos estatutos a efectuar exclusões) mas com violação dos
f estatutos, numa sessão conjunta do BP e do CC (quer dizer, por
um grupo restrito de altos dirigentes) 22 • Pouco antes da realização
desta sessão, a 20 de Novembro de 1930, havia sido publicada na
'•, Pru:vda uma «autocrítica» de Boukharine; esta «autocrítica>> com-
,· porta um ataque contra Syrstov e Lomanidzé, e praticamente
I serve de prelúdio à expulsão de Rykov do BP (em Dezembro
de 1930) e à substituição por Molotov à testa do Sovnarkom da
URSS. Todavia, no fim de 1930, o secretário-geral ainda não está
apto a tratar como «inimigos de classe» aqueles que não se dobram
silenciosamente à sua autoridade. Ainda menos o estará no
decurso dos três anos seguintes, durante os quais é obrigado a
bater em retirada; tomará a desforra a partir de Dezembro de
1934.

19
Estas formulações são só conhecidas por citações que delas são
feitas em textos que as atacam (cf. R. W. Davies, ob cit., p. 376).
" Combina-se esta campanha com outra, conduzida, a partir de
Setembro de 1930, contra numerosos especialistas que haviam ocupado
funções Importantes no Gosplan, no Comissariado para a Agricultura, no
Comissariado para o Comércio, etc. Entre eles, figuram personalidades
como os economistas Chayanov, Kondratiev, Bazarov e Groman. A im-
prensa denuncia a participação da maior parte destes especialistas em
<<Organizações contra-revolucionárias» e em «actos de sabotagem» do
abastecimento. No decurso dos processos que ocorrem ulteriormente,
alguns fazem longas «confissões» e são acusados de serem «organizado-
res da fome e agentes do imperialismo».
" Outros membros do partido, acusados de terem estado em con-
tacto com Syrstov e Lomanidzê e de participação na «connspiração•
destes sofrem também diversas sanções. Mas, nessa época ainda se
não trata de sanções penais. Lomanidzê, com efeito, é nomeado secretário
do partido em Magnitogorsk e, como se sabe, reaparece em 1934 no
XVII Congresso do partido.
" Cf. R. W. Davies, ob cit., p. 377.

112
-,
!

CAPITULO ill
A «RETIRADA» DOS ANOS 1931 A 1934

Os anos 1931 a 1934 são caracterizados pelo acumular de


numerosos processos, alguns dos quais prosseguem para além de
1934, ao passo que outros mudarão de forma ou serão brutalmente
interrompidos.

SEOÇÃO I

A subida aberta do conservantismo

O que primeiro se manifesta é a ascensão aberta do conser- }


vantismo que se afirma tanto na produção como no domínio
literário e artístico. Um aspecto particularmente visível desta
ascensão é o abandono da «revolução cultural».

1. O abandono da «revolução cnltural» na produção

O prelúdio ao abandono da «revolução cultural» na produção


é uma decisão tomada pelo CC em Outubro de 1930; é então
proclamada uma moratória de dois anos que põe termo à pro-
moção a postos administrativos de operários qualificados. Outra
decisão, tomada pelo CC em Março de 1931, reforça a precedente:
proíbe qualquer nova mobilização de operários com finalidades
de campanha política e exige que sejam reenviados à produção
aqueles que haviam sido promovidos a postos administrativos no
decurso dos seis últimos meses. A mesma decisão proíbe às em-
presas que deixem tempo livre durante o dia de trabalho para
participar em acções estranhas à produção, compreendendo as .-::
,j'

Est. Doe. 220-8 113


CHARLES BETTELHEIM

actividades de educação'. Desde Maio de 1931, 31 000 trabalha-


dores são reenviados para a produção, resultado este considerado
como muito insuficiente pelo CC que lança uma séria chamada
à ordem. Em Junho, o VSNKh (Conselho Superior da Economia
Nacional) da URSS anula decretos precedentes que concediam
uma redução de duas horas por dia da duração do trabalho aos
operários que estudam e reduziam o encargo de trabalho daqueles
que preparam os exames de admissão aos institutos superiores
técnicos (VTUZ) 2 •
1932 é marcado não somente pela redução brutal (conduzindo
praticamente ao abandono) do recrutamento de operários quali-
ficados chamados a estudar nos VUZ e nos VTUZ •, mas tam-
bém por uma reforma profunda das condições de funcionamento
e dos programas destas instituições. É atribuído mais tempo aos
'' ensinos teóricos e a todos são impostos severos exames de adiiiis-
são; as «quotas de classe» favorecendo os estudantes de origem
operária são praticamente suprimidas '. Por último, desaparece
um número bastante grande de VUZ e de VTUZ •.
.•
~:
't
Outras medidas tornam igualmente mais difícil o acesso de
operários ao ensino superior, já que o financiamento dos seus
estudos deve ser suportado em 50 '% pelas empresas nas quais
trabalham e em 50% pelos sindicatos. Ora, nenhum auxílio é
dado aos sindicatos e às empresas para fazerem face a esta despesa.

1
Cf. Spravotchmk partiinogo rabotnika (mais adiante SPR), n.' 8,
pp. 385 e segs. É neste texto que é feita referência à decisão de Outubro de
1930 (cf. S. FJtzpatrick, Education and Social Mobility in the Soviet Union,
1921-1934, ob. cit., p. 212, n."' 5 e 6, p. 315. Ver também K. E. Bailes,
Technology and Society under Lenine and Sta/ine, ob. cit., onde se acha
uma interpretação desta decisão que diverge da que é proposta por
Fitzpatrick).
' A decisão do VSNKh é assinada por Kossiov e está datada de 25
de Junho de 1931 (cf. S. Fitzpatnck, Education ... , ob. cit., p. 212 e n." 6
e 7, p. 315).
' Os VUZ e os VTUZ são institutos de ensino superior, tendo os
primeiros carácter menos técnico do que os segundos.
4
Cf. S. Fitzpatrick, Education ... , ob. cit., pp. 213 e 218-219; ver
também Za lndoustrializatiou (Zl), 2 de Setembro de 1931; e Vetchernaiá
Moskva (VM), 23 de Junho e 10 de Agosto de 1932,
' O número total de VUZ e de VTUZ cai de 719 em 1932-1933 para
594 em 1933-1934. O número dos seus estudantes cai de 233 000 para
188 000. Em 1934 somente 40% dos alunos destes estabelecimentos pro-
vêm das faculdad~s operárias (rabfaks); em 1938, esta proporção cai para
22,9'% (cf. ibid., n.'' 55 a 57, p. 318). S. Fitzpatrick cita principalmente
Kulturnoe Stroitelstvo, Moscovo, 1940; e N. de WJtt, Eáucation and PtO-
fessional Employment in the URSS, Washington D. C., 1561.

114
-.- ~ ~ ..' ~.

AS LUTAS DE CLASSES NA URSS- IV

No Outono de 1931, os fundos de que eles dispunham para a


promoção operária estão praticamente esgotados •.
De resto, são cada vez menos os operários dispostos a ingressar
na via da promoção porque as empresas não lhes deixam tempo
livre para se prepararem, uma vez que se encontram sobrecarre-
gadas com horas suplementares e têm dificuldades em cumprir
as suas normas de produção. Além disso, as bolsas que lhes são
pagas (seja pelo Estado, seja pelas empresas e pelos sindicatos)
são cada vez mais fracas face ao aumento verificado no custo
de vida e nos salários nominais 7 • Para mais, a partir do Outono
de 1931, os operários são geralmente dirigidos não para cursos
a tempo pleno mas, de preferência, para cursos nocturnos.
Acrescentemos que, em 1935, o abandono das quotas dando
prioridade à admissão dos operários nos VUZ e VTUZ é total
e que, desde 1932, o sistema das bolsas é modificado de forma
a que o montante pago a cada estudante já não depende da sua
origem social e dos seus recursos mas das suas notas •, o que dá
vantagem aos estudantes saídos de camadas privilegiadas, melhor
preparados para as exigências universitárias •.
A partir de 1931, assiste-se, portanto, claramente ao abandono
da «revolução cultural» na produção. K. E. Bailes fala a este
propósito de uma «retirada geral» marcada pela abolição parcial
e, depois, total das medidas que favoreciam a entrada dos operários
no ensino técnico superior. Nota que, doravante, o acento é posto
sobre a «qualidade» dos novos técnicos, depois, sobre a sua quan-
tidade 10 • S. Fitzpatrick qualifica este período (1931-1934) como
sendo o da «restauração da ordem» 11 •

7
' Cf. S. Fitzpatrick, Education ... , ob. cit., pp. 212 e 213, e n.• 8.
A situação agrava-se ainda mais em 1933 e 1934 com a fome. Nesse
momento, os estudantes mais pobres ou não tendo relações com os meios
privilegiados são frequentemente obngados a abandonar os estudos supe-
riores; é o caso particular da Ucrânia onde a fome se manifesta dura-
mente. Nesta República, os estudantes têm de despender, em 1933, 72
rublo' por mês para a sua alimentação quando as suas bolsas vão de 55 ~ '
!
a 90 rublos. Além disso, a corrupção nas cantinas é tal que as rações
recebidas pelos estudantes são muito insuficientes (informações provindas
A
de documentos de arquivo citados por Vladimir F. Bachevói, «Deiatelnost ~:J
K P (b) UKr v oblasti podgotovki kadrov ... v period vtoroi piatilekti»,
Leninegrado, 1966 (Biblioteca Lenine, de Moscovo), p. 160, citado de
Kendall E. Bailes, Technology and Society under Lenine and Stalin, ob.
cit., p. 247).
• Cf. Sobranie Zakonov (SZ), 19 de Julho de 1932.
• Cf. K. Bailes, Technology ... , ob. cit., p. 249.
10
Ibid., pp. 173 e segs.
u S. Fitzpatrick, Education .. . , ob. cit., p. 209.

115
•••« n,-";-:"'" ,,- - ' ... -
r "i-r

CHARLES BETTELHEIM
r
f As medidas acabadas de descrever são oficialmente justificadas
pelas necessidades da produção. Desempenham estas, sem dúvida,
certo papel no abandono da política anterior mas não o explicam
inteiramente, já que a política doravante seguida constitui uma
verdadeira viragem e comporta outros aspectos que dizem res-
peito à literatura e à arte.

2. O abandono da ~revolu!:ão <'ultural» na literatura e na arte

A partir de 1928, tinha-se assistido ao desenvolvimento de


simulacros de literatura e de arte «proletárias» que, aliás, serviram
sobretudo para expandir um verdadeiro terrorismo intelectual.
Em 1932, tais simulacros cessam. Assim, a 23 de Abril de 1932,
é tomada a decisão de dissolver o RAPP e de organizar a União
dos Escritores, organismo muito mais «ecléctico», aberto aos
representantes de uma literatura muito clássica e tradicional que
nele ocupam até postos importantes. Uma das condições para se
pertencer à nova União é uma suficiente «ortodoxia» política.
De todas as maneiras, o partido controla o acesso aos postos da
nova associação que realiza o seu primeiro congresso de 17 de
Abril a 1 de Setembro de 1934 ' 2 • Doravante, é esta União -com
gostos «burgueses», mas atenta à necessidade de prestar home-
nagem ao partido e aos trabalhadores e quadros de «vanguarda»-
que (com auxílio da censura e da secção ideológica do CC do
partido) vela pelo conformismo literário, pela produção de obras
edificantes, moldadas pelo «realismo socialista», pela apologia da
ordem existente e, quando necessário, pela glorificação do pas-
sado russo 13 •
Assiste-se, pouco a pouco, ao regresso à cena de antigos inte-
lectuais que haviam sido expulsos dos seus lugares ou exilados
para regiões afastadas de Moscovo e Leninegrado. Este regresso
observa-se em numerosos domínios, designadamente no que se
refere à história e às ciências físicas. Instituições tão tradicionais
como a ópera de Moscovo (o Bolchoi) e a Academia das Ciências
reencontram o seu papel 14 , o seu estilo e os seus hábitos.
O abandono sem frases nem análises da «revolução cultural»
comprova o carácter largamente artificial e instrumental do

" Cf. Annie Cohen-Sola!, Paul Nizan, Paris, Grasset, 1980, p. 170;
e Journal de Moscou, de 16 de Maio e de 18 de Agosto de 1934.
" Cf. S. Fitzpatrick, «Culture and Politics under Stalin: a Reapprai-
sai», in Slavic Review, Junho de 1976, pp. 211 e segs.
14
Cf. S. Fitzpatrick, Cultur'al Revolution in Russia, ob. cit., pp. 37-38.

116

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' -... ' ~ ....... '_-'"t, ' - - ......... ~..~J;.i'n" , ...

''~ ..,

AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

movimento. ;É este lançado no fim dos anos 20 pela fracção diri-


gente do partido para acompanhar a «revolução por cima» que
se desenvolve nos campos. Visa obrigar a «acertar o passo» de
numerosos antigos quadros e intelectuais, a fazer «subir» alguns
novos quadros operários e a acostumar os escritores e os artistas
a uma intolerância que lhes era desconhecida na época da NEP. ;
_,~
Logo que estes objectivos são atingidos, a «revolução cultural»
torna-se incomodativa porque submete os ·quadros a pressões '
que só o partido pretende exercer e estimula tendências artísticas
que não são as da nova classe dominante cujas aspirações e
cujos gostos são fundamentalmente conservadores e que deseja
reencontrar a atmosfera cultural anterior à renovação de 1917.
É neste clima -que traduz uma transformação certa da con-
juntura política e das relações de força- que o grupo dirigente
toma diversas medidas que visam consolidar a situação dos qua-
dros e multiplicar os seus privilégios.

SECÇÃO II

A consolidação da situa~ão dos quadros


e a multiplica!)ão dos seus privilégios

O discurso pronunciado por Estaline a 23 de Junho de 1931'"


constitui, de algum modo, «o anúncio oficial» da viragem que
então se verifica relativamente aos quadros, embora a política
preconizada surja como uma simples resposta às exigências de
uma situação nova e esteja ligada à crítica dos «desvios» de que
são culpados outros que não a direcção do partido.
No que se refere aos quadros, um primeiro tema deste discurso
deve reter particularmente a atenção: o da solicitude que convém
mostrar para com «velhos intelectuais técnicos».
Este tema regressa várias vezes. É anunciado pela afirmação
de que um «novo estado de espírito» se criou «entre os velhos
intelectuais técnicos», e que é, portanto, necessário «mostrar soli-
citude», porque «seria falso e antidialéctico continuar a antiga
política sob condições novas... ». A mesma ideia é retomada na

" Trata-se de um discurso publicado sob o título: «Nova situação,


novas tarefas da edificação económica» (cf. Q. L., t. 2, pp. 505 e segs.).
Facto significativo: este discurso é pronunciado numa conferência dos
dirigentes das indústrias; são, com efeito, estes dirigentes os que, nesse ''
.~
momento são especialmente «valorizados».
117
I

.,
CHARLES BETTELHEIM

I conclusão do discurso. Esta insistência não exclui que continue


a ser exposta a ideia geral de que «a classe operária deve formar
C,
os seus próprios intelectuais técnicos da produção», mas o acento
é posto, a este respeito, pelo menos tanto sobre o papel dos

t
f
'f.
«práticos» idos directamente da fábrica como sobre o dos ope-
rários formados pelas escolas superiores, o que, na realidade,
anuncia o papel cada vez mais reduzido desta formação para os
operârios.
Um segundo tema do discurso trata da luta contra o iguali-
r tarismo que é apresentada como dizendo respeito, antes de tudo,
aos trabalhadores manuais. Estaline declara que «não se pode
',,,•• tolerar que um operário da siderurgia receba tanto como um
,,,,ç varredor» e denuncia os «niveladores [que] ... não estão de acordo
\
com esta tese» ••. Os factos não tardam a mostrar que, na rea-
lidade, a denúncia do igualitarismo deve beneficiar particular-
mente os quadros da economia e da indústria cujos rendimentos
~ são aumentados ao mesmo tempo que o são os seus poderes
' sobre os trabalhadores.
Na realidade, antes mesmo de ser pronunciado o discurso
acima citado, era aprovado um decreto secreto, datado de 10 de
Junho de 1931, que visava «melhorar as condições de vida dos
engenheiros e técnicos» e «realçar-lhes a autoridade» 17• Concede
este decreto aos engenheiros e aos técnicos um certo número de
direitos até então reservados aos operários da indústria; especifica
também que, em matéria de alojamentos, eles terão direito a um
~'
.. «suplemento de espaço». Todavia, em 1932, a maioria dos salários
ainda se situa no interior de um leque indo de 100 a 500 rublos,
e os vencimentos acima de 500 rublos são raros 18 • Neste mesmo
; ano, é tomada uma importante medida: a supressão do partmax
! (tecto dos rendimentos dos assalariados do partido) por uma deci-
'
são datada de 8 de Fevereiro de 1932 '"· Permite isto que os qua-
dros membros do partido percebam rendimentos cada vez mais
elevados, quando anteriormente aqueles salários não deviam ser
superiores, em princípio, aos de um operârio médio.
Globalmente, 1931 é o ano de uma viragem séria. Desenha-se
,,,, cada vez mais um corte entre duas políticas: a que prevalece
entre 1928 e 1931, periodo durante o qual predomina uma política
r
de aspecto «obreirista», marcada por um «igualitarismo», aliás
bastante vago, e pelo acento colocado na «promoção operária»;
.. Q. L., p. 519.
7
' Cf. VKP, 162, p. 63, citado por M. Fainsod, Smolensk à l'heure
de Staline, Paris, Fayard, 1958, pp. 352-353.
"' Cf. J. Frieman, De la Sainte Russie à l'URSS, Paris, 1938, p. 111.
•• Cf. Roy Medvedev, Le Stalinisme, ob. cit., p. 590.

118
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

e, por outro lado, a política dos anos seguintes, a partir dos quais
esta «promoção» abranda fortemente, e em que os quadros, quer ;,
sejam antigos quer novos, são objecto de uma «solicitude» que
multiplica poderes e privilégios em seu favor.
Deste modo, os quadros que têm um certo nivel de «respon-
sabilidade» formam cada vez mais nitidamente uma nova classe
de exploradores que usufrui de condições de vida mais ou menos
«burguesas», ao mesmo tempo que se estabelecem entre os seus
membros relações hierárquicas que lembram as da velha Rússia;
esta evolução acentuar-se-á na segunda metade dos anos 30.

SECÇÃO III

As resistências ao «acertar o passo» do partido

Na atmosfera de «retirada» que caracteriza o período que se


abre em 1931, o prosseguimento claro das tentativas de Estaline
para a direcção autocrática no partido depara com resistência
crescente da camada dirigente que forma a nova oligarquia que
substitui a dos velhos dirigentes bolcheviques. Uma parte destes
altos dirigentes -que, no entanto, devem largamente a sua car-
reira a Estaline- aspiram tanto mais a fazer ouvir a sua voz
quanto mais difícil é a situação económica e social (crise grave
da agricultura e do abastecimento, não realização de numerosos
objectivos dos planos, baixa dos salários reais, etc.) por eles atri-
buída, em parte, à própria política de Estaline, e tanto mais
quanto pensam poder propor medidas melhores adaptadas à situa-
ção. Fazem-se ouvir, entre 1928 e 1931, porque a sua posição
estava ainda pouco segura e eles partilhavam as ilusões de Estaline
sobre a rapidez com a qual seriam alcançados sucessos. Além
disso, a tensão extrema dos anos 1929 e 1930 não os incitava a
tomar iniciativas susceptíveis de «dividir o partido». O recuo
progressivo desta tensão é favorável ao desenvolvimento, face
à linha oficial, de um certo número de críticas e de resistências,
cujas formas de manifestação -no seio dos meios dirigentes-
são múltiplas.

1. O «caso» Rioutlne

Uma primeira manifestação significativa da resistência à linha


oficial e à autoridade que Estaline tenta concentrar nas suas mãos
119
CHARLES BETTELHEIM

é constituída pelo «caso Rioutine» '". Eclode ela no decurso do


Verão de 1932, em seguimento da redacção e da difusão, por
Rioutine, de um documento que analisa de forma crítica a linha
do partido, designadamente em relação ao campesinato. O texto
de Rioutine torna Estaline pessoalmente responsável pela adopção
e a aplicação da política camponesa e pede a sua eliminação. 21 •
Este documento (difundido nos meios dirigentes do partido e
talvez em larga escala) é «descoberto» pelo OGPU e denunciado
como constituindo uma «plataforma» de oposição. Estaline pede
a prisão e a condenação à morte de Rioutine. Se tal pedido tivesse
sido satisfeito, teria conduzido à primeira execução de um antigo
membro do partido, mas é rejeitado pelo CCC 22 • Rioutine é, no
entanto, excluído e preso. Morrerá no decurso dos expurgas de
1936-1938. Por ocasião do processo de Boukharine, em 1938, é
retrospectivamente acusado de ter preparado um «atentado ter-
rorista» contra Estaline tendo em vista «derrubar o regime
soviético» ,.
Todo este «Caso» se desenvolve numa situação extremamente
tensa onde se produzem manifestações de desespero não apenas
da população mas também de uma parte dos quadros que põem
em causa a política e os métodos do aparelho central. O deses-
pero atinge um ponto culminante no decurso do Outono de 1932,
quando a crise agrícola e a fome flagelam vastas regiões, fazem
milhões de vítimas e relegam para segundo plano as proclamações
de «vitória» que acompanham o anúncio da «realização em
quatro anos» do Plano Quinquenal.
Em 1932, a autoridade de Estaline é, portanto, contestada por
diversos quadros, não só por Rioutine mas também por outros
dirigentes, em particular os da República da Ucrânia que põem
em causa o secretário-geral. Este reage brutalmente afastando-os
dos seus postos. Nos finais de 1932, multiplicam-se as prisões e

" Do nome do seu principal protagonista, velho bolchevique, oficial


do Exército Vermelho, porta-voz da «direita» em Moscovo, em 1928.
Perde, então, todas as suas posições oficiais mas, na sequência de uma
«autocríttca», retoma por algum tempo funções oficiais.
21
Ver outros pormenores sobre esta questão no n.• 1 do 1. • trimestre
de 1980 de Cahters de Léon Trotsky, p. 14.
" Parece que Rioutine terá sido, então, defendido por Kirov e
mesmo por homens tão próximos de Estaline como Ordjonikidzé, Kouiby-
chev e Kossior; somente Kaganovitch teria apoiado o ponto de vista de
Estaline (cf. Boris I. Nicolaevski, Les Dirigentes soviétiques et la lutte
pour le pouvoir, Paris, Denoel, «Lettres nouvelles», 1969, p. 43; e R. Con-
quest, The Great Terror, Londres, Macmillan, 1968 (trad. francesa: La
Grande Terreur, Paris, Stock, 1970), p. 28.
23
Cf. as actas oficiais do processo de Boukharine (1938).

120
,. • ~ ·~· r • • ~ ~('t. ~.-':!',~ ~,'A;"','f-;'··. ~·~"

·~\
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

as deportações, mas elas atingem sobretudo os ex-opositores


de esquerda oficialmente aderentes à «linha geral>> 24 ; no con-
junto, os outros opositores são objecto de sanções relativamente
pouco severas e não são tratados como «agentes dos inimigos do
povo».
Em Novembro de 1932, sobem as tensões no próprio vértice
do partido, o que favorece a aproximação dos diversos grupos de
opositores 25 • Estas tensões atingem tal grau que -segundo infor-
mações filtradas desde essa época mas que são inverificáveis-
Estaline «apresenta a sua demisão ao BP, que não quer ou não
ousa aceitá-la» 26 • Seja qual for a verdade destes boatos, a sua
existência revela que a oposição politica de Estaline era, então,
relativamente incerta.
Na realidade, as resistências com as quais o secretário-geral
se defronta (e que se manifestarão sob outra forma em 1934)
emanam, ao mesmo tempo, de numerosos operários e camponeses
descontentes, de quadros superiores, como aqueles de que se falou,
e mesmo de altos dirigentes. Entre estes últimos, figura Ordjoni-
kidzé 27 que se torna o defensor de uma linha de industrialização
muito mais «moderada» e o «protector» dos engenheiros e quadros
sobre os quais Estaline e os que o rodeiam querem fazer recair

" Cf. V. Serge, Mémoires ... , ob. cit., pp. 293-294.


" Uma carta não datada (mas, ao que parece, escrita a tinta simpá-
tica e redigida entre Setembro e Novembro de 1932), enviada por Sedov, .,
filho de Trotski, a seu pai, indica que um «bloco das oposições» se forma
nessa época. Este bloco -que visa essencialmente a troca de informa-
ções - incluía Lomanidzé, antigos trotskistas que tinham aderido à «linha
de Estaline», «direitistas», «<inovievistas» e membros do aparelho, isto é,
quadros regionais e nacionais. P. Broué fala desta carta e da resposta
de Trotski num artigo aparecido no n.• 1 do J.• trimestre de 1980 dos
Cahiers de Léon Trotsky, artigo redigido após consulta aos arquivos de ..~
Trotski que se encontram em Harvard e uma parte dos quais só se tornou
acessível ao público desde o princípio de 1980.
" Cf. V. Serge, Portrait de Staline (edição francesa), pp. 94-95, citado
por I. Deutscher, em Staline, Paris, 1953, p. 265. É nesta época que a
mulher de Estaline, Nadiejda Allilouyeva, se suicida, porque já não pode
suportar o que sabe das condições aterronzadoras que reinam no país.
21
Gregório Ordjonikidzé, dito Sergo, nasceu em 1886 na Geórgia.
Adere à fracção bolchevique em 1903. Está muito ligado ao trabalho 1~\

clandestmo de Estaline. Após ter sido enviado para a escola do partido


em Longjumeau, regressa à Rússia. É eleito para o CC desde o Con-
gresso de Praga. Torna-se membro suplente do BP em 1926 e, depois,
presidente da CCC que conduz o inquérito contra a «oposição unificada».
De novo membro suplente do BP, em Outubro de 1930, torna-se titular
deste, em 1934. É comissário para a Indústria Pesada, a partir de 1928.
É constrangido ao suicídio em 1937, quando o seu irmão, igualmente
um velho bolchevique, é executado após o segundo grande processo.

121
CHARLES BETTELHEIM

a responsabilidade por todas as dificuldades. Esta resistência no


vértice manifesta-se por várias vezes, e surge nitidamente por
ocasião do XVII Congresso do partido (1934); Ordjonikidzé nela
participa, como havia feito desde o XVI Congresso.

2. A resistência de OrdjonikJdzé 28 a diversos aspectos


da «linha industrial» do «Gesenl<»>, suas condições e seus efeitos

Na época do XVI Congresso, em Junho-Julho de 1930,


Ordjonikidzé, então presidente da CCC, e que acaba de efectuar
numerosos inquéritos na província, faz circular entre os delegados
ao Congresso, em número limitado de exemplares, um texto
muito crítico sobre a situação na indústria dependente do VSNKh.
Este texto dá conta de conversas havidas com antigos engenheiros
..
t e técnicos e evidencia a inexperiência dos quadros comunistas
que dirigem a indústria, em particular dos recentemente promo-
vidos a postos directivos"". A situação reinante na indústria e
o relatório de Ordjonikidzé ao XVI Congresso abalam a posição
de Kouibytchev, então presidente do VSNKh. No Outono de 1930,
este último é afastado dessa função su e substituído por Ordjoni-
kidzé que conserva o lugar até à sua morte, em 1937.
Em 1931, Ordjonikidzé manifesta de novo, por várias vezes,
oposição à linha favorável a ritmos de industrialização muito
elevados (de facto, irrealizâveis). Ao examinar numerosos textos
e declarações, vê-se que se desenvolve um conflito entre aqueles
que, como Molotov, querem manter a linha de planos extrema-
mente «ambiciosos)) -mas que, na realidade dos factos, preju-
dicam uma progressão regular e harmoniosa da produção, ao
mesmo tempo que colocam em situação difícil os directores e
os quadros das empresas, e até os quadros políticos locais e

" Encontra-se uma boa exposição das posições tomadas por Ordjo-
nikidzé sobre a política industrial e os quadros no livro de K. E. Bailes,
Technology ... , ob. cit. Ver também um testemunho interessante das ati-
tudes de Ordjnonikidzé e da situação da indústria no livro de V. A.
Kravchenko, J'ai choisi la liberté, Paris, :&litions Self, 1947, reed. O.
Orban, 1980.
" Cf. Materialy k otchetou Ts K K V K P (b) XVI Sezdou VKP (b),
Moscovo, 1930; extractos deste texto são citados por S. Fitzpatrick em
«Stalin and the Making ... », art. cit., pp. 388-389. Ver também a obra jâ
citada de K. E. Bailes, Technology ... , ob. cit.
" Nomeado para dirigir o Gosplan, tem o encargo de elaborar mas
não de aplicar os planos. Membro do partido desde 1904 (Kouibytchev
nasceu em 1888), entra no BP, em 1927. Morre em 1935 (julga-se que
os acusados do «processo Boukharine» o tenham assassinado).

122
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS- IV

regionais, acusados de não terem assegurado a realização dos


planos- e aqueles que, como Ordjonikidzé, querem adoptar
planos mais «realistas». O comissário para a Indústria Pesada
pode apoiar-se, para defender a sua «linha industrial», num
grande número de quadros e dirigentes económicos; aliás, tam-
bém quer ver de regresso à produção engenheiros e técnicos
afastados dos seus postos durante os anos precedentes, porque
afirma ser indispensável a presença deles. Vê-se que tal regresso
ocorre, pouco a pouco, a partir de 1931.
Os sinais de um conflito entre duas «linhas industriais» (que
conduz, a partir de 1931, à vitória de facto daqueles que se opõem
a planos de «superindustrialização») já aparecem no fim de 1930.
Assim, enquanto Molotov declara, a seguir ao processo do pr~
tenso «partido industrial», que a lição do processo de Chakthy
foi insuficiente", Ordjonikidzé declara, pelo contrário, por ocasião
da primeira conferência pau-soviética dos dirigentes industriais,
reunida no princípio de 1931, que esse processo constitui uma
garantia virtual da lealdade dos «especialistas burgueses» 32 • 'i
J
Durante toda a Primavera de 1931, e no princípio do Verão, f
o jornal do VSNKh (tornado Comissariado para a Indústria
Pesada), Za Indoustrializatsion (Zl}, publica uma série de artigos
que pedem que sejam «corrigidas as distorções da linha do partido
relativamente aos especialistas» 33 •
Por último, na ocasião da conferência dos dirigentes da indús-
tria, o já citado discurso que Estaline pronuncia a 23 de Junho de
1931 marca, como se sabe, o princípio de uma «viragem» que apro-
xima a política oficial da preconizada por Ordjonikidzé.
Esta «viragem» é o sinal de um relativo enfraquecimento das
posições de Estaline e dos seus partidários, o que favorece a expres-
são (no seio dos meios dirigentes) de posições mais «moderadas»,
do que as do Gensek e do seu grupo. A evolução que assim ocorre
é nitidamente perceptível no princípio de 1933, quando se faz sen-
tir um sério descontentamento popular e uma relativa détente da
política de represão de massa 34 •
Registam-se simultaneamente modificações na política seguida
pelo grupo dirigente relativamente ao partido e aos seus quadros.

31
Cf. o discurso de Molotov no Plenário de Dezembro de 1930 em
V barbe Za sotsialism, Retchi i Stati, 2. • edição, Moscovo, 1935, pp. 63-64.
" Cf. ZI, 2 de Fevereiro de 1931, p. 2. Nesta conferência parti-
cipam numerosos «especialistas burgueses». Ê-lhes mesmo concedido lugar
de honra.
" Cf. ZI, de 12 de Março, 26 de Abril e 4 de Junho de 1931, entre
outros.
"' Ver o t. 1 do presente volume, Os Dominados.

123
CHARLES BETTELHEIM

Por um lado, no início de 1933 são tomadas medidas para redu-


zir o peso dos recém-chegados no partido. Assim, em virtude de
uma resolução do Plenário adoptada a 12 de Janeiro de 1933, e
de uma resolução de 28 de Abril, ê decidido proceder a um sanea-
mento do partido (que elimina, sobretudo, os elementos recrutados
à pressa após 1929) ••.
Por outro lado, a direcção do partido - a braços com uma
\ situação tensa e sob a pressão de elementos mais «moderados»,
'-' como Ordjonikidzê- faz alguns gestos de reconciliação com ex-
-opositores, antes de mais com os que pertenciam à «direita».
Vêem-se, então, reaparecer na cena política homens que dela
haviam sido afastados. !É assim que, pela primeira vez desde há
três anos, a imprensa central publica artigos assinados por Boukha-
rine, designadamente no Izvestia, de 1 de Maio, na Pravda, de
4 de Agosto, e no PK, de Julho-Agosto, todos de 1933. O tema
principal destes artigos é a necessidade de pôr fim às tensões da
«revolução por cima» e de inaugurar um «novo período».

3 A nova situação e o XVII Congresso

Na nova situação de 1933-1934, um certo número de quadros


que até então haviam sido executores zelosos da «linha gerab>
tomam distância relativamente a esta última. Uma corrente favo-
rável a uma política que limite as tensões económicas e sociais e o
recurso à repressão emerge, portanto, com muita prudência, no
próprio seio dos quadros dirigentes.
Devido às condenações pronunciadas contra qualquer grupo
susceptível de ser qualificado de «fracção», esta corrente não pa-
rece dispor de nenhuma org-anização própria e não tem «porta-voz»
oficial. No entanto, em 1933-1934, Kirov •• desempenha objectiva-
mente o papel de «representante» do que pode considerar-se como
sendo «uma linha de maior moderação». !Kirov, ê necessário lem-
brá-lo, nunca foi um opositor. Pelo contrário, tem atrás de si um
passado de partidário fiel do secretário-geral. Estaline, de resto

" Cf. KPSS ... , pp. 741 e segs_; e H. Carrêre d'Encausse. Staline,
ob. cit., p. 43. A seguir a este saneamento, que decorre entre 1 de Junho
e 30 de Novembro de 1933, 22% dos membros do partido são excluídos,
mas os efectivos reduzem-se em 33 q'o, sem dúvida por motivo de nume-
rosas saídas voluntárias (cf. ibid., p. 43) .
., Kirov nasceu em 1886, pertence ao aparelho do partido desde 1910
,, e é o organizador no Exército Vermelho durante a guerra civil. Em 1927,
.',, após a derrota da nova oposição, torna-se L" secretário em Leninegrado
(a maior região industrial do país} e membro suplente do BP.

124
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

havia-o colocado no posto de secretário de Leninegrado para «lim-


par» a organização da cidade e da região dos partidários de Zino-
viev, e para aplicar ali, com mão de ferro, as medidas que exigia
a «colectivização por cima», missão a que se consagra com energia
e sucesso.
Se Kirov é objectivamente o «representante» de uma linha
mais <<moderada», é porque verifica a situação caótica em que a
indústria se encontra mergulhada pela adopção de planos dema-
siado «ambiciosos» e irrealistas; é também porque é «impelido para
a frente» por quadros fartos de estar constantemente na brecha ·
perante a resistência operária e camponesa, e que desejam, por-
tanto, uma détente. Em todo o caso, em 1934, quando se abre o
XVII Congresso, Kirov faz figura de «n. o 2» do partido, sem
que em nenhum momento haja «confrontações» abertas: todas as
lutas são conduzidas em nome da «unidade» do partido e do «rea-
grupamento» das suas forças.
A maneira como decorre o XVII Congresso merece atenção.
Com efeito, é o último onde consegue aparecer à luz do dia, e
mesmo afirmar-se, uma linha que não é a de Estaline, embora
isto se faça a coberto de homenagens ditirâmbicas a este último.
O Congresso apresenta-se como sendo o da <<Unidade>>. Com
efeito, quando já numerosos opositores povoam as prisões, o Con-
gresso dá o espectáculo da adesão de alguns dirigentes das antigas
oposições. É assim que, após terem sido postos à margem durante
anos, alguns destes aparecem na tribuna do Congresso. Tal é o
caso de Boukharine ", Rykov e Tomski (no que se refere a anti-
gos dirigentes da «direita», de Zinoviev, Kamenev 38 , Piatakov e
Préobrajenski (representantes ou dirigentes da antiga «oposição
de esquerda») e mesmo de Lomanidzé. Os antigos opositores fazem
uma «autocritica moderada» referindo-se a Estaline. Este afirma
perante o Congresso que o Ieninismo alcançou uma «vitória com-

" A intervenção de Boukharine no XVII Congresso é longamente


aplaudida, embora comporte observações indirectamente críticas relativa-
mente à política estrangeira então seguida (cf. Pravda, de 31 de Janeiro
de 1934, p. 2). De 1930 a 1933, Boukhanne tinha colaborado nos traba-
lhos de direcção de Ordjonikidzé no VSNKh e no Comissariado para a
Indústria Pesada. Em 1932, é membro do Presidium da comissão encarre-
gada de elaborar o 2. • Plano Quinquenal (o que é notável para alguém
cujas concepções haviam sido classificadas como «estranhas» por Estaline).
Em 1934, torna-se chefe de redacção de Izvestia, o quotidiano oficial
do governo (cf. S. Cohen, Boukharine, ob. cit., pp. 354-355). Desempe-
nhará papel essencial na redacção da Constituição de 1036, antes de ser
preso e executado.
.. Ambos haviam sido momentaneamente excluídos do partido no
fim de Outubro de 1932 por não terem denunciado Rioutine.

125

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r CHARLES BETTELHEIM
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,. pleta» e que todas as oposições estão vencidas e dispersas ••. O Con-
gresso adopta formalmente uma linha política que leva muitos a
• esperarem o abandono das medidas de repressão maciça e brutal
aplicadas desde há anos e a passagem a um esforço «razoável» de
industrialização. Por isso, após o Congresso, opositores que ainda
não haviam «aderido» fazem declarações de concordância e são
reintegrados no aparelho do partido e do Estado. Tal é o caso de
Christian Rakovski, antigo porta-voz da oposição de «esquerda>>,
e de numerosos outros membros desta oposição libertados da prisão
ou da deportação e que aceitam a linha oficialmente adoptada
pelo Congresso 40 •
Esta linha constitui, na realidade, uma derrota para Estaline,
Molotov, Kaganovitch e seus partidários, e uma vitória para Or-
djonikidzé e Kirov que praticamente agiram combinados •"_
As divergências entre Molotov e Ordjonikidzé sobre a política
industrial apareceram abertamente perante o Congresso.
Assim, no relatório que apresenta, Molotov defende uma linha
«superindustrial»; propõe uma taxa anual média de quase 19%
durante o 2. 0 Plano Quinquenal 42 e aumentos de produção muito
elevados para numerosos ramos industriais 43 •
Estas propostas suscitam a oposição de Ordjonikidzé. Com
efeito, contrariamente a todos os usos, Ordjonikidzé intervém no
decorrer do XVII Congresso, para sugerir que a taxa de cresci-
mento prevista para a produção industrial durante o 2." Plano Quin-
quenal fosse de 16,5% ••. Pede também que sejam reduzidos os
«objectivos» de produção de um certo número de indústrias, em
particular a fundição, o aço e a electricidade 45 •

" Cf. Estaline, W, t. 13, pp. 353 e segs, XVII Sezd VKP (b),
Steniotchet, Moscovo, 1934.
40
Ver Francis Conte, Christian Rakovski (1873-1941)- Essais de
biographie politique. tese, Bordeus-Ill (ref. Bibliotheque de la Maison
des Sciences de l'homme: TH 545).
41
Uma acção comum semelhante parece ter-se realizado no BP,
desde há pelo menos três anos, quando Estaline já não podia contar com
uma maioria constante no organismo e devia entender-se com Kirov e
Ordjonikidzé, do que provavelmente provinha o carácter ambíguo e con-
tradltóno de certas intervenções de Estaline entre 1931 e o fim de 1934
(data do assassinato de Kuov). Não se se trata aqui senão de uma hipó-
tese; contmuando inacessíveis os debates no seio do BP, numerosos índices
tendentes a confirmar a hipótese são referidos por diversos autores,
designadamente por K. Bailes, em Technology ... , ob. cit., pp. 275 e segs.
" Cf. XVII Sezd VKP (b), Moscovo, 1934, p. 354.
" Cf. Em ibid., o relatório de Molotov e o de Kouibychev.
44
XVII Sezd ... , ob. cit., p. 435.
.. ~ lbid., pp. 435-436.

126
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

Ao intervir desta forma, Ordjonikidzé tem, evidentemente, o


apoio de uma parte importante da alta direcção do partido. Tra-
duz a opinião de dirigentes de empresas, de engenheiros e de
técnicos em luta contra inúmeras dificuldades, porque vêem serem-
-lhes atribuídas tarefas irrealizáveis. Assiste-se, pois, a uma con-
junção de forças representando uma parte dos dirigentes do par-
tido e dos quadros industriais (essencialmente, antigos quadros do
partido responsáveis pela direcção de empresas e antigos enge-
nheiros e técnicos). Estas forças opõem-se às do núcleo do grupo
dirigente, constituído principalmente por Estaline e Molotov, que
têm o apoio de uma parte do aparelho do partido mas, sem dúvida,
não o da maioria.
A intervenção de Ordjonikidzé é tanto mais significativa
quanto Kouibychev (presidente do Gosplan) apresentou o projecto
do 2. Plano Quinquenal como sendo devido essencialmente a Esta-
0

line, cujos «géniO>} e «brilhante clarividência>} proclama 46 •


Em seguimento da intervenção de Ordjonikidzé, é formada
uma comissão para examinar as modificações do plano por ele
sugeridas. Nesta comissão, acham-se Estaline, Molotov, Kagano-
vitch, Kouibychev, Ordjonikidzé, Kirov e um certo número de
outros altos dirigentes. Decide ela incorporar no plano os núme-
ros mais fracos propostos por Ordjonikidzé '\ mas não modifica
os créditos de investimentos propostos por Molotov. Aos dirigentes
de empresas são, portanto, confiadas tarefas de produção menos
pesadas, embora dispondo para as realizar dos fundos de investi-
mentos previstos para tarefas mais importantes. Trata-se de impor-
tante vitória alcançada pelos partidários dos «ritmos menos eleva-
dos». Estes últimos e os especialistas da produção sentem que é
este o caso, como confirma um engenheiro e dirigente industrial
em Memórias publicadas durante os anos 60 48 •
A acta do Congresso indica que as modificações introduzidas
no plano são aprovadas mesmo por aqueles que estão mais pró-
ximos de Estaline, designadamente Molotov e Vorochilov ••; da
aprovação de Estaline, porém, não é feita menção.
Na realidade, apesar dos louvores dados ao secretário-geral
por quase todos os oradores, o XVII Congresso revela um enfra-

•• XVII Sezd, p. 413.


" lbid., pp. 648-650.
" Cf. V. Emelianov, «0 vremeni, o tovarichak:h, o sebe: zapiski in-
geniera», Novi Mzr, n.'' 1-2, 1967, p. 40.
" Cf. XVll Sezd .•. , ob. cit., p. 436.

127
/'
:· CHARLES BETTELHEIM
f:':,
I~ quecimento incontestável das posições de Estaline. Este é forçado
a compromissos e acha-se colocado na defensiva ' 0 •
O enfraquecimento da posição do secretário-geral traduz a
extrema gravidade da crise atravessada pela sociedade e a eco-
nomia soviéticas e as divergências que opõem o grupo dirigente
formado em redor de Estaline e outros membros da alta direcção
do partido, como Ordjonikidzé e Kirov.
Estas divergências não incidem apenas sobre os objectivos a
atingir no decurso do 2. Plano Quinquenal (objectivos que Ordjo-
0

nikidzé conseguiu levar o Congresso a rever), estendem-se apa-


.t..'
rentemente a muitos outros domínios, em particular à larga utili-
zação do terror (que suscita a hostllidade de numerosos membros
do aparelho do partido) e à orientação da política internacional".
Uma fonte soviética recente confirma a existência de profundas
divergências de opinião entre Estaline e Kirov e o desejo de nume-
rosos delegados ao Congresso de afastar Estaline do lugar de
secretário-geral 52 •
As forças que incitam a eliminar Estalirre dessa posição são
suficientes para que seja afectada a regra de cooptação que,
desde há cerca de dez anos, preside à escolha dos membros das
instâncias dirigentes. Numerosos indícios sugerem que, em segui-
mento do voto ocorrido ao findar o Congresso, Estaline não foi
reeleito secretário-geral".
" Esta conclusão é a de K. Bailes no seu livro Technology .. ., ob. cit.,
p. 279, e de um certo número de outros autores, designadamente de B.
Nicolaevski (cf. a nota seguinte). H. Carrere d'Encausse, em Staline, ob.
cit., p. 45, fala a este propósito de «reconciliação». Esta existe, sem dúvida,
mas à superfície; em profundidade, as contradições são agudas mas dis-
simuladas por compromissos.
" Kirov parece ter sido partidário, após a chegada de Hitler ao poder,
de uma reorientação ocidental da política externa (cf. B. Nicolaevski,
ob. cit., p. 45). Voltamos a estes problemas na quarta parte do presente
tomo .
., Cf. S. Krasnikov, Kirov, Moscovo, 1964, pp. 194-195, citado por
K Bailes, Technology ... , ob. cit., p. 279. As divergências no seio da direc-
ção do partido e as que surgem por ocasião do XVII Congresso foram
descritas muito cedo na obra citada de B. Nicolaevski; o autor refere-se
a longas conversas que teve, em 1936, com Boukharine que efectuara,
então, uma estada oficial na Europa ocidental (cf. designadamente, ob.
cit., pp. 45 a 48). Segundo A. Kolendié, em Les Derniers Jours, Paris,
Fayard, 1982, por ocas1ão do voto secreto para os candidatos à entrada
no CC, foi Estaline quem recolheu menos votos.
" Boris I. Nicolaevski foi um dos primeiros a ter notado, com base
nas actas aparecidas na imprensa soviética, que o CC eleito no XVII Con-
gresso não «confirmou» a eleição de Estaline para o cargo de secretário-
-geral, e que este já não ficou a ser senão o primeiro dos quatro secre-
tários do CC (ver, a este propósito, Les Dirigeants soviétiques .. ., ob. cit.,
pp. 109-110.

128
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

Todavia, muito rapidamente - e em condições que, de mo-


mento, não é possível esclarecer - é atribuído a Estaline o título
de secretário-geral. Conservá-lo-à até à sua morte. Em 1934, em
todo o caso, Estaline não ocupa o seu cargo muito «solidamente»,
parecendo que a questão do acesso de Kirov a esse posto fora
examinada pelo BP, mas sem resultado H.
Em 1934, as contradições que percorrem a direcção do partido
não se limitam aos pontos acima mencionados, dizem também
respeito à questão da «legalidade revolucionária», sobre a qual
decorre um dos últimos debates públicos entre dirigentes.

4 O debate sobre a «legalidade revolucionária»

Este debate tem importância primordial; põe, na realidade, o


problema do papel do Estado e o do terror, embora tais questões
não ~ejam enunciadas muito claramente.
Estaline e Kirov defendem ambos a «legalidade revolucioná-
ria», embora perfilhando concepções diferentes.
Para Estaline, a finalidade principal dessa legalidade é a defesa
do Estado e da sua propriedade. Declara que a legalidade revolu-
cionária é uma «espada» entre as mãos do Estado, voltada contra
todos os inimigos deste. Afirma mesmo que ela deve assegurar,
antes de tudo, a protecção da propriedade do Estado e da pro-
priedade Kolkhoziana. É este um dos temas desenvolvidos pelo
secretário-geral no seu relatório sobre a execução do 1." Plano
Quinquenal, apresentado, em Janeiro de 1933, ao Plenário do CC.
Neste relatório, Estaline enuncia a fórmula: «A principal preocupa-
ção da legalidade revolucionária dos nossos dias é [ ... ] a salva-
guarda da propriedade social, e não outra coisa.»"
Esta concepção articula-se estreitamente com a afirmação
segundo a qual o «deperecimento do Estado se fará não pelo enfra-
quecimento do poder de Estado mas pelo seu máximo reforço» 5 '.

"' Cf. L. Schapiro, The Comunist Party ... , ob. cit., pp. 401-402; ver
também a tradução francesa deste livro editado por Gallimard; cf. Igual-
mente R. Medvedev, Le Stalinisme, ob. cit., pp. 204-205 e 214.
" Cf. Estaline, Q. L., t. 2, p. 593.
" Ibid., Estaline jâ havia formulado a mesma tese em 1930, no XVI
Congresso do partido; estâ ligada à ideia de que «quanto mais progride
o socialismo», ma1s a luta de classe se torna «encarniçada», o que, em
termos prâticos, implica um endurecimento da repressão e do terror do
Estado.

Est. Dor. 220-9 129


CHARLES BETTELHEIM

Por ocasião do XVII Congresso, a denúncia feita por Estaline


daqueles que - a seus olhos- têm tendência para «descansar
sobre os seus louros» procede da mesma concepção e dela provém
esta advertência: «Não se deixar entusiasmar pelos sucessos con-
seguidos, e não cair na presunção.»"
O exame das declarações de Kirov e daqueles que alinham com
as suas posições revela que, aos seus olhos, o acento posto na lega-
lidade revolucionária tem significado muito diferente e, de facto,
contraditório. Para eles, como se manifesta sobretudo após o XVII
Congresso, a «legalidade revolucionária» refere-se primordialmente
à defesa dos cidadãos contra a arbitrariedade estatal 58 • Notar-se-á,
aliás, que, no princípio de 1934, aparece nova rubrica na Pravda
sob o título «Karotkie signaly». Ali se publicam cartas de operários
ou de camponeses queixando-se dos «abusos de poder» de que
são vítimas, abusos denunciados como violações da «legalidade
revolucionária»; facto significativo: imediatamente após a morte
de Kirov, esta rubrica deixa de aparecer.
A defesa de uma concepção da «legalidade revolucionária» que
visa proteger os cidadãos contra os «abusos de poder» traduz, em
parte, os receios de diversos quadros regionais, que temem a subida
do descontentamento da população perante o arbítrio dos quadros
locais e dos dirigentes de empresas. Assim, nos arquivos de Smo-
lensk, encontra-se uma carta de Rumantsev, secretário regiOnal,
datada de 9 de Julho de 1934, que pede a todas as orgamzações
do partido e do Konsomol que «acabem com [... ] as distorções
maciças à legalidade revolucionária, as burlas sobre os salários
dos operários, os desvios e abusos de confiança nas operações
comerciais das cooperativas e, coisa ainda mais grave, a passivi-
dade da maior parte das organizações do partido relativamente a
estes abusos e crimes» ' 9 •
A defesa desta concepção visa também proteger os quadros
contra as decisões arbitránas das instâncias centrais e contra a
repressão e o terror que sobre eles se abateram sobretudo entre
1929 e 1931.

" Q. L., t. 2, p. 718.


" Cf. PS, n." 6-7, Março de 1934, p. 37 (citado de F. Benvenuti, Krrov
in Soviet Politics, 1933-1934, texto roneotJpado, CREES, 1977, p. 23).
" Cf. VKP, 186, pp. 66-70, citado de M. Fainsod, Smolensk ... , ob. cit.,
p. 74.

130
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

O acento posto sobre a «legalidade revolucionária» do ponto


de vista da protecção dos cidadãos surge com particular nitidez
em dois discursos pronunciados por Kirov, em Julho de 1934 60 •
Ergue-se, então, contra os abusos a que dá origem a colheita de
cereais. Considera os métodos empregados politicamente nocivos.
Denuncia a maneira como os kolkhozianos são expulsos das explo-
rações colectivas, expulsão que os condena a morrer de fome •r,
Na realidade, na retaguarda da posição de Kirov sobre a «lega-
lidade revolucionária», e daqueles que o apoiam, como Boukha-
rine, encontram-se diversas preocupações: em primeiro lugar, a
que acaba de ser lembrada relativa ao receio de uma subida do
descontentamento dos trabalhadores e, a seguir, a vontade dos
próprios quadros (isto é, da classe dominante em desenvolvimento)
que desejam ficar defendidos do arbítrio do poder político. Tais
preocupações deixam entrever uma concepção da «construção do
socialismo» sensivelmente diferente da de Estaline e do seu grupo.
Para Kirov e seus partidários, «a construção do socialismo» não
pode ser prosseguida se não se reduzirem o arbítrio e a forte pres-
são produtivista exercida sobre os trabalhadores e o seu nível de
vida e, também, se não se favorecer uma relativa liberdade de
expressão, bem como acordos com os países onde reinam certas
liberdades democráticas. Para Estaline e o seu grupo, o acento
deve ser posto, antes de tudo, na autoridade absoluta do grupo
dirigente e no desenvolvimento da indústria, sejam quais forem as
necessidades das massas, numa disciplina de ferro e no acordo com
a Alemanha (cujo regime, segundo as suas declarações, mais não
é do que uma ditadura do capital semelhante à que existe nos
outros países capitalistas). Nesta concepção, a liberdade de expres-
são não encontra lugar no país e o papel da Rússia, do seu pas-
sado e dos seus «grandes homens» têm maior importância do que
o internacionalismo. O acento posto na disciplina tende a trans-
formar, cada vez mais, o partido num simples aparelho adminis-
trativo estreitamente ligado ao aparelho policial: aqueles que estão
à testa de tal aparelho não têm contas a prestar: eles dirigem o
país sozinhos.
Em 1934, o peso de Kirov e dos seus partidários nas instâncias
dirigentes e no aparelho do partido é suficientemente grande para
que as posições respeitantes à «legalidade revolucionária» condu-
zam à adopção de um certo número de decisões.
Uma das mais importantes, pelo menos na aparência, é a reor-
ganização, decidida a 10 de Julho de 1934, da OGPU. Esta é,

••1 Cf. Kirov, Stati i retchi, Moscovo, 1934, pp. 116 e segs.
• lbid., pp. 133-134.

131
CHARLES BETTELHEIM

então, submetida a um grande Comissariado para o Interior


(NKVD), os seus pod:»res são teoricamente limitados e as suas acti-
vidades submetidas, em princípio, ao controlo da prokuratura "'.
Outras decisões surgem inspiradas por Kirov e seus partidários:
a amnistia de uma parte dos camponeses anteriormente conde-
nados; a adopção de um estatuto-tipo para os kalkhozes, que
acresce a superfície da «parcela individual»""; e, também, o des-
mantelamento dos «departamentos políticos» ligados às SMT, já
que estas intervinham de maneira arbitrária na vida dos kolkhozes.
Estes departamentos, criados em Janeiro de 1933 04 , estavam
directamente ligados ao CC, e passavam por cima das organiza-
ções territoriais do partido. Na realidade, desempenhavam um
papel repressivo e serviam de instrumento para aplicação das medi-
das brutais que acompanhavam a colecta. Em vários dos discursos
que pronuncia durante o Verão e o Outono de 1934, Kirov critica
o funcionamento dos «departamentos políticos>> e pede a sua fusão
com os organismos territoriais de base do partido (os rdikomy),
assim como a «revitalização» dos Sovietes rurais"'. A esta última
proposta não é dado seguimento.
Pelo contrário, o Plenário de Novembro de 1934 (25-28), o
último a que Kirov assiste (visto que é assassinado alguns dias
depois), adopta uma resolução que suprime os «departamentos
políticos>> das SMT e transfere as suas funções para organismos
territoriais do partido"".
Em globo, as divergências que aparecem quanto a diversos
pontos, entre os quais a relativa à legalidade revolucionária, são
sérias: deve esta legalidade ser principalmente uma «espada>> para
defesa do Estado, ou antes uma arma que permita aos cidadãos
(entre os quais também figuram os quadros dos aparelhos) defen-
der-se contra o arbítrio? Na prática imediatamente posterior ao

,., Na realidade, as diversas disposições que deviam reduzir os pode-


res dos órgãos de segurança não produzem os efeitos esperados pelos
partidários de uma linha menos repressiva. Com efeito, a supressão do
antigo «colégio judiciário)) da OGPU é acompanhada pela criação de
«colégios especiais)) do NKVD dispondo de poderes tão latos como os do
<<colégio judiciário)): podem utilizar processos secretos, sem comunicação
da documentação àqueles que são presos, nem direito de defesa; podem
decidir sobre a manutenção da prisão e da deportação Além disso, o con-
trolo das decisões de prisão pela prokuratura revela-se sem alcance, já
que Vichinsky, colocado à testa desta em 1933, deixa todo o poder aos
órgãos repressivos.
"' Cf. P. Broué, Le parti bolchevique, ob. cit., p. 350.
·u Cf. KPSS ... , t. 5, 1971, pp. 78 e segs.
111
Cf. Kirov, Stati i retchi, ob. cit., pp. 112 e segs.
" Cf. KPSS ... , t. 5, 1971, pp. 198 e segs.

132
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

XVII Congresso, as concepções da Kirov dão origem a algumas


medidas concretas.
Deve, todavia, sublinhar-se que as divergências entre Estaline
e o 1." secretário de Leninegrado dizem essencialmente respeito
aos meios para atingir objectivos semelhantes. Nem por isso
deixam de ser menos sérias, já que separam duas linhas políticas
que não se pode assegurar que conduziriam aos mesmos resulta-
dos económicos, sociais e políticos.
A linha defendida pelo secretário-geral, que pretende subme-
ter os quadros e o conjunto dos trabalhadores à autoridade abso-
luta do grupo dirigente, de facto à autoridade do secretariado,
supõe um endurecimento máximo da «disciplina» de partido e do
despotismo de fábrica, bem como um recurso acrescido à repres-
são e ao terror.
A outra linha, defendida por IKirov e seus partidários, quer
evitar uma situação económica e social demasiadamente tensa e
satisfazer as aspirações dos novos altos dirigentes e da nova classe
dominante em formação, os quais procuram dispor de maior ini-
ciativa e ficar aptos a influenciar as decisões das instâncias supre-
mas do partido. Convida a uma outra concepção da legalidade e
da democracia no partido e na sociedade.
Esta linha obteve alguns sucessos limitados entre 1932 e 1934,
mas que foram anulados no seguimento do assassínio de Kirov.
Logo após este assassínio, abre-se um novo período de «acertar o
passo do partido» e de recurso ao terror 67 •

'" Sobre este ponto, cf. a terceira parte do t. 1 do presente volume,


Os Dominados.

133
CAPíTULO IV

O ENDURECIMENTO DA DITADURA
DO GRUPO DffiiGENTE SOBRE O PARTIDO
E SOBRE OS QUADROS
(DEZEMBRO DE 1934-VERAO DE 1936)

O terror que se instaura a seguir ao assassínio de Kirov (1 de


Dezembro de 1934) vai-se intensificando de 1935 a 1938. De ma-
neira mais ou menos intensa, prossegue essa combinação da repres-
são de massa e da repressão individualizada e inquisitorial, até
depois da morte de Estaline. Não desaparece então por completo
mas as suas vítimas, os seus «alvos» e as suas formas mudam'.
O terror desencadeado em Dezembro de 1934, tende a impor
a ditadura mais completa possível do grupo dirigente e, antes de
tudo, do seu chefe, o Gensek. Exerce-se esta ditadura sobre as
massas populares, sobre os quadros e sobre os órgãos que têm,
formalmente, o encargo de dirigir o partido. Trabalha ela no sen-
tido da instauração de um poder autocrático que se reclama de
um marxismo-leninismo cujos cânones e princípios são definidos
pelo próprio poder. Esta ditadura endurece quando se operam as
transformações económicas e sociais examinadas no tomo 1 do
volume 3, Os Dominados.

SECÇÃO I

A primeira vaga de terror


exercida sobre os membros do partido e sobre os quadros
(Dezembro de 1934-Verão de 1936)

Bem antes de Dezembro de 1934, já a repressão se havia aba-


tido sobre quadros c membros do partido, mas tratava-se então,

' Para o período actual, cf. o artigo de R. Brunet, «La géographie


du Goulag>>, em L'Espace géographique, n.' 3, 1981.

134
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

essencialmente, de reprimir actos precisos: é assim que alguns fo-


ram condenados em virtude da aplicação (frequentemente, bastante
arbitrária) dos textos promulgados pelo poder, e outros foram
excluídos do partido em virtude de uma interpretação (extensiva)
das regras de funcionamento deste. Após Dezembro de 1934, são
grupos inteiros que são condenados ou excluídos em virtude de
decisões políticas que não revestem senão formalmente (e mesmo
assim, nem sempre) o aspecto de decisões judiciárias ou estatutá-
rias conformes às regras existentes. Desenvolve-se, assim, um pro-
cesso específico de terror. Viu-se, no volume 3, como este foi desen-
cadeado no fim de 1934 e princípio de 1935 e quais foram algumas
das suas manifestações mais espectaculares. Como se sabe, as pri-
meiras medidas tomadas em Dezembro de 1934 conferem poderes
sem precedentes ao NKVD e permitem a órgãos judiciários deste
dependentes pronunciar sentenças, eventualmente sem julgamento
nem investigação 2 • Estas medidas preparam a primeira vaga de
terror contra os quadros. São seguidas por mudanças importantes
na composição do pessoal dirigente do partido, nas administrações
e nos centros mais importantes.

1. A tnstal~ão de novos altos responsávei~1 e a reorganJzação


dos aparelhos do partido e da repressão

No princípio de 1935, uma remodelação do pessoal dirigente


do partido reforça as posições dos partidários de Estaline, embora
ocorram certos compromissos com elementos mais reservados rela-
tivamente ao terror exercido contra os quadros.

• A seguir ao XVII Congresso do partido, a OGPU havia sido inte-


grada no NKVD, o que, em princípio, deveria ter limitado as suas prerro-
gativas. De facto, nada disso aconteceu. O NKVD foi, então, reforçado
e a OGPU viu expulsar das suas fileiras aqueles a quem era censurado
não terem sido suficientemente «enérgicos» durante a colectivização. Por
outro lado, é necessário indicar que, a seguir ao «caso Rioutine», o secre-
tariado pessoal de Estalme havia sido reforçado pela criação de uma sec-
ção especial encarregada de «vigian> os órgãos de segurança. Esta secção
torna-se rapidamente no <<Departamento político especial da segurança do
Estada>>. Ali se encontram, desde 1933, os colaboradores mais próximos
de Estaline, designadamente N. I. Ejov (que ficará, mais tarde, à testa do
NKVD) e A. N. Poskrebychev que dirige, durante anos, o secretariado
pessoal de Estaline. Ali se encontrarão, ma1s tarde, Malenkov e Serov.
O XVII Congresso havia tentado colocar este departamento especial sob
o controlo do CC, mas a tentativa ficou sem efeito. Em 1936, esse depar-
tamento especial torna-se o núcleo central do NKVD (cf. B. Nicolaevski.
ob. cit., pp. 107-112).

135
CHARLES BBTTELHEIM

As decisões mais importantes são tomadas no momento e no


seguimento do Plenário de 1 de Fevereiro de 1935 que decide no-
mear novos membros do BP. Entre estes, figuram Mikoyan,
muito próximo, então, de Estaline, e (como suplente) Jdanov.
Este último é, na ocasião, o braço-direito do secretário-geral
e ocupou o posto de !Kirov em Leninegrado'.
Igualmente significativas são outras nomeações, como a de
Ejov (que estará à testa do NKVD durante o período do maior
terror dos anos 30) que se toma secretário do CC em substituição
de Kaganovitch que passa a ser comissário para os transportes •.
No mesmo sentido, deve registar-se a nomeação de Khrouchtchev
para l.o secretário da organização do partido em Moscovo 5
(onde se distinguirá pelas suas operações de «saneamento»); e a
de G. M. Malenkov, que se toma suplente do Departamento dos
Quadros do Secretariado 6 •
Desde Março de 1935, Ejov trabalha em estreita relação com
o NKVD. Instala os instrumentos operacionais dos saneamentos
futuros, cuja responsabilidade incumbe, então, a I. A. Serov '. Os
serviços colocados sob a direcção deste último formam grupos de
inquéritos onde se preparam os saneamentos que atingirão os dife-
rentes aparelhos. Existe, assim, um serviço para a agricultura, um
para cada indústria, um para os transportes, o comércio, a im-
prensa, os quadros do partido, etc. A primeira fase do trabalho
destes grupos parece ter ficado pronta em Outubro de 1936 8 •

2. O Inicio do terror contra os membros do partido e os quadros

Na Primavera de 1935, é conduzida uma primeira ofensiva pelo


vértice do partido contra os dirigentes de empresas e engenheiros
e quadros membros do partido. A fim de apresentar estes quadros

3
Sobre estes pontos, cf. Pravda, de 2 de Fevereiro de 1935, e L. Scha-
piro, The Communist Party of the Saviet Union, ob. cit., pp. 406-407, que
descreve a instalação dos órgãos de repressão que entrarão em acção em
1937. Ver as honras que lhe serão prestadas em Julho de 1937 (em ibid.,
pp. 425-426).
4
Ibid., p. 407, e Pravda, de 1 de Março de 1935.
' Cf. Pravda, de 9 de Março de 1935.
• Cf. L. Schapiro, ibid., p. 407, e nota 3 de pp. 115-116.
v I. A. Serov nasceu em 1905, adere ao partido em 1926 e frequenta
uma escola militar.
• Cf., sobre este ponto, K. Bailes, Technology ... , ob. cit., pp. 281-282,
que utilizou, designadamente, um memorial redigido por um agente do
NKVD refugiado no Oeste e que trabalhava com Serov. Este memorial
(Na sloujbe u Stalina) figura nos arquivos da Universidade de Columbia.

136
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

industriais como «inimigos do povo», a propaganda utiliza con-


tra eles o descontentamento dos operários directamente subme-
tidos à pressão que os quadros dirigentes de empresas exercem
sobre os trabalhadores para obterem que os planos sejam «reali-
zados».
Estaline dá, de algum modo, o sinal para uma utilização desse
descontentamento operário num discurrso que pronuncia a 4 de
Maio de 1935, por ocasião da promoção dos alunos das Escolas
Superiores do Exército Vermelho. Este discurso contém ameaças
contra certos quadros dirigentes que ele condena por terem o que
chama uma «atitude escandalosa» para com «os homens, os qua-
dros, os trabalhadores... » 9 •
A ameaça assim formulada não é, seguramente, retórica: é
mesmo precedida por medidas judiciárias, a princípio principal-
mente tomadas contra quadros industriais acusados de levarem
frequentemente operários aos tribunais por «violação da disciplina
do trabalho».
Assim, em Abril de 1935, uma circular da Procuradoria da
URSS convida os procuradores a inculparem os quadros indus-
triais que apresentem um número exagerado de queixas contra
trabalhadores 10 • Abre esta circular a via a acções judiciárias con-
tra certos quadros industriais. Simultaneamente, estes sofrem a
repressão e podem ser excluídos do partido quando as empresas
que dirigem não «cumprem» o seu plano.
Naquele momento, a «pressãO>} exercida sobre os quadros in-
dustriais ainda é relativamente moderada. De facto, o «acertar o
passo>> do partido começa por um saneamento das suas próprias
organizações que atinge dezenas de milhares de bolcheviques e de
jovens comunistas, em Leninegrado e noutros locais, a seguir ao
assassínio de Kirov, mas as coisas agravam-se rapidamente: na
Primavera de 1935, o partido e as juventudes comunistas são sub-
metidos a um expurgo maciço que se estende também à província.
Aqueles que são excluídos condenados ou privados de trabalho
são qualificados de «zinovievistas, trotskistas, elementos com duas
caras e estrangeiros». Durante essa Primavera, são liquidadas as
organizações oficiais dos veteranos do partido: a sociedade dos
velhos bolcheviques é dissolvida a 25 de Maio de 1935, depois, a

• Cf. Estaline, Q. L., t. 2, pp. 722 e segs., designadamente p. 277.


N otar-se-á que aquilo que, nesse discurso, reteve mais vezes a atenção é
o reconhecimento da importância dos quadros, sintetizados pela palavra
de ordem então nova: «os quadros decidem tudo».
10
Cf. Ougolavno- processoualnyi kodeks RS F SR, Moscovo, 1937,
PP. 141-142, citado de G. T. Rittersporn, «Héros du travai! et commandants
de la production», em Recherches, Setembro, 1978, p. 253, n.• 19.

137
CHARLES BETTELHEIM

sociedade dos antigos deportados e pnswneiros políticos. Ao


mesmo tempo, são «expurgadas» as bibliotecas: a comunicação
dos livros de Zinoviev, Kamenev, Trotski, Préobrajensky, etc., é
interdita 11 • Trata-se de transformar profundamente a composição
do partido e de apagar da memória deste e da população troços
inteiros da história do partido. A falsificação da história toma
amplitude sem precedentes; é «rescrita>> à medida das prisões e das
depurações.
Em Maio de 1935, inicia-se a «verificaçãm> dos documentos do
partido que origina nova depuração, que prossegue no princípio
de 1936, em virtude de uma circular do CC prevendo a «reno-
vação» de todos os documentos e cartões do partido 12• Simulta-
neamente, endurece a repressão policial com carácter político 13•
Em 1935, a repressão que se exerce sobre os membros do par-
tido visa muito especialmente aqueles que, a justo título ou não,
se supõe terem pertencido à antiga oposição «de esquerda>>, ou de
terem mantido relações com certos membros desta, ou de parti-
lharem as suas ideias. Também são visados aqueles que apoiavam
ou teriam podido apoiar reivindicações operárias visando melhorar
o nível de vida dos trabalhadores.
No seu discurso já citado, Estaline denuncia, com efeito, cer-
tos «camaradas» que preconizavam que se colocasse ao dispor da
população um pouco mais de «artigos de consumo», e se desse
àquela um pouco mais de todas essas pequenas coisas que «embe-
lezam a vida». Precisa que a ofensiva foi conduzida «repelindo
esses camaradas» aos quais se «teve de apertar as costelas»; e
acrescenta: «Eu também pus a mão na massa 14.>>
Depois de ter conduzido uma ofensiva contra numerosos velhos
bolcheviques, e também contra jovens comunistas, o grupo diri-
gente -sem parar esta ofensiva- volta a orientar a sua acção
contra os quadros económicos e administrativos. Torna-se isto
particularmente nítido em Junho de 1935. Nesse momento, o grupo
dirigente procura «completar» as iniciativas dos órgãos de segu-
rança utilizando, de maneira mais sistemática, as denúncias e as
queixas que emanam da população.

11
Cf. P. Broué, Le Parti bolvhevique, ob. cit., p. 354, e os documen-
tos de arquivo citados em M. Fainsod, Smolensk ... , ob. cit., pp. 407 e segs.
" Cf. KPSS .. ., vol. 2, pp. 822 e segs.
" Assim, a partir da Primavera de 1935, o número dos prisioneiros
políticos aumenta rapidamente. São estes submetidos a um regime cada
vez mais severo: os poucos «direitos» que ainda lhes eram concedidos são
abolidos (cf. I. Deutscher, ob. cit., p. 284).
" Cf. o discurso de 4 de Maio de 1935, em QL, t. 2, pp. 724-725.

138
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

A direcção do partido procura, então, tornar as denúncias


«obrigatórias». Um decreto de 9 de Junho de 1935 transforma em
«crime» a não denúncia de um acto ou de uma palavra punivel.
Os membros principais da família do autor de semelhante acto
que não o tiverem denunciado são passíveis de dois a cinco anos
de prisão e da confiscação dos seus bens. São «punidos», ainda
que consigam provar a sua ignorância 15 •
As queixas que emanam da população estão contidas principal-
mente em cartas enviadas por operários (mas também por cam-
poneses) às instâncias locais ou territoriais do partido, ou à im-
prensa regional; algumas destas cartas provêm, aliás, de pessoas
que formam o que foi chamado «correspondentes operários e cam-
poneses» da imprensa; estes constituem uma instituição que re-
monta aos anos 20, que havia sido organizada por Boukharine.
A partir de Junho de 1935, o grupo dirigente julga, portanto,
que poderá «controlar>} melhor os quadros utilizando reclamações
vindas de baixo. Por isso, convida a população a exprimir as suas
queixas repetidas. As cartas enviadas por simples cidadãos e ende-
reçadas às diferentes instâncias do partido, à imprensa local e ao
1. 0 secretário de região, tornam-se numerosas'".
Nas condições da época, a eficácia real deste «controlm} sobre
os quadros permanece limitada. A solidariedade dos quadros ao
nível local e regional é grande. Funciona facilmente contra os
autores das cartas; os seus destinatários transmitem os nomes dos
queixosos àqueles de quem estes se queixam, e são então os quei-
xosos que se tornam vítimas da repressão. Por isso, pouco depois
de ser adoptada a resolução de Junho de 1935, urna directiva do
Tribunal Supremo proíbe que se dêm a conhecer os nomes dos
correspondentes''. Na realidade, esta directiva permanece em
grande parte letra-morta, como mostra o facto de que, em Março
de 1936, uma decisão do CC condena de novo a prática das auto-
ridades locais que transmitem, aos funcionários criticados, infor-
mações sobre os autores das queixas"·.

" CL P. Broué, Le parti bolchevique, ob. cit., p. 354.


" Nos «Arquivos de Smolensk», estas queixas formam cinco volu-
mosos dossiers, e as anotações fe1tas em muitas cartas mostram que elas
foram exammadas (cL G. T. R1ttersporn, «L'État en lutte contre lui-
-mênie»,
17
em Libre, n.' 4, 1978, pp. 7-8).
Ougo/ovnyi kodeks, RSFSR, Moscovo, 1953, p. 106. citado em
Rittersporn, «L'État. .. >>. art. cit, n.' 21.
" Cf. PS (Partinoe Stroitelstvo, publicação do Departamento para
a Orgamzação do Partido), n.' 8, 1936, pp. 54-55. Esta mesma prática já
havia, aliás, sido condenada em 1932 por uma decisão da Procuradoria
da URSS (cf. G. T. Rittersporn, «L'État ... », art. cit., p. 8).

139
CHARLES BETTELHEIM

Não obstante, a campanha contra os quadros desenvolve-se


em 1935; multiplicam-se exclusões e sanções, atingindo, aliás, so-
bretudo os técnicos e os engenheiros de posição inferior (que
gozam de protecções menos numerosas e menos eficazes). Em
princípio, estas medidas não têm alcance penal mas um bom nú-
mero de excluídos caem rapidamente sob os golpes da repressão.
No fim de 1935. os efeitos «contraproducentes» da campanha
de depuração são tão sérios que o Plenário de Dezembro de 1935
decide suspendê-Ia'" e abrirr uma campanha de recrutamento a
partir de 1 de Junho de 1936 20 •
Na prática, a decisão de parar a campanha dirigida contra cer-
tos quadros não é aplicada porque as contradições que atravessam
os aparelhos do partido e do Estado são exacerbadas pelo descon-
tentamento crescente dos trabalhadores, descontentamento tam-
bém aumentado pelo aparecimento do movimento stakhanovista
que surgiu no Outono de 1935 21 • Este movimento é, com efeito,
utilizado pelos dirigentes do partido: contra a maioria dos operá-
rios (as normas de trabalho são revistas no sentido da alta) e con-
tra os quadros (acusados de não terem tomado consciência das
<<potencialidades» de produção «reveladas» pelo stakhanovismo e
mesmo de terem «sabotado o movimento» 22 ).
Por último, em Março de 1936, a «trégua» muito relativa anun-
ciada pelo Plenário de Dezembro de 1935 é rompida: os quadros
industriais são de novo sistematicamente atacados; os jornais uti-
lizam cartas de leitores que continuam a afluir, porque continua
a apelar-se para esta forma particular de «controlo de base».
A imprensa central denuncia aqueles quadros que considera
os «Sabotadores do movimento stakhanovista», sobre os quais a
Pravda convida a «abrir fogo». Numerosos quadros são acusados
de ter organizado «décadas stakhanovistas» fictícias e de serem
responsáveis pela não realização das novas normas impostas aos
trabalhadores por não terem tomado as «medidas técnicas» neces-
sárias. Em Abril, um editorial do mesmo jornal declara que uma

,. Não se sabe a quanto se eleva, então, o número dos excluídos mas


sabe-se que os efectivos do partido sofreram uma redução de 300 000
membros em 1935 e de 200 000 em 1936 (cf. T. H. Rigby, ob. cit., p. 209).
" Cf. a resolução de 25 de Dezembro de 1935, em KPSS, vol. 11,
1953 pp. 822 e segs.
!t Cf. sobre este ponto a segunda parte do t. 1 do presente volume,
Os Dominados. Sobre «o movimento stakhanovista», ver a tese já citada
de J. Sapir, pp. 452 e segs., e a tese mais antiga de A. Pasquier, Les Stakha-
novisme (igualmente citada em Os Dominados), Caen, 1938. Estes dois tra-
balhos comportam abundante bibliografia.
"' Ver, a este respeito, J. Sapir, ob. cit., pp 486 e segs.

140
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

parte dos administradores da bacia mineira do Donetz «fizera


bancarrota»; são considerados como incapazes ou «sabotadores»
que devem ser sancionados e cujos erros devem ser reparados 23 •
As organizações locais e regionais do partido põem-se em
movimento; tomam medidas cada vez mais severas contra os
quadros industriais, a tal ponto que a Pravda é até levada a con-
denar os «programas contra os dirigentes)). Com efeito, as medidas
de repressão desorganizam a produção originando uma verdadeira
fuga dos engenheiros e técnicos que abandonam o seu local de
trabalho. Além disso, a autoridade dos quadros técnicos sobre os
trabalhadores tende a esboroar-se, já que os operárioss tratam
os engenheiros, caua vez mais frequentemente, como «sabota-
dores» potenciais ".
A direcção do partido é obrigada a verificar que o apelo ao
«controlo da base)) -mesmo quando transita pelos jornais-
produz efeitos que lhe escapam e que ela não deseja.
Por isso, em funho de 1936 (a seguir ao Plenário que se realiza
de 1 a 4), e!ectua-se uma '<rectificação)). As críticas q1Je enfra-
quecem a posição dos quadros em função são obrigadas a uma
~urd;na 1non1entánea.
O «for;o)) é dirigido de novo centra os antigos opositores,
contra os «inimigos)) e as <<manobras hostis)). O prelúdio público
a este ataque frontal toma a forma de um artigo da Pravda que
anuncia: « ... Continuaremos a aniquilar os inimigos do povo,
os monstros e as fúrias trotskdas, seja qual for a sua hábil camu-
flagem 25 .)) Em breve se observa que, com o argumento de uma
«hábil camuflagem)), todas são susceptíveis de serem apresentadas
como <<f~lfia trotskista>}.
O ataque frontal desencadeado em Junho 26 desenvolve-se em
Julho, ncasião em que os comités do partido (largamente reno-
vados 2:1ós o assassínio de 'Kirov) são <<mobilizados)) para levar
o mais lonGe possível urna <<depuração» que tüca amplamente
antie;o~ membros do partido. Em 1936, um pcnto culminante
ueste ataque é o <{grande processo» que se abre, a 19 de Agosto,

" Cf. designadamente Pravda de 1 de Março, 26 de Março e 15 de


Abril de 1956; cf. também o artigo de G. T. Rittersporn, <<Les héros du
travml et commandants de la production ~ Le mouvement stakhanoviste»,
em Recherches, Setembro de 1978, pp. 268 e segs.
" Cf. Pravda, 2 de Junho de 1936, e G. T. Rittersporn, <<Les héros .. »,
art. cit., pp. 270-271.
., Pravda, 5 de Junho de 1936.
"' Cf. designadamente os editoriais da Pravda de 8 de Junho; e o
artigo de L. Beria na Pravda de 12 de Junho de 1936.

141
CHARLES BETTELHEIM

contra Zinoviev, Kamenev e alguns outros antigos dirigentes e


oposicionistas que são condenados à morte e executados".
Este processo dá o sinal do primeiro grande expurgo contra
os antigos membros do partido. Constitui uma fase importante na
liquidação dos velhos quadros. Como os «grandes processos»
ulteriores, não visa descobrir uma «culpabilidade» mas sim «fabri-
cá-la». Deve servir de «lição» ao «demonstrar» que opor-se ao
partido, mesmo em pensamento, conduz ao crime, e que a
«verdade» «é o que o partido quen>. Esta «culpabilidade peda-
gógica» 28 é ocasião para uma campanha de massa e uma ver-
dadeira «mobilização popular».
O processo de Agosto abre a via à condenação por «dupli-
cidade» e outros crimes que a população é convidada a denunciar.
Ajuda a desenvolver uma atmosfera de terror, que se irá tornando
mais «pesada» à medida que cresce o número de prisões e conde-
nações pronunciadas em nome da perpetração de crimes cuja
lista se torna ritual: espionagem, sabotagem, actividades anti-
-soviéticas ou antipartido, conspiração, trotskismo, cosmopolitismo,
falta de vigilância, espírito conciliador, duplicidade, etc. 29 • De
1936 a 1953, reencontra-se este vocabulário mas ele não desa-
parece inteiramente após a morte de Estaline: ainda hoje, são
pronunciadas condenações, deportações ou expulsões para o
estrangeiro por «motivos» semelhantes 30 (em número muito
menor do que outrora), quase sempre sem prova.
Em 1936, uma «circular» do Comité Central (de que se conhe-
cem extractos, graças aos arquivos de Smolensk) dá o tom à
mobilização para a qual a população é convidada. Afirma esta
circular que «todas as fronteiras foram suprimidas» entre os
guardas brancos, kulaks, espiões, etc., e os «monstros partidários
de Trotski e de Zinoviev». Declara que «a qualidade fundamental
de todo o bolchevista [ ... ] deve ser a sua aptidão para reconhecer
um inimigo do partido, por melhor mascarado que esteja» 31 •
A pressão sobre os membros do partido aumenta, então, a
fim de que eles «desmascarem inimigos»; assiste-se à multiplica-

"Cf. o t. 1 do presente volume, Os Dominados.


21
O termo «culpabilidade pedagógica>> é utilizado por Annie Kriegel
no seu livro Les Grands Proces das les systemes comunistes, Paris, Galli-
mard1 <ddées)), 1965, nomeadamente a p. 65.
' lbid., p. 52.
" Cf. o livro de Efim Etkind, Dissident malgré fui, Paris, A1bin
Michel, 1977.
" VKP 499, pp. 322-328, citado por M. Fainsod, Smolensk ... , ob. cit.,
p. 262. Na realidade, esta fórmula foi usada por Estaline num discurso
de 19 de Julho de 1936. Será, assim, possível alguém tornar-se suspeito
sob o pretexto de que não revela nenhum motivo de suspeição!

142
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

ção dos falsos testemunhos bem como das falsas «confissões>>.


A polícia compete, a qualquer preço, encontrar «culpados».
No entanto, durante o Verão de 1936, são sobretudo os antigos
quadros que são visados. Esta orientação -que talvez se explique
pela solidariedade relativa dos novos quadros- tende a «proteger»
os quadros recém-promovidos e a explicar as dificuldades do
presente pelo passado de alguns indivíduos. Esta orientação da
repressão e do terror parece também ser devida a iniciativas
policiais e às de certos membros do grupo dirigente'". Em todo
o caso, no Outono de 1936, esta repressão é declarada insuficiente
por Estaline, o que anuncia uma viragem.

SEOÇÃO II
O desencadeamento e o desenvolvimento do terror
em grande escala contra os quadros
(Verão de 1936-fins de 1938)

O ponto de partida desta viragem é um telegrama que Estaline


e Idanov, ausentes de Moscovo, dirigiram em Setembro de 1936
aos membros do BP presentes na capital 32 • Este telegrama cen-
sura a GPU por se «ter atrasado quatro anos» na acção contra
o «bloco trotskista-zinovievista» 34 • Após este telegrama, lagoda

" Sabe-se, em todo o caso, designadamente segundo K. E. Bailes,


Technolof?y ... , ob. cit., que G. Ordjonikidzé, assim como Kouibychev,
tentaram «proteger os quadros» técnicos que julgavam indispensáveis à
boa marcha das empresas. Kouibychev -responsável pelo Gosplan-
morre em 1935, verosimilmente assassmado pelo NKVD. como se pode
deduzir do processo contra Boukharine (cf. R. Medvedev, Le Stalinisme,
ob. cit., p. 2~5). Em 1936, Ordjomkidzé ainda está activo e esforça-se
sempre por «proteger» os quadros. Será empurrado para o suicídio (camu-
flado como crise cardíaca), em 1937.
33
Cf. o Relatório secreto de Krouchtchev ao XX Congresw do
PCUS, cujo texto integral foi publicado em França por Éditions Buchet-
Chastel, Paris, 1956, e depois por Le Senil, «Pomts», em 1976: Brenko
laz1tch, Le Rapport Krouchtchev et son histoire.
" A consulta dos arquivos de Trotski permitiu a P. Broué estabelecer
que, embora as «actividades terronstas» atribuídas pelos acusadores ao
<<bloco trotskista-zmovievista» sejam inteiramente imaginárias, não deixa
de ser verdade que, em 1932, quatro anos antes deste telegrama, as diver-
sas oposições interiores ao partido tentaram estabelecer contactos na espe-
rança de poder pôr termo aos desastres económicos e à crise que então
se atravessava, e a fim de responder a um descontentamento operário
cada vez mais manifesto (cf. Cahiers Léon Trotsky, n. • 5, 1." trimestre,
1980, pp. 3 e 5 a 33).

143
CHARLES BETTELHEIM

é substituído por Ejov à frente do NKVD. Muito rapidamente,


assiste-se ao desencadear da Ejovchtchina ".
Nos meses que vão de Setembro a Dezembro de 1936, assiste-se a
uma verdadeira «mobilização» popular, na realidade sobretudo ope-
rária, para reclamar que sejam infligidos os mais severos castigos
aos acusados dos diferentes processos que se sucedem ao «grande
processO>> do mês de Agosto. Nos numerosos meetings que, então,
se realizam, a atmosfera é tal que ninguém pode permitir-se (com
o risco de ser imediatamente preso) emitir a menor dúvida
quanto à veracidade das acusações e à necessidade de uma con-
denação. O poder «associa», assim, a população ao terror.
Esta «associação» continua também a revestir a forma de
acusações vindas de baixo. Não se trata somente de actos de
delação individual, que são encorajados e mesmo mais ou menos
impostos (visto que não ter denunciado um «suspeito» constituí
um delito), mas igualmente de acusações públicas lançadas contra
quadros pela base do partido ou por simples cidadãos.
Permitem estas denúncias dar uma saída ao descontenta-
mento dos trabalhadores, ao mesmo tempo que fazem «acertar
o passo» aos quadros dos diferentes aparelhos pelo vértice do
partido. Durante este período, os responsáveis locais e regionais
do partido, bem como os responsáveis sindicais, não hesitam
-porque a tal são «encorajados» pela alta direcção- em voltar
a cólera dos trabalhadores contra dirigentes de empresa 36 parti-
cularmente impopulares, acusados de abusos (reais ou supostos)
e aos quais são imputadas as más condições de trabalho e as
dificuldades da vida quotidiana.
Perto do fim de 1936, esta expressão do descontentamento
popular é de novo refreada. Entra, com efeito, cada vez mais em
contradição com o que desejam os comissariados do povo encar-
regados das empresas cuja produção foi desorganizada pela
denúncia de uma parte dos seus quadros. Além disso, o descon-
tentamento que se exprime desta maneira manifesta-se com tal
violência que a alta direcção considera que se torna perigoso
continuar a apelar para ele. Em consequência, o NKVD exerce
de novo, e durante algum tempo, uma espécie de monopólio
na escolha dos alvos da repressão.

" Chama-se Ejovchtchina ao período de repressão em larga escala


que corresponde à presença de Ejov à frente do NKVD. Esta expressão
não deve fazer perder de v1sta que já estavam em curso vastas operações
de repressão muito antes de Ejov ter chegado à chefia do NKVD, e que
este comissário é apenas o executor de uma política.
•• Cf. G. T. Rittersporn, Con/lits Sociaux et politiques en URSS-
1936-1938, tese de doutoramento, Paris I, 1976, pp. 116-117.

144
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS- IV
.,
O terror continua a abater-se sobre os quadros. No entanto, 'i
está um tanto ou quanto «recentrado» e atinge, sobretudo, os
antigos membros do partido. A realização do segundo «grande
processo de Moscovo», que decorre de 23 a 30 de Janeiro de 1937,
ajuda esta «recentragem» já que o principal acusado é Piatakov 37
(ainda membro do CC algumas semanas antes, aderente ao partido
desde 1917 e que desempenhara um papel eminente durante a
guerra civil "), e ao seu lado estão Radek (personalidade impor-
tante da IC) e dezasseis outros acusados que são, na sua maioria,
velhos bolcheviques.
No processo de Janeiro de 1937, não figuram altos dirigentes
do partido (como em Agosto de 1936). Ele é essencialmente
dirigido contra velhos bolcheviques que ocupam postos impor-
tantes na economia, mas a vaga de repressão que desencadeia
estende-se rapidamente aos quadros industriais: é o verdadeiro
sinal do grande expurgo que se abaterá sobre estes últimos,
embora continuando a atingir antigos membros do partido e a
manter a atmosfera de terror no seio do qual decorrem inúmeros
«processos locaiS)) instruídos segundo o modelo do processo centraL
A significação e o alcance do processo de Janeiro de 1937
são claros para Ordjonikidzé, defensor dos quadros industriais
cuja presença lhe parece indispensável ao funcionamento mais ou
menos regular da indústria e ao desenvolvimento desta. Nos dias
seguintes ao processo, as divergências entre Estaline e Ordjoni-
kídzé conduzem a um confronto aberto. Ordjonikidzé a protestar
junto de Estaline contra a prisão de seus próximos colaboradores,
as buscas operadas pelo NKVD nos seus próprios serviços e a
prisão do seu irmão mais velho. Trata-se de uma verdadeira
disputa que opõe Ordjonikidzé a Estaline. Defende este último
as prerrogativas do NKVD; afirma que ele próprio não poderia
opor-se a uma busca nos seus próprios gabinetes. Algumas horas
mais tarde, após esta discussão, a 18 de Fevereiro de 1937,
Ordjonikidzé suicida-se com um tiro de revólver ••.

"' Cf. o t. 1 do presente volume, Os Dominados.


" Ptatakov havia sido um dos altos dirigentes da «oposição unifi-
cada», reprimida em 1927 (cf. o vol. 2 desta obra). Alguns meses após
ter sido deportado, «capitula», admitiLdo que o plano de industrialização
então iniciado satisfaz parte dos pedidos daquela oposição. Readmitido no
partido, torna-se vice-comissário para a Indústria Pesada, a qual põe
realmente de pé, ao lado de Ordjonikidzê.
" Encontram-se estes pormenores no livro de I. Dubinski-Mukhodzé,
Ord}anikidzé, Moscovo, 1962, pp. 6-7. Na 2.• edição deste livro (1967),
o episódio da discussão desapareceu (cf. K. Bailes, Technology ... , ob. cit.,
p. 282, n." 48). Oficialmente, Ordjonikidzé morre de uma crise cardíaca
e são-lhe prestadas honras oficiais. Estaline chega mesmo a visitar a

Est. Doe. 220-10 145


CHARLES BETTELHEIM
!
,,•' O desaparecimento de Ordjonikidzé, as condenações do «pro-
cesso PiatakoV», as prisões que os precedem, os acompanham e
se lhes seguem abrem uma «ofensiva» quase geral que atinge,
primeiro, os quadros industriais e, depois, se estende rapidamente
aos quadros dos aparelhos do Estado e do partido ••. Esta ofensiva
permite que os quadros façam uma carreira râpida.
Todavia, um útltro acontecimento prepara o desencadeamento
da «ofensiva» do grupo dirigente contra um grande número de
quadros da ecó!lomia, do partido e do governo em funções desde
o início dos anos 30. Este acontecimento é o Plenário do CC que
se reúne alguus dias após o suicídio de Ordjonikidzé e prossegue
até 5 de Maio de 1937, inaugurando realmente o terror de massa
exercido contra os quadros 41 •

1. O Plenário de Março de 1937 e a renovação maciça dos quadros


..'K Os relatórios que Estaline apresenta a 3 e 5 de Março de 1937
~

perante o CC contêm, de algum modo, as «directivas» que orien-
tam o expurgo geral e a renovação dos quadros que ocorrem em
1937 e 1938 (embora o desenrolar concreto dos expurgos não

viúva. Na realidade, esta visita é ocasião para um confronto entre'


Estaline e a viúva de Ordjonikidzé, à qual Estaline arranca papéis dei-
xados pelo comissário para a Indústria Pesada. O jovem irmão de Ordjo-
nikidzé (mantido em detenção durante dezassete anos) deu numerosos
pormenores sobre os acontecimentos a Roy Medvedev (cf. o livro deste
último, Le Stalinisme, ob. cit., pp. 242 e segs.; nesta obra, são consagradas
páginas importantes à morte de S. Ordjonikidzé e ao aniquilamento de
numerosos quadros do partido e do Estado durante os anos de 1937 e 1938).
40
Estes factos, hoie bastante bem conhecidos, foram notavelmente
descritos por V. A. Kravchenko, em J'ai chosi la liberté, ob. cit., 1947,
pp. 284 a 351.
" Boukharine e Rykov, prisioneiros nas suas residências em conse-
quência dos processos anteriores e das acusações nestes feitas contra eles,
ainda participam na reunião do CC de Março de 1937. Eles e os seus
partidários são acusados de ser conspiradores «que se escondem por
detrás do cartão do partido disfarçando-se de bolcheviques». Molotov
intima Boukharine a «confessar>> que é um agente fascista, declarando-lhe:
«Se não confessares, isso provará que és, efectivamente, um agente dos
fascistas.>> Boukharine e Rykov negam todas as acusações. Constitui-se
uma comissão no seio do CC que conclui no sentido de ser necessário
prender, julgar e executar Boukharine e Rykov. Tendo Estaline declarado
que era ao NKVD que competia tratar desta questão, aqueles antigos
dirigentes são presos (assim como numerosos outros «direitistas»). Reapa-
recerão em 1938 para serem julgados publicamente e condenadoss à morte
(sobre as trocas de palavras entre Estaline, Molotov, Boukharine, etc., por
ocasião deste Plenário de Março, cf. R. Medvedev, Le StaJinisme, ob. cit.,
pp. 222 e segs.; o autor utiliza as memórias não publicadas da viúva de
Boukharine, A. M. Larina).

146
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

respeite, evidentemente, os esquemas que o discurso deixa


entrever) ••.
O relatório de 3 de Março abre com a afirmação de que o
país está a braços com inúmeras acções de «sabotagem, de espio-
nagem e de diversão dos agentes de Estados estrangeiros» e que
estas decorrem desde há dez anos, sendo seus principais respon-
sáveis «os agentes trotskistas-zinovievistas do fascismo» 43 •
Este relatório e a resolução adoptada pelo Plenário visam
também relançar as «iniciativas» de denúncia vindas da «base».
Assim, a intervenção de Estaline comporta uma violenta crítica
aos quadros do partido, aos «dirigentes, no centro como na pro-
víncia [que] ... não souberam discernir o verdadeiro rosto [dos]
agentes de diversão, espiões e assassinos, antes se mostraram
despreocupados, bonacheirões e ingénuos ... >> ••. A tal ponto que
não viram que os «actuais sabotadores [...] são, na maior parte,
membros do partido [que] ... elogiam os nossos homens... ». A estes
quadros e a estes dirigentes, Estaline opõe os «militantes das
fileiras», as pessoas modestas, os «simples homens da base», capa-
zes de «sugerir a solução justa» 45 •
O tom deste discurso é nitidamente «populista», convida a
«base» a exprimir o seu descontentamento e visa, uma vez mais,
obrigar a «acertar o passo» o aparelho do partido que dissimula
a realidade no vértice e cobre todas as espécies de «abusos».
Este discurso prepara uma recrudescência do terror exercido
contra os quadros não somente pelos seus apelos à delação e à
«vigilância» como pela sua muito vaga caracterização dos <<ini-
migos». É esta tão fluida que a quase seja quem for pode ser
aplicada esta «etiqueta». Os «inimigos» entram nas mais diversas
categorias: os membros dos antigos partidos ou das oposições
(que ainda estejam em liberdade); aqueles que têm laços de
parentesco ou relações com eles; aqueles que proferem frases de
crítica ou até simplesmente irónicas; os que não denunciam
«inimigos»; os que negligenciam o seu trabalho, etc. Também
são susceptíveis de ser designados como eventuais «inimigos»
aqueles que não fazem críticas (porque podem ser suspeitos de
«disfarçar as suas opiniões com louvores servis»); aqueles cujo
bom trabalho pode destinar-se a fazerem-se passar por «fiéis» ao

., Sobre este discurso, ver Estaline, Oeuvres, t. xrv, pp. 128 e segs.
e 152 e segs.
" Ibid., p. 129.
" Cf. relatório de 3 de Março de 1937, em Estaline, Oeuvres, t. XIV,
p. 128.
•• Cf. o discurso de encerramento do Plenário, em ibid., pp. 161-162.

147
CHARLES BETTELHEIM
\
poder, ou aqueles que denunciam antigos opositores, já que pode
encontrar-se aí «Uma maneira de cobrir inimigos actuais».
~ ... Tais formulações multiplicam os «alvos» da repressão para
além de todos os limites anteriores.
Uma passagem essencial do discurso de 3 de Março é aquela
que designa como alvo da repressão já não (como em 1928-1931)
os antigos especialistas mas os quadros em funções, incluindo os
que se mostram dedicados ao partido e à sua direcção. Aquele
relatório estabelece também uma distinção entre os «antigos
trotskistas», que podiam ser reconhecidos pelas suas ideias e decla-
rações, e aqueles a que Estaline chama os «trotskistas actuais»
cuja actividade cumpre «desmascarar» porque, diz ele, se dissi-
mulam, as mais das vezes, recorrendo ao «louvor obsequioso
e servil» e mesmo à denúncia hipócrita do trotskismo ••.
Estaline indica também que é necessário «conduzir a luta
contra os camaradas que subestimam [ ... ] as forças e a impor-
tância da sabotagem» 41 •
O relatório de 5 de Março tende a alargar ainda mais a frente
de saneamento e de repressão atacando as «cumplicidades» que
podem criar-se (e que se criam efectivamente) entre certos mem-
bros do partido. O relatório acusa, com efeito, numerosos dirigentes
e militantes responsáveis de formarem, na sua localidade, na sua
província, ou na sua região, <mma pequena família de homens
~ próximos uns dos outros», um «cartel cujos membros se esforçam
~ por viver em paz, por não se prejudicarem uns aos outros e em
',, enviar ao centro, de tempos a tempos, relatórios vazios de sen-
i.
~ .. tido e nojentos sobre os sucessos realizados» ••.
Estes dois relatórios de Estaline estão, portanto, na origem
de novas vagas de repressão e de terror que se abatem sobre
dirigentes acusados de todas as espécies de malfeitorias, incluindo
o «descuido po.Jítico>>.
Os militantes são, com efeito, incitados a apresentar denúncias,
'·· a fim de provarem a sua «clarividência>> ou, mais simplesmente,
para se não arriscarem a serem eles próprios acusados de subes-
timarem as «actividades inimigas».

"' Oueuvres, pp. 134 e segs.


.,. lbid., p. 142. Esta formulação, assim como um artigo da Pravda
de 27 de Maio de 1937, parecem fazer alusão a certa resistência ao desen-
cadeamento da repressão que se havia manifestado ao nível do CC, jâ no
Plenârio do Outono de 1936 e, depois, no Plenário de Março de 1937
(cf. A. Ouralov, Staline au pouvoir, Paris, 1951, pp. 34-41, e L. Schapiro,
ob. cit., p. 419).
•• Estaline, Oeuvres, ob. cit., t. XIV, p. 155.

148
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

O discurso de 3 de Março prepara a substituição de um grande


número de dirigentes em funções por «promovidos» após 1928,
aos quais Estaline atribui alto nível de competência. Declara,
com efeito, que não há razões para hesitar em eliminar os ele-
mentos «descuidados» ou faltas de «clarividência» ou de «vigi-
lância>>, ainda que possuam grande experiência, porque -diz
ele- no decurso do período decorrido se formaram «dezenas
e dezenas de milhares de bolcheviques tecnicamente sapientes» ••.
Nesse momento, Estaline põe o acento nos «processos demo-
cráticos» que deveriam ser seguidos para assegurar a renovação
dos quadros. Pede à «massa dos membros do partido» que con-
trole os quadros através da actividade das organizações do partido.
O relatório de 3 de Março de 1937 declara que é necessário recorrer
à designação dos dirigentes por via eleitoral. Estaline insiste
sobre o respeito dos estatutos do partido que comportam o «voto
secreto», a «liberdade de crítica e de autocrítica» e o «direito
de apresentar e recusar candidaturas». O respeito pelos estatutos
é afirmado como necessário ao «controlo dos dirigentes pela massa
dos membros do partido» 50 • Estas frases não têm relação com
a prática política real.

2. O NKVD e o expurgo dos quadros

As declarações sobre as iniciativas da base na renovação dos


quadros, sobre o voto secreto, sobre o controlo pela massa dos
membros do partido ficam, com efeito, praticamente letra-morta,
já que o terror contra os quadros está nas mãos do NKVD.
A fim de «expurgar» os aparelhos económicos e administra-
tivos dos elementos «suspeitos», os grupos de inquérito organi-
zados a partir de 1935 por Ejov são transformados em secções
operacionais que cumprem a sua tarefa numa base territorial.
Os dirigentes destas secções têm instruções para prender todos
aqueles que são considerados responsáveis por uma administração
má, por má-fé em relação às autoridades, pela não realização
dos planos e, também, aqueles que poderiam tornar-se futuros
elementos anti-soviéticos. A repressão abate-se mesmo sobre
aqueles que são «culpados» de gracejos sobre o regime ou sobre
os dirigentes, ou contra os autores de reparos que revelam ·•'
•• Oeuvres, p. 143.
.. Estaline, Oeuvres, t. XIV, ob. cit., p. 157. Nesta época é, aliás,
lembrado que os dirigentes em funções, mesmo quando anteriormente
designados pelos órgãos do partido, incluindo o CC, podem ser destituídos.

149
,• '>
•'

CHARLES BETTELHEIM

cepticismo 51 • A repressão atinge, então, os quadros de todos os


níveis e pertencentes aos aparelhos de toda a natureza. Auto-
-sustenta-se pelo jogo das «denúncias>>, das «confissões» e pelo
zelo dos agentes do NKDV que, à falta de «êxitos» suficientes,
estão eles próprios ameaçados de sucumbir aos golpes da repressão.
O papel crescente do NKVD conduz rapidamente a pôr em
guarda contra o recurso a «métodos democrâticos» na renovação
dos quadros. Assim, desde 17 de Abril de 1937, a Pravda declara
no seu editorial «Os inimigos [ ...] do bolchevismo esforçam-se
não somente em palavras mas também em actos por fazer uso
das eleições secretas para atingir os seus objectivos», a fim de
enfraquecer o partido e de levar a uma ruptura entre o aparelho
e a base do partido.
Na realidade, a direcção do partido anula as directivas dadas
por ocasião do Plenârio de Março, censurando os quadros respon-
sâveis por não «dirigirem melhor a critica» e por não conseguirem
repelir as «propostas incorrectas» 52 • Progressivamente, as criticas
julgadas «não sãs» são assimiladas pela imprensa a «chicanas»
inspiradas por «canalhas trotskistas» que visam enfraquecer a
autoridade dos «comandantes da produção e da economia e minar
a disciplina dos operârios» ••.
A partir de Junho de 1937, o jâ limitado papel das assembleias
de base do partido tende a tornar-se puramente simbólico. O sa-
neamento dos quadros torna-se, cada vez mais, atribuição dos
órgãos centrais, acima de tudo o NKVD. A 5 de Junho de 1937,
i' a Pravda ainda fala, é certo, do trabalho de depuração no qual
a «base do partido» deve participar, mas insiste principalmente
na ideia de que é «a espada poderosa da ditadura do proletariado»
(isto é, do NKVD) que deve «liquidar os inimigos». A 8 de Junho,
a Pravda vai mesmo um pouco mais longe: põe o acento acima
de tudo no papel decisivo dos «Órgãos>>, isto é, dos serviços de
segurança, que «trabalham» baseados nas denúncias e nas «con-
fissões».
Anuncia-se, desta forma, uma viragem confirmada pelo Ple-
nârio que se reúne de 23 a 29 de Junho, e que insiste mais do que
nunsa na acção do NKVD. É visível que quer, mais ou menos,
pôr termo às acusações «vindas de baixo». Desde hâ meses, com
•..
"' Os testemunhos respeitantes ao funcionamento destes expurgos são
hoje bastante numerosos. Sob uma forma literãria. mas que dã bem a
atmosfera da época, esse testemunho encontra-se no livro de Dombrovski,
La Faculté de l'inutíle, ob. cit.
" Pravda, 25 de Maio de 1937, p. 1.
"' Pravda, 6 de Junho de 1937, p, 1, e 24 de Junho de 1937, p. 1.

150
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AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

efeito. o descontentamento da população traduz-se por um fluxo


de acusações formuladas em assembleias convidadas a «limpar» -~

os apar,elhos; ora, aos quadros regionais cada vez se torna mais


difícil «controlar» essas assembleias.
A campanha de expurgo dos quadros ainda conserva um certo
carácter «<breirista» ou populista, mas ele é essencialmente retó-
rico, constituindo em opor os «bons operários» aos quadros cor-
rompidos e em evocar a substituição destes últimos por stakha-
novistas 54 •
Em todo o caso, após a reunião do Plenário de Junho, já quase
se não fala de «Controlo por baixo». Opostamente, a imprensa
faz um elogio ditirâmbico do NKVD, chamado a prosseguir a luta
contra os «inimigos», os «diversionistas» e os «novos espiões».
Um editorial da Pravda afirma que «o garante [desta luta] é o
trabalho glorioso do NKVD [porque], no país dos Sovietes [ ...],
o nosso serviço de informações é a carne e o sangue do país
inteiro [... ], recebe o apoio poderoso e cada vez mais activo de
milhões de trabalhadores ... » ••.
A partir daí, incide sobre os quadros a todos os níveis uma
repressão maciça. Os membros do partido, dos organismos de base
aos comités regionais, estão praticamente obrigados a denunciar
ao NKVD todo o quadro que considerem comprometido; se não
o fizerem são considerados «cúmplices» e como tais perseguidos 56 •
As regras da «vigilância» aplicam-se aos membros do próprio
NKVD. Não devem ,estes esperar passivamente as denúncias.
Nesse momento, também no NKVD cada qual pode ser denunciado
pelos seus próprios subordinados. Todavia, para limitar os efeitos
deste «activismo de base», especifica-se que os polícias só podem
prender quadros pertencentes a um escalão inferior ao seu, e
nunca os seus «pares» ou os seus «superiores» 57 •
Assiste-se, assim, a um verdadeiro desencadear do terror que
atinge os quadros de todos os aparelhos e prossegue durante toda
a segunda metade de 1937. Entre aqueles que o terror toca,
acham-se, certamente, quadros culpados de verdadeiros abusos,
de acções ilegais, de negligências graves (designadamente no que
respeita à segurança no trabalho) e de corrupção. Numerosos
testemunhos, porém, indicam que o saneamento e as prisões ocor-
rem de maneira fundamentalmente «cega»: um número muito
" Cf., por exemplo, o editorial da Pravda de 9 de Julho de 1937.
" Pravda, 18 de Julho, p. 1.
,. De Junho a Setembro de 1937, inúmeros artigos, designadamente
na Pravda, retomam as teses da «vigilância» e da «cumplicidade» por
omissão.
n Cf. G. T. Ritterspom, «L'État... », art. cit., p. 26.

151
CHARLES BETTELHEIM

grande de condenados são-no por motivos inteiramente «fabrica-


dos», com base em «confissões» extorquídas por inquiridores
demasiado «Zelosos», ou em denúncias que emanam de verdadeiros
culpados ou de oportunistas que querem «fazer-se valer» e «liber-
tar» lugares que eles próprios poderão ocupar. Em fins de 1937,
as coisas tomaram tal amplitude que, na realidade, é, então,
frequente que um novo quadro, recém-instalado, seja, por sua
vez preso, pelas «actividades criminosas» que se considera que
cometeu alhures.

3. O caos administrativo e financeiro

Sob os golpes violentos da repressão que atinge o partido e o


conjunto dos aparelhos de Estado, desenvolve-se uma profunda
desordem na economia e na administração. Em certos distritos,
nem sequer existe administração local. Os «responsáveis» nomea-
dos para chefiar empresas ou aparelhos económicos ignoram tudo
das suas novas funções e assumem-nas mal. Os «êxitos» econó-
micos baixam. No princípio de 1936, a administração tende para
a paralisia porque os quadros recentemente designados não ousam
tomar nenhuma iniciativa com receio de ser acusados de com-
portamentos «hostis» ""· Multiplicam-se os actos de banditismo,
realizados por falsos polícias ••.
O «saneamento» das administrações e «o acertar o passo» do
partido, longe de melhorar a marcha dos aparelhos, contribuem
para agravar o seu mau funcionamento. As práticas de dissi-
mulação, de corrupção, de arbítrio, de gritante negligência perante
as queixas da população, continuam a dominar.
No principio de 1938, a alta direcção tem de renunciar
momentaneamente a exercer o terror sobre os quadros dos apa-
relhos de Estado. Torna-se urgente inverter o vapor a fim de
evitar um verdadeiro caos. Para desencadear uma recuperação
da situação, o Plenário de Janeiro de 1938 adopta uma resolução
que trata dos «erros» cometidos no que diz respeito às exclusões
o
e das medidas a tomar para as rectificar ••.
I., Esta «rectificação» dá origem a processos contra os que são
designados correntemente como os «sabotadoreS>> da repressão

" Cf. sobre estes pontos, designadamente Pravda, 24, 26 e 30 de


Janeiro de 1938, 12 de Fevereiro, 27 de Março, 16 e 17 de Abril e 13 de
Junho (citado por G. T. Rittersporn, «L'État ... », ob. cit., p. 27), bem
como S Z, 1938, p. 116, e B, n.• 9, 1938, pp. 85-86.
" Cf. Pravda, 24 de Março de 1938, p. 6.
'· " Cf. KPSS .. . , vo1. II, ob. cit., pp. 849-858.
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152

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AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

anten"or_ Desenvolve-se, assim, uma dupla campanha. Uma delas


toma a forma de «denúncia dos denunciantes» e é praticamente
dirigida contra quadros do partido de poSição infen"or, conside-
rados «carreiristas» "'. A outra é dirigida contra uma parte dos
quadros do NKVD, da Procuradoria e dos órgãos judiciários,
tidos por responsáveis pelos «erros» e os «excessos» cometidos ••.
Esta campanha não impede que a maioria daqueles que haviam
sido presos no decurso dos meses passados continuem detidos.
Também não impede que, em Março de 1938, se abra o «terceiro
processo de Moscovo», cujos principais acusados são Boukharine,
Rykov, Iagoda (que dirigia o GPU por ocasião do «primeiro
processo»). Encontram-se eles, assim, lado a lado com antigos
«direitistas» e com homens que sempre haviam sido dedicados
a Estaline.
Os acusados são declarados culpados de ter organizado um
«bloco dos antigos direitistas e dos trotskistas», de terem urdido
conspirações com os nacionalistas burgueses ucranianos, geor-
gianos, arménios, bielo-russos e azerbaijaneses, tudo isto à ordem
dos Estados inimigos da URSS. Boukharine é mesmo acusado de
ter «querido» assassinar Lénine, em 1918, e de ter «participado»
no assassínio de iKirov.
Um dos objectivos do processo (além da «demonstração» que
ele deve fazer dos «crimes» a que conduz todo o desacordo com
o partido) é o de.abrir a via a uma nova vaga de liquidações. Esta
atinge indistintamente homens que haviam sido promovidos a
postos de responsabilidade e outros que pertencem ao que, então,
resta dos quadros de velha data. Parece que alguns dos acusados
eram suspeitos de serem hostis à aproximação que os dirigentes
soviéticos preparam com a Alemanha nazi (as últimas declarações
públicas de Boukharine eram nitidamente antinazis e antifascistas);
é a mesma suspeita que conduziu à liquidação de numerosos
quadros do exército. Segundo um procedimento tornado habitual,
esta suspeita não é enunciada; pelo contrário, aos condenados
à morte são censurados os seus pretensos «laços» com a Alemanha
nazi e a sua actividade em favor do serviço de espionagem deste
país.
Realiza-se assim, em 1937 e 1938, uma nova liquidação de
velhos bolcheviques, de velhos quadros do Exército Vermelho
e de numerosos quadros do NKVD.

•• Cf., por exemplo, Pravda, 24 de Abril de 1938, p. 6, e 8 de Junho


1938i p. 6.
' Cf. G. T. Rittersporn, Conflits ... , ob. cit., pp. 331 e segs.

153
CHARLES BETTELHEIM

No fim de 1938, esta campanha leva à queda de Ejov que


Béria substitui na chefia do NKVD. Acaba, assim, uma fase
particular do terror dirigido contra os quadros e que atingiu
o partido, e os aparelhos económicos, militares e administrativos.
Esta fase teve, porém, pesadas consequências futuras. Em primeiro
lugar, favoreceu o desenvolvimento de uma disciplina puramente
formal, a selecção de quadros escolhidos pelo seu servilismo mais
do que pelas suas experiência e capacidade; desenvolveu um
individualismo extremo dos quadros (dissimulado, aliâs, sob o
discurso da devoção ao partido); feciprocamente, exasperou a
desconfiança do vértice do partido para com os seus próprios
quadros. Além disso, ao ocorrerem pouco antes da Segunda Guerra
i,
Mundial, os expurgos perturbaram gravemente o funcionamento
r, dos aparelhos civil e militar. Conforme nota Moshé Lewin:
~

r,' Como acção política e método destinado em definitivo


,.
a preparar o pais para enfrentar a guerra, os saneamentos
não tinham sentido. Foram a mais sistemática sabotagem
do esforço de guerra, da criatividade cultural, da vida
administrativa que uma direcção jamais infligiu ao seu
próprio país "'.

SECÇÃO III

A amplitude da renovação dos quadros

A amplitude da repressão que se abateu sobre o partido e


sobre os quadros, entre o fim de 1934 e o fim de 1938, é de tal
monta que se pode falar de uma renovação radical dos aparelhos
do poder.
1 Os aspectos quantitativos da renovação

A dimensão da renovação dos quadros operada no decurso


desses anos é muito difícil de avaliar. Não existe nenhuma esta-
,,' tística oficial de conjunto. Os poucos dados de que se dispõe estão
longe de ser fidedignos: além disso, incidem sobretudo sobre os
' membros do partido; ora, na época, ainda eram bastante nume-
rosos os quadros da indústria ou da economia que não eram

., Cf. M. Lewin, «Stalin and the Fali of Bolshevism», em Journal


of Interdisciplinary History, Verão de 1965, p. 116.

154
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

membros do partido. Os dados fragmentários que podem ser utili-


zados são, no entanto, altamente significativos.
Apoiado em publicações oficiais, Zbigniew K. Brzezinski chega
à conclusão de que, entre 1936 e 1939, o número total das exclu-
sões do partido (quase sempre seguidas de prisões) teria sido de
850 000 ••, o que representa mais de um terço dos efectivos do
partido, em 1935.
Segundo os documentos de arquivos aos quais teve acesso e
segundo os seus cálculos para o período de 1936-1939, A. D. Sa-
kharov chega à conclusão de que, no decurso deste período,
teriam sido presos 1 200 000 membros do partido, dos quais
somente 50 000 teriam sido finalmente libertados"'. É, não obs-
tante, necessário observar, com L. Schapiro, que uma parte
daqueles que são presos em 1936-1939 podem ser excluídos de
anos anteriores e, sobretudo, que nem todos são quadros.
No decurso dos anos recentes, foram publicadas estatísticas
parciais que parecem indicar terem os saneamentos sido menos
amplos do que os acabados de indicar ••. Tais estatísticas são, no
entanto, dificilmente conciliáveis com tudo o que se sabe da
situação do partido e dos quadros em 1937 e 1938. Acresce que
elas não permitem dar conta da amplitude das perturbações ocor-
ridas no enquadramento propriamente dito do partido ou em
importantes sectores industriais. A respeito deste último ponto,
são altamente significativos alguns números oficiais relativos a
certos comissariados do povo.
Por exemplo, no Comissariado para as Máquinas-Ferramentas
(que desempenha um papel chave na industrialização e na defesa),
toda a direcção do Comissariado e grande parte dos engenheiros,
técnicos e quadros são «expurgados» em 1937 e 1938. Em 1937,
todos os directores de fábricas deste Comissariado, excepto dois,

•• Cf. Zbigniew K. Brzezinski, no seu livro The Permanent Purge,


Cambridge (Mass.), 1956, pp. 98-99. Ver o que a este propósito diz. L. Scha-
piro, em The Communist Party, ob. cit., p. 440; e o quadro a p. 211 do
livro de N. Werth, l!:tre communiste .. . , ob. cit.
"' Os números calculados por A. D. Sakharov encontram-se num
texto por ele publicado no estrangeiro, Razmychleniia o progresse, mirnom
socouchtchestvovanii i intellektualnoi svobode, Francoforte, 1968, p. 24.
Sobre esta questão, ver também L. Schapiro, ob. cit., p. 440; e T. H. Rigby,
Communist Party Membership ... , ob. cit., pp. 209-214 .
.. Por exemplo, em 1937, o número de «partidas» da organização
do partido da região de Moscovo não teria ido além de 13,4% (cf. Mos-
kovskaya gorodskaia i Moskovskaya organizatsii KPSS v tsifrakh, Mos-
covo, 1978, pp. 27-29 e 46-47.

155
CHARLES BETTELHEIM

são «saneados» 67 • O mesmo acontece, na construção aeronâutica,


à quase totalidade dos engenheiros e técnicos, presos nessa
época ••. A amplitude dos expurgos é igualmente grande na cons-
trução naval.
Quanto à indústria pesada, base de toda a industrialização,
eis o que L. Kaganovitch (comissário para esta indústria) declara
durante o XVIII Congresso do partido, em Março de 1939:
Em 1937 e 1938, o pessoal dirigente da indústria pesada
foi completamente renovado e novos homens foram no-
meados em lugar dos sabotadores desmascarados. Milhares
de homens novos foram nomeados para postos dirigentes ...
Em certos ramos, julgámos necessârio demitir diversos
camaradas ••.
L. Kaganovitch, noutro ponto, acrescenta:
Agora, temos quadros que cumprirão [ ... ] qualquer
tarefa que lhes for atribuída pelo camarada Estaline.
Esta última frase evidencia bem um dos objectivos do sanea-
mento: dispor de quadros cujo principal mérito seja o de dar
provas de uma obediência absoluta a toda e qualquer ordem
vinda do vértice. Semelhante objectivo não diz respeito exclusi-
vamente aos quadros das empresas e dos aparelhos económicos
mas também aos do partido, dos aparelhos administrativo e polí-
tico e da intelligentsia em geral. Abrange também um vasto
campo «qualitativo».

2. Os aspectos qualitativos

No decurso da Ejovchtchina, o terror abate-se não só sobre os


engenheiros, os técnicos e os administradores mas também sobre
os cientistas e os artistas (membros ou não do partido). Os quadros
da economia e da administração são, muitas vezes, repreendidos

•• Cf. J. M. Cooper, The Development of the Soviet Machine Too/


Industry, 1917-1941, tese de doutoramento, Universidade de Birmingham,
Setembro de 1975, pp. 399-400.
•• Cf. Charagume (pseudónimo) En prison avec Tupolev, Paris,
Albin Michel, 1972. O autor desta obra é o engenheiro G. A. Ozerov.
•• XVIII Congress: The Land o/ Socialism, Moscovo, 1939, p. 349;
citado por Azrael, Managerial Power and Soviet Politics, Cambridge
(Mass.), Harvard University Press, 1966, p. 100.

156
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

pelas suas «falhas» quando os planos que devem executar não são
«realizados» ou as normas de produção não são respeitadas em
qualidade e em quantidade 70 ,
Quanto aos artistas, escritores e cientistas, o que é posto em
causa são as suas «concepçõeS)), ao serem acusados de defender
pontos de vista «estranhos)) ou mesmo hostis ao marxismo. Estas
acusações atingem muito particularmente os autores que se afas- -.,,
tam das normas do «realismo socialista», tais como foram defi-
nidas pelo partido.
Todavia, os principais «alvos» do terror são, sobretudo, os admi-
nistradores, técnicos e engenheiros. Os seus casos dão origem a
processos em quase cada República, região ou rdion. A alguns
destes processos, a imprensa muitas vezes nem sequer se refere.
A maior parte destas operações policiais ou judiciárias são efec-
tuadas em completa violação das regras processuais fixadas pelo
próprio poder.
O terror, aliás, parece obedecer a um «plano)): no decurso de
certos meses, são especialistas, funcionários ou empregados afec-
tados a um mesmo ramo de actividade que, através de todo o pais,
são processados por motivos aproximadamente semelhantes. As-
sim, como indica R. Medvedev, no decurso do segundo trimestre
de 1937, em centenas de Rciiony e dezenas de regiões decorrem
processos nos quais os principais acusados são funcionários res-
ponsáveis pela agricultura. Os motivos da acusação são sempre
mais ou menos os mesmos: «sabotadores direitistas anti-soviéticos)),
ou «violadores da legalidade socialista, trotskistas e direitistas)),
etc. No que respeita aos quadros (civis e militares) são, simulta-
neamente, quadros do mesmo nível (secretários do partido do
ralkom ou presidentes do Soviete de rdion ou directores de SMT)
que são presos ou acusados através do país inteiro. São sucessiva-
mente atingidos administradores e quadros (e, bem entendido,
também, simples trabalhadores) da agricultura, da indústria, do
comércio, dos transportes, etc. 71 • A partir de 1937, o próprio
NKVD sofre diversos expurgos sangrentos.
A amplitude do terror exercido sobre os quadros, como a do
terror em geral, põe numerosos problemas; em particular o dos
seus «objectivos», da sua «intencionalidade» ou do carácter «incon-
trolado» que o processo terrorista tende a assumir progressiva-
mente, tornando, de algum modo, «loucos» (em particular pelo
medo que eles próprios sentem) aqueles que dirigem o processo.

70
Cf. G. T. Rittersporn, Conflits ... , tese citada, pp. 118-II9.
., Cf. R. Medvedev, Le Stalinisme, ob. cit., pp. 284-286.

157
CHARLES BETTELHEIM

A questão pôs-se, designadamente, em relação a Ejov e Esta-


line 72• É altamente provável que o «equilíbrio psíquico» daqueles
que dirigem um enorme processo de repressão acabe por ser per-
turbado pelo próprio processo. Há longo tempo que Marx obser-
vou que o terror jacobino era exercido por homens eles próprios
aterrorizados; ora, o terror jacobino é um fenómeno banal com-
parado como o terror e a repressão estalinista e é quase certo que
foi este o caso de Ejov e Estaline. No entanto, os verdadeiros
problemas não se referem ao psiquismo de certos dirigentes, mas
sim às particularidades de um sistema que, durante anos, funciona
baseado no terror e na repressão, e às transformações nas formas
de dominação politica e social que resultam de uma repressão tão
ampla exercida sobre os quadros de todos os aparelhos de domi-
nação.

-
0

72
A questão da «loucura» de Estaline foi muitas vezes evocada.
No seu Relatório Secreto, Khrouchtchev fala da «loucura das grandezas»
de Estaline, da sua megalomania, etc. Está fora de dúvida que o poder
cada vez mais incontrolado de que dispõe o secretário-geral e a adulação
(produto de uma estrutura burocrática) de que está rodeado originam
nele «perturbações psíquicas». Diversos índices sugerem que médicos do
Kremlin ob~ervaram tais perturbações e que alguns deles (os Drs Plet-
nev e Lévine) assumiram o risco -que lhes custou a vida- de dar
conhecimento das suas observações a membros do grupo dirigente. É esta,
ao que parece, uma das razões pelas quais J agoda, que havia sido um dos
confidentes dos médicos de Estaline, foi «liqmdado» por ocasião do grande
processo de 1938. B. Souvarine foi um dos primeiros. no Ocidente, a ser
informado deste diagnóstico dos médicos do Kremlin (cf. o seu artigo
«Le grand secret du Kremlin», em Est-Ouest, Novembro de 1953, repro-
duzido parcialmente na mesma revista a 31 de Dezembro de 1979).

158
TERCEIRA PARTE

A BURGUESIA DO PARTIDO INSTALA-SE

A União Soviética da segunda metade dos anos 30 sofre uma


transformação profunda das formas de dominação politica e social.
Estas transformações afectam o próprio partido, a nova classe
dominante e as relações entre eles.
;
r<

CAPíTULO I

A TRANSFORMAÇÃO DO PARTIDO '

Sabe-se que, a partir dos anos 20, o partido sofre importantes


transformações, que se ampliam no fim destes anos e princípio
dos anos 30. A partir de 1935 -sob a acção das formas específicas
que, então, assumem a repressão e o terror- elas aceleram-se a
um ponto até então desconhecido. Estas transformações referem-se
à direcção do partido, aos seus quadros, ao conjunto dos seus
membros, à composição dos seus efectivos e ao seu funcionamento.

SEOÇÃO I
A renovação da direcção do partido
e dos seus quadros

A renovação da direcção e dos quadros do partido é larga-


mente realizada sob o impulso do grupo dirigente formado em
redor de Estaline, fundamentalmente pela própria iniciativa deste.
Esta renovação passa por diversas fases cujo desenvolvimento está
longe de acompanhar sempre o ritmo e o caminhar que o grupo
dirigente quereria impor; com efeito, está-se em presença de um
processo social complexo no qual intervêm resistências e acelera-
ções incontroláveis.
Numa primeira fase, o processo de renovação toca sobretudo
dirigentes e membros do aparelho que pertenceram ao partido
bolchevique na época de Lénine. Sabe-se que são atingidos, em
primeiro lugar, os dirigentes das antigas oposições (a começar
pelas «de esquerda»); são, depois, eliminados quadros que haviam
apoiado estas oposições, aqueles que com elas tinham simpatizado,
ou que podiam ser «suspeitos» de tal simpatia e, por último, a
maior parte dos antigos quadros do partido.
Bst. Doe. 220-11 161
''
CHARLES BETTELHEIM
i
;;I
~· A medida que prossegue esta liquidação, desenvolve-se uma
segunda fase no decurso da qual são atingidos quadros e dirigentes
;
promovidos entre 1929 e 1934, entre os quais são muito representa-
l tivos numerosos delegados ao XVII Congresso. A Ejovchtchina
~ é o momento culminante desta fase que abrange homens que
haviam ascendido recentemente a postos de alta responsabilidade,
'
i' e que fizeram «carreira» quando Estaline controlava de perto as
promoções nos aparelhos do partido e do Estado.
Para ilustrar a amplitude desta renovação dos quadros, indi-
car-se-á que, no início de 1939, 110 dos 139 membros do CC elei-
tos no XVII Congresso haviam sido presos, executados ou impe-
lidos ao suicídio '. Identicamente se verifica que, entre os 1966
delegados ao XVII Congresso, dito «Congresso dos Vencedores»,
1108 foram presos e a maior parte executados durante a Ejovcht-
china. No XVIII Congresso (1939) só reaparecem 3% dos dele-
gados ao Congresso precedente •.
No fim dos anos 30, dos altos dirigentes da época de Lénine
só restam em funções Estaline e Molotov. Os outros ou morreram
ou foram executados ou suicidaram-se. Um único está ainda vivo:
Trotski; foi exilado para o estrangeiro. Desaparece aliás, em
Agosto de 1940, assassinado no México por um agente soviético.
Durante os anos 30, não só se assiste à liquidação daqueles que
haviam sido membros de BP anteriores ao XVII Congresso (como
Boukharine, Rykov, Kamenev, Zinoviev, Sokolnikov, Boubnov e
Tomski), mas assiste-se também à liquidação de um grande número
de membros do BP eleitos a seguir ao XVII Congresso (1934). Entre
os qmnze membros deste bureau (que já não conta senão dois dos
dirigentes dos primeiros anos da revolução), oito haviam sido «eli-
minados» no princípio de 1939 (quer tivessem sido «expurgados»,
assassinados -como Kirov -, quer forçados ao suicídio), dois
outros do «bureau» eleito ulteriormente (em 1935 ou 1937) já
estão eliminados em 1939 '.
Entre 1936 e 1939, a «renovação» dos aparelhos de direcção do
partido ao nível das Repúblicas e das grandes cidades é tão radical
como aquela que se opera no centro. Também ali são atingidos

1
Cf. R. Medvedev, Le Stalinisme, ob. cit., p, 241; e Stephen F.
Cohen. nb. czt., p. 341.
' Stephen F. Cohen, ob. cit., p. 341.
3
Cf. a lista dos membros do BP em diferentes datas e as indicações
relativas à respectiva sorte em L. Schapiro, The Communist Party ... ,
ob. cit., pp. 648-649. No que se refere à sorte dos membros do Comité
Central saído do XVII Congresso, cf. Slava L., The Origins and Conse-
quences of the Purge of the Fui/ Members of the 1934 Central Committee
of the CPSU, Indiana, Ph. D. Diss.

162
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

homens que aparentemente sempre haviam sido sustentáculos fiéis


do secretário-geral. Assiste-se, assim, durante estes anos, à substi-
tuição de 80% a 100'% (conforme os casos) dos quadros dirigen-
tes das Repúblicas e das regiões 4 •
É ainda possível indicar que, ao passo que em 1930, 69% dos
secretários de região, de departamento e de CC das Repúblicas
federadas haviam ingressado no partido antes de Outubro, em
1939, 80,56% só o haviam feito após 1924 '.
A «renovação» maciça dos quadros é o resultado de uma polí-
tica que visa uma pluralidade de objectivos e cujos efeitos são
amplificados pelas «prestações de contas» que ocorrem a todos os
níveis. Um dos objectivos procurados pela direcção estalinista é o
de eliminar aqueles cuja «lealdade» para com ela lhes parece
«duvidosa». Outro objectivo é o de afastar aqueles cujo compor-
tamento pessoal é considerado susceptível de enfraquecer o regime,
seja porque «abusam>> demasiado visivelmente dos seus poderes e
dos seus privilégios para fins pessoais, seja porque impõem àqueles
que estão sob a sua direcção condições de trabalho que suscitam
descontentamento. Pouco importante é, aliás, que o façam apli-
cando estreitamente directivas vindas de cima, já que se trata de
sacrificar certos quadros perante o descontentamento popular:
desempenham a função de bodes expiatórios cuja eliminação deve-
ria reforçar a autoridade global do partido, portanto, também a
dos novos apparatchiki.
Uma das consequências desta renovação maciça dos quadros
do partido, efectuada sob o impulso do grupo dirigente estalinista,
é -como se viu na parte precedente- a de sujeitar estreita-
mente os quadros àquele grupo e forçá-los, para que sobrevivam,
a dar provas de «incondicionalidade» perante ele.
Um aspecto essencial desta «incondicionalidade» é «o acertar
o passo» dos partidos das diferentes Repúblicas, a eliminação de
tudo o que, mesmo de longe, pode assemelhar-se a defender aspi-
rações das diferentes Repúblicas. Assim, em numerosas Repúbli-
cas, particularmente na Ucrânia, sucedem-se os «expurgos» quase
mês após mês, a partir de 1936. É frequente que aqueles
que, algumas semanas antes, haviam eliminado os quadros em
funções serem, por sua vez, eliminados. Tal é o caso, em 1937-
1938, quando, na República da Ucrânia, todos os membros do
BP, do Orgburo e do Secretariado são presos, ao mesmo tempo
~l
• Cf. R. Conquest, The Great Terror, ob. cit., p. 237.
• Cf. M. Fainsod, How Russia is Ruled, 2.• ed., Cambridge, 1963, I
p. 1966.

163
CHARLES BETTELHEIM

que, dos 102 membros do CC ucraniano, só 3 sobreviveram •.


Muitos daqueles que são nomeados para lugares de direcção no
princípio de 1937 são presos próximo do fim desse ano ou no prin-
cípio de 1938. Os que lhes sucedem sofrem igual sorte na sua
maior parte 7 • Em 1938, estas liquidações são devidas a Khrou-
chtchev, nomeado 1. 0 secretário do CC da Ucrânia, em Janeiro.
«Expurga» ele de novo, com efeito, os órgãos dirigentes do par-
tido e do governo desta República.
Toma, assim, forma um partido que é, cada vez mais, um
partido nacionalista russo (mesmo quando os «alógenos» estão na
direcção). São os quadros e os dirigentes deste partido remodelado
'' ~
I~
que «sobem» na segunda metade dos anos 30. Khrouchtchev tor-
I na-se, então, uma personagem chave: é sob a sua égide que Kíri-
lenko e Brejnev começam realmente a sua carreira de futuros
altos dirigentes '8 •

'-

SECÇÃO II

A renovação dos efectivos do partido

As exclusões e prisões contribuiram também para a renovação


dos efectivos do partido e da sua composição social. Esta reno-
vação opera-se através de fortes flutuações do número de ade-
rentes.
Os números globais indicam que, no decurso do conjunto do
período estudado, os efectivos do partido passam por três fases
distintas:
A primeira é a de uma expan&ão rápida (1929 e 1933) que vê
os efectivos passarem de 1,5 a 3,6 milhões •.

• Cf. R. Conquest, The Great Terror, ob. cit., p. 256.


• Ibid., pp. 257-258.
• Ibid., pp. 258-259.
• Estes números e os dos «expurgos» seguintes incidem sobre os
efectivos totais. Compreendem membros de pleno direito e «Candidatos»
ou «estagiários» (admitidos a título probatório); referem-se aos efectivos
estimados em 1 de Janeiro de cada ano. A fonte soviética é PJ, n.• 19,
Outubro de 1967, pp. 8-10, citada por T. H. Rigby, ob. cit., p. 52. Os
números estão arredondados até à primeira decimal. Estes dados são
confirmados por aqueles calculados por M. Werth, no seu livro P:tre
communiste ... , ob. cit., pp. 210-211.

164
' '' - ''"I,- n~~v" ":'"", i"""~'fi.~J ~'}:~
,.,

AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

A segunda (1933-1937) é a de uma contracção brutal. Os efec-


tivos caem, então, de 3,6 para 1,9 milhões, recuando pois 1,7
milhões ou 47 %.
A terceira (1937-1939) caracteriza-se por uma expansão que se
irúda lentamente e, depois, se acelera, levando os efectivos a 3,5
milhões, isto é, aproximadamente ao anterior máximo, e com uma
progressão de quase 100%, apesar do prosseguimento dos «ex- i
purgos».
Estas flutuações de efectivos resultam principalmente da polí-
tica de recrutamento, das operações de depuração do partido e da
repressão. Entretanto, os números citados só parcialmente tradu-
zem a amplitude e a brutalidade da «renovação». Para se ter uma
visão mais completa deste último e das condições nas quais ele se
produz, seria necessário poder distinguir entre as exclusões que
se produzem por efeito dos próprios expurgos '" e as perdas de
efectivos devidas a outras causas, em particular a causas naturais;
seria também necessário entrar em conta com as adesões que ocor-
reram durante diferentes períodos. Infelizmente, as informações
de que se dispõe não comportam estatísticas precisas sobre estes
diferentes pontos 11 , embora permitam evidenciar a amplitude ex-
traordinária da renovação dos efectivos do partido bem como as
mudanças ocorridas na composição social deste.
Os anos 1929-1932 ainda são caracterizados por uma política
de recrutamento que prolonga a dos últimos anos da NEP, e que
visa fazer crescer o número e a proporção dos operários membros
do partido. Esta política -cuja aplicação coincide com um desen-
volvimento rápido dos efectivos de operários a trabalhar nas indús-
trias de transformação e nas minas- leva a um crescimento do
.
,
·~
'1 '
" Os dois principais «expurgos» ocorrem em 1933-1934 (anos durante
os quais mais de 1 milhão de membros do partido são afastados) e em
1936-1938 (anos durante os quais as depurações tocam 850 000 membros
do partido). A estes dois grandes «expurgos» acrescentam-se os dos anos
1929-1933 e o de 1935. O de 1936-1938 é o mais significativo porque não
foi decid1do pelo CC e atinge tanto os muito ant1gos membros do partido
como metade dos cerca de 2 milhões de recrutas dos anos 1929 a 1933.
11
R. Medvedev tentou avaliações indirectas. Este autor parte dos
efectivos do partido no momento do XVII Congresso (1934); avalia a '<
«perda natural» deste período em 300 000 a 400 000 pessoas e estima em
pouco mais de 1 milhão o número de adesões entre Novembro de 1936

1'
(época em que o partido aceita novos membros após ter estado «fechado»
durante bastantes anos) e 1939. Estes números levam-no a estimar que,
no momento do XVIII Congresso (1939), os efectivos do partido se teriam
elevado (na ausência dos «expurgos» e da repressão) a 3,5 milhões,
quando, de facto, eram menos de 2,5 milhões, donde conclui que a dife-
rença de cerca de l milhão é devida aos «expurgos» sistemáticos» (cf.
R. Medvedev, ob. cit., p, 283).

165
CHARLES BETTELHEIM

número de membros do partido que são efectivamente operários;


o crescimento global dos efectivos do partido é, no entanto, tal,
que a proporção de tais operários está em recuo embora fraco 12•
O recuo assim ocorrido resulta, aliás, em larga medida, do
facto de que uma forte proporção daqueles que são operários no
momento da adesão, ou que o eram pouco antes, abandona as
fileiras da classe operária visto que são promovidos a posições de
responsabilidade. Sabe-se, com efeito, que durante os anos 1929-
1932, bastantes centenas de milhares de operários possuem cursos
do ensino médio, técnico ou superior 13 , e que são numerosos os
que entram no partido e se tornam quadros; por isso, a proporção
(e não só o número absoluto) dos membros do partido com origem
operária aumenta, passando de 61,4'% a 62,2 'o/o 14 •
A política de recrutamento operário deste período reflecte
largamente o esforço das instâncias dirigentes do partido para criar
para si uma «base social» constituída por operários membros do
partido e por quadros que deverão inteiramente a sua «promoção»
à política da direcção. Corresponde esta política também à ideo-
logia «obreirista» que, na época, ainda predomina.
Em 1933, as cmsas mudam radicalmente. A crise de 1932-1933
suscita o descontentamento de grande número de trabalhadores,
o que se repercute entre os operários membros do partido: muitos
deles são acusados de «falta de consciência política» e são, por-
tanto, excluídos. Simultaneamente, o «obreirismo» do período do
1. o Plano Quinquenal cede cada vez mais posição a uma ideologia
e a uma política que atribuem papel decisivo à técnica e aos qua-
dros'". Estas transformações ideológicas e políticas desempenha-
rão também um papel importante no decurso dos «expurgos», da

" Esta proporção é de 441%, em 1929, e de 43,8 %, em 1932 (cf.


T. H. Rigby, ob. cit., p. 116).
" Sobre este ponto, ver a primeira parte deste volume; cf. também
A. L. Unger, «Stalin's Renewal of the Leadling Stratum», Soviet Studies,
Janeiro de 1969.
" Cf. T. H. Rigby, ob. cit., p. 116.
" Já vimos que, desde 1931-1932, os critérios de «eficácia» e de
«rapidez» de formação são invocados para modificar a composição social
das promoções das escolas, mstitutos e faculdades e neles fazer entrar
uma proporção crescente de estudantes que pertencem à antiga burguesia.
Este ponto foi assinalado por numerosos autores que estudaram a origem
social dos alunos e estudantes. Ver, designadamente, N. De Witt, «Soviet
Professional Manpowen>, Washmgton, 1955, P. 179; R. Feldmesser, «Social
Sats and Access to Highcr Education: A Comparison of the United
States and the Soviet Union», em Harvard Educational Review, n.• 2,
1957, pp. 92 a 106, e do mesmo autor «The Pers1stence of Status Advan-
tages m the Soviet Uniom>, em American Juurnal of Sociology, Julho
de 1953, pp. 19 a 27

166
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV )

repressão e do recrutamento que se seguirá. Conduzirão a modi-


ficar profundamente a composição social do partido.
A própria maneira pela qual a depuração é levada a cabo
exerce influência desfavorável sobre a proporção de operários e
camponeses membros do partido. Assim, na Primavera de 1933,
as instâncias centrais adoptam uma directiva que visa expurgar
o partido dos elementos «mal preparados» e com insuficiente nível
de «conhecimentos políticoS)). Na realidade, esta directiva aplica-se
muito particularmente aos trabalhadores manuais '".
Numerosas outras directivas aparecem no decurso dos anos
seguintes, destinadas, umas, a interromper todo o recrutamento e
outras, a partir de Dezembro de 1935, visando «abrir)) de novo o
partido, mas é somente em 1938 que o recrutamento retoma
amplitude.
Entre 1933 e 1936, as alterações da composição social do par-
tido são difíceis de analisar, por falta de dados estatísticos sufi-
cientemente numerosos e precisos. A situação é diferente a partir
de Novembro de 1936, embora as estatísticas existentes permitam
essencialmente fazer uma ideia da composição de classe dos efec-
tivos dos novos aderentes no partido. Tais estatísticas são, no en-
tanto, altamente significativas. Revelam uma transformação total
da política de recrutamento. Com efeito, no decurso dos anos 1936-
1939, esta política já nada tem de comum com a do fim dos
anos 20.
As perturbações que afectam os quadros e os efectivos do par-
tido são acompanhadas por profundas transformações do seu fun-
cionamento.

SECÇÃO III

As tramfoTmações do modo de funcionamento


do paTtido

As transformações no modo de funcionamento do partido no


decurso dos anos 30 constituem um prolongamento das que se
esboçaram logo a seguir a Outubro e prosseguiram ao longo dos ;l

,. Ver, sobre este ponto, Merle Fainsod, Smolensk ... , ob. cit., p. 249,
que refere a directiva de 28 de Abril de 1933. Este autor indica que, na
organização de Smolensk, entre 1933 e 1934, os efectivos operários do
partido estão a recuar em cerca de 20% e que o mesmo acontece com
os efectivos classificados sob a rubrica «Empregados e diversos» (ibid.,
pp. 251 a 262; cf. também PS, n. • 9, Maio de 1936, p. 56).

167
CHARLES BETTELHEIM

anos 20 17• Doravante, no entanto, o seu carácter cumulativo e a


sua amplitude conferem alcance particular a estas transformações.
No termo delas, o partido deixou de ser um partido politico no
sentido que pode ter esta expressão quando serve para designar
uma organização voluntária de militantes apta a exercer certo
controlo sobre a linha politica e as decisões do partido. Está-se,
agora, em presença de outra coisa: de um aparelho administrativo
de Estado que desempenha uma função de controlo sobre os outros
aparelhos de Estado. Este partido, tornado aparelho administra-
tivo, está inteiramente submetido à autoridade de um grupo diri-
gente, ele próprio submetido a um dirigente supremo. O partido
tornou-se, assim, um aparelho no qual todas as decisões importan-
tes são tomadas no vértice, muitas vezes pelo próprio Estaline.
Se, no fim dos anos 20, a direcção do partido tinha carácter oligár-
quico, toma, cada vez mais, após 1936, um carácter autocrático.
Esta transformação está, sem dúvida, ligada à alteração da função
do partido mas modifica o conjunto das suas formas de organiza-
ção real (por oposição à organização formal, que não sofre alte-
ração notável), assim como a sua ideologia e os seus modos de
comportamento 1'8 • A importância das regras hierárquicas torna-se
considerável: aqueles que não pertencem a um nível suficiente-
mente elevado da hierarquia não podem ser informados das ver-
dadeiras razões pelas quais as decisões são adoptadas, nem das
;, condições em que o foram (os debates que decorrem no vértice
são, doravante, secretos). Também não podem discutir estas deci-
sões, nem antes nem depois de terem sido tomadas. Elas consti-
tuem ordens impostas ao resto do partido ' 9 , por uma direcção que
forma um estado•maior que tem à sua testa um chefe (Vojd).
Esta palavra é aquela pela qual Estaline é correntemente designado
a partir dos anos 30. Como o termo Führer, significa, ao mesmo
tempo, «chefe» e «guia».
Como «guia», Estaline é a autoridade teórica suprema, aquela
de quem emanam as ideias e as orientações que ninguém tem
17
Os aspectos essenciais do processo de transformação desencadeado
anteriormente aos anos 20 foram assinalados nos dois tomos precedentes
desta obra.
" Cf. R. Tucker, em The Development of the URSS: An Exchange
of views, Donald W. Treadgold (ed.), Seattbe (Wash), 1964, p. 33; e, do
mesmo autor, «Bolshevism and Stalinism», em Stalinism, R. Tucker (ed.),
Nova Iorque, Morton and Co., 1977, p. 17.
19
Não significa isto que tais ordens sejam sempre executadas. Sa-
be-se que a sua aplicação depara com múltiplias resistências, que provêm
em particular do próprio corpo dos funcionários do partido, que resultam
de contradições que opõem a direcção do partido ao aparelho deste e das
múltiplas sanções que sofrem os 'apparatchiki.

168
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV
'I
direito de contestar. O papel de semelhante «guia» é essencial num 'j

partido que nega as suas contradições internas e que pretende


apresentar uma ideologia «unificada». Como «chefe», o Vojd en- >,'

contra-se não só imaginariamente «à frente do povo», mas tam-


bém comanda, realmente, um aparelho de Estado constituído por
um corpo de quadros: os apparatchiki, nomeados, deslocados e
demitidos pelo Vojd e os seus serviços. Estes apparatchiki estão
encarregados principalmente de controlar o funcionamento do
partido e dos outros aparelhos. Estão organizados numa escala
hierárquica estrita, análoga à de uma organização militar.
O partido está, assim, dividido em diversos níveis: no vértice,
o Vojd rodeado por um grupo dirigente; ao seu lado as instâncias
«supremas» sujeitas ao grupo dirigente; abaixo, um corpo hierar-
quizado de quadros que formam o aparelho do partido cujos mem-
bros mais privilegiados estão inscritos na Nomenklatura; por úl-
timo, os simples aderentes, que geralmente não ocupam nenhuma
função. Se alguma lhes é confiada, trata-se frequentemente de
um teste destinado a verificar se podem, eventualmente, tornar-se
quadros ou ingressar na Nomenklatura. Em conjunto, os simples
aderentes formam antes de mais nada uma «base» que legitima
a manutenção da fórmula do partido e a este confere simbolica-
mente carácter «operário» ou «popular». Além de fornecerem um
«reservatório» donde são extraídos os novos quadros, a presença
destes meros aderentes no seio da população deve permitir aos
quadros e à direcção recolher informações sobre o «estado de
,,
espírito das massas». 'I
O funcionamento de tal organização evidencia o seu verdadeiro
carácter de supremo aparelho de Estado. Em semelhante aparelho,
já não são os membros do partido que designam os seus dirigentes,
que os elegem e os demitem. A direcção em funções «renovarse»
por cooptação. Forma um corpo de dirigentes que «recruta» ou
«exclui» os membros do partido. Ê, pois, a direcção quem «esco-
lhe» estes últimos e não o inverso. Como escreve, ironicamente,
Bertold Brecht descrevendo um país «imaginário»:
Não eram os membros que escolhiam os secretários,
mas os secretários que escolhiam os membros. Quando
eram cometidos erros, castigavam-se aqueles que os haviam
criticado; mas aqueles que deles eram culpados permane-
ciam no seu posto. Em breve deixaram de ser os melhores,
para passarem a ser tão somente os mais flexíveis ••.

"" Bertold Brecht em Me Ti, Te Livre des Retournements.

169
:• CHARLES BETTELHEIM

No decurso dos anos 30, o secretário-geral é, cada vez mais,


assistido pela polícia política para aplicar a política de recruta-
mento, de exclusão e de promoção dos quadros 21 •
A ideologia difundida pela direcção do partido (que constitui,
aliás, um desenvolvimento de certas das representações já existen-
tes na formação ideológica bolchevique) investe imaginariamente
«o partido» (isto é, doravante o seu chefe) com uma espécie de
«infalibilidade» que dá à sua dominação carácter quase «teocrá-
tico», como foi notado por um certo número de autores, em
particular por R. Bahro, em L'Alternative 22 •
Embora não sejam as instâncias colocadas estatutariamente no
vértice do partido que asseguram a direcção deste (mas sim o
secretário-geral rodeado pelo grupo dirigente), estas instâncias
subsistem, tendo, porém, deixado praticamente de ser soberanas,
já que - a partir de 1935- o grupo dirigente dispõe dos meios
f. necessários à adopção das suas «propostas» pelo BP, o CC e os
' - congressos. Assim, quando em virtude do artigo 58 dos estatutos
do partido (tal como estão formalmente em vigor até ao XVIII
Congresso), nenhum membro do CC pode ser excluído sem o voto
de uma maioria de dois terços do Plenário do CC, assiste-se à
multiplicação, na segunda metade dos anos 30, das exclusões e das
prisões de membros do BP e do CC sem que ocorra qualquer voto,
por mera decisão do vértice do aparelho do partido".
O grupo dirigente, aliás, tende cada vez mais a dispensar-se
de convocar os órgãos estatutariamente dirigentes, cujas reuniões
•, vai espaçando. Semelhante tendência já começa a vir à luz do dia
~'
21
Em 1940, Trotski, ao criticar a concepção Ieninista do «centra-
lismo democrático», havia afirmado que esta concepção haveria de con-
duzir a uma d1tadura pessoal. Escrevia então: «Ü método de Lenine conduz
a isto: a organização do partido (um pequeno comité) começa a substi-
tuir-se ao conjunto do partido; depois, o Comité Central substitui-se à
organização e, fmalmente, um «ditador» substitui-se ao Comité Central»
(cf. N. Trotsky, Nachi Polititcheskie Zadatchi, p. 54, Genebra, 1904, citado
por I. Deutscher, Trotsky, Paris, Julliard, t. 1, 1962, p. 132). Deve dizer-se
que, posteriormente, o próprio Trotski, tornado aderente do «Ieninismo»,
silenciará essas suas análises de 1904.
" A ideia de que «não se pode ter razão contra o partido» é enun-
ciada, pela primeira vez, por Trotski, em 1924: em 1925, para Boukharine,
a verdade corresponde ao que afirma o partido (cf. L. Schapiro, ob. cit.,
p. 298). Vê-se que a noção de uma espécie de «infalibilidade» do partido
é antiga e não é especialmente estalinista. Parece ligada à concepção da
teoria e da organização defendida por Lénine, o que Trotski havia, aliás,
pressentido desde 1904, quando censurava o fundador do bolchevismo por
defender uma teoria da «teocracia ortodoxa» (cf. I. Deutscher, ob. cit.,
p. 132),
23
Cf. R. Medvedev, Le Stalinisme, ob. cit., pp. 406-407.

170
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV
'l
durante a NEP, mas toma toda a sua força durante os anos 30.
Alguns números permitem ilustrar esta evolução: ao passo que,
nos seis anos seguintes à Revolução de Outubro, se reúnem 6 con-
gressos do partido, 5 conferências e 79 plenários do CC, nos seis
anos após a morte de Lénine, só há 4 congressos, 5 conferências
e 43 plenários; posteriormente, entre 1934 e 1953, reúnem-se ape-
nas 3 congressos, 1 conferência e 23 plenários 24 •
Todavia, o facto de que o aparelho supremo de Estado conti-
nua a ter a forma de partido comporta, evidentemente, alcance
politico e consequências práticas: realização de reuniões, as «elei-
ções» (formais) dos delegados ao congresso e às «instâncias diri-
gentes», a «aprovação» pelo voto dos relatórios e das propostas
dos dirigentes. Estas práticas simbólicas desempenham papel de
«legitimação».
O carácter simbólico destas práticas não exclui, todavia, em
situações de crise, que a sua manutenção possa impor certos limi-
tes àqueles (ou àquele) que estão (está) no vértice do aparelho.
É assim que, em diferentes momentos, Estaline teve de con-
temporizar e ter mais ou menos em conta «reservas» ou opiniões
diferentes de membros do BP ou do CC que pertenciam ao grupo
dirigente. As flutuações observadas, em 1937, no papel que deviam
exercer as denúncias emanadas da base no desenvolvimento da
repressão, testemunham, ao que parece, os efeitos que a existência
de práticas de consulta podem ter em situação de crise.
Além disso, após a morte de Estaline, a existência da forma
partido dá possibilidade de resolver alguns problemas de direcção
no seio das instâncias «de decisão colectiva)).
No entanto, como regra geral, no fim dos anos 30, a situação
é tal que o único «centro de decisãO>) é o chefe do grupo dirigente
que impõe, doravante, a sua ditadura sobre o partido de maneira
autocrática. É este o dispositivo central da «ditadura do proleta-
riadO)) de que o partido é considerado o instrumento. Esta ditadura
exerce-se de maneira brutal, ao mesmo tempo sobre as massas
populares e sobre a nova classe dominante (que garante a repro-
dução das relações de dominação e de exploração): «funcionários
do capital>) e funcionários dos aparelhos administrativos, policiais
e ideológicos de todas as espécies que, todos eles, têm de subme-
ter-se a essa forma específica de opressão generalizada.

" R. Medvedev, Le Stalinisme, ob. cit., p. 407, que cita Sovietskaia


lstoritcheskala Entsik/opedia, VIII (1965), p. 275.

171
... j -~:.;-~ .... \•"

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f,
••

CAPITULO II

O PROCESSO DE CONSOLIDAÇÃO-
-SUJEIÇÃO DA NOVA CLASSE DOMINANTE

Durante os anos 30, a consolidação da nova classe dominante


desenvolve-se de forma altamente contraditória. No decurso dos
anos 1935-1938, em particular, apresenta-se mesmo sob a forma
do seu contrário, a da sujeição desta classe pelo terror.

SEOÇÃO I

O terror e o processo de consolidal,lão-


-sujeição da nova classe dominante

À primeira vista, o terror exercido sobre os quadros surge


como um puro instrumento da sua sujeição ao grupo dirigente e
ao seu chefe; no entanto, em contrapartida desta sujeição, o grupo
dirigente investe os novos quadros com poderes extensos sobre os
trabalhadores (cf. as duas primeiras partes do t. l, Os Dominados)
e com numerosos privilégios.

1. A sujeição como contrapartida de poderes e de privilégios

Os poderes e os privilégios de que os quadros, cada vez mais,


beneficiam enraízam-se nas relações de produção e de reprodução
e fazem destes quadros uma classe dominante e privilegiada. Nem
por isso deixa de acontecer que, como indivíduos, a sua inclusão
:'
nessa classe dependa continuamente da «confiança» que lhe con-
' cedem os dirigentes sobre os quais eles não exercem qualquer con-
trolo. A sua sujeição ao grupo dirigente é o preço que devem
pagar por pertencerem à classe dominante. Está a referida classe
172
', -1:

'.
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

submetida, portanto, a um poder político que não tem contas a


prestar-lhe; neste sentido, os membros dessa classe que não fazem
parte do grupo dirigente exercem somente uma dominação social
e não uma dominação política. Na qualidade de indivíduos, não
dominam o Estado, são servidores deste, embora ele seja sua «pro-
priedade colectiva».
O poder político é exercido por um pequeno grupo que per-
tence à classe dominante mas que ocupa, no seu seio, uma posição
hegemónica, visto a história ter concentrado entre as suas mãos
uma «legitimidade» que lhe permite decidir formalmente sobre a
utilização dos meios de acumulação, dispor do direito de nomear
e de demitir os «funcionários do capital» e de os reprimir fazendo
apelo a órgãos policiais poderosos que lhe estão estreitamente liga-
dos. Nas condições históricas dadas, a submissão dos gestores e
dos administradores ao grupo dirigente foi uma condição neces-
sária à defesa da nova classe dominante. Sujeitando esta última ao
grupo dirigente pelo recurso ao terror, consolidou-se, ao mesmo
tempo, a classe dominante e tornou-se mais frágil a posição indi-
vidual dos seus membros.
Uma das razões pelas quais estes estão submetidos ao terror é
o facto de aqueles que exercem o poder se considerarem como a
«camada muito estreita» de que depende a «política proletária '».

2. A sujeição dos quadros e «a acentuação da luta de classe» ·'·

Na segunda metade dos anos 30, a sujeição dos quadros ao ..


poder político é, sem dúvída, largamente determinada por duas -:~
componentes essenciais do grupo dirigente: a identificação não
dita dos quadros com uma nova burguesia, e a identificação do
grupo dirigente com o proletariado. A este nível, o terror exer-
cido contra os quadros diz respeito a uma luta de classe imagi-
nária. Esta não é, de facto, mais do que uma luta entre diversas
camadas da nova classe dominante, entre a sua camada hegemó-
nica -que toma a iniciativa- e as outras camadas.
O índice destas componentes ideológicas do terror encontra-se
nos textos de Estaline onde se afirma que a luta de classe se
acentua ao mesmo tempo que progride a «construção do socia-
lismo» 2 • Um dos aspectos da «luta de classe» assim preconizada
)''
1
Para retomar uma expressão utilizada por Lenine a 26 de Março
de 1922 (cf. OC, t 3, p. 260}, expressão já citada no vol. l da presente obra. )J
' Sabe-se que este tema da «acentuação da luta de classe» com os
progressos do «socialismo» é fortemente afirmado por Estaline desde o ·~
'f
princípio de 1933 (cf. QL, p. 593) e que é, depois, muitas vezes retomado. "'
173
.~-

;.t CHARLES BETTELHEIM


;<.
f'' visa os opositores no partido (identificados com agentes das classes
inimigas, traidores, etc.). Outro aspecto desta pseudo luta de classe
.;..·
visa os quadros insuficientemente «disciplinados», «leais», etc., que,

I
também eles, são identificados com «agentes do inimigo». Um
elemento real desta «luta de classe imaginâria» é o combate do
grupo dirigente para impor a sua ditadura sobre o partido, sobre
os quadros e, bem entendido, sobre o conjunto da população (cuja
falta de «disciplina» se considera reveladora da influência da ideo-
~ logia «inimiga»). Outro elemento real desta luta imaginâria é o
t
11' facto de os quadros do partido e dos aparelhos de Estado forma-
'· rem efectivamente uma nova classe dominante, embora o seja
r,.

devido ao lugar que tal classe ocupa nas relações de produção e
de reprodução. A luta travada contra aqueles que pertencem a
esta classe em nada modifica essas relações sociais nem as funções
,... daqueles que asseguram a sua reprodução.
'l,•, Os efeitos desta luta de classe imaginâria são também uma
~-:

I realidade. Arrastam para a morte ou para os campos de detenção


~ centenas de milhares de quadros e dão nascença ao sistema da
r charaga que «extrai» um certo número de homens do lugar que
ocupavam na classe dominante para lhes dar um estatuto particular
*
~ de prisioneiros que trabalham para o Estado.


r
!l,
3. o sistema da «charaga»

No calão das prisões, a charaga (ou charachka) é um lugar de


'.
'• ' detenção onde se reúnem especialistas a quem são entregues tare-
~ fas de investigação científica ou técnica sob o controlo do NKVD,
~r~· recebendo, para tal, as facilidades pedidas. O lugar de detenção
pode ser vasto e dotado de laboratórios. Os cientistas assim man-

.•,.
~.

~
tidos prisioneiros são, muitas vezes, melhor tratados do que os
cidadãos livres. Em Le Premier Cercla, Soljénitsine descreveu o
funcionamento de uma charaga •. Este sistema existiu desde o prin-
"'~
;,
cípio dos anos 30: nele eram obrigados a trabalhar os especialistas
~··· condenados po·r «sabotagem\ condenação esta que, muitas vezes,
mais não era do que um pretexto para os isolar. No fim dos anos
30, principalmente na época em que Béria dirige o NKVD, o sis-
r· tema da charaga toma grande dimensão. Nesse momento, não são
~;'
~
apenas alguns especialistas que são presos: serviços inteiros de

' Cf. A. Soljénitsine, Le Premier Cercle, Paris, R. Laffont, 1968.


,.
\'
• Cf. J. Scott, Au-de lá de l'Oural, Le Befrai, Genebra, Marguerat,
1945.

174
' - ., . · ....:~,..~---j-'•:• ..... ,,,

AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

estudos são transferidos para a prisão, bem como oficinas de


,...,
'i
produção.
Desde o início dos anos 30, a charaga depende directamente da
polícia política e, no interior desta, quer de uma «administração
central» especializada, quer de uma «secção especial». Na sua maior
parte, as charagas constituem um «objecto» colocado sob a res-
ponsabilidade de um oficial superior do NKVD, mas é geralmente
um detido que é o «director de investigação» ou «construtor-
-chefe»; tem sob as suas ordens «chefes de laboratório» e toda
uma hierarquia de investigadores, todos eles vigiados por guardas
do NKVD; a disciplina é prisional com horários fixos para o levan-
tar, a toilette, as refeições, a ginástica, etc. •.
Na primeira linha das actividades que «beneficiam» deste sis- 1
tema figuram, no fim dos anos 30, as «indústrias de ponta», ·"
designadamente, a aeronáutica e os foguetões: uma parte impor-
tante desta~ indústrias também funciona sob o controlo do
NKVD'.
Em princípio, os comissariados competentes fornecem as espe-
cificações técnicas aos responsáveis por estas indústrias. Na rea-
lidade, os serviços do NKVD arrogam-se o direito dP modificar as
especificações, o que não deixa de causar danos 7 • No entanto, se
os produtos assim obtidos -sob as directivas de Estaline, de Béria
ou de Ustinov- são, por vezes aberrantes, isso nem hempre acon-
tece. Por exemplo, dois aviões muito bons, o PE-2 e o TU-2, saí-
ram do sistema da charaga. Todavia, o «corte» entre, por um lado,
os gabinetes de estudos e o fabrico de protótipos e, por outro lado,
o fabrico em série, teve por consequência que os êxitos dos aviões
saídos das fábricas foram muito inferiores aos dos protótipos.
Na realidade, o «serviço de estudos» de Tupolev (isto é, a charaga
onde Tupolev estava detido) teve de redesenhar toda a estrutura
do avião projectado para o adaptar às condições reais da produção
na fábrica, condições estas perdidas de vista pelos serviços de
estudos separados da produção de massa e submetidos às exi-
gências de dirigentes que ignoravam as imposições da produção
industrial. Em consequência, quase três anos separam o voo do
protótipo do TU-2 da produção em cadeia (Dezembro de 1943) •.

' Cf. L. Féhx, La Science au Goulag, ob. cit., pp. 22 e 30.


• Cf. Charaguine, En pnsion avec Tupolev, ob. clt.
' Cf. a tese já citada de J. Sapir, p. 515.
• Jbid., p. 516.

175
CHARLES BETTELHEIM

Como os trabalhos de investigação realizados nas charagas são


estritamente secretos, dispõe-se de poucos pormenores sobre esta
instituição e o seu funcionamento 9 •
Nos anos da guerra e pós-guerra, as charagas multiplicam-se
(de 1941 a 1955) e estendem-se a ponto de algumas se tornarem
cidades ou zonas industriais com as suas fábricas, garagens e ofi-
cinas, mas também com os seus cinemas, bibliotecas, etc. Algumas
destas cidades não estão inteiramente povoadas por prisioneiros:
ao lado destes, encontram-se homens «livres», incluindo sábios
estrangeiros (em particular alemães, como Barwich), mas cuja
liberdade de deslocação está estritamente controlada sem que,
todavia, estejam submetidos ao regime dos detidos. Entre os ho-
mens «livres» que vieram trabalhar para estas «cidades secretas»
(onde se trabalha, principalmente, na investigação atómica, na
aeronáutica, nos foguetões e nas armas bacteriológicas) também
há evidentemente soviéticos atraídos pelos elevados salários que
recebem.
Uma das motivações para o trabalho dos detidos é constituída
por condições de existência muito menos duras do que as dos
campos, condições de que, porém, só «beneficiam os que produ-
zirem». Mas estas motivações também comportam o «amor à
arte», o patriotismo e, eventualmente, a «devoção ao partido», já
que antigos membros do partido assim encarcerados continuam a
considerar-se comunistas e a querer comportar-se como tal. Outra
motivação é a esperança de ser libertado, o que é o caso de alguns
quando já cumpriram a sua missão. É assim que o matemático
Alexandre Nikrassov (1883-1957) (que tinha sido condenado por
«espionagem») é libertado após ter realizado trabalhos importan-
tes; recebe o título de «sábio emérito» em 1974 e um prémio Esta-
line em 1951 «pela sua contribuição para a tecnologia aeronáu-
tica».
O sistema da charaga constitui um caso limite do processo de
sujeição de certo número de intelectuais especializados na inves-

• As principais fontes de informação são as recordações de antigos


detidos como Charaguine e Soljénitsine. Podem acrescentar-se: H. et E.
Barwich, L'Atome rouge, Paris, R. Laffont, 1969; Lev Kopelev, «Solje-
nitsyne na charagm> (em russo), em Vremifamy, n.• 40, 1979; D. Panine,
Mémoires de Sologdine, Paris, Flammarion, 1975. Não deve, evidente-
mente, ser esquecido o livro-inquérito de Lucienne Félix, La Science au
Goulag, oh. cit., Christian Bourgois, e a obra de Mark Popovski, URSS-
','",
La Scíence manípulée, ob. cit.

176
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

tigação científica e técnica. Como detidos encontram-se verda-


~eir~ent~ na situação de servos, mas, com~ responsáveis por uma
mvestigaçao, podem conservar funções de direcção.
O tratamento particular aplicado a estes homens (ao mesmo
tempo condenados penalmente e reconduzidos em algumas das
suas funções) depende de diversos tipos de preocupações.
Uma delas é a do segredo em que o poder deseja que certas
investigações sejam feitas: encerrar os investigadores é o meio de
guardar segredo sobre os seus trabalhos. Trata-se de preocupação
que está longe de ser secundária: o segredo é urna obsessão dos
dirigentes soviéticos 10 • Por isso, independentemente das charagas,
existem cidades onde se realizam trabalhos secretos por trabalha-
dores «livres» mas estritamente vigiados pelos «órgãos». Para os
trabalhos ordinários, empregam-se zékis nessas cidades; as rela-
ções hierárquicas são ali levadas ao extremo".
Urna outra preocupação é a de manter em actividade profis-
sional investigadores condenados (por urna das inúmeras razões
que motivam as condenações entre 1935-1953), que o poder consi-
dera mais ou menos indispensáveis.
Urna outra preocupação não está sem dúvida ausente para
impor o confinamento de certos investigadores científicos frequen-
temente excepcionais: a vontade de isolar do resto da sociedade
homens cujo prestígio e autoridade fariam correr o risco -se se
exprimissem publicamente sobre questões de interesse social, polí-
tico ou mesmo científico- de constituir um desafio ao grupo
dirigente que se pretende infalível. Assim, durante anos, a gené-
tica, as teorias da relatividade e outros trabalhos de matemática,
etc., foram declarados «não científicos» pelo poder. Nestas con-
dições, convém-lhe, muitas vezes, isolar investigadores que, pela
sua formação intelectual, fazem correr o risco de querer afirmar
abertamente o que crêem ser verdadeiro, e isto não só na sua «es-
pecialidade». A experiência mostra, aliás, que a denúncia das im-
posturas e das mentiras dos dirigentes soviéticos emanam frequen-
temente de tais homens; é o caso do académico Sakharov, de Roy
e de Jaurês Medvedev, de Soljénitsine, de Pliouchtch e de muitos
outros.

" Cf. Mark Popovski, URSS- La Science manipulée, ob. cit., pp. 94
e segs.
" lbid., pp. 193 e segs.

Est. Doe. 220-12 177


jf --

CHARLES BETTELHEIM

SECÇÃO ll

Unidade e contradição da classe dominante,


sujeição ao grupo dirigente e constituição
de uma burguesia de partido

A forma brutal do processo de sujeição da classe dominante


ao grupo dirigente, tal como foi descrita precedentemente, ins-
creve-se na conjuntura dos anos que estudamos aqui. No entanto,
fundamentalmente, este processo enraíza-se nas contradições inter-
nas da classe dominante e naquelas que a opõem às classes domi-
nadas. Nas condições históricas dos anos 30, tais contradições
não permitem à classe dominante desenvolver a exploração dos
produtores directos, salvo se ela própria se submeter à imposição
de relações hierárquicas e disciplinares por um partido único e a
respectiva direcção. Para consolidar a sua dominação, tem de
submeter-se às decisões e à suposta «sageza» deste partido e acei-
tar, pelo menos na aparência, os dogmas que ele proclama.
O papel assim desempenhado pelo partido não é devido so-
mente às particularidades da história soviética; mais profunda-
mente, está ligado às especificidades de um capitalismo estatal
que não permite à burguesia realizar a sua unidade sob modalida-
des iguais às do «capitalismo privado>>.
Com efeito, quando este último domina, a unidade do capital
apresenta-se sob a figura invertida da concorrência. Cada frag-
mento do capital é levado a realizar a exploração ao máximo dos
seus trabalhadores, a intensificar o trabalho, a inovar a fim de
poder enfrentar os capitais concorrentes mas, ao fazê-lo, contribui
para o desenvolvimento da produtividade especificamente capita-
lista. Ao lutar por interesses aparentemente parcelares, serve,
finalmente, os interesses de conjunto do capital. As «motivações>>
daqueles que gerem os diferentes capitais individuais impõem a
realização das leis da acumulação e da produtividade capitalista 12•
Nas condições de um capitalismo de tipo «soviético», as leis do
capitalismo não se impõem da mesma maneira: a concorrência
exerce-se sob outras modalidades e é por isso que se assiste a uma
transformação das formas através das quais a unidade do capital
se valoriza.

" Cf. K. Marx, Le Capital, Livro I, v à vn secções, e as observa-


ções de Henri Nadei na sua tese, Genese de la conception marxienne du
salarial, doutoramento de Estado, Paris- VIII, 1979, designadamente
p. 399.

178
,,

AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

Com efeito, a extensão da propriedade de Estado e de um pla-


neamento estatal que incide sobre as produções, os preços, os salá-
rios, os investimentos, etc., modifica as condições nas quais cada
fragmento do capital social se opõe aos outros, e as modalidades
de repartição da massa da mais-valia entre os diferentes ramos e as
diferentes unidades de produção (continuando a acumulação a
estar dominada pelas exigências da valorização do capital).
Graças a estas modificações, a concorrência que opõe os dife-
rentes agentes do capital que lutam pela consolidação das suas
posições, ou pelo acréscimo do volume elo capital e da produção
que cada qual controla, já não reveste principalmente a forma de
confronto no «mercado dos produtos» ou no «mercado dos capi-
tais». de tal modo que a «di>ciplina» e a «unidade» impostas pela
forma mercado e pela forma dinheiro estão a recuar fortemente.
A este tipo de unidade substitui-se outro: aquele que reveste a
«forma planm>.
No entanto, as imposições que decorrem desta forma não se
exercem da mesma maneira que ?" impostas pela formrr mercado
(embora a primeira mais não seja do que outra figura da segunda),
porque as imposições do mercado são interiorizadas pelos agentes
do capital perante os quais aparecem como objectivas. e inevitáveis.
Acontece diferentemente com as imposições do plano que reves-
tem aos olhos dos agentes do capital a forma de decisões, tomadas
mais ou menos arbitrariamente, que lhes são impostas do exterior
sem que eles hajam, realmente. participado na sua ebboraçãc>.
Esta exterioridade das exigências do plaPo leva os agentes do capi-
tal a tentar furtar-se àquelas que ap;esentam mais dificuldades,
a fim de gerir a «sua» empresa da forma mais cómoda. ao mc~mo
tempo que tentam dar a impressão de que se conformam aos objec-
tivos do planeamento.
A forma plano está, portanto. longe de lutar para impor a uni-
dade do crrpitf•l e dos seus azentes. Nas condições soviéticas, a
ditadura de «um partido de tipo novo» constitui uma das formas
políticas sob as quais aquela unidade tende a impor-se.
O papel desempenhado pela classe dominante na exploração
dos produtores directos, a apropriação da mais-valia à base do
salariado e no processo de acumulação fazem desta classe uma
burguesia constituída por «funcionários do capital».
Não se trata de simples analogia, de uma imagem ou de uma
cláusula de estilo, mas sim de tomar em linha de conta relações
sociais reais.
Mostra a história que a burguesia pode anresentar-se sob múl-
tiplas formas fenomenais: comerciantes, capitães de indústria,
tubarões da finança, rendeiros capitalistas, dirigentes de empresas
179
CHARLES BETTELHEIM

de Estado ou privadas, presidentes de finnas multinacionais, qua-


dros dirigentes destas empresas ou dos aparelhos económicos, etc.
Com o desenvolvimento de novas formas específicas de capita-
lismo, a burguesia reveste também novas figuras.
No entanto, para além das fonnas muito variadas que podem
assumir o capitalismo e a burguesia, um e outro repousam sempre
sobre a relação capital: é sobre esta, com efeito, que se ergue a
oposição entre aqueles que produzem a mais-valia e aqueles que
desta dispõem. Os primeiros constituem o que Marx chama o «tra-
balhador global» (Gesamtarbeiter), os segundos formam o «capi-
tali:;ta global» (GesamtkapitalisO "'. Por último, atrás da diversi-
dade das figuras da burguesia dissimula-se a unidade da relação-
-capital que, por sua vez, se apresenta sob dois aspectos: o do
capital-função, personificado pelo «representante do capital em
funções» (que é o capitalista activo), e outro aparentemente mais
passivo: o do capital-propriedade, personificado pelo capitalista
enquanto portador da detenninação propriedade do capital 14•
O lugar respectivo destas duas figuras e, portanto, também as
relações entre estas duas personificações do capital, modificam-se
quando se transformam as formas do capitalismo e as figuras sob
as quais a burguesia se apresenta.
Nas condições ela União Soviética dos anos 30, o predomí-
nio da forma estatal de propriedade do capital pennite aos diri-
gentes políticos desempenhar essencialmente o papel de agentes
do capital-propriedade, ao passo que os gestores são agentes do
capital como função. A burguesia é, então, constituída por todos
aqueles que participam em posição dominante (como representan-
tes do capital de Estado ou como gestores) na actividade dos apa-
relhos económico, político e ideológico de Estado. Aqueles que
pertencem a esta burguesia não podem, aliás, manter-se em posi-
ção dominante se eles próprios não estiverem sujeitos a relações
ideológicas graças às quais as tendências imanentes do capitalismo
«se impõem ... como motivos das suas operações», tal como Marx
àiz a propósito dos capitalistas da sua época ' 5 •
O que pode parecer opor-se ao que se chama «capitalistal>:
uma classe dominante que só colectivamente dispõe dos meios
de produção e que destes não é «proprietária» individualmente,
é o facto de os seus rendimentos se apresentarem juridicamente
sob a forma de salários.

13
Cf. Marx, em MEW, t. 23, p. 249.
14
Cf. Marx, Das Kapital, MEW, t. 25, pp. 392-394; e ES, livro 3,
t. 2, pp. 43-46
" Cf. K. Marx, Le Capital, ES, t. 2, p. 10.

180
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS- IV

Se nos detivermos sobre esta objecção, perdemos de vista que


a classe capitalista forma, antes de tudo, um capitalista global;
a seguir, que o capitalista o é não porque «detém» uma fortuna
ou meios de produção, mas porque desempenha uma função na
reprodução das relações capitalistas; por último, «esquecer-se»
que, com a própria centralização do capital - expressão das ten-
dências profundas do capitalismo-, o capitalista activo se torna
cada vez mais frequentemente um simples dirigente que não
possui capital a qualquer título, que já não surge como um capi-
talista, mas «como o seu próprio contrário, como um trabalhador
assalariado» ' 6 •
Que a burguesia soviética seja constituída por assalariados
não representa, pois, de modo algum uma excepção. Ela é um
caso extremo, aquele em que todos os capitalistas surgem como
o seu próprio contrário, porque recebem um salário. Esta burguesia
beneficia de diversos privilégios, mas somente uma pequena
camada (a que se encontra no vértice do partido) domina também
o Estado. Aqueles que não fazem parte desta camada aparecem
como simples «servidores» do Estado e podem ser duramente tra-
tados pela direcção do partido. A submissão da maioria da classe
dominante a um grupo político que sobre ela exerce acção hege-
mónica resulta das particularidades do funcionamento do capi-
talismo soviético tal como se desenvolveu no decurso dos anos 30.
Estas particularidades são tais que o acesso às funções de direcção
da produção e da reprodução do capital e aos privilégios e poderes
a esta ligados é estreitamente controlado e gerido pela direcção
do partido que exerce, assim, um verdadeiro monopólio. Este
monopólio faz com que a burguesia soviética constitua uma
burguesia do partido 17 que representa a classe dominante de um
capitalismo de partido 18•
Neste tipo de capitalismo, o papel do partido (isto é, da direc-
ção deste) é tanto maior quanto menos as contradições internas
da classe dominante forem reguladas pelas formas estruturais do
mercado e da concorrência.
No decurso dos anos 30, as contradições internas da «burguesia
soviética» não contribuem apenas para que o grupo dirigente do
partido e do respectivo aparelho desempenhem papel essencial:
contribuem também para investir essa direcção com uma autori-
dade que lhe permite impor decisões tanto às diversas camadas
" Cf. K. Marx, Das Kapital, MEW, t. 25, pp. 293 a 401, ou ES,
livro 3, t. 2, pp 45 a 53.
'" Este conceito é desenvolvido na secção II do último capítulo desta
mesma terceua parte.
" Voltamos a este conceito no fim do cap. IV desta terceira parte.

181
/

I-

CHARLES BETTELHEIM

da classe dominante como às classes dominadas. O papel do grupo


dirigente ou da direcção do partido agindo como instância
suprema, inclusive ao nível económico, parece tanto mais essencial
quanto esta direcção se encontra -pelo próprio lugar que ocupa
no sistema das relações sociais- «projectada» ilusonamente sobre
interesses e procuras contraditórias das outras camadas da classe
dominante, e parece estar assim apta a «arbitrar» entre elas em
nome de princípios pretensamente indiscutíveis.
Assim, a sujeição da classe dominante ao partido e à direcção
deste está ligada ao sistema de contradições no qual esta classe
se encontra enredada. Todavia, é também a forma histórica
revestida por estas contradições no decurso dos anos 1935-1953
que impõe o tipo particular ditatorial dessa sujeição. A história
ulterior mostra que, ao consolidarem as posições da classe domi-
nante soviética, se modificam as suas relações com a direcção
do partido; por exemplo, durante o período khrouchteviano (1953-
1964), a hegemonia que o partido exerce sobre a classe dominante
não desaparece mas deixa de ter aquele carácter ditatorial.
Doravante, a direcção do partido de algum modo emana das cama-
das superiores da classe dominante, de tal modo que, até certo
ponto, as representa, o que explica as «formas colegiais» de direc-
ção que tendem a emergir.

SECÇÃO III

A subida dos privilégios da nova classe dominante

No decurso da segunda metade dos anos 30, embora os qua-


dros se encontrem individualmente em situação precária e sub-
metidos ao terror, assiste-se à consolidação dos seus privilégios,
o que prolonga a viragem iniciada em 1931.
Assim, a partir de 1933, a diferenciação dos rendimentos dos
quadros aumenta cada vez mais. Os salários mais elevados não só
experimentam os aumentos mais fortes, mas são, doravante,
acompanhados por grande diversidade de prémios, pagos ora
com os rendimentos e lucros das empresas, ora com fundos pre-
vistos para este fim e geridos pelos comissariados do povo. Com
esta finalidade, é criado, em 1936, o «fundo do director>> 19 ali-
mentado por 4 'o/o do lucro previsto e 25 'o/o do excedente deste.

" Cf. o artigo de G. Poliaf, «A propos du fonds du directeur de


l'entrepnse industrielle» (em russo), em PK, n.• 4, !938, pp. 55-69.

182
:: ,,,

AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

Em 1934, em virtude de uma portaria datada de 23 de Janeiro,


a progressividade do imposto sobre os salários cessa a partir de
500 rublos por mês; esta progressividade, portanto, já não atinge
os salários e ordenados mais altos. Analisando a repartição dos
salários e dos ordenados de Outubro de 1934, A. Bergson observa
que, nesta época, os ganhos dos assalariados soviéticos melhor
pagos (recebendo mais de 1420 rublos) representam mais de 28,3
vezes os ganhos dos assalariados pior pagos 20 • Fazendo uma com-
paração sistemática entre a distribuição dos salários na União
Soviética e nos Estados Unidos, este autor verifica que, em 1934,
tal distribuição é do mesmo tipo nos dois países e conclui que,
no que se refere às desigualdades de salários «os princípios capi-
talistas» prevalecem então na União Soviética".
A política dos salários dos quadros assim principiada prossegue
posteriormente. Por exemplo, em 1938, são estabelecidos «salários
pessoais» para os «especialistas e práticos de valor» nomeados
para postos de direcção. O limite teórico destes «salários pessoais>>
é, então, de 1400 a 2000 rublos por mês, conforme os escalões
de actividade (recebendo os operários no sopé da escala 100 a
200 rublos)"'. Nesse mesmo ano, os prémios para os inventores
são consideravelmente acrescidos, podendo atingir 100 000 e mes-
mo, em certos casos, 200 000 rublos 23 •
Na realidade, as desigualdades de que beneficiam as categorias
ainda são aumentadas com a prática dos reembolsos de «despesas»,
e as vantagens em espécie: alojamento inerente à função, locais
reservados de vilegiatura, etc. 24• Além disso, certo número de
produtos são acessíveis apenas a categorias privilegiadas.
Em 1937 e 1938, os prémios recebidos pelos directores, enge-
nheiros e chefes de serviço por motivo de ultrapassagem do plano
podem aumentar fortemente os respectivos salários. Na indústria
do carvão, o prémio recebido pelo director de uma mina e pelos
seus adjuntos é igual, por cada 1'% de ultrapassagem do plano
de produção, a 4'% do seu salário. Na siderurgia, os prémios são
progressivos: se a produção ultrapassar o plano em 5%, o salário

"' A. Bergson, The Structure of Soviet Wages, Cambridge (Mas.)


1954, p. 129.
" Ibid., pp. 208-209.
" Cf. SZRSSSR, 1938, n." 39, § 229, citado por A. Baykov, The
Development of the Soviet Economic System, Cambridge (G. B.), UP,
19501 p. 342.
' Cf. A. Baykov, ob. cit., p. 341, nota.
"" Cf. o artigo de M. Lewin, «L'État et les classes sociales en
URSS» em Actes de ta recherche en sciences sociales, n.• 1, Fevereiro
de 1976, p. 20.

183
CHARLES BETTELHEIM

mensal de um chefe de secção, do seu assistente e dos engenheiros


é acrescido em 10% por cada 1'% de produção a mais. Se a pro-
dução ultrapassar o plano em 10 '%, cada 1 % de produção a
mais dá origem a um prémio de 15% do salário, etc." Os pré-
mios podem, por vezes, ser iguais ao salário anual ou até ultra-
passá-lo, embora se declare que é aplicado um tecto igual ao
salário. A partir de 1937, a imprensa soviética menciona direc-
tores e engenheiros que recebem prémios de 8000 a 12 000
rublos ou mais por ano'". Mas os rendimentos mais elevados
cabem, então, aos cineastas (os mais conhecidos podem ganhar
80000 a 100000 rublos por ano) e aos escritores".
No que diz respeito aos quadros políticos, institui-se o sistema
das «despesas de representação» cujo montante é considerável
mas não é publicado, como não o é o montante dos «sobrescritos»
(pakity) de que beneficiam tanto os dirigentes da economia como
os dos aparelhos do partido e do Estado"'. Todos estes quadros
fazem parte da classe dominante e exploradora. As suas condições
de vida são muito diferentes das dos simples trabalhadores, mas
também existem entre eles grandes diferenças de poderes e de
rendimentos.
A diferenciação das condições de existência no seio da classe
exploradora é ainda mais aumentada pelos privilégios muito nume-
rosos não monetários de que ela beneficia, e que, literalmente, a
fazem viver num «mundo» que está estritamente hierarquizado,
sobrepondo-se a hierarquia dos privilégios à hierarquia das funções.
O desenvolvimento da hierarquia dos privilégios encontra o
seu prolongamento em diversas medidas, tais como o restabeleci-
mento, em 1936, de um sistema de «situações pessoais», mais ou
menos análogo àquele que Pedro, o Grande, havia instituído. Por
exemplo, a partir de um suficiente nível hierárquico, a certos
funcionários, juízes, docentes, etc., é atribuído uma espécie de
«título» que corresponde, mais ou menos, aos antigos graus aca-
démicos e aos antigos «postos» da época czarista. O sistema diver-
sifica-se progressivamente; numerosos títulos são criados como
o de «conselheiro referendário». Também entre os artistas se esta-
belece toda uma hierarquia: «artista emérito», artista emérito de

" Cf. as decisões de diferentes comissariados, em G. Bienstock,


S. M. Schwarz and A. Yugow, Management in Russian Industry and Agri-
culture, Londres, Oxford UP, 1944, p. 95, n." 15.
" Cf. I bid., pp. 94-95.
"" Cf. G. Frieúman, De la Sainte Russie d /'URSS, ob, cit., p. 120.
"" Cf. R. Medvedev, Le Stalinisme, ob. cit., p. 591.

184
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

tal ou tal República, artista emérito da União Soviética. A estes


títulos correspondem determinados rendimentos e privilégios 29 •
As ordens e as condecorações também se multiplicam. A 27 de
Dezembro de 1938, é criado o título de «herói do trabalho socia-
lista>>, «O mais alto grau de distinção no domínio da economia
e da cultura». Destina-se às pessoas que, «pela sua notável acti-
vidade de vanguarda», contribuíram para «o progresso da econo~
mia, da cultura, da ciência, e para o crescimento do poderio e
da glória da URSS». O título dá direito à ordem de Lenine, a
mais alta condecoração soviética, e comporta numerosas van-
tagens materiais e privilégios. São igualmente criadas outras
condecorações dando vantagens e privilégios menos considerá-
veis &o.
Entre estes, figuram isenções de impostos e diversas prioridades
na atribuição de alojamentos, de títulos de transporte, etc. Teori-
camente, estas vantagens não estão reservadas aos quadros e à
intelligentsia, mas na realidade é a eles que são atribuídas com
certas excepções em favor de determinados stakhanovistas.
Os privilégios monetários e não monetários só especialmente
são conhecidos porque estão longe de ser anunciados de maneira
sistemática, mas os títulos e os postos pertencem aos factos da
vida quotidiana.
Uma forma de privilégio particularmente importante é a cons-
tituída pelo acesso à rede de lojas especiais reservadas a certos
quadros (estas lojas são, aliás, diversificadas consoante a função
e a posição daqueles que a elas têm acesso). Ali se encontram
à venda produtos, ou qualidades de produtos, que não se podem
obter alhures, ou que só excepcionalmente estão disponíveis nas
lojas destinadas ao público «vulgar» (porque, de facto, mesmo
quando o racionamento já não existe, um número muito grande
de produtos -mesmo dos mais correntes- são raros e, para os
obter, necessário é ter-se sido prevenido a tempo da sua chegada
e «ir para a bicha». Em geral, os produtos das «lojas especiais»
são vendidos menos caros do que os produtos comparáveis que
podem ser comprados nas lojas abertas ao público ", o que
acresce o poder de compra dos rublos recebidos pelos beneficiários
dos rendimentos mais elevados.
O sistema das lojas especiais tem o seu equivalente no que
diz respeito aos cuidados médicos; existem hospitais e clínicas
" Sobre estas questões, ver o livro de Nicholas Timasheff, The Great
Retreat, ob. cit.
" Cf. A. Baykov, The Development ... , ob. cit., pp. 348-349.
" A. Ciliga, Dix Ans au pays du mensonge déconcertant, ob. cit.,
p. 125.

185
CHARLES BETTELHEIM

reservados às diferentes camadas da classe dominante: «altos diri-


gentes», «quadros responsáveis», «personalidades eminentes», etc.,
cuja lista é cuidadosamente estabelecida Ali se encontram os
melhores médicos e medicamentos aos quais o «simples povo»
não pode ter acesso.
Actualmente, os hospitais reservados aos altos quadros do
partido e do Estado dependem da «quarta direcção-geral do Minis-
tério da Saúde»; ela dispõe «das técnicas de ponta e dos medica-
mentos raros» e «possui estabelecimentos estritamente reservados
em todas as capitais das Repúblicas e das regiões»". Este sistema,
com outros nomes, já existia nos anos 30.
A partir de certo nível hierárquico, a possibilidade de dispor
de um carro com motorista constitui importante elemento do
nível de vida e do «standing» (sobretudo numa época em que o
automóvel ainda está muito longe de se encontrar expandido e
os transportes públicos estão sobrecarregados). As diferenças hie-
rárqwcas são assinaladas pelo tipo de carro afecto a esta ou
àquela função.
Para os quadros cujo nível hierárquico é demasiado fraco
para que tenham direito a carro pessoal, o acesso a um «poli»
de carros dependente da sua empresa ou da sua administração
é, por vezes, possível.
A concessão de uma datcha, isto é, de uma residência no
campo, à beira-mar ou na montanha, depende também do nível
hierárquico em que se situam os diferentes quadros; o mesmo se
verifica com a «categoria» da datcha (isto é, a sua dimensão e
a sua localização). A atribuição de uma datcha não é «automá-
tica», salvo para aqueles que ocupam as funções mais elevadas.
Identicamente, a dimensão e a localização do alojamento
dependem do nível hierárquico. No decurso dos anos 30, os direc-
tores das empresas importantes, os principais engenheiros destas,
os secretários dos comités de cidades do partido, os presidentes
dos Sovietes urbanos, bem como os altos dirigentes políticos, os
directores de institutos, os académicos, etc., recebem apartamentos
com diversas divisões, incluindo quarto de criada, quando a maio-
ria dos operários dispõe, quando muito, de uma divisão ou do
«canto» de uma divisão, ou vive em abarracamentos.
Privilégio igualmente importante é o constituído pela atri-
buição de estadas gratuitas em «casas de repouso» (estas são,
na realidade, grandes hotéis). Existe também uma hierarquia das

" Cf. M. Popovski, URSS- La Science m'anipulée, ob. cit., p. 119,


n.' 6.

186
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

{<Casas de repouso», as mais confortáveis das quais estão reser-


vadas aos quadros superiores e suas famílias. Existem «casas de
repouso» mais simples para os operários, mas são destinadas
sobretudo aos stakhanovistas, aos oudarniki, e a certos trabalha-
dores qualificados 33 •
É evidentemente impossível calcular o «rendimento real» a
que corresponde a acumulação desses privilégios não monetários
e dos salários elevados, e avaliar a relação entre este rendimento
e o de um operário. Não pode proceder-se senão a estimativas.
Para os anos do pós-guerra, Roy Medvedev estima essa relação
em 1 para 40 ou 1 para 50 e, para certos funcionários, em 1 para
100, mas toma como base de comparação o rendimento operário
médio"'. Se se tomar como base o rendimento dos operários pior
pagos, chega-se a coeficientes pelo meno~ tão elevados como
aquele desde o fim dos anos 30. Para dizer toda a verdade, as
condições de existência são tão profundamente diferentes que os
números quase nada significam. Os simples trabalhadores, que
a si próprios se chamam nós, e os privilegiados, de que falam
designando-os por eles, vivem, como já se disse, em. dois mundos
diferentes.
Assim, no decurso dos anos 30, assiste-se ao acrescer dos
privilégios dos quadros, mas a este acrescimo corresponde uma
transformação profunda das relações do partido e do grupo diri-
gente com a classe dominante.

"Cf. G. Friedman, De la Saint Russie à l'URSS, ob. cit., p. 119.


" Cf. Medvcdev, Le Stalinisme, ob. cit., p. 591.

187
CAPíTULO III

A TRANSFORMAÇAO DAS RELAÇOES DO PARTIDO


COM A CLASSE DOMINANTE

No decurso dos anos 30, a transformação das relações do


partido com a classe dominante reveste formas múltiplas e con-
traditórias, tais como a subordinação cada vez mais estreita ao
partido dos outros aparelhos de Estado e a integração neste último
de um número cada vez mais considerável de quadros técnicos,
científicos e administrativos.
Um dos aspectos essenciais da crescente subordinação dos
aparelhos de Estado ao partido (isto é, de facto, à direcção deste)
diz respeito aos aparelhos económicos e, muito especialmente,
às empresas industriais.

SEOÇÃO I

As formas de subordinação dos gestores


da indústria ao partido e à direcção deste

A subordinação ao partido das empresas industriais e dos seus


quadros reveste aspectos muito diferenciados. Para citar apenas
alguns deles, pode lembrar-se que é sob a autoridade do partido
(cuja direcção enuncia a orientação dos planos económicos e os
ratifica) que as empresas são criadas, transformadas ou fundidas.
É desta mesma autoridade que depende a nomeação e a demissão
dos directores de empresas e o controlo da sua gestão, o que não
exclui outras formas de controlo: administrativo, contábil, ban-
cário e policial. A principal forma de controlo administrativo
ao qual as empresas estão submetidas ê exercido pelo comissariado
do povo de que a empresa depende, de modo que esta se encontra
188
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

sujeita a uma dupla autoridade: a do comissariado e a do partido ',


sendo esta última a predominante.
Os dirigentes de empresas estão, pois, longe de as gerir
«soberanamente», mesmo no interior dos planos que lhes são
fixados. A subordinação dos directores de empresas ao partido
e a órgãos administrativos tem por consequência limitar estrei-
tamente os problemas de gestão que estes directores podem resol-
ver eles próprios, visto que estão submetidos à intervenção cons-
tante de instâncias exteriores à empresa. Isto determina o
desenvolvimento de numerosas contradições entre os directores das
empresas e os dirigentes das instâncias aos quais estão subordi-
nados. Na realidade, dado o papel desempenhado pelo partido na
elaboração e na aplicação dos planos, estas contradições situam-se
essencialmente entre dois pólos: a direcção das empresas e o
partido (a sua direcção e os seus «representanteS))) que intervêm,
em princípio. para assegurar quer o respeito das orientações dos
planos, quer o respeito de certas prioridades 2 • O primeiro pólo
diz essencialmente respeito à tomada das responsabilidades de
gestilo; representa, antes de mais, o capital como função, ao passo
que o segundo pólo representa, antes de mais, o capital como
propriedade. Entre estes dois pólos, inserem-se os comissariados
do povo encarregados de tarefas económicas que se referem, ao
mesmo tempo, à propriedade e à gestão e que tendem, pouco
a pouco, a autonomizar-se. Esta estrutura encerra numerosas con-
tradições cujo movimento determina diversas mudanças na gestão
das empresas e no papel do partido relativamente a estas. Importa
aqui proceder a uma visão de conjunto das transformações que
se operam a este respeito no decurso dos anos 30.

1. A geRtão industrial e o papel do partido nas empresas


nas vésperas e no princípio dos planos quinquenais

O princípio, adoptado em 1918, da «direcção única» das em-


presas de Estado visa concentrar o poder de gestão destas exclu-
sivamente entre as mãos de um director nomeado pelas autori-
dades políticas. Toma, assim, corpo um sistema de gestão que
tende a consolidar-se durante a NEP. Todavia, no decurso dos
anos 20, este sistema está longe de se impor plenamente na reali-
dade, devido ao papel do partido e à existência de sindicatos

' a. T. Dunmore, The Stalinist Command Economy, Londres, Mac-


millan, 1980.
' Cf. sobre este ponto a quarta parte do t. l, Os Dominados,

189
-~ ....,._,. { -"
--·

CHARLES BETTELHEIM

operários que não estão ainda inteiramente submetidos a?s .diri-


gentes económicos. A aplicação do sistema está também limita~a
pelo funcionamento das conferências de produção' e pela eXIs-
tência do «triângulo)).
O «triângulo)) • tem uma existência de facto. É constituído,
ao nível de cada fábrica, pelo director, o secretário do comité do
partido e o representante do zavkam (comité sindical de fábrica).
Esta instituição não tem existência formal, nasceu de relações
de forças e de práticas que levantam obstáculos ao desenvolvi-
mento pleno da direcção única 5 •
A partir de 1928, quando o acento é colocado cada vez mais
nas «exigências)) da industrialização, são efectuados ataques con-
tra as limitações que se deparam ao funcionamento da direcção
única.
Um primeiro ataque provém dos próprios dirigentes de empre-
sas. Ocorre quando o NKVD publica um texto intitulado: «Regras
fundamentais relativas aos directores e aos deveres [ ... ] dos diri-
gentes das empresas industriais)) •. Visa este texto assegurar o
«máximo de liberdade ao directon} '. Nas condições de 1928, os
efeitos deste ataque são bastante reduzidos.
Em Setembro de 1929, a direcção do partido também toma
uma decisão que visa reforçar o sistema da direcção única. Encon-
tra-se esta decisão ligada à entrada em vigor do Phmo. Quin-
quenal e à vontade de subordinar de forma crescente os sindicatos
«às exigências da produção)). O texto da decisão verifica, para o
lamentar, o facto de que se pode «ainda encontrar nas fábricas
uma intervenção directa das organizações do partido e dos sin-
dicatos no trabalho operacional produtivo da direcção da fábrica)). ~
Acrescenta que, doravante, «todas as rédeas da administração
da vida económica da fábrica devem ser concentradas entre as
mãos do directon}. As ordens operacionais e económicas deste
último são «incondicionalmente obrigatórias para todo o pessoal
seja qual for a posição ocupada no partido ou no sindicato. Só o

' Sobre estes diferentes pontos, ver o vol. 1 da presente obra, pp. 134
e segs., e o vo!. 2, pp. 199 e segs. e pp. 205 e segs.
' O «triângulo» ou, em russo, triougolnik, é, por vezes, também
designado pela palavra troika. Pode ex1s!Ir ao nível da oficma (cf. Mary
Mac Auley, Labour Disputes in Russia, Oxford, 1969, p. 28, n.• 3).
• Cf. sobre este ponto A. Baykov, Soviet Economic System, Cambri-
dge, 1950, p. 115.
• TPG, 2 de Fevereiro de 1928.
7
Cf. A. Baykov, ob. cit., p. 116.

190
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

director tem o direito de recrutar, seleccionar, promover e demitir,


sem estar dependente da opinião das organizações do partido e
dos sindicatos» •.
Aparentemente, trata-se de reafirmar, sem equívoco, o prin-
cípio da direcção única. Na realidade, esta reafirmação que se
afigura indispensável a um «funcionamento eficaz» das empresas
industriais entra em contradição com o papel económico do
partido que, este sim, se considera indispensável à aplicação dos
planos de Estado. Ao longo de toda a década de 30, suce-
dem-se tentativas diferentes que visam «tratar» esta contradição.
Remete ela para a oposição, por um lado, entre os gestores, que
muitas vezes mais não procuram do que cumprir as tarefas mais
fáceis do plano da sua empresa (ou mesmo fazer acreditar que
«realizaram» o plano quando não o fizeram), por outro lado, o
partido que procura impor a «realização» do plano ou, pelo menos,
dos seus objectivos julgados prioritários.
Desde a entrada em vigor do Plano Quinquenal, o movi-
mento desta contradição e as lutas sociais que o acompanham
conduzem o partido a adoptar uma série de «medidas» que visam
«regulamentar>> os poderes da direcção das empresas.
A decisão de 7 de Setembro de 1929, precedentemente men-
cionada, constitui uma de tais «medidas». Tendo em conta o
contexto na qual se insere, visa conseguir que os dirigentes de
empresas subordinem as suas próprias decisões ao respeito pelos
«objectivos de produção» e pelas condições económicas e sociais
gerais (preços, salários, montante dos investimentos, etc.) fixados
pelo poder político e, em primeiro lugar, pelo partido.
A reafirmação, sob esta forma, do princípio da direcção
única deixa, evidentemente, subsistir as contradições entre o
director e o partido. São, por isso, apresentadas novas propostas
para «ultrapassar» esta contradição procurando obrigar a fundir
o papel do partido e o da direcção das empresas. A ideia de
semelhante fusão assume particular importância no princípio dos
anos 30.

2. A ideia de uma fusão da direcção das empresa& e do partido

Em Fevereiro de 1921, Estaline afirma que, a não haver uma


fusão dos papéis do partido e da direcção das empresas, não pü"

• Cf. Pravda, 7 de Setembro de 1929; e a obra de G. Bienstock,


S. Schwarz e A. Yugov, Management ... , ob. cit., pp. 35-37.

191
CHARLES BETTELHEIM

derá haver direcção única. Assim, no discurso que pronuncia


a 4 de Fevereiro, na 1.• Conferência dos Quadros da Indústria
da URSS, declara:
Pergunta-se muitas vezes por que não temos direcção
única. Ela não existe e não existirá enquanto não tivermos
tomado posse da técnica. Enquanto não houver, entre nós,
bolcheviques, um número suficiente de homens habituados
às questões da técnica, da economia e das finanças, não
teremos uma verdadeira direcção única •.
Enquanto se espera por isto, Estaline conta que a acção geral
do partido e a nomeação de directores de empresas plenamente
devotados a este último permitirão obrigar realmente as empresas
a conformar-se às orientações e às decisões do partido.
O que se passa no decurso dos anos seguintes não confirma
que a nomeação de gestores considerados mais fiéis às ordens do
partido conduza a melhor subordinação da actividade das em-
presas às decisões políticas tomadas no vértice. Não resulta daqui,
de nenhum modo, a constituição de um verdadeiro sistema de
direcção única agindo em estrita conformidade com a política
e as orientações do partido.
A pretendida «fusão» entre a direcção da empresa e o partido
revela-se largamente ilusória. Mesmo quando um dirigente de
empresa é membro do partido, procura primeiro cumprir a sua
função específica de dirigente de empresa realizando as tarefas
que lhe parecem mais urgentes ou mais cómodas. Além disso,
para desenvolver a sua actividade, torna frequentemente medidas
que não são conformes à política do partido, embora procurando,
em geral, dissimulá-lo.
Nestas condições, o grupo dirigente do partido acentua a
intervenção directa das organizações de base do partido na gestão
quotidiana das empresas. Isto entra em contradição com o prin-
cípio da direcção única. Assim, no decorrer de 1932, o CC do
partido exige que os comités do partido ao nível das fábricas não
hesitem em submeter O!S direcções de empresas a um controlo
permanente. Críticas severas são dirigidas aos comités do partido
que «não se preocupam eles próprios com os pormenores con-
cretos da produção». Além disso, são formuladas críticas aos
directores de empresas que, em nome da direcção única, protes-
tam contra a interferência constante dos comités do partido na
sua actividade de direcção.
• Cf. Estaline, QL, pp. 500-501.

192
·.

AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

Em 1933, a «direcção única» fica singularmente enfraquecida


com o estabelecimento de uma rede de «organizadores do partido»
a funcionarem ao nivel das fábricas, e directamente responsáveis
perante o CC ' 0 • Está-se, então, muito longe das decisões de
Setembro de 1929 -em princípio ainda em vigor- que visavam
reforçar o princípio ua «mrecção única».
No XVII Congresso (26 de Janeiro-lO de Fevereiro de 1934),
o problema das relações entre dirigentes de empresas e organi-
zações do partido está no centro de numerosas intervenções. Tra-
ta-se, segundo a expressão de um dos oradores, de se opor a
«uma ruptura entre a linha política e o nosso trabalho de orga-
nização» ".
A questão da «ruptura» entre a linha e a prática efectiva é
longamente abordada perante o Congresso por L. M. Kagano-
vitch 12• Estaline consagra-lhe uma parte importante do seu rela-
tório. Insiste na ideia de que, mesmo quando uma linha e uma
solução justas são adoptadas, o sucesso depende do trabalho de
organização e da luta por uma aplicação prática da linha".
A existência de uma «ruptura» entre a linha e a prática efec-
tiva, entre o que é decidido e o que se faz, torna-se, assim, fonte
de sérias preocupações. Na época, esta «ruptura» não é atribuída
-como mais tarde será- à actividade de «sabotadores» e de
«inimigos do povo». É essencialmente explicada pelas fraquezas
da «organizaçãm> e por má escolha dos quadros. São assim denun-
ciados os «burocratas», os «incorrigíveis amigos da papelada», os
«faladores» [ ... ] «incapazes de organizar o que quer que seja>>
e «OS militantes [ ... ] que prestaram serviços no passado e, agora,
resolvem como grandes senhores [e] entendem que as leis do
partido e do Estado soviético não foram feitas para eles [... ] 14.»
Nesse momento, as «medidas de organização» e o reforço dos
órgãos de controlo são chamados a desempenhar papel decisivo.
Entre as principais decisões do Congresso, neste domínio, con-
vém notar: a criação, junto dos órgãos dirigentes, de departa-
mentos encarregados de controlar a actividade corrente dos órgãos
regionais e locais e de ter em dia o ficheiro de todos os quadros;

10
Sobre estes diferentes pontos, cf. PS, Junho de 1932, p. 5, Dezem-
bro de 1932, p. 47, Agosto de 1933, p, 39; Direktivy KPSS I Soviets kovo
pravitelstvo ohoziaistvennym voprosam, 4 vol., Moscovo, 1957-1958, vol. II,
pp. 372-377, e J. Azrael, Managerial Power and Soviet Politics, Cam-
bndge (Mass.), 1966, p. 93.
" Cf. XVII Sezd VKP (b), Moscovo, p. 619.
" Cf. ibid., pp. 522-533.
13
Estaline, QL, t. 2, p. 708.
H /bid., p, 712-713.

Est. Doe. 220-13 193


CHARLES BETTELHEIM

o acréscimo dos poderes da comissão de controlo do partido e


da comissão de controlo soviético; e, no domínio da produção
industrial, a criação de «secções industriais» que têm por tarefa
controlar o funcionamento das empresas e verificar a actividade
dos seus dirigentes '". Esta criação é altamente significativa.

3. A instalação de «secções industriais» (1934) e os seus efeitos

A criação de «secções industriais» pelo XVII Congresso ofi-


cializa o abandono das orientações de Setembro de 1929. Visa
estabelecer um controlo pormenorizado e quotidiano do partido
sobre a gestão económica. L. M. Kaganovitch chega mesmo a
falar do papel de gestão operacional confiado ao BP, e Estaline
insiste na necessidade de verificar o cumprimento das decisões
e instruções emanadas dos centros dirigentes'". Os órgãos então
em função têm uma característica essencial: não são emanações
da base do partido; funcionam junto das instâncias superiores e
visam submeter os dirigentes de empresas às orientações e às
decisões tomadas pelo BP e pelo CC.
A fim de realizar este objectivo, os estatutos do partido adopta-
dos pelo XVII Congresso prevêem, no artigo 25, que sejam criadas
«secções de produção» junto do CC, bem como ao nível dos
comités regionais e distritais do partido. Tais secções são «especia-
lizadas» 17 e devem controlar sistematicamente a gestão das empre-
sas. As suas funções são complexas. Por um lado, ao nível do
CC, as «secções industriais» apoiam os diferentes comissariados
do povo para a indústria'", que são os órgãos governamentais.
Por outro lado, tendem a substituir um controlo exercido «de
cima» pelo partido ao controlo que se supunha ser exercido pelos
comités do partido ao nível das empresas. Pretende-se que elas
reforcem a direcção das empresas, «protegendo-a» contra as inter-
venções dos membros do partido em cada empresa.
A redução das funções de controlo exercidas pelas organiza-
ções primárias do partido (os comités de fábrica, etc.) ressalta
dos novos estatutos. O artigo 50 enumera as funções dos órgãos
de base do partido que são, cada vez mais, confinados a tarefas

" Sobre estes diferentes pontos, cf. KPSS, t. 5 (1971), pp. 150 e segs.;
cf. também Partinoe Stroitelstvo, n.•• 7, 17 e 32, 1934.
" Cf. o relatório de Estaline ao XVII Congresso, QL, t. 2, p. 666.
" Cf. KPSS, t. 5 (1971), pp. 165-166.
18
Cf. G. Bienstock et a!., Management ... , ob. cit., p. 18; e M. Fain-
sod, How Russia is Ruled, ob. cit., pp. 170-177.

194
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

de execução: desenvolver um trabalho de agitação e de organiza-


ção entre as massas para nelas fazer penetrar a linha e as pala-
vras de ordem do partido; assegurar o recrutamento e a educação
dos simpatizantes; «mobilizar>> as massas nas empresas para a rea-
lização do plano de produção; contribuir para o reforço da disci-
plina do trabalho e para o desenvolvimento do trabalho de choque;
lutar contra o desperdício e velar pela melhoria das condições de
existência dos trabalhadores e, em último lugar, participar acti-
vamente, como órgão do partido, na vida económica e política do
país ••.
A enumeração das funções dos órgãos primários do partido
indica claramente que estes não devem interferir na actividade da
direcção da empresa, e que não lhes incumbe controlar cada deci-
são por esta tomada. L. M. Kaganovitch di-lo muito nitidamente
quando declara:
O contramestre é o dirigente autorizado da oficina, o
director é o director autorizado da fábrica e cada um deles
está investido dos direitos e das responsabilidades que acom-
panham tais posições 20 •
O seu irmão, M. M. Kaganovitch. alto funcionário do Comis-
sariado para a Indústria Pesada, precisa:
É, antes de tudo, necessário reforçar a direcção única.
É necessário partir do princípio de que o director é o chefe
supremo da fábrica. Todos os que nela estão empregados
devem ficar-lhe completan2::!nte subordinados 21 •
No entanto, embora as decisões do Congresso reforcem a auto-
ridade dos directores sobre os seus «subordinados», o sistema da
direcção única não fica de modo algum reforçado pela criação das
«secções industriais», porque estas secções -tal como os comis-
sariados do povo de que cada empresa depende- se imiscuem
constantemente na direcção operacional das empresas.
As coisas vão tão longe que, em 1937, Estaline censurará as
organizações do partido por «se substituírem aos órgãos económi-
cos» e os «despersonalizarem», quando deveriam «ajudá-los, refor-

•• Cf. KPSS, t. 5 (1971), p. 170.


20
M. Kaganovitch, Socialism Victorious, Londres, 1934, p. 137,
citado por T. Cliff, Russia, a Marxist Analysis, International Socialism,
19701u p. 19.
Cf. Zl, 16 de Abril de 1934, cit. por Cliff, ob. cit., p. 19.

195
\-;.-

CHARLES BETTELHEIM

çá-los sistematicamente, e guiar a economia não passando por


cima deles mas agindo através deles» 22 •
Na realidade, a situação é mais grave: os responsáveis dos
órgãos locais e regionais das «secções de produção» estabelecem,
frequentemente, laços estreitos com os dirigentes das empresas
que lhes compete controlar, cobrem as suas actividades «ilícitas»,
não denunciam as suas «fraquezas» ou os seus «abusos». Em vez
de ajudarem realmente o centro a verificar o que se passa nas
empresas, os órgãos locais e regionais das «divisões de produção»
tendem a constituir como que um biombo suplementar entre a
direcção do partido e a realidade do que se passa nas empresas
industriais. É este um aspecto da luta que se desenvolve entre os
gestores da indústria, os gestores do capital como função, que ten-
dem a aumentar a sua autonomia, e o grupo dirigente que ocupa
o lugar dos agentes do capital como propriedade. Estas contradi-
ções não são estranhas à repressão e ao terror que se abatem sobre
os gestores e sobre aqueles que, perante estes, deveriam defender
o capital como propriedade.
Aos olhos do grupo dirigente, o que se passa na indústria
assume a figura de uma «conspiraçãm) na qual participam os di-
rectores das empresas e os funcionários locais e regionais do par-
tido. Para «desmascara[)) esta «conspiração», o grupo dirigente
tenta, por momentos, fazer reviver, porém sem real sucesso, as
conferências de produção ao nível de fábricas, e encoraja as orga-
nizações primárias do partido a controlar a actividade da direcção
das empresas 23 •
Estas tentativas limitadas para desenvolver um certo controlo
a partir da base (a fim de assegurar melhor aplicação das ordens
c!o centro e permitir que este conheça melhor a realidade) rapi-
damente se revelam insuficientes. A verificação destas insuficiên-
cias é um dos lementos que conduz ao «saneamento» quase geral
dos antigos dirigentes de empresas membros do partido (aqueles
a que chamam os «directores vermelhos»). São estes últimos tanto
mais duramente atingidos pela repressão quanto mais o seu longo
passado no partido lhes dá o sentimento de que têm mais direitos
que outros para se oporem a ordens e directivas que julgam irrea-
lizáveis, ou realizáveis somente à custa de urna tensão social que

., Cf. Estaline, mtervenção de conclusão de 5 de Março de 1937 no


Plenário do CC Sotchineniyc, t. I (XIV), Stanford, 1967, p. 227 (cf. a
tradução francesa, em Oevres, t. xrv, Paris, NBE, 1977, p. 153).
" Sobre as conferências de produção durante a NEP, ver o vol. 2
da presente obra. Sobre o seu funcionamento (limitado e irregular) du-
rante os anos 30, ver G. Bienstock et al, Management ... , ob. cit., pp. 44
e segs.

196
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS- IV

consideram excessiva. Recusam frequentemente ser reduzidos ao


papel de meros «instrumentos dóceis» encarregados de executar
decisões tomadas sem seu conhecimento e que lhes parecem peri-
gosas.
Vimos que um momento ct-ntral da repressão e do terror em
larga escala exercidos sobre os «directores vermelhos» coincide
com o «grande processo» intentado, em Janeiro de 1937, contra o
pretenso «ce;lt--o pa;alclo trolskista», processo que se encerra com
a condenação à morte dos dezasseis réus", designadamente de
Piatakov (vice-comissário do Povo para a Indústria Pesada). Nos
meses que se seguem, quase todos os «directores vermelhos» e
administradores de indústria, ou os que lhes estão próximos, são
presos, deportados, condenados à morte, executados sem julga-
mento ou forçados ao suicídio 25 •
No entanto, para tentar obter a realização de «qualquer ta-
refa», n:'io é julgado suficiente modificar radicalmente a compo-
sição do corpo dos dirigentes de empresas (doravante, saídos do
que se chama a nova intelligentsia soviética). É por isso que o
XVII! Congresso altera complctamentç as formas de controlo que
haviam sido estabelecidas pelo XVII.

4 Nova tentativa de 1'ecurso a um controla do3 di:;-igente;:;


de empresas pelas organizações primárias do pa1·Utlo
(Nlarço de 1~39)

O XVIII Congresso do partido (10-21 de Março de 1939) repõe


em causa a existência das «secções de produção» (salvo para a agri-
cultura em que são mantidas). No seu relatório ao Congresso,
Jdanov propõe essa supressão desenvolvendo as seguintes críticas:
As secções de produção, actualmente, não sabem do
que devem ocupar-se; acontece-lhes, por vezes, assumirem
as funções dos órgãos económicos, fazer-lhes concorrência,
o que provoca a «despersonalização» e a irresponsabilidade
no trabalho 26 •

" Cf. Report of the Court Proceedings in the Case of the Anti-Soviet
Trotskyist Centre, Moscovo, 1937.
" Deve sublinhar-se que, após o XVIII Congresso e pondo de parte
as últimas repercussões, que ocorrem no princípio de 1941, a composição
do corpo dos admimstradores mdustriais permanecerá notavelmente está-
vel. Ao morrer Estaline, em 1953, a maioria daqueles que, então, ocupam
posições na direcção da indústria já ah se encontravam há dez anos
(cf. I. R. Azrael, ob. cit., p. 107).
.., Encontrar-se-á o texto francês deste relatório em Notes et Études
documentaires, 12 de Setembro de 1952, pp. 12 e segs. O texto citado
encontra-se a p. 24.

197
CHARLES BETTELHEIM

Jdanov censura aqueles organismos por pl'etenderem substi-


tuir-se aos comissariados do povo, dando directamente ordens aos
órgãos económicos de base.
As modificações aos estatutos adoptados pelo XVIII Con-
gresso suprimem as «secções de produção» na indústria. Em con-
trapartida, é decidido «elevar o papel das organizações de base do
partido nas empresas de produção» e atribuir a estas últimas «O
direito de controlar a administração das empresas»". A nomeação
em grande número, para chefiar essas «organizações de base»,
de homens promovidos recentemente pelo grupo dirigente não é
evidentemente estranha ao reforço do respectivo papel.
Para justificar o direito concedido às organizações primárias
de controlar a gestão das empresas, Jdanov refere-se às tentativas
feitas no decurso dos últimos anos. Afirma ele que a experiência
mostrou que o sucesso do trabalho das organizações do partido
está assegurado onde as organizações primárias souberem ligar
o trabalho político do partido à luta pelo cumprimento das tarefas
económicas 28 • Ergue-se contra aqueles que levantam reservas rela-
tivamente ao direito de controlo concedido às organizações primá-
rias. Declara, a este propósito:
Parece que aqueles que pensam que a direcção única
consiste em comandar na fábrica sem se apoiarem nos mili-
tantes da empresa nada compreendem do que deve ser a
direcção única. A nossa direcção única soviética, bolche-
vique, consiste em saber tomar disposições, organizar o tra-
balho, escolher os quadros [ ... ]. Mas significa, ao mesmo
tempo, que se deve saber como apoiar este trabalho na
organização do partido, nos quadros activos, em toda a
colectivização da empresa ••.
A partir de 1939, o controlo das organizações pnmanas do
partido nas empresas não é exercido por operários mas sim por qua-
dros, engenheiros e técnicos que dependem estreitamente da direc-
ção para as respectivas promoções e obtenção de diversas vanta-
gens materiais, designadamente no que respeita aos prémios ou à
atribuição de alojamentos.
Nestas condições, o controlo exercido por estas organizações
não poderia ir longe. É, pois, sem grande sucesso que o grupo dui-

27
Cf. os artigos 27 e 61 dos estatutos adoptados pelo XVIII Con-
gresso, KPSS, t. 5 (1971), pp. 388 e segs.
" Jdanov, relatório ao XVIII Congresso, ob. cit., pp. 25 e 26.
" I bid., p. 26.

198
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

gente tenta apoiar-se sobre «a base» para estar melhor informado


do que se passa nas empresas e para obter uma aplicação mais
estrita das directivas e decisões destas. Por isso, às organizações
primárias do partido é frequentemente chamada a atenção para
o papel que se julga deverem elas desempenhar. Por exemplo, uma
decisão tomada a 23 de Outubro de 1939 pelo CC sublinha a neces-
sidade de «elevar o papel e a responsabilidade das organizações
primárias do partido», em particular, nas minas de carvão do
Donbass 30 •
Esta decisão, assim como outra que se refere às empresas
siderúrgicas do Donbass e da província de Techéliabinsk fazem
apelo a um controlo quase quotidiano sobre a direcção das empre-
sas 31 • Tais apelos, porém, poucos efeitos têm, e daí o reapareci-
mento das «secções de produção» na indústria.

5 A reconstituição das «Secções de produção»

Desde o Outono de 1939, revelam-se claramente os limites es-


treitos que as relações hierárquicas existentes nas empresas opõem
ao controlo exercido pelas organizações primárias. Esta situação,
e a pressão exercida pelos altos dirigentes, partidários de um con-
trolo realizado pelas organizações locais e regionais do partido,
favorecem o reaparecimento das «secções de produção», assim
como o reforço do papel dos comités locais e regionais do partido
no controlo da indústria e dos transportes 32 •
A XVIII Conferência do partido (15-20 de Fevereiro de 1941)
reafirma com força a necessidade de um controlo dos dirigentes
de empresas pelas organizações locais e regionais do partido. Apela
para a reconstituição, a todos os níveis, das «secções de produção»,
e declara ser necessário que, ao nível dos comités de cidades, de
distritos, de regiões, etc., secretários destes comités sejam encar-
regados daquele controlo.
Estas decisões contraditórias, que surgem em poucos anos,
sugerem o confronto, no próprio seio do grupo dirigente, de por-
ta-vozes de duas camadas da cla<>Se dominante a defenderem duas
concepções diferentes. Uma destas concepções insiste sobre o papel
político; para os seus partidários, são os órgãos de Estado que
estão encarregados das tarefas económicas; insistem eles sobre o

" Cf. KPSS, t 5 (1971), p. 421.


" Cf. G. B1enstock et al., Management ... , ob. cit., pp. 20-21.
" Cf. sobre este ponto a decisão do CC datada de 29 de Novembro
de 1939, em KPSS, t. 5 (1971), pp. 423 e segs.

199
CHARLES BETTELHEIM

papel dos comissariados do povo e do Sovnarkom colocados sob


o controlo político do partido. No XVIII Congresso, esta concep-
ção é defendida por Jdanov, aparentemente apoiado por Estaline.
A outra concepção insiste sobre o papel económico directo do
partido. Este ponto de vista, defendido por Malenkov, toma rapi-
damente ascendente no momento da XVIII Conferência 33 , como
indica uma resolução adoptada por esta última.
A sucessão rápida de uma forma de controlo por uma outra
revela que nenhuma das formas aplicadas permite à direcção do
partido «dominar» o desenvolvimento económico e social real,
como provam as «violações» dos «objectivos dos planos», a «deso-
bediência» dos quadros industriais e a incapacidade do partido e
do governo para controlar a situação sem se imiscuírem na gestão
quotidiana. Provém daí a tendência constante para estabelecer
uma espécie de «modelo militar» com direcção centralizada e para
intervir directamente na' actividade das empresas, apoiando-se, ao
mesmo tempo, nas organizações do partido, na polícia e na acção
dos sistemas bancário, financeiro e orçamental.
Este modelo militar lembra o do capitalismo de Estado alemão
da Primeira Guerra Mundial. Neste «modelo», o vértice dá ordens
(escritas nos «planos económicos» e nas directivas relativamente
pormenorizadas emitidas ao longo do ano) e deixa um mínimo de
autonomia aos dirigentes das empresas. São estes reduzidos, o mais
possível, ao papel de meros «executantes» que quase não podem
tirar o melhor partido das condições concretas de funcionamento.
Esta forma de comando acarreta enormes desperdícios de re-
cursos: provoca saltos na produção, a frequente imobilização
dos equipamentos e a inadaptação das técnicas e de nume-
rosas decisões às exigências de situações locais diversificadas.
Acarreta também, no que se refere' aos gestores, quer a sua «pas-
sividade» (quando se limitam a obedecer às directivas, optando
por dar prioridade à execução das mais fáceis de aplicar), quer a
sua «indisciplina» (quando tentam escapar parcialmente às direc-
tivas recebidas, orientando e organizando a produção da maneira
que lhes pareça mais conforme às potencialidades das «suas» em-
presas, ou ao que julgam conforme aos seus interesses particulares).

,, Encontra-se uma exposição parcial dos conflitos que se travam em


torno destas duas concepções num artigo de Jonathan Harris, «The Ori-
gins of the Conf!ict between Malenkov and Zhdanov, 1931-1941», em
Slavic Review, Junho, 1976, pp. 287 e segs. O artigo dá indicações inte-
ressantes sobre as posições tomadas, respeitantes a estas questões, por
diversos dirigentes soviéticos. O autor estima, sem realmente apresentar
provas, que Estaline teria modificado o seu próprio ponto de vista entre
o XVIII Congresso e a XVIII Conferência.

200
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

As razões que fizeram prevalecer este «modelo militan> de


organização e comando são múltiplos. Só mencionarei algumas,
as que me parecem particularmente importantes.
A primeira, a mais fundamental, está ligada ao carácter anta-
gónico do processo de produção, que impõe aos produtores direc-
tos uma exploração levada ao máximo e os exclui de qualquer
participação na elaboração dos planos e das directivas e até das
modalidades da sua aplicação.
A segunda está ligada à contradição entre o capital como pro-
priedade e o capital como função, e também ao facto de que o
grupo dirigente que concentra o poder político procura assegurar
para si a primazia e a unidade do capital como propricda~c
recorrendo a medidas disciplinares e de vigiiância, em vez de e>ta-
belecer um sistema de indicadores de gestão suficientemente flexí-
veis. Esta primazia concedida às medidas disciplinares e de vigi-
lância parece traduzir duas preocupações do grupo dirigente: 1)
assegurar para si um poder hegemónico e ditatorial sobre as outras
camadas da classe dominante; 2) reduzir ao mínimo o papel das
«alavancas económicas» da direcção e do controlo da economia
através dos preços e da moeda.
Estas duas preocupações, sem dúvida inseparáveis, levantam
obstáculos à outorga de alguma «autonomia» de gestão (ainda que
relativa) aos dirigentes de empresas; opõem-se, também, à defini-
ção clara de «critérios de competência» dos gestores. A tomada
em consideração destes critérios seria susceptível de reduzir a auto-
ridade do grupo dirigente. Poderia dar nascença a uma legitimação
das funções dos gestores, independentemente do facto de eles
serem nomeados pelo poder central, único juiz do bom funda-
mento da sua manutenção em determinado lugar, da sua demissão
ou da sua promoção. A ditadura do grupo dirigente reduz neces-
sariamente o papel de eventuais «critérios de competência». Con-
duz a atribuir o primeiro lugar a critérios de obediência ao poder,
de «lealdade» para com este e até de «servilismo».

6. As formas de sujeição directa de gestores e engenheiros


ao grupo dirigente

No decurso dos anos 20, o grupo dirigente concentra o poder


político e esforça-se por exercer a sua ditadura o mais directa-
mente possível sobre o conjunto da classe dominante.
Nos casos limites, chega-se a uma forma extrema de «modelo
militar>> de organização da economia, ao comando directo de cer-
tas produções pelas autoridades centrais. O caso da charaga mais
não é do que um exemplo particular desse comando.
201
CHARLES BETTELHEIM

Ocorre este quando as autoridades centrais (teoricamente o


BP, de facto, os membros que concentram o máximo de poder)
fazem «sain> uma ou várias fábricas da competência do comissa-
riado ao qual estavam subordinadas, para as colocar sob a direc-
ção de um engenheiro que tais autoridades escolheram pessoal-
mente. Neste caso, o engenheiro fica directamente responsável
perante as autoridades centrais, as fábricas colocadas sob a sua
direcção beneficiam prioritariamente de todos os abastecimentos
necessários, mas ele próprio tem de pedir autorização às autori-
dades para todas as iniciativas de certa importância que queira
tomar. As fábricas assim dirigidas já não dependem, pois, do
«plano económico» de conjunto, e a distinção entre o capital como
propriedade e o capital como função tende a apagar-se em bene-
fício do primeiro. Deixa de existir «gestão» propriamente dita
(mesmo no sentido limitado que este termo reveste no interior
do sistema dos comissariados económicos), para haver organização
directa de certa produção cujo valor de uso é julgado de impor-
tância decisiva. Este tipo de organização diz respeito essencial-
mente a uma parte do sector dos armamentos.
O exemplo mais célebre é o do programa de investigação e de
produção de um novo avião de intercepção. Em 1939, os resul-
tados dos aviões de que dispõe o exército soviético são medíocres.
Estaline decide saltar por cima dos serviços competentes da indús-
tria aeronáutica e pede a dois engenheiros que elaborem os seus
projectos, decisão esta tomada a meio do ano. Os dois engenheiros
escolhidos tornar-se-ão rapidamente célebres; são A. Mykoyan e
M. Gurevitch e o seu avião será conhecido sob a sigla MIG ••.
Duas semanas após terem entregue o seu projecto (Outubro 1939),
estes engenheiros recebem ordem de construir os protótipos, de-
vendo os trabalhos começar a 1 de Novembro. Todas as facilida-
des lhes são dadas para tal fim. A série é encomendada em Janeiro
de 1940. Quatro meses mais tarde, a 5 de Abril de 1940, o primeiro
protótipo levanta voo. Em fins de 1940, é entregue uma vintena
de aparelhos. O 100. sai no fim de Fevereiro, data em que a
0

distribuição às unidades aéreas já começara 35 •


Semelhante organização permitiu reduzir em 10 meses o prazo
que separa o primeiro voo da entrada em serviço e passar muito
rapidamente à produção em série.
A assunção directa de certas produções pelas autoridades cen-
trais parece, portanto, susceptível de resolver facilmente os pro-
blemas de direcção e controlo e aqueles que nascem do sistema

" Cf. Air Enthusiust, vol. I, p. 252, cit. por J. Sapir, ob. cit., p. 518.
" Cf. ibid.

202
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

de comissariados e da cadeia hierárquica que ele implica. Na


realidade, as coisas são mais complexas.
Ao isolar os serviços de estudo das fábricas e os engenheiros
seleccionados do conjunto do sistema industrial, é impossível
tomar em consideração condições concretas da produção em
série, razão pela qual a qualidade dos aparelhos desce quando a
produção se faz em diversas cadeias. Além disso, a pressa havida
na construção dos protótipos acarreta graves consequências: os
estudos só são feitos a posteriori; o motor é demasiado pesado, a
estrutura do aparelho apresenta defeitos, os seus circuitos são frá-
geis. Por último, a produção deste MIG é feita em detrimento
de outros aparelhos produzidos sem prioridade (o Y AKI e o
LAGGJ), de tal modo que este género de produção directa pelo
Estado - que é acompanhado com honras excepcionais prestadas
aos engenheiros escolhidos pelos altos dirigentes políticos - não
permite, de modo algum, resolver os problemas que põe a orga-
nização da produção, a qual mais não faz do que substituir uma
forma de organização militar por outra, reproduzindo os seus
defeitos sob modalidades específicas.
Semelhante assunção directa de certas produções representa
uma tentativa de negação da contradição entre o grupo dirigente
e uma fracção da classe dominante: alguns indivíduos pertencen-
tes a esta classe, mas que não são membros do grupo dirigente,
são seleccionados pelo vértice e é-lhes atribuída autoridade excep-
cional. Esta tentativa de negar a contradição não a faz desapare-
cer, já que o conjunto do aparelho de produção continua a fun-
cionar como anteriormente, mantendo o grupo dirigente o seu
poder ditatorial sobre o resto da classe dominante.

SECÇAO II

A penetração rápida da nova classe dominante


no partido no fim dos anos 30

A transformação das relações da nova classe dominante com


o partido não se traduz apenas pela sua crescente subordinação
ao grupo dirigente, traduz-se também, aparentemente de maneira
contraditória, pela sua penetração no partido. No fim dos anos 30,
o grupo dirigente reserva ao que chama a nova intelligentsia um
tratamento diferente daquele que era aplicado aos «antigos inte-
203
CHARLES BETTELHEIM

lectuais». Esta alteração de tratamento inscreve-se nos estatutos


do partido adoptados pelo XVIII Congresso (10-21 de Março de
1939).
1. Os pstatutos adoptados pelo XVIll Congresso
e os «intelectuais soviéticos»

A 18 de Março de 1939, no relatório que apresenta ao Con-


gresso'", Jdanov declara que devem ser abolidas as distinções
estabelecidas pelos antigos estatutos entre as diferentes categorias
sociais para efeitos de admissão no partido. Acrescenta que tais
distinções constituem um «quadro fora de uso» ou «normas ultra-
passadas» e condena «a atitude de desprezo para com [os] homens
de vanguarda» que são os «novos intelectuais soviéticos» cuja ins-
trução ou cujos méritos lhes valeram ser eleitos para posto.s de
direcção ".
O primeiro parágrafo da resolução adoptada pelo Congresso
e que modifica os estatutos do partido afirma que «os intelec-
tuais [ ... ] se tor:r.aram, na sua massa, intelectuais de um tipo abso-
lutamente novo [ ... ], são o~ operários e os camponeses de ontem,
os filhos de operários e de camponeses que se elevaram a postos
de comando. Os intelectuais soviéticos não servem o capita-
lismo [... ] mas o socialismo»".

2. A «renovação» da «intelllgentsia» e a alteração dos estatutos

As razões dadas para esta modificação dos estatutos decidida


pelo XVIII C~ngresso inscrevem-se na linha de uma argumenta-
ção desenvolvida por Estaline desde há al~uns anos. Já a 25 de
Novembro de 1936, no seu relatório sobre o projecto de nova
constituição apresentado ao Congresso dos Sovietes, ele declarava
que os «intelectuais» (engenheiros, técnicos, «trabalhadores da
frente cultural». em~regados, etc.). haviam passado por grandes
alterações no decurso dos anos recentes «porque já não existem
classes exploradoras» e eles «trabalham na edificação [... ] da
sociedade socialista sem classe!! 39 •

"' Cf. o relatório apresentado por Jdanov, a 18 de Março de 1939,


ao XVIII Congresso, sobre as modificações nos estatutos do partido, cm
Documents sur les XVIII' e XIX' Congrés du PC (b> de !'URSS. Notes
et Études documentaires, ob. cit., p. 14.
37
lbid., p. 14.
" Ibid., p. 31; cf. também KPSS, t. 5 (1971), p. 367.
" Cf. Estaline, Q. L., t. 2, pp. 754-755.

204
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

No XVIII Congresso, no seu relatório de 10 de Março de 1939,


Estaline volta ao mesmo tema, declarando:
Centenas de milhares de jovens, saídos das fileiras da
classe operária, do campesinato, dos intelectuais trabalha-
dores, foram para as escolas superiores e para as escolas téc-
nicas e, depois, vieram completar as fileiras esclarecidas dos
intelectuais. Infundiram sangue novo na intelligentsia, revi-
talizaram-na à nova maneira, à maneira soviética. Altera-
ram radicalmente, à sua imagem e semelhança, a fisionomia
da intelligentsia. O que restava dos velhos intelectuais foi
dissolvido na massa da intelligentsia nova, soviética, estreita-
mente ligada ao povo e pronta, na sua grande massa, a ser-
vi-lo fiel e correctamente 40 •
No relatório que apresenta ao XVIII Congresso, Molotov abor-
da também a questão da <<nova intelligentsia)) insistindo sobre a
sua importância numérica. Cita números que fazem ressaltar que
aqueles que entram oficialmente nesta categoria são cerca de 9,6
milhões em 1937, o que representa, com os membros das suas
familias, 13 'o/o a 14% da população da URSS". Está-se longe das
poucas dezenas de milhares de antigos intelectuais do fim dos
anos 20.
O contraste entre estes números esconde uma realidade, a de
que as «poucas dezenas de milhares de intelectuais dos anos 20
constituíam uma intelligentsia em sentido restrito)), ao passo que os
«milhões)) de intelectuais do fim dos anos 30 formam uma «in-
telligentsia em sentido lato)) 42 •

" Cf. Estaline, Q. L., ob. cit., p. 884. Texto revisto a partir do ori-
ginal russo (Pravda, 11 de Março de 1939, reproduzido em Estaline, Sotchi-
nenia, XIX (1934-1939), Stanfonl, 1967, p. 398.
" Cf. o relatório de Molotov sobre o III Plano Quinquenal, em
La Correspondance Internationale, 11 de Abril de 1939, p. 395 .
., Com efeito, a categona de «intelligentsia», utilizada frequente-
mente na URSS no decurso dos anos 30, é uma categoria vaga que en-
globa todos aqueles que não são nem operários nem camponeses. Pode
distinguir-se uma «intelligentsia» no sentido restrito (que engloba escrito-
res, arllstas e sábios, o pessoal qualificado, os engenheiros, os técnicos e
os quadros - ITC -, os altos funcionários e dirigentes das empresas admi-
nistrativas e instituições diversas, os membros do vértice dos aparelhos
dirigentes); e uma <<intelligentsia>> no sentido lato que compreende também
os pequenos e médios funcionários e empregados dos diferentes aparelhos
(cf. M. Lewin, <<L'Etat, et les classes sociales en URSS ... )), art. cit.,
pp. 18-19). As estatísticas soviéticas apresentam frequentemente em con-
junto os números relativos a estes diferentes grupos, a fim de mostrar que
existe uma «intelligentsia)) tão numerosa quanto possível, mas a intelligen-

205
CHARLES BETTELHEIM

Ora, é a intelligentsía em sentido restrito que interessa à nova


política de recrutamento do partido. Segundo a resolução sobre os
estatutos, os «intelectuais de tipo novo» são os de origem operária
ou camponesa que «se elevaram a lugares de comando» 43 • Na rea-
lidade dos factos, a primeira parte desta afirmação está longe de
ter sido sempre comprovada.

8. Alguns números relativos à entrada no partido


da nova classe dominante

A penetração da nova classe dominante no partido esboça-se


algum tempo antes do XVIII Congresso; começa próximo de No-
vembro de 1936 (na época do discurso de Estaline sobre a nova
constituição).
O quadro seguinte evidencia a forma como o recrutamento do
partido, entre Novembro de 1936 e Março de 1939, é socialmente
diferente do de 1929:

Repartição por classes ou categorias sociais


dos efectivos dos novos aderentes do partido *

Ftecrutatnento de Recrutamento
Nov.1936 a Mar. 193>1 de 1929

81,2 41,0
Operários ............................ . 17,2 15,2
Camponeses ........................ .
«lntelhgentsia», empregados e 1,7 43,8
funcionários ..................... .

tsia recrutada pelo partido não comporta praticamente pequenos funcioná-


rios e empregados. Um estudo recente estima que a intelligentsia tomada
no sentido restrito (especialistas com nível secundário ou superior) não
formava, em 1940, senão 3,3 'o/o da população, ao passo que os «funcioná-
rios não qualificados» formavam 13,2 o/o desta (cf. S. L. Seniavskii, Izme-
neniia v Sotsia/noi Strukture Sovietskego Obshtchestva, 1938-1970, Mos-
covo, 1973, p. 299, citado por ibid., p. 19, n. • 43).
" Cf. supra, p. 200 (o sublinhado é meu, C. B.).
* Cf. T. H. Rigby, ob cit., p. 223. Em percentagem do número de novos ade-
rentes.

206
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

Deste modo, bem antes do XVIII Congresso, pode constatar-se


a amplitude da penetração da nova classe dominante no partido
e a transformação da politica de recrutamento deste último.
Outras avaliações mostram que, em 1936-1937, os «simples
operários não chegam sequer a representar um terço dos efectivos
do partido, ao passo que, nas zonas rurais, a grande maioria dos
aderentes eram membros do aparelho» ••.
A seguir ao XVIII Congresso, a penetração da nova classe diri-
gente no partido e a transformação da sua politica de recruta-
mento ainda ~o mais acentuadas. As estatísticas publicadas, ainda
q_ue pouco numerosas, permitem avaliar que, nos anos 1939 a 1941,
os operários representam menos de 20 'o/o dos novos aderentes e
os camponeses menos de 10 'o/o, ao passo que os funcionários, em-
pregados e «intelectuais» representam mais de 45 'o/o 45 • Na reali-
dade, uma forte proporção dos «camponeses» que entram no par-
tido pertencem aos aparelhos de enquadramento dos kolkhozes e
explorações do Estado, ou não tardam a ingressar neles; identica-
mente, os «Operários» que aderem então ao partido são, na maio-
ria, antigos operários promovidos a diversos postos ou prestes a
sê-lo, deixando, portanto, de ser produtores directos; além disso,
entre estes últimos, encontram-se principalmente trabalhadores
qualificados e «stakhanovistas» que exercem muitas vezes funções
de «pequenos quadros» ...
Nestas condições, os operários da base que pertence ao partido
já não equivalem a mais de 5 'o/o-6% (no máximo) dos operários a
trabalhar efectivamente nas fábricas e nos estaleiros de construção.
Ao nível das fábricas, a penetração da nova classe dominante
no partido ainda é mais impressionante. Assim, a Pravda de 23 de
Julho de 1940 indica que, na fábrica «Presnya» de construção de
máquinas, em Moscovo, há 119 membros do partido num efectivo
de 1300 assalariados. Destes 119 membros, 100 são engenheiros e
técnicos e outros empregados, apenas 12 são trabalhadores ma-
nuais. Trata-se, talvez, de um caso extremo mas que ilustra bem a

" Cf. as avaliações de G. T. Rittersporn, em «L'État ... », art. cit.,


p. 24, que remete para diversas fontes soviéticas.
., Cf. T. H. Rigby, Communist Party Membership ... , ob. cit., p. 225.
" Cf. ibid., pp. 226 a 231.

207
CHARLES BETTELHEIM

transformação que se operou nas relações entre o partido e a nova


classe dominante".
Em seguimento desta transformação, a nova classe dominante
e o partido apresentam traços específicos que permitem compreen-
der melhor as condições em que se desenvolvem a economia e a
sociedade soviéticas.

47
Posteriormente, a direcção do partido esforçar-se-á por encobrir
esta transformação tentando obter um recrutamento operário e camponês
suficientemente numeroso para que os produtores directos estejam pre-
sentes em número bastante nas suas fileiras e para que o partido possa
continuar a prevalecer-se do título de «partido dos trabalhadores» ou «da
classe operária». Este recrutamento, porém, não se faz sem dificuldade,
já que os operários que não querem fazer carreira (e é a imensa maioria)
se recusam a entrar no partido Frequentemente, só se decidem a fazê-lo
quando submetidos a fortes pressões. Por exemplo, um operário pode gra-
tificar o chefe da organização do partido para não ser inscrito neste (cf.
Chronique des petits gens d'URSS, ob. cit., p. 141).

208
CAPíTULO IV

A ESPECIFICIDADE
DA NOVA CLASSE DOI.HNANTE

A natureza das relações de exploração que dominam na União


Soviética determina o carácter capitalista da classe dominante deste
país, mas as condições específicas em que a dominação desta se
exerce geram diversas contradições internas nessa burguesia.

SECÇÃO I

AB contradições internas da nova burguesia

1 As contradições entre aparelhos

A transformação mais impressionante é devida precisamente


ao aparecimento de aparelhos de Estado incumbidos de elaborar
e pôr em marcha os planos económicos. Devem, assim, estes apa-
relhos «controlar os processos de extracção, de repartição, de
transferência e de acumulação da mais-valia e, portanto, também
os processos de produção e de distribuição. Formalmente, cada
aparelho económico de Estado tem a seu cargo certos sectores da
produção, da circulação e da acumulação. Aparecem, assim, os
diferentes Comissariados: para a Agricultura, para a Indústria
Pesada, para a Indústria Ligeira, etc., o Comissariado para as Fi-
nanças, o Gosbank, etc., e ainda os aparelhos económicos a estes
subordinados.
Sendo assim, uma das contradições com que se depara a bur-
guesia soviética reveste a forma de um confronto entre os dife-
rentes aparelhos que servem de suporte às diversas fracções da
Est. Doe. 220-14 209
CHARLES BETTELHEIM

burguesia: a potência destes aparelhos e das fracções que eles supor-


tam depende, em grande parte, do capital e do fundo de acumula-
ção que cada um deles consegue controlar. O trabalho de «pla-
neamento» não se desenrola, portanto, num «espaço económico e
técnico» puro, está profundamente marcado pelas contradições
sociais e políticas, em particular pelas contradições internas à bur-
guesia, e mais especialmente por aqueles que opõem os dirigentes
e os quadros dos grandes aparelhos económicos, ainda que não
passem de agentes provisórios destes. Tais quadros nem por isso
defendem muito bem as posições dos comissariados ou de outros
organismos a que estão afectos, já que a sua autoridade depende,
em larga medida, dos bons resultados obtidos pelos organismos
de que são responsáveis.
No entanto, às contradições entre grandes aparelhos econó-
micos vêm acrescentar-se as contradições internas destes, por
exemplo, as que opõem as diversas empresas ou unidades de pro-
dução ao organismo central de que dependem.
Concretamente, todas estas contradições revestem a forma de
oposições entre funcionários do capital, ou grupos destes funcio-
nários, com responsabilidades ao nível dos comissariados do povo,
das direcções destes, das empresas, das fábricas, etc.
As contradições que dividem a burguesia soviética estão, evi-
dentemente, longe de se limitar à esfera e aos aparelhos econó-
micos. Opõem-se a estes últimos outros aparelhos de Estado cujos
peso e papel são decisivos c que são o suporte de outras fracções
da burguesia, antes de mais o próprio partido, o exército e a
polícia. No decurso dos anos 30, esta última desempenha, aliás,
papel central em ligação estreita com o grupo dirigente; além
disso, controla vastas actividades económicas.
As lutas que decorrem entre os aparelhos - e que dividem
profundamente a «burguesia soviética»- têm por aposta diversos
aspectos do poder, e uma certa maneira de o exercer, tal como
acontece com a orientação dada ao processo de acumulação e ao
controlo sobre uma parte mais ou menos importante da produção
·e do capital.
Estas contradições desempenham papel essencial nas relações
da burguesia com o partido.
No entanto, antes de abordar este aspecto da realidade soviê-
tica, é necessário sublinhar que as contradições internas da nova
classe dominante não enraízam somente nos di·<ersos aparelhos
que lhe servem de suporte. Esta classe conhece outra:; divJsões,
das quais a mais importante corresponde à existência de fracções
nacionais.
210
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

2. As fracções nacionais da burguesia soviética

A dominação da burguesia soviética exerce-se, com efeito,


num espaço fortemente estruturado e diferencia:do. Reflecte esta
diferenciação o desenvolvimento desigual das diversas partes da
União Soviética e as particularidades das Repúblicas e regiões,
designadamente as particularidades culturais e linguísticas herda-
das de uma longa história. Estas diferenciações e particularidades
alimentam contradições que opõem os povos não russos engloba-
dos na União Soviética à hegemonia da facção grande-russa da
burguesia. Ocorrem também contradições económicas e políticas
entre as diferentes fracções n11cionais ela burguesia. :p, assim que de-
terminada fracção nacional da burguesia luta para ocupar funções
dirigentes no seio da «sua» própria República (opondo-se, assim, à
penetração e ao papel directivo de quadros estranhos a esta). Atra-
vés desta luta, procura conservar, no seio da sua própria República,
o controlo sobre um máximo de riquezas. Pode também procurar
ocupar um maior número de lugares de direcção ao nível da União.
As lutas que se desenvolvem sobre esta base são sobredeter-
minadas pelas contradições culturais e as contradições de classe.
Com efeito, as aspirações nacionais das massas populares, de cada
Rcpúb!ica constit;mn uma realidaJ~ snb'e ~ c;:ual <:~ fracções
nacionais da burguesia podem ser induzidas a apoiar-se a fim de
reforçarem o seu próprio poder de dominação.
É difícil dizer qual foi, no decurso dos anos 30, a amplitude
real das contradições entre as diferentes facções <macionais» da
burguesia soviética; pareceria que esta amplitude não foi despi-
cienda, a julgar pelas dimensões das operações de repressão que
atingem os dirigentl's dos partidos comunistas e dos governos das
Repúblicas não rus<as, os quais são acusados -de acordo com os
estereótipos então correntes- de «nac-ionalismo burguês». É, to-
davia, necessário não perder de vista que tais operações de repres-
são cumprem numerosas funções e visam preservar a dominação
global da burguesia sacrificando uma parte dos respectivos mem-
bros.
3. Os grupos de solidariedade e o «clientelismo»

A estrutura complexa da burguesia soviética também dá nas-


cença a laços de solidariedade limitada a «grupos» profissionais ou
locais. Podem, assim, existir laços de solidariedade (mais ou menos
fortes) entre os dirigentes de empresas para com os dirigentes do
partido, ou laços de solidariedade entre os técnicos ou entre os
artistas, os cientistas, etc. Em certos casos, tais laços recebem
211
CHARLES BETTELHEIM

conforto da existência de organizações comuns a estas camadas


oficialmente conhecidas (por exemplo, a União dds Escritores), o
que permite que estas defendam -até certo ponto- «reinvindi-
cações» particulares. Todavia, tais laços de solidariedade são cons-
tantemente postos em causa pelas rivalidades internas destas dife-
rentes camadas e, sobretudo, pelo papel hegemónico do aparelho
do partido. Ao «reconhecer» oficialmente a existência de alguns
destes grupos, o aparelho do partido consegue, em larga medida,
subordinar as organizações assim reconhecidas, já que coloca qua-
dros seus nos lugares de direcção destas últimas.
Para se ter uma visão de conjunto da estrutura complexa da
burguesia soviética, é necessário ter em conta laços de solidarie-
dade informais que se atam entre determinados elementos da
classe dominante. Permitem tais laços àqueles que os criam con-
fortar as suas posições pessoais e os seus privilégios (legais e ile-
gais). Formam-se, assim, grupos (que, à falta de melhor, se podem
chamar «Clientes»)' que tentam utilizar a posição dos seus mem-
bros quer para tirar partido de uma situação que conhecem mas
dissimulam perante os escalões superiores, quer para empurrar
para a frente alguns desses membros. Aqueles que desta forma,
chegam a um lugar de direcção promovem, por sua vez, a «su-
bida» de outros, o que eventualmente pode levá-los até ao seio
de alguns dos órgãos de direcção do partido.
É necessário notar que a dissimulação dos factos e o desvio de
fundos ou de mercadorias que ela permite revestem, muito cedo,
grande amplitude. Contribui isto para a opacidade do sistema e
para um desconhecimento importante da realidade pelos órgãos
centrais, que tentam ver melhor o que se passa exigindo das orga-
nizações locais relatórios cada vez mais numerosos e pormenori-
zados".
1
O fenómeno do «clientelismo» aparece a partir dos anos 20, muito
particularmente no partido. Nessa época, trata-se de «clientelas» cuja
extensão permanece aparentemente local mas que formam numerosos
grupos. Representam e'tes grupos uma das formas de organização elemen-
tares típicas de semelhante burguesia. O chentehsmo é designado no
discurso oficial por diversas expressões pejorativas: Koumovtsvo («nepo-
tismo»), pokrouvatelstvo e outros «clrculos de família» cf. M. Lewin.
«L'Etat et les classes en URSS ... », art. cit., p. 21).
> Desde 1920, certos serviços centrais recebem tais documentos ao
ntmo de 1500 por dia (cf. um estudo de Chklovskii publicado nesse ano
em Revoloutsia Prava, cit. por M. Lewin em «L'Etat et les classes
sociales en URSS ... », art. cit., p. 21). Isto em nada melhora o controlo
central, porque tais relatórios contêm tantas inexactidões e contr!ldições
que Ordjonikidzé declara: «Podeis vasculhar lá tudo o que qmserdes,
não obtereis dados exactos» (cf. S. Ordjonikidzé, Stati i retchi, 2 vols.,
Moscovo, 1965, t. 2, p. 228).

212
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

Deve notar-se que o «clientelismo» também toca certos ele-


mentos da classe operâria cuja unidade contribui para quebrar;
funciona, então, como um meio para ligar o destino de uma parte
dos explorados ao de alguns elementos da burguesia. Este cliente-
lismo corrompe uma fracção da classe operâria que beneficia de
vantagens materiais extraídas dos resultados das actividades ilegais
de um clã de burocratas. Este «clientelismo» operârio funciona
também baseado em operações de «promoção operâria» que, em
certos momentos, fazem sair centenas de milhares de operârios
das fâbricas abrindo-lhes uma carreira de pequenos chefes ou de
burocratas. Os quadros encarregados da organização destas «pro-
moções» estão particularmente «bem colocados» para constituírem
uma «clientela» sua.
Embora o funcionamento dos diversos grupos de solidariedade
repouse sobre práticas idênticas, é, sem dúvida, necessário distin-
guir entre os grupos que visam sobretudo melhorar a situação
material imediata daqueles que dele fazem parte, e os grupos que
visam assegurar a «promoção» dos seus membros estabelecendo
laços de «fidelidade» pessoal para com certos dirigentes políticos.
O vértice do partido tenta combater por diversos meios as
«clientelas» que se formam à volta de dirigentes. É assim que
certos grupos podem ser acusados de «fraccionismo» ou ser desar-
ticulados por uma rotação frequente dos quadros. No entanto, o
recurso a estes métodos não consegue evitar que se constituam
«clientelas» políticas importantes à volta de quadros de alto nível.
!É assim que homens como Kirov ou, mais tarde, Ejov, Béria ou
Khrouchtchev, tiveram vastas clientelas que «apoiaram» o seu
«patrão» de diversas maneiras.
O partido é o lugar principal onde se formam as «clientelas>>.
Se é assim é porque o partido é a organização através da qual a
nova classe dominante se organizou e viu as suas contradições
reguladas.

SECÇÃO 11

O partido e a. regulação das contradições internas


da nova classe dominante

No decurso dos anos 30, a nova burguesia, constituída devido


à liquidação das antigas classes dominantes e através das provações
da repressão de massa e do terror, consolidou-se sob a tutela do
213
CHARI.ES BETTELHEIM

grupo dirigente e tomou forma graças às intervenções do aparelho


do partido. Como se viu, esta nova classe dominante constitui uma
burguesia de partido'.
Não somente foi o partido, principalmente o seu grupo diri-
gente, que permitiu que esta classe nascesse e que a formou, mas
é dele que depende o «destino» de cada um dos respectivos mem-
bros. É o partido quem reparte os membros desta classe entre os
diversos aparelhos; é ele quem nomeia, demite ou promove aque-
les que fazem parte da nova burguesia. Em suma, é ele que gere
esta classe. É a forma política estrutural• do seu desenvolviinento
e do tratamento das contradições geradas pela sua dominação.
A direcção do partido é o órgão no qual se concentra o poder
político, situando-se acima de todos os outros aparelhos, incluindo
aqueles que participam no exercício do poder, como o exército e
a polícia.
Apesar destas formas centralistas e hierárquicas de organiza-
ção, o partido é, ele também, trabalhado por contradições internas
e atravessado pelo conjunto das contradições económicas, ideo-
lógicas e políticas que se desenvolvem no seio da formação social.
É por isso que a sua unidade não é de, modo algum, um dado. É o
resultado de uma luta na qual intervém de maneira decisiva o
grupo dirigente que emerge de uma série de confrontos entre
quadros de alto nível. É este grupo que constitui a instância «uni-
ficadora» do partido e da burguesia, na medida em que consegue
regular, no seu próprio seio, as suas próprias contradições internas.
É este o caso na segunda metade dos anos 30: o grupo dirigente
constitui, então, o vértice real do partido.
A partir de 1935, o poder de Estado sobrepõe-se de maneira
decisiva aos dos outros dignitários, como mostra o facto de ele
poder desembaraçar-se dos dirigentes mais poderosos do NKVD
(Jagoda e, depois, Ejov).
A acção <<Unificadora» do grupo dirigente exerce-se através
do aparelho do partido. Permite a institucionalização encoberta

' Cf. supra, p. 190. Substituo este termo ao de «burguesia de Estado»


que tinha usado nos dois primeiros volumes desta obra. A designação
anterior, que podia convir para os funcionários do capital de Estado no
fim dos anos 20 (quando o partido amda não havia desempenhado o seu
papel de parteiro e unificador de uma nova classe), já não convém no fim
dos anos 30.
• O conceito de «forma estrutural» foi sugerido por M. Aglietta em
Régulation et Crise du Capitalisme, Paris, Calmann-Lévy, 1976, p. 163.
Foi desenvolvido, num contexto muito diferente, por A. Lipietz, no seu
livro: Crise et lnflation, pourquoi?, Paris, Maspero, 1979 (cf. designada-
mente pp. 176 e segs.)

214
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS- IV

dos poderes da burguesia e dos privilégios desta, em particular


através do desenvolvimento do sistema da Nomenklatura.

L A momenklattn'M

A nomenklatura nasceu a partir dos anos 20 '. Assiste-se, a


princípio, à instauração de uma prática em virtude da qual as
organizações do partido (aos diversos níveis) devem estabelecer a
lista das pessoas que recomendam para futuros postos de respon-
sabilidade. Esta prática é aconselhada por uma decisão do IX
Congresso do partido (1920), a fim de evitar o «arbítrio)) nas
nomeações e promoções. Tais listas são uma das origens da
Nomenklatura •.
Paralelamente a esta prática, os órgãos centrais do partido
estabelecem também listas de pessoas susceptíveis de serem no-
meadas ou promovidas para certos lugares importantes.
O principal órgão encarregado desta tarefa está ligado ao
secretariado do partido e, a partir de 1926, usa o nome de Orgas-
pred. Em 1930, o Orgaspred comporta duas divisões: uma gere
os quadros do aparelho do partido, a outra os aparelhos de
Estado 7 • Esta nomenklatura central comporta dezenas de milhares
de nomenklaturistas.
Os diversos órgãos regionais e locais do partido constituem
também as suas listas de personalidades «julgadas aptas)) a ocupar
as suas funções. Tais listas constituem a Nomenklatura desses
organismos do partido.
Nos anos 30, o sistema da Nomenklatura está «rodado>>. Isto
pode ver-se pela Nomenklatura do comité regional do partido de
Smolensk que é gerida pela divisão dos órgãos directores do
partido do Obkom e que comporta centenas de postos a prover
por nomeação ou por «eleição)). Tais postos só podem ser afec-

' Cf o vol. 2 da presente obra. Ver também M. Voslensky, La No-


menklatura. Les privilégies en URSS, Paris, Belfond, M 1980. assim como
os textos seguintes do sociólogo Thomas Lowit: «Y a-t-il des Êtats en Eu-
rope de l'Est?», em Revue Française de sociologie, 1979, pp. 431 e segs.
(ver sobretudo pp. 438 e segs.); «Le parti polymorfhe en Europe de l'Est»,
em Revue française de Science politique, n.'" 4-5, 1979; e também Autorité,
Encadrement et Or[?anisation du travai/ dans les industries des pays de l'Est
européen, relatório CORDES, 1980.
• Boris Lewytskyj, Die Kommunistische Parlei der Sowjetunion,
Estugarda, 1967, e do mesmo autor: «Die Nomenklatura-ein Wichtiges
lnstrument Sowjetischer Kaderpolitik», Osteuropa, n.' 6, 1961.
' Cf. M. Voslensky, ob. cit., p. 81.

215
CHARLES BETTELHEIM

tados a pessoas designadas por esta divisão do partido e cujos


nomes se encontram numa lista de nnmenklaturistos. Os postos
em questão não são somente de funcionários do partido mas
também de dirigentes de empresas, de SMT, de savkhozes, de
dirigentes dos serviços comerciais, dos membros dos Sovietes e
do seu comitê executivo, dos órgãos judiciários • e das procura-
dorias, dos organismos do plano, dos órgãos financeiros e de crê-
ditos, dos dirigentes e principais funcionários dos sindicatos e das
cooperativas, dos principais responsáveis da imprensa, da edição,
das escolas, dos institutos científicos e das diversas associações
(União dos Escritores, Cruz Vermelha, associações desportivas,
etc.). Praticamente, o partido está senhor de todas estas nomea-
ções e «eleições». Cada organização do partido tem a sua
Nomenklatura cuja composição ê vigiada pelos órgãos centrais
do partido e pela polícia.
Estar inscrito numa das listas da Nomenklatura dá também
a possibilidade de ocupar certos lugares (isto é, de ser nomeado
para eles ou «eleito» sob «proposta» do partido) •. Para se estar
inscrito na Nomenklatura, não é indispensável ser-se membro do
partido 10 • No entanto, em geral, os lugares «mais responsáveis»
não podem caber senão a membros do partido, daqui provindo
a importância da decisão tomada pelo XVIII Congresso de abrir
largamente as portas do partido aos quadros económicos, técnicos,
administrativos, etc.
Visto que pertencer ao partido não é condição indispensável
para estar inscrito na Nomenklatura e para aceder a um posto
de funcionário do capital, a expressão «burguesia de partido» não
implica uma identificação entre a nova burguesia soviética e o
partido (aliás, a maioria dos membros deste não pertence àquela);
o que essencialmente ressalta ê o partido ser a forma política
estrutural de desenvolvimento da burguesia soviética e de regu-
lação das contradições desta. A Nomenklatura organizada pelo
partido é a forma institucional (mas não proclamada) através da
qual o partido assegura a «gestão» da burguesia soviética.
Não é evidentemente a Nomenklatura que «cria» a burguesia
soviética. Não é esta instituição que faz surgir os privilégios e

' Esta prática não é modificada quando a Constituição de 1936 pro-


clama a «independência» dos juízes e dos tribunais.
' M. Fainsod, Smolensk .. ., ob. cit., pp. 80 e segs., que cita o processo
RS 924, Protocolo n.• 156 dos serviços do Obkom (decisão de 19 de Ou-
tubro de 1936).
" Cf. T. Lowit. «Le parti polymorphe ... », art. cit., p. 444.

216
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

os poderes dos nomenklaturistas: estes poderes resultam do con-


junto das relações sociais de dominação e de exploração.
A multiplicação dos privilégios de que beneficia a nova classe
dominante acarreta, aliás, uma transformação profunda da sua
ideologia prática. Como mostra Hélene Carrêre d'Encausse, para
aqueles que o poder chama a «intelligentsim>:

Viver melhor do que o conjunto da nação já não é


condenável mas, pelo contrário, desejável, porque se cria
um novo laço entre riqueza material -muito relativa,
aliás - e virtude socialista ...

A partir dos anos 30, a corrida às vantagens materiais é tam-


bém uma corrida à qualificação de «bom comunista» 11 ; este
termo é evidentemente entendido como significando devoção e
lealdade ao partido e à sua direcção.

2. Dominação, exploração social e direcção politica

Um dos traços específicos da burguesia de partido dos anos 30


é o de esta ser uma classe socialmente dominante e exploradora
mas, no seu conjunto, não constituir uma classe realmente diri-
gente. Como ela domina e explora os produtores directos, a sorte
individual dos seus membros depende estreitamente de um núcleo
dirigente que se auto-recruta e constitui o grupo hegemónico da
burguesia. Aqueles que pertencem às outras camadas são nomea-
dos e controlados pelo grupo dirigente e pelos homens de con-
fiança deste (os responsáveis pela direcção dos quadros). A com-
posição do grupo dirigente não depende das «escolhas» das outras
camadas burguesas e estas não exercem controlo sobre as decisões
daquele grupo (embora uma pressão informal emanada delas
possa influenciar alguns dos actos do grupo).
Na realidade, a classe dominante está subordinada a uma
direcção política que, na época, exerce sobre ela uma verdadeira
ditadura.
A subordinação da burguesia soviética a um grupo dirigente
colocado acima dela explica-se, em parte, por razões históricas:
pelo duplo processo de formação desta classe e deste grupo diri-

11
Cf. H. Carrere d'Encausse, Staline, L'Ordre par la terreur, ob. cit.,
p. 91.

217
-,

CHARLES BETTELHEIM

gente, e pela luta deste último para reforçar a sua ditadura


exercendo o terror sobre a própria classe dominante '".
O processo histórico que conduziu à situação dos anos 30
deve, porém, ser explicado, tal como deve ser explicada a relativa
estabilidade das estruturas em que desemboca. Semelhante expli-
cação exige que se sublinhem particularmente os pontos seguintes:
1) A natweza e a acuidade das contradições que a trabalham
tomam a classe dominante incapaz de «regular» ela própria os
seus problemas, quer mediante «regras de jogm> (tais como as
que seriam impostas por formas de concorrência que não passam
pela mediação de um «plano económicm>), quer através de uma
auto-administração.
A unidade contraditória da classe dominante soviética exige
que esta seja submetida a uma disciplina e a regras enunciadas
por uma «autoridade superior». Esta deve impor-se à classe domi-
nante tanto mais quanto as próprias contradições internas desta
são amplificadas pelas resistências das classes exploradas, em pri-
meiro lugar a do campesinato.
2) O papel ditatorial do grupo dirigente enraíza também num
capitalismo cujas contradições já não são reguladas directamente
pela forma mercado mas sim pela forma plano, numa ocasião em
que as contradições de classes são extremamente agudas.
3) O grupo dirigente coloca-se acima da classe dominante e
tende a submetê-la inteiramente porque a considera simples ins-
trumento para realizar objectivos que lhe parecem ditados pelas
«necessidades económicas» e, sobretudo, pelas «exigências histó-
ricas» que ele afirma ter por missão cumprir.
Nos anos 30, a missão histórica de que se reclama o grupo
dirigente remete para uma certa visão da «construção do socia-
lismo» e, também, para uma certa visão do papel mundial da
Rússia.
Funciona deste modo um sistema de representação em nome
do qual o grupo dirigente trata a classe dominante como mero
instrumento do qual reclama o máximo de docilidade. A esta
classe são concedidos privilégios (que correspondem às funções

" Com I vã, o Terrtvel, e Pedro, o Grande, a história russa já havia


conhecido situações nas quais o poder político transforma e sujeita a classe
dominante, isto recorrendo ao terror que, aliás, não tem amplitude igual
à dos anos 30. Estes episódios sugerem que uma certa «cultura política»
russa pode «favorecer>> este tipo de relações e de práticas políticas, mas
não poderá, de modo algum, bastar para explicar a situação dos anos 30.
Encontrar-se-ão no livro de Marc Raeff, Comprendre l'ancien régime
russe, Paris, Seuil, 1982, numerosas indicações sobre a cultura política
russa.

218
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS- IV

que desempenha) mas ela não pode prevalecer-.~e de nem reclamar


nenhum direito, o que a não impede de exercer inúmeros <«lireitos»
de facto sobre os simples trabalhadores.
Os diversos elementos que incitam à subordinação da classe
dominante ao grupo dirigente só fracamente se modificam no
decurso do tempo. Tal subordinação ainda hoje se mantém,
embora sob formas diferentes das dos anos 30. Assim, após a
morte de Estaline, a situação da classe dominante torna-se pr<r
gressivamente mais estável (após o XX Congresso, a situação
de um nomenklaturista raramente é ameaçada) e pode influir
mais do que anteriormente sobre as decisões do grupo dirigente.
Em suma, o grupo dirigente está colocado acima da classe domi-
nante. Relativamente a esta, funciona como se fosse um conselho
de direcção que domina, ao mesmo tempo, os aparelhos do partido
e os do Estado nos quais esta classe está naturalmente incor-
porada.

SECÇÃO III

A hierarquiz31:ão da cla.<:se dominante


e o seu carácter «burocrático»

A burguesia soviética ocupa lugar dominante nas relações de


exploração visto estar incorporada nos aparelhos de Estado e do
partido. É por isso que se apresenta como uma burguesia com-
posta por funcionários de alguma posição. Resulta daqui que,
embora sem beneficiar de um «estatutO>} particular (que lhe con-
feriria direitos), os membros desta burguesia dependem de um
sistema hierárquico ao qual estão sujeitos. Isso é verdadeiro para
aqueles que estão formalmente incorporados nos aparelhos do
partido ou nos aparelhos administrativos e políticos de Estado,
bem como naqueles que desempenham funções nos quadros dos
sindicatos ou nas associações de artistas e escritores. Está-se, pois,
em presença de uma classe hierarquizada e burocratizada.
Lenine notava, em 1922, cinco anos após Outubro, e depois
da tormenta da guerra civil, que a «burocracia soviética}> apre-
sentava profundas analogias com a burocracia czarista 13• No
decorrer dos anos, tais analogias de modo algum «desaparecem}>,
antes se reforçaram.

" Cf. Lenine, OC, t. 36, p. 619.

219
CHARLES BETTELHEIM

A permanência das características da burocracia czarista con-


tinua a marcar a «burguesia soviética)). Isto explica o sucesso
popular, sem cessar renovado, das peças satíricas do século XIX
que atacavam a burocracia da época; é assim que a peça O Revi-
sor, de Gogol, é sempre sentida como «actual)) pelos espectadores
soviéticos.
Por outro lado, a própria burocracia czarista apresentava
similitudes profundas com a burocracia prussiana 14 analisada
por Marx na Crítica da Filosofia do Estado de Hegel'". Neste
texto, Marx enuncia dadas formulações que iluminam de forma
notável certas características da burguesia soviética. Escreve ele:
O espírito geral da burocracia é o segredo, o mistério,
guardado no seu seio pela hierarquia ... '".
Sabe-se até que ponto a burocracia soviética considera tudo
aquilo que faz como «segredo de Estado)), e como a «divulgação»
destes segredos se lhe apresenta como uma «traição)) perante o
respectivo mistério 17•
Marx acrescenta esta observação que também se aplica per-
feitamente à burguesia soviética:
Por consequência, a autoridade é o princípio do seu
saber, e a deificação da autoridade a sua maneira de pensar

" Estas similitudes são evidenciadas por G. Konrad e I. Szeleniy em


La Marche au pouvoir des intellectuels, Paris, Seuil, 1979, p. 91. Segundo
estes autores, tais similitudes têm raízes históricas. Relacionam-se com o
papel que o Estado desempenha, desde há muito tempo, no processo de
acumulação na Rússia e na Prússia. Segundo Konrad e Szeleniy, o re-
forço do poder do Estado soviético no processo de acumulação contribuiu
para o reforço de uma burocraci'a estatal semelhante à da Rússia. Estes
aspectos das análises de Konrad e Szeleniy parecem-me pertinentes; estou,
no entanto, em desacordo com outros aspectos das suas análises, designa-
damente aqueles que os levam a considerar que os países do Leste conhe-
ceriam o que eles chamam um socialismo precoce (ibid., pp. 149 e segs.)
e que os intelectuais como tais (isto é como «proprietários de um saber»)
possam constituir uma classe dominante, o que constitui uma das teses
centrais do seu livro. As análises apresentadas neste t. 2 explicam as
razões desse desacordo.
" Cf. a tradução por J. Molitor deste texto (que data de 1841-1842)
no t. IV de Oeuvres phllosophiques, Paris, Coster Êditeur, 1935. Encon-
trar-se-á o texto alemão em MEW, t. I.
" Sublinhado no texto, tradução J. Molitor, oh. ci., p. 102, e MEW,
t. 1, 11'- 249.
Estes termos são os usados por Marx no texto citado, «traição»
e sublinhado por ele (ibid.).

220
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

[no seu seio reina], o materialismo sórdido, o materialismo


da obediência passiva, da fé na autoridade, do mecanismo
de uma actividade formal fixa, de princípios, de concepções
e de tradições fixas 10,
Algumas linhas acima, Marx nota igualmente:
A burocracia é um círculo de que ninguém consegue
escapar. A hierarquia é uma hierarquia do saber. O vértice
entrega aos círculos inferiores o cuidado de conhecer os
pormenores, e os círculos inferiores julgam o vértice capaz
de compreender o geral. Desta forma, enganam-se mutua-
mente 19 •
A aproximação destas duas formulações faz ressaltar bem uma
das características comuns das burocracias «soviéticas», czarista
e prussiana: a sua hierarquia é formalmente uma hierarquia do
saber mas o princípio deste «saber» é a: autoridade.
A aproximação das características da burocracia soviética e
da descrição feita por Marx da burocracia prussiana do século XIX
ilumina bem a similitude do funcionamento destas duas burocra-
cias e de parte do seu sistema de representação e de «Valores».
Sobre numerosos pontos, a burocracia soviética surge até
como caricatura da burocracia prussiana. É o que sucede com
a proliferação dos «segredos de Estado» e com o carácter «mis-
terioso» do «saber burocrático>> (que faz surgir uma série de
ritos); é igualmente o caso da «deificação» da autoridade, que
investe aquele que está no vértice do aparelho do poder com a
capacidade de enunciar o «verdadeiro» e o «justm>, o que origina
a figura de «corifeu da ciência», título que a burguesia soviética
dos anos 1930 a 1950 acabou por atribuir a Estaline.
Mas, uma vez encontradas as sirnilitudes entre as burocracias
czarista e prussiana e a burocracia soviética (forma de existência
fundamental da burguesia na URSS), é necessário salientar o que
diferencia esta última das antigas burocracias estatais.
Não me parece que esta diferença seja devida principalmente
ao facto de a burocracia soviética ser uma classe social, ao passo
que as burocracias com as quais se pode comparar não seriam

" Retraduzido do texto alemão, ob. cit., p. 249. Esta observação de


Marx esclarece também aspectos essenciais das relações ideológicas e
políticas da formação «soviética» dominada pela burguesia: o culto da
trad1~ão e da autondade, o conservantismo.
• Cf. tradução de Molitor, pp. 101-102, revista segundo MEW, t. 1,
p 249.

221
CHARLES BETTELHEIM

mais do que camadas sociais ao serviço de uma classe dominante.


Deve-se esta diferença essencialmente, quer-me parecer, a que
a burocracia soviética é a forma de existência da classe dominante.

SECÇÃO IV

A duplicação dos diferentes aparelhos pelo partido


e o estatuto deste último

O lugar de aparelho supremo de Estado que o partido tende


a ocupar (e que a ideologia oficial traduz por «papel dirigente
do partido») afirma-se, entre outros aspectos, pela presença dos
nomenklaturistas nomeados pelo partido em todos os aparelhos,
todas as organizações, associações, etc., e pela experiência no seio
do partido de aparelhos que desempenham funções paralelas às
dos aparelhos do Estado (sectoriais e territoriais) e que tomam
verdadeiras decisões. Está-se, assim, em presença de uma «dupli-
cação», ao mesmo tempo «exterior» e «interior>>, dos diferentes
aparelhos de Estado.
Esta duplicação é «exterior», na medida em que a quase tota-
lidade dos aparelhos administrativos e ideológicos de Estado tem
o seu «duplo» no seio do partido. Isto é verdadeiro ao nível terri-
torial onde, por exemplo, cada governo de República é duplicado
(e dominado) pelo CC do partido dessa mesma República, tal como
o conselho de região ou de ralon é duplicado (e dominado) pelo
correspondente comité de partido. Isto é verdade também ao nível
sectorial, onde cada «sector de actividade» é gerido por diversos
aparelhos especiali7~dos que são, por sua vez, duplicados por um
aparelho do partido. Assim, os diferentes Comissariados para a
Indústria, a Agricultura, o Plano, as Finanças, o Ensino, os Negó-
cios Estrangeiros. etc .. estão submetidos à tutela de sect;Õ<lc·' eH-
respondentes do CC. Por exemplo, a .1ecção de política econô;nica
do CC supervisiona a actividade do Gosplan e dos diversos comis-
sariados económicos. Identicamente, a secção ideológica do CC
supervisiona a imprensa. a edição, a «cultura» (portanto, também
os órgãos de Estado encarregados de velar pelo «bom comporta-
mento ideológico» de tudo o que é impresso, difundido, etc., o que
constitui, ao nível do Estado, o papel da censura, do Glavit, etc.).
Tal duplicação visa assegurar que a direcção dos negócios
públicos. tal como do «pensamento». permaneça nas mãos do
grupo dirigente do partido, ao passo que a gestão desses mesmos
222
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

negócios e da «cultura» incumbe aos diversos aparelhos de Estado.


Uma «boa combinação» de uma gestão delegada e de um con-
trolo exercido sobre ela deveria permitir, «teoricamente», a apli-
cação da política do partido, designadamente ao bloquear ou
travar as tendências particularistas dos diferentes aparelhos, ten-
dências estas que traduzem interesses ou aspirações contraditórias.
Perante estas contradições, ao partido e seus apparatchiki deve
competir defender os «interesses colectivos». A duplicação pelo
partido dos aparelhos administrativos e ideológicos é também
«interior>> a estes.
Esta duplicação «interior» não repousa somente sobre a nomea-
ção de nomenklaturistas para os diferentes aparelhos administra-
tivos, económicos, ideológicos e políticos, onde ocupam funções
de «controlo» exercidas sobre estes mesmos aparelhos pelos
membros do partido que neles trabalham, em particular pelos
comités do partido. Como tais «controlos» se revelam frequen-
temente «insuficientes», a direcção do partido impõe a numerosos
quadros «carreiras cruzadas» 20 , fazendo passar o mais possível
cada quadro de um lugar de responsabilidade no aparelho do
partido para outros aparelhos, regressando, mais tarde, a um
lugar de responsabilidade no aparelho do partido, e assim suces-
sivamente. Na prática, a pressão dos «interesses comuns» c dos
«conluios» no interior dos diferentes aparelhos revela-se geral-
mente muito forte: incita certos membros do partido a compor-
tarem-se como «responsáveis» do aparelho particular para o qual
são nomeados, fazendo, assim, passar para segundo plano a ois-
ciplina devida ao partido.
A fim de, precisamente, evitar este «deslocamento de leal-
dade», a direcção do partido nomeia também, para os diferentes
aparelhos administrativos, ideológicos, etc., apparatchiki que não
exercerão tarefas de gestão mas somente de controlo. Assim,
cada director de empresa está controlado, em princípio, pelo
secretário do comité do partido dessa empresa. Este secretário
deve ser informado do que se passa na empresa pelo conjunto
dos aderentes ao partido. Dispõe, em teoria, de uma rede de
informações (e de informadores) que deveria assegurar-lhe, bem
como à direcção do partido, um verdadeiro «conhecimento» do
que se passa nos diversos aparelhos. De facto, os conluios são
frequentes entre os quadros dos diferentes aparelhos de Estado
e os quadros do partido encarregados de controlar as suas acti-

" No seu livro: Pays de l'Est, vers la crise généralisée, Lyon, Fédérop,
1979, Jacques Sap1r md1ca a JmportâncJa que reveste, em certos momen-
tos, o recurso às «carreiras cruzadas» (ob. cit., p. 209).

223
CHARLES BETTELHEIM
vidades. Para limitar este «bloqueio da informação», a direcção
do partido dispõe de uma outra rede de informaçães (e de infor-
madores): a rede dos agentes da polícia política. Controla esta,
ao mesmo tempo, os quadros dos aparelhos de Estado e os do
partido, o que deveria impedir conluios entre uns e outros 21 •
No entanto, fora dos períodos de intensa repressão policial, todos
estes controlos não têm senão uma reduzida eficácia. Aliás, nos
períodos de forte repressão, a «eficácia» da duplicação dos con-
trolos é limitada pela rivalidade policial (que «descobre» «desobe-
diências» inexistentes) e pela paralisia das iniciativas que a dupli-
cação gera.
O sistema que acaba de ser descrito resulta da acuidade das
contradições sociais, incluindo contradições internas na burguesia
do partido. Deu nascença a interpretações da realidade soviética
que me parecem discutíveis. Uma destas interpretações pretende
que, na URSS (e nos países que têm igual estrutura política), o
Estado teria desaparecido: trata-se da tese que, de maneira pro-
blemática, T. Lowit propõe nos seus já citados trabalhos, parti-
cularmente no artigo: «Haverá Estados na Europa de Leste?» ••.
Afigura-se-me que o descrito por T. Lowit não permite concluir
no sentido do desaparecimento do Estado mas antes no do exer-
cício do poder de Estado pelo partido presente no conjunto dos
aparelhos. O Estado impõe sempre o seu poder coercivo sobre
as classes dominadas e sobre os próprios membros da classe
dominante, mas modifica profundamente a forma sob a qual este
poder se impõe. Quando esta nova forma de dominação está
plenamente desenvolvida, isto é, quando a direcção do partido
domina a população através do conjunto dos aparelhos e, espe-
cialmente, através do sistema policial e do terror, está-se em
presença de um poder totalitário. Os diferentes aparelhos de
Estado continuam a ser o suporte de interesses contraditórios;
provém daqui, precisamente, a necessidade em que se encontra
a direcção política do partido de multiplicar os controlos para
tentar dominar o funcionamento de taís aparelhos.
O partido constitui, portanto, um aparelho separado dos
outros, colocado acima deles e que se esforça por os dominar
através de uma luta e de esforços constantes. Tende, assim, a
constituir um «aparelho de Estado supremo», o que faz dele não
um «Partido-Estado» mas sim um partido de Estado.

" Sobre o funcionamento destas «duplicações» e sobre os conluios


entre os diferentes aparelhos, ver G. Konrad e R. Szelenyi, La Marche
au pauvoir des intellectuels, ob. cit,, p. 169.
" Em Revue fr'ançaise de sociologie, XX, pp. 431-466.

224
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

A noção de partido de Estado traduz as realidades essenciais,


a saber, a distinção entre o partido e os outros aparelhos (que
ele domina), e o facto de que o partido não pode impor o seu
poder senão com auxílio dos outros aparelhos, já que não retira
(ou não retira principalmente) a sua autoridade da confiança que
nele depositariam camadas mais ou menos largas da população,
mas sim das relações específicas que mantém com os aparelhos
administrativos, económicos, policiais, ideológicos, etc. Devido a
estas relações, o partido beneficia de excepcional capacidade de
constrangimento e de repressão, assim como a «idolatria do Es-
tadO>}, do poderio sobrenatural a este atribuído, de tal modo que
a população tem o sentimento de não poder escapar ao seu domí-
nio (salvo em período revolucionário).
Ne~tl!s condições, as relações do partido com o Estado não
conduzem à fusão de um com o outro. Aliás, em caso de crise
grave, o partido e os aparelhos de Estado podem desligar-se e
até, eventualmente, defrontar-se.
A noção de partido de Estado -isto é, de u..m partido distinto
do Estado mas tendo com este relações de interioridade- é
essencial para entender dois papéis fundamentais e específicos
desempenhados, como se viu, pelo «partido dirigente}}; por um
lado, este preside à promoção e à gestão de uma nova burguesia;
por outro, constitui a organização específica da classe dominante
e deve, portanto, lutar constantemente pela sua unificação, ainda
que à custa da repressão sobre alguns dos seus membros. É graças
à mediação do partido de Estado - ele próprio submetido à auto-
ridade ditatorial de uma pequena oligarquia política ou à de um
autocrata que se impôs a esta oligarquia- que a burguesia
soviética «dirige>} e «orienta» a acumulação capitalista. Provêm
daí os traços particulares do capitalismo soviético, do qual se
pode dizer que é um «capitalismo de partido>}.

SECÇÃO V

O «capitalismo de partido» e os seus trll@s específicos

A noção de «capitalismo de partidO}} -exposta aqui de ma-


neira problemática- pretende fazer ver que o capitalismo sovié-
tico, embora estando sujeito às exigências da acumulação pela
acumulação, está também sujeito aos seus próprios constrangi-
mentos específicos. Estes decorrem do lugar que o partido ocupa
Bst. Doe. 220-15 225
CHARLES BETTELHEIM

no sistema das relações sociais e da luta que a sua direcção con-


duz para conservar um papel dominante nos processos de pro-
dução e de reprodução. Decorrem também da representação que
esta direcção atribui aos meios a aplicar para conservar o seu
papel.
Nas condições da URSS dos anos 30, o capitalismo de partido
é capaz de levar até ao nível excepcionalmente elevado a taxa
de exploração dos produtoreS. No entanto, malgrado semelhante
taxa, é pouco capaz de fazer crescer regularmente a produção,
designadamente a produção civil. A elevada taxa de exploração
conduz, é certo, a uma taxa elevada de investimento mas não
determina uma taxa de crescimento da produção correspondente
ao esforço gigantesco de acumulação.
Durante os anos 1930 a 1950, a contradição entre a capacidade
de exploração e de acumulação do capitalismo de partido e a
capacidade deste para fazer aumentar a produção, foi parcialmente
encoberta pelas enormes transferências de população da agri-
cultura para a indústria, o que permitiu, finalmente, fortes acrés-
cimos da produção global. No entanto, já nessa época, a forma
específica revestida pelas crises de sobreacumulação do capital "3
revelava que este tipo de capitalismo tem fraca aptidão para
realizar uma acumulação intensiva que permita acrescer rapida-
mente a produtividade do trabalho e, portanto, evitar as penúrias
generalizadas e aumentar substancialmente o nível de vida dos
trabalhadores"'. Resulta isto dos constrangimentos que este capi-
talismo faz pesar sobre a economia.
Entre tais constrangimentos, convém começar por mencionar
os limites estreitos impostos às iniciativas dos dirigentes de em-
presas, colocados sob a tutela do partido e das administrações
centrais, o que entrava grande número de invenções. Por outro
lado, a dominação burocrática exercida pelo partido envolve
todas as actividades económicas numa atmosfera de «segredo»
(não será o segredo a «alma da burocracia»?) que, ela também,
bloqueia a propagação das inovações e o progresso técnico.

,, Sobre este ponto, ver a quarta parte do t. 1 do presente volume,


Os Dominados.
" Sabe-se que, nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, o salário
real dos operários sovtéticos não havia atmgido o nível do fim da NEP.
Após ter caído após a guerra, não regressa aos níveis de 1913 e de 1928
senão entre 1963 e 1965 (cf. Jovan Pavelski, «Le niveau de vie en Umon
Soviétique de 1950 à nous jours», em Cahiers de l'ISEA, t. m, n.' 2,
Feveretro de 1969, p. 360). Está-se, pois, em presença de um período pro-
longado de recuo que não permite reencontrar o nível de vida de 1913
senão passado meio século.

226
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

Mas há mais: a preocupação que o partido tem de manter


as empresas sob seu controlo conduz, muitas vezes, a seleccionar
«responsáveis da economia» cujo principal mérito seja a «flexi-
bilidade» e a docilidade para com o partido, e não as capacidades
técnicas e de gestão. Este tipo de escolha é ditado, em última
instância, pelo receio de ver surgir uma camada activa e expe-
riente de quadros económicos que faria correr ao partido o risco
de ver rejeitada a sua tutela.
No entanto, outros elementos igualmente decisivos explicam
o fraco «dinamismo» da produção civil e do consumo sob as
condições do capitalismo de partido tal como este se desenvolveu
na URSS a partir da segunda metade dos anos 30. Sob tais con-
dições, o custo de reprodução da força de trabalho pôde ser
mantido em nível muito baixo, o que permitiu investir largamente
na produção de meios de produção e depois, cada vez mais, na
produção de armamentos. Todavia, o baixo nível de salários não
incita os dirigentes nem da economia nem das empresas a me-
lhorar profundamente as condições da produção. A prática dos
salários baixos tem por consequência que um aumento da pro-
dutividade do trabalho se traduza numa baixa relativamente fraca
dos custos monetários, o que contribui para não favorecer certas
transformações técnicas que elevariam a produtividade do tra-
balho 25 , já que elas se mostram «pouco rendíveis». Forma-se,
assim, um círculo vicioso já que o baixo nível dos salários e as
más condições de vida são, por sua vez, pouco favoráveis ao
desenvolvimento dos esforços dos produtores e ao crescimento
da produtividade. O mesmo sucede, relativamente ao endureci-
mento do despotismo de fábrica: ao suscitar o descontentamento
dos trabalhadores, tende também a travar o aumento da produti-
vidade. Estes factores desempenham papel particularmente im-
portante no fim dos anos 30, no momento em que a União
Soviética, ao assinar o pacto com a Alemanha nazi e ao ocupar
parte da Polónia, entra na via das conquistas exteriores.

•• Por exemplo, os trabalhos auxiliares, a manutenção, os transportes


interiores na fábrica são muito fracamente mecanizados.
227
QUARTA PARTE

ANTES HITLER
DO QUE A EMANCIPAÇÃO POPULAR

No decurso dos anos 30, as relações da União Soviética com


o resto do mundo sofreram uma série de transformações espec-
taculares. Não há motivo para as examinar aqui em pormenor
nem para analisar o conjunto das alterações conjunturais (inte-
riores e exteriores à URSS) que conduziram àquelas transfor-
mações. A nossa atenção concentrar-se-á sobre os pontos de
viragem, sobre os episódios que iluminam as transformações polí-
ticas, económicas e ideológicas que se produziram na própria
URSS, sobre a maneira como se articulam as orientações tomadas
pela diplomacia soviética e as decisões da IC (estas dependendo
estreitamente daquelas e, através dela, a política de certo número
de partidos comunistas).
De maneira geral, verifica-se que a política estrangeira sovié-
tica é, antes de tudo, a consequência dos desenvolvimentos polí-
ticos e sociais que ocorrem na própria URSS e das repercussões
destes desenvolvimentos sobre a concepção que os dirigentes da
URSS têm dos interesses do Estado soviético. A linha política
da IC está subordinada a estes mesmos factores porque o PC da
URSS desempenha um papel absolutamente dominante nas res-
pectivas definição e aplicação 1 •

1
Esta observação também é válida para os anos anteriores a 1930,
incluindo os da vida de Lenine, como mostram, entre outras, as decisões
diplomáticas soviéticas e as da IC respeitantes à Turquia, em 1921, e à
China, em 1927 e 1930. O PCC é um dos raros partidos que resistem
mais ou menos a essa subordinação porque experimenta directamente o
expansionismo e o colonialismo grande-russos nas suas fronteiras, desig-
nadamente na Ásia Central. Escapa a esta subordinação a partir de 1935,
quando Mao Tsé Tung assume a sua direcção (sobre estes pontos cf.
F. Claudin, La Crise du mouvement communiste, t. I, Paris, Maspero,
1972, em particular pp. 142 a pp. 189 e pp. 285 a pp. 346).

229
CHARLES BETTELHEIM

O papel decisivo desempenhado pelo PC da URSS e _~:ela


situação interior soviética nas mudanças que afectam as moda-
lidades de inserção da URSS nas relações internacionais obriga
a analisar tais mudanças no quadro de uma periodização que tenha
explicitamente em conta a política do partido soviético e as suas
viragens. Conduz isto a distinguir os períodos seguintes: os anos
1928 a 1934 no decurso dos quais predominam as orientações
adoptadas em 1928, quando se preparava a política de «colecti-
vização por cima» e de industrialização rápida; os anos de 1934
a Agosto de 1939, no decurso dos quais parece desenhar-se uma
nova orientação de «aproximação» com a França e a Inglaterra;
por último, os anos que vão de Agosto de 1939 a Julho de 1941,
caracterizados por diversas formas de cooperação soviético-alemãs.

230
CAPíTULO I
O PERíODO 1928-1934: A DENúNCIA DOS PAíSES
DA «ENTENTE» E A LUTA CONTRA
O «SOCIAL-I<'ASCISMO»

Fundamentalmente, apesar de modificações limitadas (sobre


as quais diremos algumas palavras), a política exterior da URSS
e a linha da IC não sofrem grandes alterações entre 1928 e 1934.
Até ao princípio de 1934, o principal acordo internacional
assinado pela URSS, e que está, então, na base da sua política
exterior, é o celebrado com a Alemanha, em Rapallo, no ano
de 1932. Embora o conteúdo explícito do acordo seja modesto,
ele lançou as bases das relações políticas, económicas e militares
entre a URSS e a Alemanha para mais de dez anos. Havia-se
tornado o símbolo de um entendimento germano-soviético, de
dois paises saindo simultaneamente do seu isolamento diplo-
mático e denunciando ambos o tratado de Versalhes imposto
pelos «bandidos imperialistas)) com o fim de «colonizar a Ale-
manha)) (segundo os termos então empregues pela JC). Parale-
lamente ao acordo de Rapallo, o Reichswehr havia obtido da
URSS a possibilidade de dispor de centros de treino; em contra-
partida, cooperava na formação dos quadros do Exército Verme-
lho'. Era esse o resultado de acordos militares directamente
negociados entre o Exército Vermelho e o Reichswehr, pratica-
mente do lado alemão por Von Seeckt e Von Hammerstein e sem
consultar o governo social-democrata alemão'.
1
Sobre estes pontos, cf. E. H. Carr, Interregnum, 1923-1924; e
Socialism in One Country, Londres, Macmillan, 1954 e 1958 a 1965; e
Louis Fischer, Soviets in World A//airs 1917-1929, Princeton, 1951.
' Cf. Krumacher Lange, Krieg und Frieden, Mumque, 1970, pp. 186-
195; e «Archives du Ministére des Affaues Étranjeres de Berlin: Affaires
militaires russes», citado por Jacques Martin, Mémoires sur l'étude des
relations politiques et économiques Germano-soviétiques depuis /'armis-
tice de Brest-Litowsk jusqu'au déclenchement et /'opération Barberousse,
École des hautes études en sc1ences sociales (1974-1975), pp. 51 e segs.;
ver também Jean-Pierre Faye, Langages totalitaires, Paris, Hermano,
1972, p. 93.

231
CHARLES BETTELHEIM

Estes acordos permitem ao Reichswehr receber, por intermédio


da URSS, ou fabricar na URSS com os seus próprios técnicos,
armamentos que o tratado de Versalhes lhe proíbe possuir: carros
de assalto, armas aeronâuticas, gases asfixiantes. A URSS coloca
também à disposição do Reichswehr terrenos e centros de exer-
cício para o emprego dessas armas. Esta colaboração militar
dura até ao Outono de 1933.
Num plano geral, o VI Congresso da IC (1928) e o Plenârio
de Julho do CC do partido bolchevique afirmam que estâ em
vias de amadurecer uma situação revolucionária, o que conduz
rapidamente a IC a considerar que os partidos sociais-democratas
são o «inimigo principal» da classe operária. Os partidos comu-
nistas são, aliâs, convidados a expurgar todos os elementos hesi-
tantes '. Assiste-se assim ao acertar o passo da maior parte dos
PC, em particular do PCA, ao qual Thaelmann é imposto como
secretário-geral, quando o seu CC o havia demitido por unani-
nimidade•.

SECÇÃO I
A luta contra o «social-fascismo»

Em Abril de 1929, o X Plenário do CE da IC força ao máximo


a «lógica» das orientações tomadas um ano antes: a social-demo-
cracia torna-se o «social-fascismo». No relatório apresentado por
Manouilsky e Kuusinen, diz-se:
Os objectivos dos fascistas e dos sociais-democratas
são idênticos: a diferença encontra-se nas palavras de
ordem e, parcialmente, nos métodos [... ]. É evidente que,
à medida que o social-fascismo se desenvolve, cada vez
mais se assemelha ao fascismo puro •.

' No vol., da presente obra encontram-se indicações sobre as posições


tomadas no seio da IC e do partido em 1928 e 1929. Pode ver-se que as
divergências que principalmente opõem Estaline (que denuncia violenta-
mente a social-democracia) e Boukharine, favorável a «uma frente única
proletária», se articulam com as divergências que dizem respeito à política
interior soviética, em particular quanto aos problemas camponeses e à
«colectivização».
• Cf. F. Claudin, La Crise du Mouvement communiste, t. 1, ob. cit.,
p. 161; e J. Humbert-Droz «L'Oeil de Moscou à Paris», Paris, Julliard,
«Archives», 1964, pp. 256-259.
• Cf. F. Oaudin, ob. cit., pp. 179-180; e Critica Marxista de Julho-
-Agosto, 1965, p. 145.

232
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS- IV

O relatório acrescenta que esta posição tomará fácil a con-


quista para a revolução da maioria da classe operária alemã.
Contrariamente às afirmações da IC, o desenvolvimento da
crise económica - a partir de Outubro de 1929- não leva de
modo algum ao amadurecimento de uma «situação revolucioná-
ria». Em contrapartida, assiste-se a uma rápida progressão do par-
tido nazi que obtém 6 400 000 votos em 1930 contra 900 000. em
1928. Os efectivos do PCA permanecem estacionários, embora os
sufrágios que recolhe aumentem quando baixam os obtidos pela
social-democracia •.
A direcção da IC e do partido bolchevique mantêm as orienta-
ções fixadas em 1928, apesar dos desmentidos que os factos trazem
às suas «previsões». Com efeito, estas orientações de modo algum
são o resultado de análises explícitas e rigorosas. Correspondem
ao curso «pseudo-esquerda)) e secretário seguido no interior pelo
partido bolchevique, à luta deste contra os «direitistas)) e os «tro-
tskistaS)) que, uns e outros, eram partidários de uma frente única
com a social-democracia. perante o fascismo em ascensão. Por
outro lado, o grupo dirigente soviético formado à volta de Esta-
line é, efectivamente, mais hostil à social-democracia do que ao
nacionalismo alemão, isto por múltiplas razões.
Uma delas é a esperança que a direcção do PC tem na tradição
bi~marckiana da Ostpolitik. Esta política de não antagonismo com
a Rússia tinha o apoio de grande parte da direita alemã, em par-
ticular entre os altos responsáveis do exército e dos serviços diplo-
m:Sticos alemã~. Uma outra razão - estreitamente ligada à pri-
meira- é a colaboração militar que existia entre a URSS e o
Estado-Maior alemão, colaboração à qual a social-democracia se
opunha. O gru_!)O dirigente soviético estava aparentemente persua-
dido de que a chegada ao poder dos nazis não poria fim a essa
co!aborar;8o (o que foi, aliás, verdadeiro durante um breve pe-
ríodo). A seus olhos, o reforço da Alemanha face à França e à
Inglaterra (então consideradas como os principais adversários po-
tenciais) era uma boa coisa. Aqueles dirigentes não podiam, é
certo, recusar-se a ver que uma vitória nazi conduziria a uma
repressão brutal contra o PCA, mas não mostravam aue isso os
preocupasse particularmente, declarando que tal vitória só poderia
ser de curta duração e que a derrota posterior do nazismo condu-
ziria inevitavelmente o PCA ao poder. Aqueles dirigentes estavam
sobretudo persuadidos de que as vociferações antibolcheviques dos
nazis correspondiam a uma operação de política interna e que o

• F. Oaudin, ob. cit., pp. 182-183.

!233
CHARLES BETTELHEIM

anticomunismo dos nazis não modificaria a política exterior da


Alemanha; para eles, esta política não podia ser mais afectada
do que a deles próprios por «considerações ideológicas», visto os
dois países terem interesses comuns, face à Inglaterra e à França,
consideradas os países imperialistas mais expansionistas e mais
ameaçadores'. Todas estas apreciações serviam para confrontar
a virulência dos ataques contra a social-democracia, ataques cujo
verdadeiro beneficiário era o partido nacional-socialista.
No entanto, para além de considerações que levavam a que o
nazismo não surgisse como ameaça aos interesses de Estado da
URSS - e que levavam, portanto, os dirigentes deste pais a não
ver nele o inimigo principal -um outro elemento explica certa-
mente a ligação do grupo dirigente soviético à linha definida (sob
sua influência directa) pelo XV Congresso da IC: numerosos
aspectos da ideologia do referido grupo, o seu profundo desprezo
pela democracia e pela existência de autênticas organizações ope-
rárias, as suas concepções de uma economia «submetida ao Es-
tado)), o anti-semitismo de muitos dos seus membros, tudo isto o
tornavam muito próximo do nazismo e pronto a colaborar com ele.
Além disso, a componente nacionalista da ideologia do grupo
dirigente estalinista torna este particularmente «compreensivo))
perante o nacionalismo da Alemanha vencida. Uma certa con-
cepção do «bolchevismo)) já havia, aliás, no princípio dos anos 20,
incitado certos membros do NKVD a testemunhar simpatias co-
muns pelo nacionalismo (com o qual até organizam manifestações
comuns por ocasião do assassínio do militante de extrema-direita
Schlageter), o que havia levado Lénine a denunciar o nacional-
-bolchevismo, esse «bloco contra natureza formado entre as pes-
soas dos Cem Negros e os Bolcheviques))'. Esta tendência é
então excluída do KPD, o que não impede a comissão executiva
da IC de tentar uma reconciliação com o nacionalismo alemão
em nome do «papel revolucionário de desagregação)) que a bur-
guesia alemã pode desempenhar «face ao capitalismo da Entente)) •.
Está aqui também -apesar das diversas viragens ulteriores -um
dos panos de fundo da linha política seguida pela IC de 1928 a 1934.

7
Cf. Max Beloff, The Foreign Policy of Soviet Russia, Londres,
Oxford, UP, vol. I, 1947, pp. 32 e segs.
' Declaração de Lenine, 22 de Setembro de 1920, citada por J. P.
Faye; ob. cit., p. 9.
Cf. Die Rote Falzne, n." 144, 26 de Junho de 1923; e Ruth Fischer,
Stalin and the German Communist, Francoforte, 1950, pp. 339-343.

234
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

SECÇÃO II

A denúncia dos países da «Entente))


e a política alemã da URSS

No relatório político que apresenta, a 27 de Junho de 1930,


ao XVI Congresso do partido bolchevique, Estaline apresenta a
França como «o mais agressivo e o mais militarista de todos os
países agressivos e militaristas do mundo» 10 • Esta declaração mais
não faz do que reiterar a denúncia do «capitalismo da Entente»
prosseguida desde há anos. Explica-se, no entanto, pelo malogro
das tentativas feitas pela União Soviética desejosa de assinar com
a França um pacto de não agressão: uma diligência neste sentido
havm sido efectuada sem sucesso por Litvinov, em Março de
1930 11•
Nesta época, as relações germano-soviéticas passam, com
efeito, por uma fase difícil: após a ratificação dos acordos Y oung
pelo Reichstag, em Março de 1930, e a evacuação da Renânia
pelas tropas aliadas três meses mais tarde, o governo alemão já
não considera as suas relações com Moscovo como pedra angular
da sua política externa. Todavia, após longas negociações, é publi-
cado um comunicado conjunto germano-soVIético, a 14 de Junho
de 1930, no qual se afirma que o espírito de Rappalo está desti-
nado a continuar a estar na base das relações entre os dois países.
Alguns meses mais ta;-de, a 23 de Março de 1931, a Alemanha
concorda em renovar o pacto de não agressão que havia sido cele-
brado entre ela e a URSS, em 1926 (pacto dito «tratado de Ber-
lim») e, a 24 de Junho, o tratado é efectivamente renovado, facto
que é saudado como tendo sido um grande êxito da diplomacia
soviética 12 • Na realidade, este êxito é muito relativo porque as
relações com a Alemanha têm tendência a deteriorar-se: não é
senão em Maio de 1933, quando os nazis já estão no poder, que
o protooclo de renovação do «tratado de Berlim» é ratificado.
A URSS é, assim, o primeiro país a ter efectuado um acordo
com a Alemanha nazi.
Durante os anos 30 e seguintes, o PCA aplica fielmente a linha
de luta contra a social-democracia. Participa ao lado dos nazis e
dos «capacetes de aço» no referendo de 9 de Agosto de 1931 con-

10
Cf. Estaline, W, t. 12, p. 263.
u Cf. B. Ponomarev et al (eds.), History of Soviet Foreign Policy
1917-1945, Moscovo, 1969, p. 287.
" Cf. 1zvestia, 26 de Junho de 1931.

235
CHARLES BETTELHEIM

tra o governo social-democrata da Prússia. A queda deste governo


é saudada pela Pravda de 13 de Agosto de 1931, que escreve:

Os resultados do voto representam [ ...] o maior golpe


que a classe operária jamais infligiu à social-democracia.

Quanto à IC, vê nesse voto um «exemplo de aplicação da polí-


tica de frente única». Trotski comenta esta declaração dizendo:

Nenhum cérebro proletário poderá alguma vez com-


preender a razão pela qual a participação no referendo ao
lado dos fascistas [ ... ] deve ser considerada como uma
política de frente única contra os operários sociais-demo-
cratas e cristãos, tanto mais quanto ficou desta forma
aberta a via para um «governo Hitler-Hindenburg» 13•

O PCA, pela sua parte, segue a via traçada pela IC, opõe-se a
toda acção comum com os socialistas, ao mesmo tempo que apoia
greves animadas pelos nazis para limitar a audiência da ADGB (a
CGT alemã ligada ao partido socialista). Nesta ocasião, Outono
de 1932, E. Thaelmann fala de uma «frente única de classe com
os proletários nazis» ".
Na situação assim desenvolvida, o partido nazi (NSDAP) apro-
xima-se do poder, embora a sua influência eleitoral recue em
Novembro de 1932, por ocasião das segundas eleições do ano. A 30
de Janeiro de 1933, Hindenburg chama Hitler para a Chancelaria.
É o princípio do III Reich. A 27 de Fevereiro, arde o Reichstag,
em seguimento de uma provocação nazi, o que permite instaurar
um regime de terror em nome da «protecção do povo e do Estado».
Milhares de militantes e de operários são presos. A imprensa comu-
nista, socialista e do centro é interdita; os partidos, à excepção
do nazi, são colocados na ilegalidade e o NSDAP organiza novas
«eleições» que lhe asseguram uma câmara dos deputados às suas
ordens. No entanto, ainda em Maio de 1933, a direcção do PCA
declara: «0 proletariado não perdeu nenhuma batalha, não sofreu
nenhuma derrota [ ... ] Trata-se apenas de uma retirada momen-
tânea 15 .»

" Cf. Trotski, Écrits III, p 64, citado em F. Oaudin, ob. cit., p. 187.
" Cf. Margaret e Buber-Neumann, La Révolution mondi'ale, Paris,
1971! p. 298.
' lbid., pp. 300-301.

236
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

A IC prossegue a mesma linha política. Recusa o encontro


que a Internacional Operária Socialista lhe propõe em Fevereiro
de 1933, quando Hitler chega à Chancelaria. Em Junho de 1933,
a IC continua a considerar a social-democracia como «a prin-
cipal base social da burguesia>> e a sua ala esquerda «como a sua
facção mais manhosa e mais perigosa>>; ' 6 repele toda unidade de
acção com os partidos socialistas. No plano das relações entre
Estados, Litvinov, então comissário para os Negócios Estrangeiros,
declara a 29 de Setembro de 1933:

Naturalmente, simpatizamos com os sofrimentos dos


nossos camaradas alemães, mas nós, marxistas, somos os
últimos a quem se pode censurar deixarmos os nossos sen-
timentos ditar a nossa política.

Encerrada na mesma lógica, em Dezembro de 1953, a IC con-


tinua a apresentar a social-democracia como o inimigo principal.
No plano das relações entre Estados, Estaline sublinha, no seu
relatório de 20 de Janeiro de 1934 (apresentado ao XVII Con-
gresso do partido) que, para a União Soviética, a chegada do
nazismo ao poder em nada altera as relações com a Alemanha,
desde que esta não se afaste da «antiga política contida nos tra-
tados». Acrescenta:

Naturalmente, não sentimos nenhum entusiasmo pelo


regime fascista da Alemanha. Mas não se trata aqui de
fascismo, pela simples razão de que o fascismo, na Itália,
por exemplo, não impediu a URSS de estabelecer excelen-
tes relações com esse pais''.

Dito isto, adverte contra os riscos que comportaria a adopção


pela Alemanha de uma «nova política», anti-russa, semelhante à
do «ex-Kaiser» '". Já anteriormente a 1933, os dirigentes soviéticos
tinham feito algumas tentativas para fugir àqueles riscos.

" Cf. B. M. Le1bson e K. K. Chirinia, Povorot v Politike Kominterna,


Moscovo, 1965, p. 55: e Julius Braunthal, History of the lnternational,
Nova Iorque, Praeger, 1967, vol. II, p. 395.
17
Cf. E~taline. W, t. 13, pp. 308-309.
,. lbid., p. 309.

237
CHARLES BETTELHEIM

SECÇÃO III

As tentativas soviéticas para escapar


ao frente-a-frente com a Alemanha

Embora a política alemã e as boas relações com o Reichswehr


continuem a dominar a política exterior soviética até 1934, nem por
isso os dirigentes da URSS deixam de desenvolver esforços para
diversificar as suas relações com outros países. Tais esforços são
empreendidos desde os anos 20, mas tomam amplitude particular
a partir de 1931. Inscrevem-se na multiplicação dos acordos eco-
nómicos e, sobretudo, na assinatura dos pactos de não agressão.
Por estes pactos, a URSS e outros países aderentes comprome-
tem-se a não recorrer a acções agressivas contra o outro signa-
tário e a permanecer neutras no caso em que este for agredido
por um Estado terceiro. A diplomacia soviética sublinha a origina-
lidade deste género de pacto puramente defensivo e que não con-
tém qualquer obrigação de apoiar uma acção contra outros Esta-
dos. O primeiro pacto de não agressão havia sido celebrado, em
Dezembro de 1925, com a Turquia mas, até aos anos 30, tais
pactos são poucos numerosos.
Em 1931, a diplomacia soviética torna-se mais activa e começa
a alcançar alguns êxitos. Diversas razões explicam o facto. Em
primeiro lugar, do lado soviético a crise política anterior ligada à
«colectivização por cima», ao desmoronamento da produção agrí-
cola e à fome obriga a um esforço destinado a consolidar a situa-
ção diplomática do país numa ocasião em que as suas dificuldades
económicas o tornam particularmente vulnerável. Acontece que
a crise económica em que entram os países industrializados a par-
tir de Outubro de 1930 os torna mais receptivos à melhoria das
suas relações com a URSS, a qual lhes surge como um imenso
mercado potencial. Além disso, a ascensão do extremismo de
direita e do nacionalismo na Alemanha incita as potências signa-
tárias do tratado de Versalhes e partidárias do statu quo a desen-
volver as suas relações diplomáticas com a União Soviética.
As diversas negociações que se iniciam em 1931 revelam-se
difíceis e são frequentemente interrompidas. Em 1932, a URSS
começa, no entanto, a recolher o fruto dos seus esforços diplomá-
ticos, assinando uma série de pactos de não agressão: com a Fin-
lândia (21 de Janeiro), com a Letónia (5 de Fevereiro), com a
Estónia (4 de Maio). A 27 de Novembro, o pacto polaco-soviético
é ratificado e, a 29, é assinado o pacto franco-soviético. O governo
francês, embora longamente hesitante, compromete-se finalmente
238
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-- IV

e encoraja os seus aliados do Leste, designadamente a Polónia, a


fazer o mesmo, na esperança de reduzir os riscos de um enten-
dimento político mais estreito entre a URSS e a Alemanha'".
Ainda que acolhidos oficialmente por Berlim com «compreensão»,
estes acordos suscitam o seu descontentamento e dão origem a
tentativas alemãs de «aproximação» com a França. Estas, porém,
não têm seguimento: o pacto de não agressão franco-soviético é
ratificado a 15 de Fevereiro de 1933. O ano de 1933 e sobretudo
o ano de 1934 surgem, assim, como o ponto de partida de nova
etapa da política exterior soviética, fase no decorrer da qual esta
política parece orientar-se no sentido de uma aproximação com as
«democracias ocidentais>>.

" Cf. J. A. Large, «The origins of Soviet Collective Security Policy


1930-1932», em Soviet Studies, Abril de 1978, _pp. 212 e segs., designada-
mente p. 228; e Documenta diplomatiques trançais 1932-1935, vol. r,
Paris, 1964, pp. 245-247 e pp. 395.

239
CAPíTULO II

AS CONTRADIÇõES DA POLíTICA EXTERIOR


SOVIÉTICA E DA LINHA POLíTICA DA IC
(1934-1939)

No decurso dos primeiros meses de 1934, diversos elementos


de política interior e de política internacional contribuem para
modificar os objectivos exteriores aparentemente visados pelos
dirigentes soviéticos e pela lC.
No plano interno, a atitude proclamada de «indiferença» do
governo soviético relativamente à chegada de Hitler ao poder
está longe de ter a aprovação de todos os que ainda contam no
partido bolchevique. Muito diferente da de Estaline é a concepção
então defendida por Kirov, acerca da qual se sabe que ele deseja,
ao mesmo tempo, uma redução das tensões sociais interiores e
uma «reorientação ocidental» da política exterior soviética', con-
cepção esta também defendida por Boukharinc. Tanto um como
o outro denunciam a ilusão de que o poder de Hitler seria fraco
e efémero e convidam a que se tomem a sério as suas ameaças
antibolcheviques.
Perante o XVII Congresso, Kirov não hesita em declarar que
a Alemanha nazi e o Japão são os «inimigos mais evidentes da
URSS e do partido comunista soviético»'.
Quanto a Boukharine, desde 1933 que escrevia, nas Izvestia,
que o hitlerismo faz incidir «uma ameaça negra e sangrenta sobre
o mundo»'. Intervindo de novo com firmeza no XVII Congresso
do partido, expõe ideias muito diferentes das de Estaline, e que

' Cf. B. Nicolaevski, ob. cit., p. 45.


' Cf. Kirov, Stati i retchi, Moscovo, 1934, pp. 40 e pp. 45-46, citado
por Francisco Benvenuti, Kirov in Soviet Politics, 1933-1934, ob. cit.,
p. 27. F. Benvenuti indica que, na versão abreviada deste discurso publi-
cado pela Pravda (24 de Janeiro de 1934), esta formulação não aparece.
·• Jzvestia, l de Maio de 1933.

240
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

despertam sério eco entre os congressistas •. Boukharine sublinha


que a ideologia fascista de Hitler exposta em Mein Kampf deve
ser tomada a sério, que se trata de uma filosofia abertamente
bestial que abre uma era de assassínios e climes, e que, quando
Hitler reclama um «espaço vital» pa;·a a Alemanha, S::) trata de
um «apelo aberto à destruição de nosso Estado». Declara que as
intenções alemãs relativas à União Soviética, conjugadas com as
ambições japonesas, parecem significar que «toda a nossa popula-
ção deveria ccu11ar um dos al~os-fornos de Magnilogcrsk». Cem-
vida a que ninguém se resigne a aceitar a existência do regime
nazi e termma declarando:

Está ali a face bestial do zmmzgo de classe! Está ali,


camaradas, aquilo que devemos enfrentar e q::tc t:nfrenta-
remos em todas as batalhas históricas que a história colo-
cou sob,·e os nossos omoros '.

Nos anos seguintes, e até à sua prisão. Boukharine, defenderá


as mesmas ideias ao apoiar uma política de entendimento com as
c1eT':locracias ocidentais e a necessidade de um acordo entre par-
tidos comunistas e rGrtidos socialistas.
No plano intern~donal, os desenvolvimentos efectivos da polí-
tica hitleriana cada vez dão maior crédito àqueles que afirmam
que o «antibolchevismo» de Hitler não se refere apenas a ideologia
e a propaganda mas comanda praticamente a sua r;olítica externa.
Em todo o caso, o pacto assinado, a 26 de Janeiro de 1934, entre
a Alemanha e a Poló11ia (sem que a URSS haja sido r;;·eviamente
info~mada) é considerado pelos dirigentes soviéticos como um
atentado à anterior política germano-soviética. Os dirigentes da
URSS mostram-se, pois, abertos às ofertas formuladas, em fins
de Maio de 1934, por Barthou, então ministro dos Negócios Es-
trangeiros da França: propõe este ao governo da URSS um pacto
de assistência mútua inserido no quadro de SDN. A 25 de Maio,
Barthou faz uma declaração perante a Câmara dos Deputados,
na qual afirma que a entrada da Rússia na SDN seria «Um acon-
tecimento considerável para a paz mundial». Menos de uma

4
A estenografia dos debates do Congresso (XVII Sezdj fala de
aplausos (p. 129) e a Pravda, 31 de Janeiro de 1934, p. 2, de aplausos
prolongados.
• XVII Sezd VKP (bj, Moscovo, 1934, pp. 127-129, citado por
S. Cohen, Boukharine, [ ... ], ob. cit., pp. 360-361.

Est. Doe. 220-16 241


CHARLES BETTELHEIM

semana depois, a 31 de Maio, a Pravda, pronuncia-se a favor das


negociações entre o PCF e os dirigentes socialistas franceses •.
Esta tomada de posição da Pravda contribui para a viragem
que o PCF então inicia. Com efeito, nos primeiros meses de 1934,
a luta contra o «social-fascismo» ainda prossegue: toda e qualquer
negociação com os partidos socialistas é rejeitada, em nome da
«Unidade na base». Sucede isto na Espanha e em França.
No momento em que se multiplicam em Paris as manifesta-
ções fascistas (culminando a 6 de Fevereiro de 1934) e em que a
SFIO propõe a unidade de acção, o PCF declara:
Mais do que nunca denunciamos os chefes socialistas,
o partido socialista, servidores da burguesia, último ba-
luarte da sociedade capitalista 7 •
Mesmo após as manifestações unitárias de Fevereiro de 1934,
os dirigentes socialistas são denunciados com veemência. Embora
eles hajam assistido aos funerais dos comunistas mortos pela polí-
cia, o Humanité põe em causa os referidos dirigentes, escrevendo
que «os nossos camaradas foram mortos por balas pagas com
créditos votados pelos eleitos socialistas»; a 19 de Fevereiro, este
mesmo jornal denuncia a palavra de ordem de defesa da República
declarando: «Como se o fascismo não fosse a República, como se
a República não fosse já o fascismo'.»
Ainda em Março, a IC desenvolve as mesmas ideias, designa-
damente no que respeita às lutas operárias na Espanha •. Tudo
muda em seguida ao aparecimento do artigo de 31 de Maio da
Pravda. O Humanité reproduz este artigo e afirma que é ilícito
discutir a respeito da unidade de acção com os dirigentes socia-
listas. Lança, aliás, um apelo nesse sentido à comissão adminis-
trativa da SFIO. Esta orientação é confirmada pela Conferência
de Ivry do PCF.
A sequência dos acontecimentos mostra que o grupo dirigente
soviético (no qual Estaline domina inteiramente após o assassínio
de Kirov, em Dezembro de 1934) está, porém, longe de ter renun-
ciado à política de colaboração com a Alemanha. Assim, em
Janeiro de 1934, Litvinov ainda efectua uma diligência em Berlim
para propor a renovação da cooperação germano-soviética, dili-

• Cf. Visiemirnaia lstoria, Moscovo, 1962, t. 9, pp. 301-302; e Jacques


Fauvet, Histoire du parti communiste !rançais, t. 1, Paris, Fayard, p. 144.
' Citado segundo F. Claudin, ob. cit., pp. 197-198.
• Jbid., p. 198.
' Cf. Correspondance internationale, 23 de Março de 1934.

242
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

gência que não tem êxito 10 • Os dirigentes soviéticos são, então,


levados a acentuar mais, pelo menos nas suas declarações públicas,
a sua aproximação com os países ocidentais; não obstante, a orien-
tação efectiva da politica externa da URSS é muito mais contra-
ditória do que aparenta ser à boca da cena. Tais contradições
estão ligadas, entre outros factores, ao desenvolvimento de uma
ideologia nacionalista.

SECÇÃO I

A ideologia nacionalista
e a politica exterior da URSS

De maneira geral, o desenvolvimento de uma ideologia nacio-


nalista tende a facilitar as relações diplomáticas da União Sovié-
tica com as diversas potências estrangeiras. Ao substituir-se ao
internacionalismo anteriormente proclamado, à vontade afirmada
de apoiar a revolução mundial, o nacionalismo «soviético>> (de
facto russo) dá à URSS uma face que inquieta menos os dirigentes
políticos dos outros países. iÉ principalmente a partir de 1934 que
os termos Pátria e Rússia reaparecem na imprensa soviética. O pas-
sado russo é cada vez mais «reabilitado», ao mesmo tempo que é
denunciado o cosmopolitismo daquilo que teria «origens estran-
geiras à Rússia» 11 • Em Julho de 1934, um editorial das Izvestia
declara que um cidadão soviético «deve amar a sua pátria». Em
1936, a peça A Pátria conhece grande êxito, como depois o filme
Nós, os Russos 12 •
A ascensão do nacionalismo russo não é uma pura manobra
«táctica» destinada a «mobilizar as energias» (para o que já não
basta a evocação de um «futuro socialista radioso») e a sossegar
a opinião internacional, isto é, os dirigentes das grandes potências.
Corresponde também sobretudo às transformações das relações
de força sociais interiores, à consolidação das desigualdades so-
ciais, à ascensão do conservantismo e ao medo das «aventuras
exteriores» às quais um internacionalismo algo militante poderia
expor o país.
As alterações internas na URSS e as da cena internacional
abrem a via a novos desenvolvimentos, tanto no plano diplomá-

" Cf. Jacques Martin, ob. clt., p. 73.


11
Cf. H. Carrêre d'Encausse, Staline, ob. cit., p. 78.
" Cf. Nicholas S. Timasheff, The Great Rerreat, ob. cit., pp. 166-167.

243
CHARLES BETTELHEIM

tico como no das directivas da IC e da prática das suas diferentes


secções. 'É assim que, em Setembro de 1934, a URSS entra na
SDN para ocupar ali lugar permanente no Conselho, o que equi-
vale à sua «readmissão formal na sociedade internacional» 13•
Pouco tempo depois, o PCF amplia a sua política de «negociações»
com outros partidos. A 24 de Outubro, já não se dirige somente
aos socialistas mas também ao partido radical, lançando a ideia
de uma «ampla frente popular>> aberta a esse «partido burguês».
Pouco importa que esta iniciativa do PCF seja efectivamente
devida a Maurice Thorez, como ele aJ'irma ", ou que lhe haja sido
sugerida; um facto é certo: ela facilita o prosseguimento das con-
versações franco-soviéticas para as quais era indispensável o apoio
dos radicais (sobretudo após o assassínio de Barthou, a 9 de
Outubro) 15 •
O pacto franco-soviético é finalmente, assinado a 2 de Maio
de 1935. Al;;un:; dia~ depois (de 13 a 15 de Maio) decorrem em
Moscovo as entrevistas Lavai-Estaline no termo das quais é publi-
cado um comunicado contendo a seguinte passagem que provoca
um choque sério no PCF:
Estaline compreende e aprova plenamente a política de
defesa nacional praticada pela França para manter as suas
forças armadas ao nível da sua segurança.
Esta declaração obriga o PCF a efectuar uma viragem de 180 °.
Quando, um mês e meio antes, Thorez reiterava a oposição de
princípio a qualquer «política de defesa nacional», declarando que
a classe operária não seria arrastada para «uma guerra dita de
defesa da democracia contra o fascismo» 10 , o PCF afirma, após
a declaração de Estaline: «Estaline tem razão.» Desde o momento
em que a defesa da União Soviética estava em jogo, tudo mu-
dava 17•
O pacto franco-soviético é diferente dos acordos até então rea-
lizados com a URSS: não se trata de um simples pacto de não
agressão mas de um pacto de assistência mútua. Põe este oficial-
mente fim à cooperação entre o Exército Vermelho e a Werhmacht.
No plano interno francês, a assinatura do pacto conduz o PCF a

" Cf. Robert G. Wesson, Soviet Foreign Policy in Perspective,


Georgetown (Ont.), The Dorsey Press, 1969, p, 127.
14
Cf. Maurice Thorez, Fils du peuple, Paris, ES, 1949, pp. 87 e segs.
u Cf. F. Claudio, ob. cit., p. 204.
,. Débats parlementaires, Paris, 1945, p. 1038.
" F, Claudin, ob. cit., p. 205.

244
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS- IV

efectuar novas tentativas de aproximação com o partido radical.


A 31 de Maio de 1935, Maurice Thorez declara na Câmara:
Nós, comunistas, renovando a tradição jacobina, esta-
ríamos prontos a dar-vos o nosso apoio, Senhor Presidente
Herriot, se vós ou qualquer outro chefe do vosso partido
quiserdes tomar a direcção de um governo radical [... ]
Maurice Thorez chega mesmo a evocar a extensão de uma
frente política que inclua partidos situados à direita do partido
radical'". Esta extensão não se materializa, mas a «aliança» com
os socialistas e os radicais toma forma em Julho de 1935, e conduz
à elaboração de um «programa comum» apoiado pelos três parti-
dos, os quais fazem, no entanto, campanhas separadas na Prima-
vera seguinte, por ocasião das eleições que conduzem à vitória da
Frente Popular. A maioria parlamentar saída destas eleições per-
mitirá a formação de um governo dirigido pelo socialista Léon
Blum e apoiado pelo PCF, governo que só durará dois anos.

SECÇÃO II

O VII Congresso da IC e as suas consequências

A 25 de Julho de 1935, inaugura-se o VII (e último) Con-


gresso da IC, no âmbito da conjuntura internacional acima rapi-
damente descrita. A IC é cada vez mais considerada pelo grupo diri-
gente do partido soviético como mero instrumento da política
exterior da URSS. Estaline denomina-a lavotchka (literalmente,
a «loja»). Os debates do VII Congresso são bastante confusos mas
confirmam a completa subordinação deste aos interesses diplo-
máticos da URSS.
Na realidade, a coberto de uma pretensa «luta antifascista e
anticapitalista» exposta por Dimitrov no seu relatório ao Con-
gresso, a palavra de ordem central dada aos PC é «a luta pela paz
e pela defesa da URSS». Na resolução proposta ao Congresso por
Dimitrov, afirma-se que «a política de paz da URSS [... ] criou
as bases da sua colaboração, na causa da salvaguarda da paz, com
os pequenos Estados para os quais a guerra, ao ameaçar-lhes a

" Maurice Thorez, Oeuvres, t. 9, p. 26, citado por F. Claudin,


ob. cit., p. 206.

245
CHARLES BETTELHEIM

independência, representa um perigo particular, e também com


os Estados que têm actualmente interesse em salvaguardar a paz 19•
O relatório de Dimitrov deixa entender que os «grandes Estados»
que têm «interesse na paz» são a França e os Estados Unidos, o
que confirma o relatório de Togliatti ". Segundo Dimitrov, esta
situação abre a «possibilidade de um frente única muito vasta da
classe operária, de todos os trabalhadores e de povos inteiros con-
tra a ameaça da guerra imperialista»; por isso, são convidados
«povos inteiros» a formar uma «frente mundial». Na situação
assim descrita, Togliatti apela aos PC para que façam sentir o
seu peso na política exterior dos seus países para ajudar a conso--
lidar a paz 21 • Na época, este apelo tem alcance concreto sobretudo
para os PC da França e da Checoslováquia, países que assinaram
pactos de assistência mútua com a URSS.
A subordinação geral da politica dos PC à politica soviética é,
a finalizar, explicitada por Togliatti que, nesse mesmo relatório,
declara:
Para nós, é absolutamente indispensável que exista uma
identidade de objectivos entre a política praticada pela
classe operária e pelos partidos comunistas nos países capi-
talistas. Esta identidade de objectivos não pode ser motivo
de dúvida nas nossas fileiras 22 •
O VII Congresso da IC evita por completo a análise dos pro--
blemas do imperialismo, da revolução socialista e das revoluções
anti-imperialistas, como Dimitrov diz:
Eliminámos intencionalmente dos relatórios como das
resoluções dos congressos as frases sonoras sobre as pers-
pectivas revolucionárias.
Na realidade, este VII Congresso leva ao extremo a lógica de
posições já afirmadas pelo Congresso precedente (em 1928) que
declarava ter-se a URSS tornado «o motor internacional da revo--
lução proletária [... ], a base do movimento universal das classes
oprimidas, o foco da revolução internacional, o maior factor da
história do mundo»".

" Cf. a colecção Borbza mir: materiali triek Internationalov, Mos-


covo, 1967, pp. 494-495.
" Cf. Togliatti, Sul movimento operaio internazionale, Roma, 1964,
pp. 110-111.
" Ibid., pp. 114-115.
" lbid., pp. 136-137.
" Cf F. Claudin, ob. cit., pp. 85 e pp. 215-216.

246
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS- IV

Todas estas afirmações levam a subordinar a acção dos dife-


rentes PC aos «interesses» da URSS, tal como estes são definidos
pelo grupo dirigente do partido soviético. No momento do VII
Congresso, estes interesses coincidem aparentemente com uma
diplomacia que se reclama da «luta contra o fascismo». Durante
algum tempo, esta diplomacia parece predominar; encobre, porém,
um jogo subtil que prepara uma viragem na política estrangeira
da URSS. Inicia-se esta viragem em 1937. Tem efeitos sobre a
guerra de Espanha e o seu desenlace; prepara a reviravolta que
constitui o pacto germano-soviético de 1939.

SECÇÃO III

A guerra de Espanha e a «ajuda» soviética


à República Espanhola

A guerra de Espanha constitui um grande acontecimento polí-


tico dos anos 30, devido ao seu significado geral e às formas que
nela assumiu a «ajuda» ou, mais exactamente, a intervenção sovié-
tica. Não é esta evidentemente a ocasião para analisar, em por-
menor, os diferentes aspectos da guerra de Espanha. Temos de
nos limitar a indicações gerais 24 •
Esse governo e as forças que o apoiam, entre ela<> o PCE,
querem limitar-se aos objectivos moderados do programa da frente
popular mas o movimento de massas desenvolve-se rapidamente e
apresenta reivindicações que vão muito para além do programa
governamental; são ocupadas terras e fábricas, são criadas empre-
sas colectivas 25 •

" Os testemunhos sobre a guerra de Espanha e sobre a actividade


neste país dos aparelhos soviéticos são numerosos e contraditórios. Devem
ser interpretados tendo em conta as posições políticas dos seus autores
e recorrendo a numerosas fontes.
Os factos essenciais são os seguintes: em Fevereiro de 1936, as elei-
ções haviam sido ganhas por um bloco «operário-republicanO>> no qual
participavam o PCE, o PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol), a
UGT (União Geral dos Trabalhadores) e a favor do qual se havia pro-
nunciado grande parte dos anarco-sindicalistas. O governo formado após
as eleições não compreendia senão partidos republicanos «burgueses>> e
«pequenos burgueses». Cf. F. Claudin, La Crise ... , ob. cit., p. 243.
" No início dos anos 60, um historiador soviético reconhece estes
factos, mas deles não tira qualquer conclusão quanto à contradição entre
o movimento das massas e a linha do PCE (cf. 'K. L. Maidarik, lspanski
proletariat v natsionalnoe - revo/ution-noivoini, Moscovo, 1960, pp. 64-65).

247
CHARLES BETTELHEIM

Largo Caballero e os seus partidários (membros do PSOE)


apoiam o movimento de massas, propõem a unificação com os
comunistas, a fusão da UGT e da CNT (Confederação Nacional
do Trabalho, de orientação anarco-sindicalista). Praticamente,
«entre Fevereiro e Julho de 1936, instaura-se em Espanha um
triplo poder de facto: o poder legal, na realidade muito fraco; o
dos trabalhadores, dos seus partidos e sindicatos [... ] por último,
o dos contra-revolucionários ... » 26 • Este último é constituído pelos
grupos fascistas e pelos dirigentes do exército que preparam um
putsch militar.
Este eclode a 19 de Julho de 1936. Graças a uma resistência
de massa, mostra-se incapaz de instalar um poder alargado a todo
o país. É, pelo contrário, objecto de uma resposta imediata: nas
regiões decisivas do país (que constituem o que se chamará a
«Zona republicana»), o poder político é efectivamente exercido
por organizações operárias, que se encontram principalmente sob
a influência do anarco-sindicalismo, as quais procedem a uma
«colectivização na base» dos principais meios de produção" e
tomam uma série de medidas que não cabem no quadro inicial do
programa do «bloco operário republicano».
Opondo-se a esta evolução, o PCE esforça-se por enfraquecer
as organizações de massa que estão em desacordo com ele, ao
mesmo tempo que consolida os aparelhos de Estado, no seio dos
quais está cada vez mais presente.
Muito rapidamente, a guerra civil espanhola toma dimensão
internacional, já que põe o problema que a ajuda estrangeira pode
trazer às forças políticas espanholas que se defrontam: o governo
legal e os dirigentes do putsch.
O governo britânico - teoricamente favorável à República-
faz adoptar uma política dita de «não intervenção», em virtude
da qual aqueles que a ela aderem se comprometem a não prestar
qualquer auxílio militar (mesmo sob a forma de fornecimento de
alimentos) a um e a outro dos campos, a tratar, portanto, igual-
mente o governo legal e os rebeldes fascistas 2 ". Esta argumentação

" F. Claudin, ob. cit., p, 249.


" As formas desta «colectivização», que não transfere para o Estado
e seus funciOnários a propriedade e a gestão das empresas, estão descritas
nas publicações da CNT-FAI e por K. Korsch; ver -em particular-
Karl Korsch, Marxisme et Contre-révolution (textos reunidos por Serge
Bncianer, Paris, Seuil, 1975).
" Logo após a sublevação franquista, o governo francês estava divi-
dido sobre a atitude a adoptar. Sob a pressão dos ministros radicais, é
pedida a opinião do governo de Londres: este pronuncia-se sem equívoco
pela não intervenção e o governo francês adere. Quanto ao governo

248
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

é aceite pelos governos da França, URSS, da Alemanha e da


Itália, mas só Londres e Paris a respeitam. A Alemanha e a Itália
prestam ajuda maciça (em material e em homens) aos franquis-
tas. O auxílio militar soviético aos republicanos é também bas-
tante forte entre o Outono de 1936 e o Outono de 1937, mas é
oneroso e condicional. Permite a penetração de dois mil «especia-
listas» soviéticos (quadros políticos, policiais e militares), no apa-
relho de Estado espanhol. Estes especialistas, com a ajuda do PCE,
instalam o seu próprio aparelho 29 •
A política soviética em Espanha visa um objectivo preciso:
controlar a política e a estratégia do governo republicano; permi-
tirá abandonar todo o apoio a este último no quadro de uma polí-
tica que iniciará a aproximação germano-soviética. Visa também
objectivos económicos e, sobretudo, financeiros. O governo da
URSS subtrai o máximo possível de ouro à República. Logo em
Setembro de 1936, os emissários soviéticos obtêm do primeiro
governo Caballero a entrega de 510 t de ouro (a maior parte das
reservas da República Espanhola) em troca de promessas de for-
necimentos de armas. Na realidade, o valor do ouro levado pela
URSS ultrapassa em muito o das armas fornecidas.

soviético, faz saber ao governo francês que o pacto de auxilio mútuo


não funcionaria no caso em que se produzisse uma guerra que fosse
devida à intervenção de um dos dois países nos assuntos interiores de
um terceiro país. Desenvolve-se, entretanto, em França, um movimento
de solidariedade com o povo espanhol. Nesse movimento participam, de
maneira não coordenada, o PCP, certos elementos do partido socialista
(como Marceau Pivert e os seus amigos trotskistas) e mesmo certos ele-
mentos do partido radical (como Pierre Cot). O auxílio que é assim pres-
tado não é despiciendo mas só pode ser marginal. O PCP desempenha
um papel particular na organização das brigadas internacionais, mas
a actividade destas é controlada pela I C. Os seus agentes -isto é, os do
partido sov1ét1co- são cada vez mais quem escolhe os que delas podem
fazer parte. Chegam mesmo a liquidar localmente aqueles cujas ideias
não estão em conformidade com a linha política soviética No dia em que
a URSS suspende a sua «ajuda>> aos combatentes espanhóis. põe-se tam-
bém termo à actividade das brigadas internacionais (Outubro de 1938).
Cf. J. Gorkin, Les Communistes contre la révolution espagnole, Paris,
Belfond, 1978, designadamente PP. 25-29 e 236-237; e R. G Wesson,
ob. cit., pp. 122-125.
" Ne•te momento, os dirigentes comunistas espanhóis são rapida-
mente rodeados por «representantes da IC». Entre eles, acham-se o ita-
liano Togliatti, o húngaro Gerõe (que desempenhará ulteriormente um
papel na repressão do levantamento de Budapeste, em 1956), o búlgaro
Stepanov e o argentino Codovilla (cf. ibid., p. 244, n.• 133). Já antes da
guerra civil, Codovilla era «conselheiro» do PCE (ibid., pp. 242, 130).
Cf. também J. Gorkin, Les Communistes ... , ob. cit., p, 33. Sobre outros
agentes do NK.VD em Espanha, cf. ibid., pp. 206-209.

249
CHARLES BETTELHEIM

O exército republicano espanhol recebeu muito menos armas


do que os franquistas e, frequentemente, de má qualidade. As
quantidades fornecidas pela URSS representam entre 1 I 1 e 1 I"
das entregues a Franco por alemães e italianos. Ora -segundo
documentos diplomáticos apreendidos na Alemanha no fim da
guerra - o valor das armas alemãs não chegou a SOO milhões
de marcos ' 0 •
Alguns meses a pós a chegada do metal amarelo espanhol, já
Estaline declarava que a Espanha devia milhões à Rússia. Em
1938, por ocasião de um pedido de material militar apresentado
por Hidalgo de Cisneros, Molotov e Vorochilov obrigam-nos a
assinar um reconhecimento de dívida de 110 milhões de dólares 81 •
As armas encomendadas nessa ocasião nunca chegaram às mãos
do exército republicano. Tudo indica, outrossim, que o resto do
ouro espanhol haja sido transferido para a URSS no momento da
derrota da República 32 •
Às quantias assim obtidas pela URSS, deve acrescentar-se,
segundo diversas fontes, um pagamento de 2,5 mil milhões de
francos da época ao PCF. Esta soma, cuja gestão deixou de caber
às autoridades espanholas, permitiu, entre outras iniciativas, a
criação do quotidiano Ce Soir e a aquisição de doz;e navios 33 por
conta de uma agência chamada «France-Navigation» "'. Durante
algum tempo, esta agência trouxe um auxílio efectivo à República
Espanhola mas, rapidamente controlada pela IC, torna-se antes de
mais nada um instrumento da política internacional soviética.
Aos olhos de grande parte dos combatentes republicanos, que
ignoram as quantias exigidas pela URSS em contrapartida de ar-
mas pouco numerosas e tecnicamente envelhecidas, o governo
soviético aparece como o único «amigo» da Espanha republicana.
Por isso, a chegada das primeiras armas enviadas pela URSS (a
28 de Outubro de 1936) é por ela saudada com entusiasmo.

" Cf. Documents of Foreign Policy, Londres, 1951.


" Cf. Julian Gorkin, Les Communistes ... , ob. cit., pp. 76-77, que
cita diversas fontes. Cf. também o artigo de Jean Monds, «Krivitsky
and Stalinism in the Spanish Civil Wan>, na revista inglesa Critique,
n.• 9, Primavera-Verão de 1978, p. 14.
" Cf. D. Grisioni e G. Hertzog, Les Brigades de la mer, Paris,
Grasset, 1979, p. 287.
33
J. Gorkin, ob. cit., pp. 75-76. ,
" Sobre a «France-Navigation» e certas operações por ela condu-
zidas acham-se inúmeras informações no livro acima citado de D. Griso-
ni e G. Hertzog. A «France-Navigation» foi criada a 15 de Abril de 1937
(ob. cit., p. 59).

250
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS- IV

Os representantes da Internacional Comunista utilizam o pres-


tígio de que a URSS beneficia nesse momento para levantar entra-
ves ao movimento popular tomando como pretextos a natureza
«democrático-burguesa» da luta do povo espanhol e a necessidade
de «unir as formas mais latas». Ao passo que, a princípio, as
forças populares dispõem da realidade do poder, não desernp~
nhando as forças do Estado senão papel secundário, o poder de
Estado (no seio do qual o PCE desempenha papel crescente) é
progressivamente restaurado. Pode considerar-se que, no que tem
de essencial, essa «restauração» está adquirida no fim de 1937,
mas é urna «recuperação» que coloca o governo na dependência
estreita do PCE (e, portanto, da IC, isto é, dos dirigentes sovié-
ticos) 35 • Numerosas fases tiveram de ser percorridas até se chegar
a essa situação, que é o resultado de múltiplos factores, em par-
ticular dos erros do movimento popular e das manobras dos agen-
tes soviéticos e dos políticos da burguesia espanhola republicana.
Não se pretende elaborar aqui o «balanço dos erros» das orga-
nizações que foram vítimas da repressão exercida contra elas pelos
diversos agentes da política soviética. Os sobreviventes destas orga-
nizaçõ~~ esforçaram-se, aliás, por o fazer com lucidez 36 • Basta
sublinha>: que, na raiz destes erros, está urna apreciação insufi-
ciente da natureza da URSS e da sua política 37 •
Conduziu isto, por exemplo, a CNT a aceitar (em Setembro de
1936) a dissolução do Comité Central das Milícias e, depois, a liqui-
dá-las, a fim de que ficassem enquadradas no exército popular: os
seus r"1embros ficaram então rapidamente sob o controlo dos agen-
tes da política soviética e particularmente desfavorecidos no que
se refere à repartição das armas. Três meses mais tarde, a 12 de
Dezembro de 1936, abre-se a crise política da Catalunha, cujo
governo é remodelado sob pressão soviética. A CNT aceita a eli-
minação do POUM (e prepara, assim, a sua própria eliminação).

" F. Claudin, ob. cit., pp. 263 a 265, n.' 147.


36
Cf. designadamente o livro de Diego Abad de Santillan (militante
responsável da CNT). Por que perdimos la guerra, Buenos Aires, 1940.
" Vítor Serge é um dos que melhor pôs em guarda as organizações
revolucionárias espanholas contra a verdadeira natureza da política sovié-
tica. Antigo militante do partido bolchevique, feito prisioneiro na URSS
pelo NKVD devido às suas tomadas de posição, é libertado, em fins de
1936, graças a uma campanha internacional na qual Romain Rolland
e Gide desempenharam grande papel. Instalado em Bruxelas, no fim de
1936, tem então uma entrevista com Julian Gorkin, um do~ dirigentes
do POUM. Diz-lhe em substância: «Estais condenados a lutar em duas
frentes [ ... ]. O vosso inimigo mais perigoso, porque se encontra no inte-
rior da fortaleza e quer apoderar-se dela sem hesitar sobre os meios a
utilizar, é o estalinismo.» (Cf. J. Gorkin, ob. cit., p. 42.)

251
CHARLES BETTELHEIM

A pressão soviética para forçar a formação de um governo


largamente colocado sob a sua dependência acentua-se no prin-
cípio de 1937. Torna-se brutal quando o governo Caballero extrai
a consequuência lógica da análise que faz da situação em que a
Espanha se encontra na Primavera de 1937. Segundo esta análise,
que se conserva implicita, a guerra civil transformou-se numa
guerra na qual as potências fascistas desempenham papel essen-
cial, ao passo que o governo espanhol não obtém senão uma
«ajuda» soviética limitada, e que tem como contrapartida o domí-
nio crescente do país pelos russos e seus agentes; a Espanha
torna-se, assim, um terreno de manobras para algumas potências
estrangeiras, pagando-o com a sua ruína e a morte dos seus
filhos. A conclusão desta análise é que se impõe negociar (dado
que a situação militar ainda se mantém relativamente favorável)
o fim da guerra e a retirada dos alemães e dos italianos. Esta nego-
ciação é possível. Esboça-se mesmo, porque a França e a Ingla-
terra lhe são favoráveis, e a Alemanha e a Itália não desejam
atolar-se mais num conflito que pode arrastá-las para mais longe
do que desejam. Mosco'.'o, que tem conhecimento das sondagens
diplomáticas realizadas em Paris, é hostil ao seu êxito. A diplo-
macia soviética não quer uma paz que permitiria a consolidação
de um regime democrático em Espanha. A URSS considera que
é de seu interesse fazer durar a guerra.
A sua intervenção reveste essencialmente duas formas: uma
provocação que ocorre em Barcelona e a decisão de fazer cair
rapidamente o governo de Largo Caballero.
A provocação de Barcelona ocorre a 3 de Maio de 1937. Nesse
dia, os guardas de assalto conduzidos por Eusebio Rodriguez Sales
(instrumento conhecido da política soviética) tentam apoderar-se
da central telefónica da cidade. Este edifício é um dos bastiões
das forças operárias e está em poder da CNT e da UGT desde o
inicio da guerra civil. A reacção das massas populares catalãs é
imediata. Em algumas horas, mobilizaram-se e reúnem-se de armas
na mão. Estão prontas a resistir aos agentes da politica soviética
tanto como resistem aos franquistas.
Não é possível retratar aqui as peripécias desta resistência que
fica vitoriosa no terreno sem que a frente da Catalunha haja sido
desguarnecida ". No entanto, a vitória no terreno não impede que
a provocação atinja o seu objectivo: a 5 de Maio, o governo cen-
tral toma a seu cargo a «ordem pública» na Catalunha, limitando

" Ver, a este propósito, o livro de G. Orwell, Catalogne Tibre, Paris,


Gallimard, «ldées», 1976.

252
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

a autonomia da província. A 7 de Maio, as forças ligadas ao


PCE desencadeiam a repressão, acrescentando às centenas de
mortos e de feridos dos dias precedentes inúmeros assassínios e
prisões.
Esta provocação e outros pretextos são utilizados pela direcção
do PCE para exigir que Largo Caballero seja substituído por um
homem político mais dócil às suas vontades. Nos primeiros dias
de Maio, a queda de Caballero é formalmente decidida numa reu-
nião do executivo do PCE na qual os espanhóis são minoria"".
Decide-se que Juan Negrin substitua Caballero. A 15 de Maio de
1937, Largo Caballero pede a demissão. A 17, Juan Negrin forma
o seu governo o que dá ocasião ao NKVD -já largamente pre-
sente no aparelho de Estado- para acentuar a sua penetração.
Estão, doravante, reunidas as condições para que os agentes sovié-
ticos multipliquem as prisões e encham os calabouços do Estado e
a3 tch.!kas •o oficiosas.
Uma das operações mais importantes ocorria a 16 de Junho; os
Ji:"irentes de POUM s&o, ent::o, p;:escs c paücameute sequestrados
pelos agentes do NKVD. Andrés Nin, dirigente do POUM, será
asassinado por eles, após ter sido torturado. Outros são «inculpa-
dos» e alguns processados. O NKVD teria querido que os proces-
sos fossem semelhantes aos de Moscovo, mas não obtém todos os
resultados que deseja porque as massas populares estão mobilizadas
e a solidariedade internacional pode fazer-se sentir. Além disso,
os aparelhos de Estado não estão inteiramente controlados pelos
agentes da política soviética.

" A composição do executivo do PCE, reunido no princípio de


Maio de 1937, é dada por J. Gorkin na sua obra já c1tada (ob. cir, p. 82).
O autor mdica que dois dos mais importantes representantes do PCE ten-
tam opor-se à decisão tomada de fazer cair o governo Caballero. Um
destes dingentes não é outro senão José D1az, secretário-geral do PCE.
O 'egundo é Jesus Hernandez, director do órgão central do PCE, Mundo
Obrem, e ministro da Educação. Mostra esta resistência que a direcção
do PCE (tal como a base deste) se encontra longe de estar completamente
alinhada com a política do Kremlin, mas não tem condições para lhe
resistir. Jesus Hernandez (que f01 encarregado de pronunciar um violento
discurso contra Caballero) revelou, mais tarde, essa conspiração e deu a
conhecer que sabia das condições nas quais o dirigente do POUM, André
Nin, foi torturado e assassinado (cf. Jesus Hernandez, La Grande Trahison,
Pans, Fasquelle, 1953). Quanto a José Diaz, que se encontrava na URSS
durante a Segunda Guerra Mundial e tentou defender os refugiados espa-
nhóis contra os maus tratos que lhe eram infligidos, morre em Tíflis ao
<<cair» da sua varanda.
" Era assim que, em E;panha, se chamavam as prisões <<geridas»
pelos agentes soviéticos (sabe-se que a Tchéka foi a primeira polícia
política criada pelos bolcheviques após terem tomado o poder).

253
CHARLES BETTELHEIM

A acção dos agentes da URSS enfraquece a resistência ao fas-


cismo que é também minada pelas inúmeras manobras dos parti-
dários da URSS presentes no aparelho militar.
Duas destas manobras são particularmente significativas da
vontade do Kremlin de fazer durar a guerra e evitar a vitória.
A primeira situa-se no princípio de Julho de 1937. Neste momento,
o exército republicano preparara uma grande ofensiva em direcção
à Estremadura e à Andaluzia. As condições são favoráveis; Mérida
e Badajoz podem ser ocupadas, porque as tropas fascistas haviam
sido repelidas face ao Jarama e às planícies de Guadalajara.
A ofensiva republicana vitoriosa pode cortar os exércitos inimigos
do Norte e do Sul e quebrar as suas comunicações vitais com
Portugal, Marrocos e a Itália. O Conselho Superior de Guerra dá
o seu acordo à ofensiva. No entanto, no momento em que esta
deve ser desencadeada, o general Koulik, chefe dos técnicos mili-
tares soviéticos, recebe contra-ordem de Moscovo e impõe uma
«solução alternativa». Trata-se da ofensiva de Brunete a Nava1car-
nero que ocorre a 6 de Julho. Esta operação, considerada insen-
sata pela maior parte dos comandos espanhóis, conduz a um desas-
tre em material e em homens. Constitui verdadeira matança que
enfraquece seriamente o exército republicano.
A segunda manobra significativa ocorre numa conjuntura
muito menos favorável, em Dezembro de 1938, quando os fran-
quistas preparam a sua ofensiva contra a Catalunha. O estado-
-maior republicano prepara um plano contra a posição chave
de Motril que deve obrigar o inimigo a deslocar para o sul grande
parte das suas reservas da Andaluzia e da Estremadura. O ataque
deve verificar-se a 11 de Dezembro. Nesse mesmo dia, o general
Miaja -que conhecia o plano desde 20 de Novembro e o havia
aprovado- suspende brutalmente a ordem de ataque, aceitando
a opinião dos conselheiros soviéticos. O inimigo tem, assim, possi-
bilidades de iniciar a sua ofensiva contra a Catalunha.
Deve lembrar-se que esta segunda «manobra» se situa num
momento em que os dirigentes soviéticos consideram que, para
eles, a «operação espanhola» terminou. Suspendem os envios de
armas e deixam consumar-se uma derrota que a sua «ajuda» não
fez senão preparar ao mesmo tempo que a retardava 41 • Os ver-
dadeiros objectivos da sua diplomacia não tardarão a aparecer
claramente.

•, Digamos, de passagem, que o papel real da URSS em Espanha,


sendo evidentemente negado pela histonografia soviética, não deixou de
ser evocado por alguns historiadores russos nos anos de «denúncia do
culto da personalidade», cuja responsabilidade é imputada a Estaline.

254
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

SECÇÃO IV

Os objectivos da diplomacia soviética

Os objectivos da diplomacia soviética entre 1934 e 1939 não


podem considerar-se como tendo sido alterados. Num primeiro
tempo, esta diplomacia esforça-se por melhorar as relações da
URSS com as democracias ocidentais. Num segundo tempo, esfor-
ça-se por permanecer «a igual distância» dos Ocidentais e da
Alemanha, embora preparando uma aproximação com esta última
que, num terceiro tempo, se concretizará numa verdadeira aliança.
O segundo tempo começa no fim de 1937. É possível verificá-lo
lendo publicações russas e documentos soviéticos, como muito jus-
tamente observa R. Girault 42 • Pode também verificar-se exami-
nando diversos factos ligados à guerra de Espanha. Esta alteração
de objectivos da diplomacia soviética em 1937 está relacionada
com as perturbações interiores que então ocorrem na URSS, com
o endurecimento da ditadura pessoal de Estaline; não é causada,
corno frequentemente se diz, pela capitulação franco-inglesa de
Munique, visto que esta se produz em Setembro de 1938.

1. O lugar da guerra de Espanha na política Internacional da URSS

O que foi dito no decurso das páginas precedent,es mostra que,


num primeiro tempo, a guerra de Espanha e o «auxíliO>} prestado
à República Espanhola constituem uma «carta>> utilizada pela
URSS para negociar com a França e a Inglaterra. Num segundo
tempo, as posições soviéticas em Espanha tornam-se num meio
para desenvolver uma política de neutralidade e, depois, para
negociar o pacto germano-soviético. No princípio de 1933, Kri-
vitsky podia evidenciar este aspecto da política soviética em
Espanha; anunciava ele então, primeiro que ninguém, com quase

Assim, por ocasião de uma discussão do livro de A. Nekritch, 22 de Junho


de 194/ (publicado em francês sob o título L'Armée rouge assassinée,
Paris, Grasset, 1968) -discussão que decorre em Moscovo a 16 de Feve-
reiro de 1956-, o historiador soviético Snegov faz alusão à política
exterior de Estaline e declara que este «traiu a República Espanhola, a
Polónia e os comunistas de todos os países». A réplica dada a Snegov
esforça-se por desmentir as suas afirmações mas não diz palavra do caso
de Espanha (cf. a tradução francesa do livro de Nekritch, p. 244, citado
por F. Claudin, ob. cit., p. 283).
•• R. Girault. «Pourquoi Staline a signé !e pacte germano-soviétique»,
em L'Histoire, Julho-Agosto de 1979, p. 112.

255
CHARLES BETTELHEIM

quatro meses de antecipação, a próxima assinatura do pacto


germano-soviético 4 ''.
Para atingir os seus objectivos internacionais, a URSS apoia
os comunistas espanhóis e instala em Espanha numerosos agentes,
a fim de que uns e outros controlem praticamente o essencial do
exército e da polícia da República Espanhola e, além disso, dis-
ponham de aparelhos repressivos autónomos. Simultaneamente, a
guerra de Espanha é utilizada pela URSS para atingir outros
objectivos. É assim que ela se serve das posições conquistadas
no interior da República Espanhola para «liquidar» o maior
número possível de anarquistas, anarco-sindicalistas, trotskistas
e partidários do POUM. Os dirigentes soviéticos e os seus agentes
esforçam-se por apresentar aqueles que pretendem liquidar como
«contra-revolucionários». A sua preocupação é a de se desem-
baraça~em de elementos que são, ao mesmo tempo, particular-
mente combativos e especialmente vigilantes relativamente às
manobras ce traição da política soviética, como mostra a frase
de Sloutski: «Embora sejam so!J.acios antifascista~. c:ic p;.:ss:1s
inimigos 11 .>> Os dirigentes estalinistas desejariam, além disso,
«montar>> em Espanha processos e extorquir «confissões públicas>>
aos seus «inimigos», a fim de confirmar a «veracidade» dos pro-
ces::os de Moscovo. A situação política da Espanha e a coragem
dos militantes vítimas de acusações totalmente fabricadas fazem
soçobrar este projecto.

2. As iniciativas diplomáticas soviéticas e a situação


internacional na Europa

Se 1937 é um ano de viragem diplomática, nem por isso deixa


de acontecer que, entre 1934 e 1939, diyersas iniciativas sovié-
ticas testemunhem que a direcção estalinista da URSS nunca
abandonou a esperança de restaurar a cooperação germano-
-soviética (anteriormente simbolizada por Rapallo), até mesmo
durante os poucos anos em que proclama a sua dedicação à SDN
e aos seus acordos celebrados com a França.
Estas aberturas políticas não têm seguimento imediato (devido
à atitude negativa de Hitler); preparam, no entanto, negociações

43
Cf. o artigo de Krivitsky, «Stalin's Hand in Spain», Saturday Even-
ing Post, 15 de Abril de 1939. No seu livro, I was a Staline's Agent,
Krivitsky mostra que a presença da URSS em Espanha era elemento de
uma manobra destinada a alcançar um dos objectivos essenciais da polí-
tica soviética: celebrar um pacto com a Alemanha (cf. ob. cit., pp. 98-99).
.. Cf. o livro de Krivitsky, ob. cit., p. 120.

256
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

ulteriores, por exemplo as que se iniciam a 24 de Dezembro de


1936 entre !Kandelaki e Schacht, presidente da Reichsbank e
ministro da Economia. Abrem, assim, a via à elaboração de novos
acordos económicos, entre os quais aquele que é assinado em
Março de 1938. Pouco tempo após a assinatura deste acordo,
Moscovo chama o seu embaixador em Berlim, Jacob Suritz, que
estava mal visto pelos nazis anti-semitas. iÉ substituído por Alexis
Mirekalov. Ê este recebido, a 4 de Julho de 1938, por Hitler que
lhe declara:
Tomei conhecimento com satisfação da declaração pela
qual ireis dirigir os vossos esforços no sentido do estabe-
lecimento de relações normais entre a Alemanha e a União
Soviética. Estou de acordo convosco para considerar
que isso corresponde aos interesses dos nossos dois países
e servirá a causa da paz mundial ••.
Prepara esta declaração novos desenvolvimentos e faz eco à
vontade da URSS, cada vez mais nitidamente expressa pelas
publicações soviéticas a partir de 1937, de se afastar da linha
de aproximação com os Ocidentais.
Na realidade, esta nova linha constitui um reforço de orien-
tação antiga e fundamental da politica soviética. Explica-se este
reforço pela situação que, doravante, reina na URSS, após os dois
primeiros «grandes processos» e a liquidação da antiga direcção
do Exército Vermelho e quando se prepara o processo de
Boukharine. É, em seguida, favorecido pelos acontecimentos
internacionais que tornam duvidosa a vontade dos «Ocidentais»
de se oporem ao expansionismo alemão para Leste. Responde
também às mudanças que se operam entre dirigentes nazis rela-
tivamente à ordem em obediência à qual estão decididos a con-
duzir as suas operações de expansão militar. Estão tais mudanças
ligadas à ausência de resistência dos «Ocidentais» aos desafios que
lhes lança a Alemanha nazi. Lembremos alguns acontecimentos.
Em Março de 1936, a Renânia - que devia permanecer des-
militarizada- é reocupada pelo exército alemão (aliás, à data
ainda fraco), sem provocar mais do que protestos puramente for-
mais; arruinado desta forma, o sistema de alianças que a França
havia celebrado com Varsóvia, Bucareste e Belgrado perde grande
parte da sua credibilidade. Apenas Praga continua a acreditar
que a Checoslováquia receberia apoio da França se fosse atacada

•• Cf. «Arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Reich»,


Berlim, 1936, citado por J. Martin, ob. cit., pp. 78-79.

Est. Doe. 220-17 257


CHARLES BETTELHEIM

pela Alemanha. A credibilidade numa resistência ocidental ao


expansionismo alemão é, de novo, atingida seriamente quando, em
Março de 1938, a Áustria é anexada pela Alemanha nazi (que,
dois anos antes, havia «reconhecido» oficialmente a sua indepen-
dência) e os «Ocidentais» se limitam a protestos puramente for-
mais. No Outono de 1938, a Alemanha nazi anexa uma parte da
Checoslováquia: os Sudetas, onde se encontra uma minoria de
língua alemã. Ainda desta vez, a França, aliada daquele país, não
se mexe mas, em conjunto com a Inglaterra, «reconhece» esta ane-
xação ao efectuar com a Alemanha os «acordos» de Munique (Se-
tembro de 1938). Quando Ribbentrop (o ministro dos Negócios
Estrangeiros do Reich) vem a Paris, em Dezembro, as declarações
feitas por Georges Bonnet, muito ambíguas, são interpretadas
como dando mais ou menos carta branca a Hitler no Leste. É por
isso que, a 15 de Março de 1939, a Alemanha ocupa a Boémia e
a Morávia, cria um «Protectorado» na Eslováquia e cede à Hun-
gria a Ucrânia carpática (que fazia parte da Checoslováquia).
Amadurece, assim, uma situação que persuade os dirigentes
alemães da incapacidade de resistência dos «Ocidentais» e con-
firma aos dirigentes soviéticos que lhes está aberta a possibilidade
de se entenderem com a Alemanha nazi com vista a satisfazer
gs seus próprios desígnios expansionistas.
Em Março de 1939, a situação está madura para se preparar
o pacto germano-soviético.

3. A caminho do pacto germano-soviético

A Alemanha e a URSS trocam, então, uma série de «mensa-


gens» que preludiam as negociações abertas e oficiais. Aliás, a
preparação pela URSS destas negociações não a impede -bem
pelo contrário - de prosseguir também discussões com o Oeste;
com efeito, quanto mais estas parecerem progredir, maior poderá
ser o preço que a URSS tentará obrigar a Alemanha a pagar para
conseguir um entendimento.
Uma das primeiras «mensagens» abertamente emitidas pela
URSS encontra-se no discurso que Estaline pronuncia, a 10 de
Março de 1939, perante o XVIII Congresso do partido ••.
Neste discurso, Estaline enumera todos os conflitos e todas
as invasões que ocorreram desde há quatro anos e declara:
«A nova guerra imperialista tornou-se um facto.» Em seguida,
ao examinar os interesses lesados pelas agressões alemãs (mas
também italiana, na Etiópia, e japonesa, na China), declara que
" Cf. Estaline, Oeuvres, t. 14, p. 232 e segs.

258
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS- IV

tais interesses não são os da URSS mas, em primeiro lugar, «OS


da Inglaterra, da França, dos Estados Unidos [que fazem] con-
cessão após concessão aos agressores». Estaline tira a conclusão
de que estes países e, em primeiro lugar, «a Inglaterra e a França,
renunciaram à política de segurança colectiva». Não se poderia
dizer melhor que a URSS já não acredita nos acordos de assis-
tência mútua com estes países, que, para ela, se tomaram <<neu-
tralistas».
Aos olhos de Estaline, este neutralismo, esta «não interven-
çãO>> visa encorajar a Alemanha e o Japão a atacarem a URSS
e a China 4 '.
Mas, acrescenta Estaline, os partidários ocidentais desta polí-
tica foram «cruelmente decepcionados», já que, em vez de avan-
çarem mais para Leste, contra a União Soviética, «eles [os ale-
mães] voltaram-se para Oeste e reclamam colónias».
Esta parte do relatório termina com uma advertância explícita:
«0 grande e perigoso jogo político, começado pelos partidários
da política de não intervenção, poderia muito bem acabar por
um sério fracasso destes 48 .»
Alusão, em seguida, feita à natureza deste fracasso, pelo
menos em termos velados, quando Estaline declara que a URSS
está pronta a efectuar acordos com todos os países, desde o mo-
mento em que estes não procurem atingir os interesses da URSS.
Precisa que a URSS não permitirá aos «provocadores da guerra»
(o que, neste contexto, visa os países ocidentais) «levar os outros
a tirar as castanhas do lume», arrastando «o nosso país para a
guerra» 49 •
Esta «mensagem» é bem recebida por Hitler e reforça as posi-
ções da Ostpolitik na Alemanha. Uma das «respostas alemãs» é
a seguinte: em vez de anexar a Ucrânia carpática (que teria
podido ser utilizada pela Alemanha como pretexto para reivindicar
a anexação pela Ucrânia soviética), o Reich «cede» este território
à Hungria.
No período que segue o discurso de Estaline, os acontecimentos
aceleram-se "0 ; a 22 de Março, a Alemanha anexa o porto lituano
" Cf. Estaline, Oeuvres, t. 14, pp. 237 a 240.
" Ibid., pp. 241-242.
•• 1bid., p. 244.
" Sobre os acontecimentos deste período e as diversas negociações
internacionais em que a URSS, então, participar, ver designadamente o
artigo de René Girault «Pourquoi Stahne a signé !e pacte germano-
-soviético», pp. 105 e segs.; E. H. Carr, German Soviet Relations between
the two world Wars, Baltimore, 1951; Adam B. Ulam, Expansion and
Coexistence; the History o/ Soviet Foreign Po/icy, 1917-1967, Londres,
1968.

259
CHARLES BETTELHEIM

de Memel; a 27 de Março, a Espanha adere ao «pacto antiko-


mintern» que havia sido anteriormente celebrado entre a Ale-
manha e a Itália; no fim de Março, a Alemanha apresenta
oficialmente à Polónia a questão de Dantzig.
Neste momento, o curso dos acontecimentos ainda pode pare-
cer suspenso. Uma decisão anglo-francesa contribui para orientar
mais nitidamente aquele curso. Trata-se da «garantia incondicio-
nal>> dada pelo Reino Unido e pela França à Polónia, a 30 de
Março de 1939. Esta «garantia» -que nada permite materializar,
já que os dois «garantes» são incapazes de socorrer directamente
a Polónia- é interpretada pela Alemanha e pela URSS como
dirigida contra as suas ambições. As reivindicações soviéticas
nunca foram oficialmente proclamadas, mas foram indicadas
muitas vezes por ocasião de conversações diplomáticas. Para os
dirigentes soviéticos, a «garantia» anglo-francesa dada à Polónia
equivale a uma recusa de tomar em consideração as suas reivin-
dicações. A partir daí, as coisas andam muito depressa.
A 17 de Abril de 1939, Mirekalov, embaixador da URSS em
Berlim, tem uma longa entrevista com Von Weizsacker, secre-
tário de Estado dos Negócios Estrangeiros, no decorrer da qual
a URSS faz novas aberturas. A 28 de Abril, Hitler pronuncia
um importante discurso no Reichstag em que já não ataca a
URSS como fazia anteriormente, antes concentra as suas críticas
sobre a Inglaterra e o pacto celebrado por esta com a Polónia"'.
A 3 de Maio de 1939, a URSS emite nova «mensagem»:
Litvinov -que era judeu e havia sido o artífice da política sovié-
tica de «segurança colectiva»- é afastado das suas funções.
É substituído por Molotov. Todos aqueles que seguem de perto
os negócios soviéticos vêem, nessa remodelação do governo sovié-
tico, a preparação de uma viragem clara da política exterior da
URSS.
A partir da Primavera de 1939, as negociações que prosseguem
entre a URSS, a Inglaterra e a França decorrem numa atmosfera
cada vez mais irreal. Corno lembra Renê Girault, em Abril de
1939, «os Anglo-Franceses propõem uma declaração comum dos
três governos que fosse urna espécie de garantia dada, cada qual
·por si, aos Estados do Leste europeu [ ... ] ameaçados de agres-
são» 52 • Na realidade, ninguém negoceia verdadeiramente. O go-
verno britânico esforça-se sobretudo por «impedir os Soviéticos

" Cf Martin, ob. cit., p. 81.


" Cf. art. cit. de R. Girault, p. 108.

260
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS- IV

de caminhar para os Alemães», ao passo que a escolha dos Sovié-


ticos é a de não negociar realmente com os «Ocidentais»"'.
Do lado alemão, os textos de que hoje se dispõe mostram que
Hitler se deixou persuadir pelos partidários da Ostpolitik: encara
um acordo com os Soviéticos. Efectuam-se sondagens dirigidas
à URSS. Não dão resultados imediatos, porque os dirigentes
soviéticos querem visivelmente conseguir um preço elevado (sob
forma de expansão territorial) em contrapartida de um acordo
com o Reich.
A diplomacia soviética deixa, agora, elevar as apostas. O gO'-
verno francês, que não renunciou a um acordo com a URSS,
compreende que assim é, está pronto a pagar um certo preço
(nas costas dos outros Estados): uma nota de Daladier a Georges
Bonnet sugere que seria necessário oferecer aos Soviéticos
«satisfações» no que se refere aos países bálticos 04 •
Como estas negociações diplomáticas não chegam a uma con-
clusão, os Ocidentais passam às negociações militares. Começam
estas em Moscovo a 12 de Agosto e forçam a Alemanha nazi
a realizar novas diligências. A 14 de Agosto, Ribbentrop propõe-se
ir a Moscovo para celebrar um verdadeiro acordo político. A 15,
os Soviéticos pedem precisões. A 19, os Alemães respondem:
estão preparados para pedir ao Japão que não volte a atacar a
URSS e a delimitar com a URSS esferas de interesse na Europa
oriental. Nessa mesma noite, os Soviéticos aceitam a vinda de
Ribbentrop a Moscovo «para assinar um pacto de não agressão
que foi elaborado pelo lado soviético visto que Moscovo o trans-
mite nessa mesma ocasião a Berlim» 55 •
Ainda a 19 de Agosto, é assinado um acordo comercial entre
a URSS e a Alemanha, acordo que estava a ser negociado desde
o fim de 1938. As suas cláusulas são muito vantajosas para a
URSS. Comportam um crédito de 200 milhões de marcos, reem-
bolsável somente sete anos e meio mais tarde. A taxa de juro é
excepcionalmente fraca. A imprensa soviética anuncia que este
tratado «pode revelar-se uma etapa importante no sentido da
melhoria das nossas relações económicas mas também políticas
com a Alemanha» ••.
Doravante, os jogos estão feitos. Ribbentrop chega a Moscovo.
A 23 de Agosto de 1939, é assinado entre a Alemanha e a URSS
um pacto de não agressão que comporta um protocolo secreto.

" Cf. art. cit. de R Girault, p 108.


" lbid., p. 108 .
., Ibid., p. 110 (sublinhado no texto).
~ A Werth, La Russie en guerre, Paris, Stock, 1965, t. 1, p. 54.

261
CHARLES BETTELHEIM

Este protocolo transforma o pacto numa verdadeira aliança cele-


brada entre parceiros que entre si partilham territórios estran-
geiros. A viragem da política soviética está consumada. As dei~
gações militares anglo-francesas nada mais têm a fazer senão
regressar aos seus países. No princípio de Setembro, o exército
alemão invade a Polónia. A Inglaterra e a França declaram
guerra à Alemanha. A Segunda Guerra Mundial começou, mas a
URSS permanece momentaneamente fora do conflito.

!262
CAPíTULO III

OS ANOS DO PACTO GERMANO-SOVffiTI(jO:


AGOSTO DE 1939-JUNHO DE 1941

O conteúdo do pacto assinado a 23 de Agosto de 1939, e sobre-


tudo o das suas cláusulas secretas, e depois o do pacto assinado
a 28 de Setembro de 1939, por ocasião da partilha da Polónia
(e que constitui um pacto de amizade germano-soviético) são
altamente significativos: iluminam as concepções que os dirigentes
da URSS fazem dos seus interesses e do seu papel na cena mundial.
A parte publicada do pacto assinado a 23 de Agosto de 1939
(e que entra imediatamente em vigor) apresenta-se como sendo
um vulgar pacto de não agressão. No entanto, falta-lhe uma
cláusula geralmente presente nos outros pactos do mesmo género:
a que anula a obrigação de não agressão no caso em que um dos
signatários atacar um terceiro país. São as cláusulas secretas do
pacto que, praticamente, fazem da Alemanha e da URSS dois
aliados na partilha dos despojos da derrota de outras nações,
entendidas entre si quanto à repartição das esferas de influência
e prevendo futuras consultas.
O protocolo secreto do pacto de 23 de Agosto prepara a par-
tilha da Polónia entre a Alemanha e a URSS, embora deixando
em suspenso a manutenção de um resto do Estado polaco. Coloca
a Finlândia, a Estónia e a Letónia na zona de influência soviética,
assim como o Sul da Bessarábia, então romeno. Nas semanas que
se seguirão, serão operados «ajustamentos» nas disposições deste
protocolo, que satisfazem sobretudo as ambições territoriais da
URSS'.

1
Cf. Jacques Martin, ob. cit., pp. 87 e segs., que cita o protocolo
secreto de 23 de Agosto e apresenta extractos dos ulteriores acordos
germano-soviéticos que também colocam a Lituânia na esfera de influência
soviética.

263
CHARLES BETTELHEIM

Por outro lado, a URSS compromete-se a entregar à Alemanha


uma parte dos antifascistas e certos comunistas estrangeiros que
estão no seu território. Em aplicação deste compromisso, bastantes
centenas de pessoas, a maior parte das quais já internadas nas
prisões e nos campos soviéticos, são entregues à Gestapo durante
o Inverno de 1939-1940'.
De um só golpe, a URSS renuncia ao papel em que se exibia
de «campeã da paz», de defensora da independência das nações,
de «participante na luta antifascista». Retoma a tradição czarista.
Prioridade absoluta é dada aos interesses do Estado soviético que
procura ampliar ao máximo a sua esfera de influência e os terri-
tórios sobre os quais exerce as suas dominação e exploração.

SECÇÃO I

o entendimento com IDtler e a expansão


territorial da URSS no Outono de 1939

O primeiro país em que as tropas soviéticas penetram após a


assinatura do pacto germano-soviético- e em conformidade com
este- é a Polónia. Depois de a Wehrmacht ter invadido a Polónia
e ocupado grande parte do seu território, a Alemanha convida
a URSS a tomar a parte que lhe cabe mas esta demora alguns
dias, como se quisesse salvar as aparências. A 17 de Setembro,
quando a Wehrmacht penetra nos territórios atribuídos à URSS
pelo pacto, o Exército Vermelho invade também a Polónia ofi-
cialmente. A começo, esta invasão é apresentada não como o
resultado do pacto germano-soviético mas como uma consequência
da «impotência interna» do Estado polaco. Tratava-se, segundo
o governo soviético, de vir em auxílio dos «irmãos de sangue»
ucranianos e bielo-russos. Como, porém, esta versão dos factos
não satisfazia a Alemanha (pois que implicava a ideia de a URSS
ter agido por sua própria conta), um comunicado comum sovié-
tico-alemão de 19 de Setembro apresenta as coisas de maneira
diferente: declara que as tropas alemãs e soviéticas receberam por

• Entre aqueles que são entregues à Gestapo figuram militantes


condenados à morte na Alemanha, como o jovem operário alemão ou
o jornalista húngaro Bloch de que fala Margarete Bubber-Neuman no
seu livro La Révolution mondial, ob. cit .. p. 397. Ela própria passa dos
campos soviéticos para os campos hitlerianos.

164
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

missão «restaurar a paz e a ordem perturbadas pela desintegração


do Estado polaco» •.
Em consequência destas operações militares, a população da
URSS aumenta cerca de 12 milhões, entre os quais 7 milhões
de ucranianos e bielo--russos; como a grande maioria dos polacos
se encontra sob ocupação alemã, apenas 1 milhão é incorporado
na URSS. Nos meses que se seguem, centenas de milhares de
habitantes dos territórios anexados são deportados para Leste,
como elementos «hostis» e <<desleais». Quanto aos soldados polacos
aprisionados pelos Soviéticos, a maioria desaparece nos campos
de internamento ou, no que se refere sobretudo aos oficiais, é
massacrada •.
A 28 de Setembro de 1939, Ribbentrop volta a Moscovo para
assinar o pacto de amizade germano--soviético e um acordo fron-
teiriço entre os dois países. Em seguimento deste acordo, é publi-
cado um comunicado comum declarando que a questão da Polónia
está «resolvida de maneira definitiva». Os territórios da Polónia
são totalmente repartidos entre os dois signatários, os quais pro--
cedem, assim, à quarta partilha da Polónia. O comunicado
publicado por ocasião deste pacto declara que, se a França e a
Inglaterra não pararem as hostilidades, «a Alemanha [ ... ] e a
União Soviética consultar-se-ão sobre as medidas que será neces-
sário tomar» •.
A 31 de Outubro, Molotov pronuncia a «oração fúnebre» da
Polónia ao declarar:

Um golpe rápido desferido na Polónia, primeiro pelo


exército alemão e, depois, pelo Exército Vermelho, e nada
subsistiu do hodiendo aborto de Versalhes 6 •

a. A. Werth, ob. cit,, pp. 62-63.


• Em 230 000 prisioneiros, somente 82 000 sobrevivem e aderem
ulteriormente, após a agressão alemã contra a URSS, quer ao exército
Anders (formado pelo governo exilado em Londres), quer ao exército
de Berlim (formado na URSS por iniciativa soviética}. Os primeiros
orçam por 75 000 e os segundos por 7000. Consequentemente, os militares
polacos mortos na deportação ou executados somam 148 000, entre os
quais 12 000 a 15 000 oficiais. Os cadáveres de mais de 4000 destes últimos
foram encontrados na fossa de Katyn, onde haviam sido abatidos na
Primavera de 1940 (cf. o artigo de Alexandra Kwiatowska-Vmtteau,
«Katyn: la négation d'un massacre», em L'Histoire, Junho de 1981,
pp. 6 e segs.: a autoria cita numerosas fonte e estudos).
• A. Werth, ob. cit., p. 64.
' New York Times, 1 de Novembro de 1939.

265
CHARLES BETTELHEIM

Na movimentação causada pela ocupação da Polónia, e em


conformidade com os acordos celebrados com a Alemanha, a
URSS volta-se para os países bálticos. O governo soviético impõe
à Estónia um «tratado de assistência mútua» em virtude do qual
este pais «concede» bases militares à URSS. Por este tratado,
assinado a 28 de Setembro de 1939, a URSS compromete-se a
respeitar a soberania estoniana. Pouco depois, a Letónia é forçada
a assinar um tratado similar. Chega a vez da Lituânia, a qual,
porém, consegue que Vilno (a sua capital histórica, anexada pela
Polónia após a Primeira Guerra Mundial) lhe seja «restituída».
Estes tratados colocam os três países bálticos em estreita depen-
dência da União Soviética e preparam a sua ulterior anexação;
todavia, de momento, estes países conservam a sua soberania.

SECÇÃO II

O pacto, a diplomacia óiDviética


e os partidos comunistas

O abandono dos princípios que pareciam guiar a diplomacia


soviética até à celebração do pacto efectua-se de maneira brutal.
O «antifascismo» anteriormente exibido, bem como o «respeito
pela soberania das nações» e a condenação do recurso à força
para resolver os problemas internacionais, são lançados às urtigas,
ou são interpretados de tal modo que perdem todo o sentido.
De um dia para o outro, os dirigentes da URSS e a sua imprensa
renovam todo o seu discurso.
A Pravda de 24 de Agosto de 1939 apresenta o pacto assi-
nado na véspera como sendo «coerente com a política da União
Soviética» que é «partidária da paz e do desenvolvimento das
relações comerciais com todos os países». No entanto, a imprensa
soviética nada diz a respeito do brinde formulado por Estaline,
na recepção a Ribbentrop, brinde que declara: «Visto que o povo
alemão ama tanto o seu Führen> (brinde que equivale a supor
ou que os comunistas, os socialistas e os liberais «amam o Führer»,
ou que não fazem parte do «povo alemão»!).
A 31 de Agosto, Molotov faz uma comunicação sobre o pacto
ao Soviete Supremo. Insiste na ideia de uma coexistência pacifica
duradoura com a Alemanha nazi e exprime a opinião de que
o acordo com a Alemanha constitui uma viragem. Declara ele:
!266
• - ..t.-

AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

O dia 23 de Agosto deve ser considerado como data de


grande importância histórica: é uma viragem na história
da Europa e não somente da Europa [ ... ]. Até estes últi-
mos tempos, no plano da politica estrangeira, a União
Soviética e a Alemanha eram inimigas. Esta situação
mudou, e deixámos de ser inimigos [ ... ]. A história mos-
trou que, entre a Rússia e a Alemanha, a inimizade e a
guerra nunca haviam trazido nada de bom.
Falando da França e da Inglaterra e dirigindo-se particular-
mente aos «chefes socialistas», que acusa de terem sido especial-
mente violentos na denúncia do pacto, acrescenta:
Se estes senhores têm um desejo irresistível de entrar
em guerra, deixemo-los partir sozinhos, sem a União Sovié-
tica. Veremos que espécie de guerreiros mostrarão ser.
É a seguir a esta declaração que a Alemanha invade a Polónia,
isto é, «entra em guerra». A Pravda de 2 de Setembro publica
em três colunas e na primeira página o discurso de Hitler anun-
ciando a invasão da Polónia, discurso em que Hitler declara:
Posso tomar à minha conta todas as palavras pronun-
ciadas pelo comissário do povo Molotov no seu discurso
no Soviete Supremo.
A imprensa soviética anuncia que a Inglaterra declarou guerra
à Alemanha, mas reserva pouco espaço às informações provindas
de França e Inglaterra.
A 29 de Setembro, a Pravda publica o comunicado comum
que dá seguimento à as.~inatura do novo pacto de amizade
germano-soviético e no qual Molotov e Ribbentrop declaram que,
tendo a questão polaca s1do «resolvida», é «do interesse de todas
as nações» que cesse o conflito entre a Alemanha, de um lado,
e a Grã-Bretanha e a França, do outro. O comunicado precisa
que os signatários se esforçarão por que a paz seja restabelecida
e acrescenta:
Se, todavia, os esforços dos dois governos ficarem sem
efeito, a Grã-Bretanha e a França assumirão necessaria-
mente a responsabilidade pelo prosseguimento do conflito.
Desta forma, evoca-se um tema novo: o da inversão dos papéis
(que implica mudança no significado das palavras). A Alemanha
267
CHARLES BETTELHEIM

tornou-se uma potência «pacífica>> face à Inglaterra e à França


«fautoras» de guerra. Este tema é retomado e desenvolvido no
discurso pronunciado por Molotov a 31 de Outubro de 1939
perante o Soviete Supremo. Molotov qualifica os países ocidentais
de agressores e denuncia a ideia de uma guerra que seria travada
para a «destruição do hitlerismo». Tal guerra, diz ele, seria uma
«guerra ideológica», «uma espécie de guerra religiosa da Idade
Média».
O discurso desenvolve, também, a seguinte ideia:
Nestes últimos meses, noções tais como as de agressão
e de agressor receberam conteúdo novo. A Alemanha
acha-se na situação de um Estado que aspira à paz, ao
passo que a França e a Inglaterra são a favor da con-
tinuação da guerra [daqui esta conclusão:] Os papéis alte-
ram-se como estais a ver [ ... ].
Molotov apresenta, portanto, a Alemanha nazi como tendo
intenções «pacíficas»; aliás, uma das «justificações» do pacto de
amizade é que permite à URSS reforçar as suas relações com a
Alemanha e dar «um apoio político [ ...] às suas aspirações de
paz» 7.
É de notar que todas estas afirmações serão «esquecidas» após
a agressão alemã contra a URSS. A «revisão» irá mesmo tão longe
que Estaline afirmará mais tarde que, logo desde 1939, a guerra
assumiu carácter antifascista. Assim, no seu discurso «eleitoral»
de 9 de Fevereiro, declara:
A Segunda Guerra Mundial [...] tomou desde o início
o carácter de uma luta antifascista, libertadora, uma de
cujas tarefas era o estabelecimento das liberdades demo-
cráticas. A entrada da União Soviética em guerra contra
os Estados do Eixo não podia senão reforçar [ ...] o carác-
ter antifascista e libertador da Segunda Guerra Mundial".
Não obstante, em 1940, o pacto de amizade assinado em
Setembro é o ponto de partida de um discurso muito diferente,
de uma nova apresentação da questão internacional. É também
o ponto de partida de uma nova extensão dos acordos comerciais
entre a Alemanha e a URSS; esta última vê-se obrigada a aumen-
tar consideravelmente os seus fornecimentos ao Reich, a fim de
7
Cf. Claudin, ob. cit., t. 1, p 348, e A Werth, ob. cit., t. 1, p. 66.
' Cf. Estaline, Oeuvres, t. 16, Paris, NBE, 1975, pp. 188-189.

268
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

reforçar a economia de guerra deste e de o ajudar a vencer as


dificuldades originadas pelo bloqueio comercial franco-inglês.
O tom da imprensa soviética para com a Alemanha e das
mensagens enviadas pelos dirigentes da URSS aos do Reich são
particularmente calorosos. Assim, a seguir ao seu sexagésimo
aniversário, a propósito do qual recebeu mensagens de Hitler e
de Ribbentrop, Estaline envia um telegrama ao Ministério dos
Negócios Estrangeiros de Hitler no qual declara:
A amizade entre os povos da União Soviética e da
Alemanha, cimentada pelo sangue, tem todas as razões
para permanecer sólida e duradoura •.
O tom continua a ser o mesmo até à ofensiva vitoriosa do
exército alemão em França, que suscita uma inquietação de que
se encontra um eco fraco na imprensa soviética. Não obstante,
a Alemanha continua a ser apresentada como potência pacífica,
face aos fautores de guerra. A maior parte dos discursos de Hitler
são reproduzidos pelos jornais soviéticos. Esta atitude é parti-
cularmente nítida no primeiro semestre de 1940 durante o qual
se realiza um novo acordo económico com a Alemanha (a 11 de
Fevereiro de 1940) que aumenta consideravelmente os forneci-
mentos de matérias-primas soviéticas ao Reich.
Em 1940 e até ao ataque alemão contra a URSS, os actos
de agressão da Alemanha não são apresentados como tais; por
exemplo, a ocupação da Dinamarca e da Noruega em Abril de
1940, a invasão da Bélgica e da Holanda em Maio de 1940, e
depois, no fim de 1940 e princípio de 1941, as agressões alemãs
e italianas nos Balcãs.
A propaganda soviética nada diz que possa «chocar» os diri-
gentes nazis. O governo e a censura velam para que nada seja
impresso que ofenda a Alemanha ou a Itália. A este propósito,
Ernst Fischer, que representava o PC austríaco no aparelho da IC,
cita um facto significativo: no princípio de 1939, havia acabado
de redigir um pequeno livro intitulado A Teoria Fascista da Raça
que, entre outros, continha um capítulo sobre «A questão ju-
daica», livro este que devia aparecer a público no momento da
assinatura do pacto germano-soviético. A autorização de publica-
ção é-lhe então retirada. O Glavlit (o departamento da censura)
pede-lhe que suprima aquele capítulo. Ele hesita durante muito
tempo e, finalmente, aceita; o seu livro deve aparecer sem o refe-

' A. Werth, ob. cit., p. 73.

269
CHARLES BETTELHEIM

rido capítulo e sob o título A Teoria Reaccionária da Raça. No


entanto, as coisas arrastam-se por tanto tempo que, no momento
em que o livro deve sair, o exército alemão já invadiu a URSS.
O Glavlit volta, então, a intervir para exigir que seja suprimido um
outro capítulo (que trata da questão negra nos Estados Unidos)
e que seja reintroduzido o capítulo sobre a questão judaica. Final-
mente, é sob esta forma que o livro sai sob o título A Teoria Fas-
cista da Raça'". Mostra este exemplo como o govemo soviético
estava preocupado -de 1939 a Junho de 1941- com a ideia de
não desagradar ao governo nazi. Uma circular havia até sido
enviada aos campos de internamento para proibir os guardas de
chamar «fascistas» aos prisioneiros políticos 11 •
A celebração do pacto paralisa largamente a actividade da IC,
mas o seu aparelho instalado em Moscovo continua a funcionar
até ao Verão de 1943 "e difunde, como sempre, directivas e «aná-
lises» conformes com as exigências da diplomacia soviética. Para
a IC, como para a URSS (nessa época), a guerra em curso é uma
simples guerra imperialista na qual a França e a Inglaterra são os
agressores. É pedido aos PC dos diferentes países que actuem em
consequência; os que tentam agir de outra maneira são «chamados
à ordem».
Assim, segundo a historiadora romena Viorica Moisuc, o PCR,
por ter concitado à luta contra o fascismo e a Alemanha nazi,
em Setembro de 1939, teria sido chamado à ordem pela IC ".
No que se refere ao PCF, aprova imediatamente o pacto ger-
mano-soviético apresentado como um acto de paz mas começa
por tomar uma posição «patriótica»; vota os créditos militares,
reafirma o seu anti-hitlerismo, ao mesmo tempo que Maurice
Thorez se incorpora no seu regimento com aprovação do par-

"11 Cf. Ernst Fischer, An Opposing Man, Londres, 1974, p. 352.


Leopold Trepper, Le Grand Jeu-Mémoires du chef de l'Orches-
tre rouge, Paris, Albin M1chel, 1975, p. llO, n.' 1.
12
A IC é oficialmente dissolvida a 10 de Junho de 1943 em virtude
de uma resolução de 15 de Ma1o do Presidium do CE. Esta resolução
teria sido aprovada pelos PC de certo número de países. Na realidade,
tudo indica que a decisão foi tomada pelos duigentes soviéticos a fim de
«melhorar» as suas relações com as potências ocidentais e preparar uma
repartição das esferas de influência entre elas e a União Soviética. Encon-
trar-se-á no livro já citado de F. Claudin a reprodução dos princip;.is
textos oficiais relativos à dissolução da IC, uma bibliografia das obras
fundamentais sobre esta decisão e uma análise das condições em que
ela foi tomada (cf. La Crise du mouvement communiste, ob. cit., t. 1,
pp. 20 a 49).

270
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS- IV

tido 14 • No entanto, após a entrada das tropas soviéticas na Poló-


nia, o PCP alinha com as posições da URSS e da IC e pede que
seja posto fim á guerra contra a Alemanha. Aliás, a 27 de Setem-
bro de 1939, o PCP é interdito.
Quando a França é ocupada, o PCP tenta, a princípio, negociar
com o ocupante o reaparecimento legal de L'Hurnanité. Na dele-
gação encarregada desta negociação, acha-se Maurice Tréand, res-
ponsável pelas ligações internacionais. A negociação fracassa evi-
dentemente. Não será senão lentamente que o PCP se orientará
no sentido da resistência activa que depois efectuou 15 mas, entre-
mentes, as relações germano-soviéticas começam por se deteriorar
e, finalmente, por se transformar radicalmente, quando a Alema-
nha invade a URSS.

SECÇÃO III

A expansão territorial da URSS no princípio de 1940

A expansão territorial da URSS e a extensão da sua «esfera


de influência» não param com as operações realizadas no Outono
de 1939. Outras irão acrescentar-se-lhes.
Antes de mais nada, no seu discurso de 31 de Outubro de 1939,
Molotov apresenta exigências territoriais à Finlândia. Afirmando
que a fronteira deste país é demasiado próxima de Leninegrado
e constitui, por isso, uma ameaça, Molotov exige que seja recuada
algumas dezenas de quilómetros; reclama, além disso, que a Fin-
lândia conceda uma base naval à URSS na parte norte do golfo
da Finlândia. A Finlândia rejeita este pedido mas aceita negociar.
Em Novembro, os Soviéticos afirmam que os Finlandeses bombar-
dearam as suas fronteiras e mataram muitos soldados. A 29 de
Novembro, a URSS toma este incidente como pretexto para de-
clarar que o pacto de não agressão entre os dois países foi violado
e que está, portanto, liberta das suas obrigações. A guerra à Fin-
lândia é declarada. A imprensa publica artigos ameaçadores, do
tipo: «Vamos varrer os aventureiros finlandeses da face da Terra»

" Cf. V. Moisuc, A Diplomacia da Roménia e a questão da defesa


da soberania e da independência nacional no perfodo Março 1938-Maio
1948, Bucareste, Edições da Academia da R. S. da Roménia, 1971 (em
romeno), designadamente p. 237; cf. também Stefan Lache et Georghi
Tsutsui, La Roumanie et la Conférence de Paris de 1946, C1uj, 1978.
Estes autores referem-se a uma directiva da IC de Maio de 1940 que
figura nos arquivos do CC do PCR, Fonds I, Actes n.• 167, pp. 155 a 22.

271
CHARLES BETTELHEIM

(Pravda, 30 de Novembro de 1939). A 2 de Dezembro, os jornais


soviéticos anunciam a formação de um «governo popular» na Fin-
lândia. É este «governo» constituído por alguns comunistas fin-
landeses que vivem desde há muito na URSS, a maior parte a
trabalhar no aparelho da IC. A 23 de Dezembro, a imprensa
soviética anuncia que a URSS assinou um «pacto de assistência
mútua e de amizade» com esse «governo» e indica que o pacto
será ratificado em Helsínquia pelas duas partes. Implica isto que
os dirigentes soviéticos deixam de reconhecer o governo instalado
na capital finlandesa e propõem-se substitui-lo pelo pretenso «go-
verno popular».
Na realidade, sobre o terreno as coisas não avançam como a
URSS desejaria. O Exército Vermelho sofre pesadas perdas e
marca passo durante semanas, o que conduz os dirigentes alemães
a formar um juizo mais negativo do que anteriormente sobre as
capacidades militares do Exército Vermelho. Devido a esta agres-
são, a URSS é expulsa da SDN. Os dirigentes soviéticos receiam
mesmo que a questão finlandesa ocasione uma «reconciliação»
entre a Alemanha e os Ocidentais .cujos custos a URSS pagaria'".
Em Janeiro de 1940, a ofensiva soviética continua bloqueada,
apesar das pesadas perdas sofridas. Finalmente, após ter trazido
reforços e remodelado o comando, é desencadeada nova ofensiva
a 11 de Fevereiro de 1940. Permite esta somente um avanço de
alguns quilómetros através da linha fortificada que protege a fron-
teira finlandesa. Será necessário trazer novos reforços para, a 28
de Fevereiro, desencadear nova ofensiva. Alguns dias depois, a
resistência finlandesa está suficientemente quebrada para que o
governo de Helsínquia proponha negociações. Moscovo «esquece>>,
então, por completo o «governo popular». Não fala mais dele e
negoceia com Helsínquia um tratado de paz que é assinado a 12

" Pouco tempo depois, Thorez receberá ordens da IC para se incor-


porar no «centro de ligação e de direcção» instalado em Bruxelas e, nessa
ocasião, deserta. Posteriormente, é convidado a trocar Bruxelas por Mos-
covo onde fica até 27 de Novembro de 1944 (sobre estes pontos. cf.
Philippe Robrieux, Histoire intérieure du parti communiste /rançais, 1920-
1945 et 1945-1972, Pari~ Fayard, 1980 e 1981, designadamente pp. 494
e segs. do 1.• vol. e p. t8 do 2.• vol.).
" Sobre a política do PCP durante a guerra, ver a última parte do
1! vol. de Philippe Robrieux, Histoire intérieure ... ob. cit.; o livro
de Court01s, Le Parti communiste dans la guerre, Paris, Ramsay, 1979,
e o artigo de Denis Peschanski, «La demande de parution légale de
l'Hummanité» (17 de Junho-27 de Agosto de 1940), em Le Mouvement
socia/ n.• 113, 1980.
10
Cf. A. Werth, ob. cit,, t. 1, pp. 74-75.

272
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

de Março, tratado este que é mais duro para a Finlândia do que


o proposto por Molotov em Outubro,._
As «iniciativas» de Molotov na Polónia e na Finlândia revelam
a existência de um expansionismo soviético que não visa somente
«as terras russas», antes é portador de ambições mais vastas.
A partir de Junho de 1940, a seguir à vitoriosa ofensiva relâm-
pago das tropas alemãs em França, o expansionismo soviético
manifesta-se de novo, agora em duas direcções.
Antes de mais, em direcção aos Estados bálticos. Estes, colo-
cados já sob a tutela da União Soviética em seguimento do pacto
germano-soviético, são acusados de ter violado os «pactos de assis-
tência mútua» que os ligavam à URSS. Moscovo dirige-lhes um
ultimato que conduz à formação de governos de coligação con-
trolados por comisários soviéticos apoiados pelo Exército Verme-
lho. Segundo a imprensa russa, estes acontecimentos são acolhidos
com entusiasmo na Lituânia, na Letónia e na Estónia. São orga-
nizadas «eleições» às quais somente podem apresentar-se candi-
datos escolhidos pelos PC locais «aconselhados» pelo NKVD.
Formam-se novos governos, os quais põem termo às ocupações
espontâneas de fábricas, nacionalizam a indústria e «pedem» a
incorporação do seu país na União Soviética, o que lhes é «conce-
dido». A Pravda pode então escrever: «0 sol da constituição esta-
linista espalha agora os seus raios benéficos sobre novos territó-
rios, novos povos 18 .» Na prática, assiste-se então ao desenvolver
da deportação maciça daqueles que o NKVD acusa de serem
hostis à URSS.
As operações do Exército Vermelho nos países bálticos susci-
tam a inquietação da Alemanha, do que resulta uma declaração
soviética de 23 de Junho a sublinhar que as tropas soviéticas estão
dispersas nos Estados bálticos e não concentradas na fronteira
alemã. A declaração acrescenta que as medidas tomadas pela
URSS têm apenas um objectivo: «salvaguardar a assistência mú-
tua entre a União Soviética e esses países» ".
Alguns dias após a entrada do Exército Vermelho nos países
bálticos, o expansionismo soviético manifesta-se noutra direcção:
na da Roménia. A 26 de Junho, Molotov envia um ultimato ao go-
verno deste país, no qual exige o «regresso» imediato à URSS da
Bessarábia (que havia feito parte do império czarista e tinha sido

17
Sobre a guerra da Fmlândia, cf. ibid., pp. 78-79; e Jacques Martm,
ob. cit., pp. 92 e segs.
" Cf. David J. Dallin, Soviet Russia's Foreign Policy 1939-1942,
New Haven, 1942, p. 259, citado por R. G. Wesson, ob. cit., PP. 145-146.
" A. Werth, ob. cit., t. 1, p. 86.

Est. Doe. 220-18 273


CHARLES BETTELHEIM

mencionada nos acordos germano-soviéticos). Pede, além disso, a


transferência para a URSS da Bukovina do Norte, que nunca
havia feito parte daquele império e de que não falam os acordos
germano-soviéticos. O governo romeno declara-se pronto a nego-
ciar, mas a 28 de Junho, o Exército Vermelho penetra nas duas
regiões reivindicadas, as quais são, em seguida, anexadas. Cinco
meses mais tarde, a Roménia adere ao Eixo.

SECÇÃO IV

A transforma.ção progressiva das rel~ões


germano-soviéticas

Uma certa transformação das relações germano-soviéticas tor-


na-se sensível após a invasão da França pela Wehrmacht. A rapidez
da campanha militar inquietou o governo soviético que esperava
um longo conflito, mais ou menos semelhante ao da Primeira
Guerra Mundial. A capitulação francesa suscita temores na direc-
ção do partido soviético, porque a situação na Europa ocidental
torna disponíveis importantes contingentes da Wehrmacht, dora-
vante susceptíveis de intervir algures. Esta situação incita Moscovo
não só a acelerar a sua acção na Roménia mas também a fazer
renascer os temas do panslavismo e a reactivar as suas relações
politicas e económicas com a Jugoslávia. A URSS levanta, então,
o velho problema dos Estreitos que limitam os movimentos da
sua frota entre o mar Negro e o Mediterrâneo. Estas iniciativas
soviéticas são mal acolhidas pelo Reich que tende a limitar os seus
fornecimentos à URSS.
No discurso que pronuncia, a 1 de Agosto de 1940, perante o
Soviete Supremo, Molotov desenha um quadro triunfalista das
aquisições do entendimento germano-soviético. Celebra a incorpo-
ração na URSS de 23 milhões de habitantes em menos de um ano.
Mostra-se tranquilizante para o futuro. Ao mesmo tempo que
ataca o imperialismo britânico, insiste na vontade inglesa de con-
tinuar o combate e evoca mesmo a ideia de uma intervenção
ulterior dos Estados Unidos. Sugere que a decisão de Churchill
(doravante primeiro-ministro) de enviar Stafford Cripps para Mos-
covo como embaixador pode «marcar o desejo da Inglaterra de
melhorar as suas relações connosco». No entanto, esta nomeação
não é seguida de qualquer negociação séria, já que Moscovo se
recusa a abordar os problemas de fundo.
274
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS- IV

A URSS regista um endurecimento das posições alemãs nos


Balcãs. As tropas nazis penetram na Roménia e, em Setembro de
1940, o Reich dá a sua «garantia» ao que resta deste país, decisão
esta que visa evidentemente a União Soviética. A Hungria adere,
em seguida, ao Eixo e a URSS só protesta indirectamente ao publi-
car extractos de imprensa hostis a tal adesão.
Malgrado esta deterioração da situação nos Balcãs, o Reich
faz alguns gestos, no Outono de 1940, para melhorar as relações
diplomáticas germano-soviéticas. Assim, por ocasião da assinatura,
a 27 de Setembro de 1940, do acordo tripartido entre a Alemanha,
a Itália e o Japão, é deixada aberta uma porta à cooperação com
a URSS; trata-se, sem dúvida, de mostrar à Inglaterra que será
vão querer continuar a resistir a um potente bloco militar.
A 13 de Outubro de 1940, Ribbentrop envia uma longa carta
a Estaline. Anuncia que a Inglaterra não aguentará muito mais
tempo e sugere a vinda a Berlim de Molotov a fim de que Hitler
possa «explicar-lhe pessoalmente as suas opiniões [sobre] as rela-
ções entre os nossos dois paises». Acrescenta, sublinhando: «Cabe,
sem dúvida, às quatro potências adoptar uma política de longo
prazo, implicando uma delimitação das suas esferas de interesse
em grande escala. 20 »
Em Novembro de 1940, Molotov vai a Berlim para realizar
negociações muito rigorosas com Hitler e Ribbentrop. Quer ser
informado com precisão das intenções na Europa e na Ásia dos
signatários do acordo tripartido. Inquietam-no, sobretudo, as inten-
ções alemãs nos Balcãs, na Finlândia e na Turquia. Reitera o inte-
resse que a URSS sente pela Bulgária e pelos Estreitos, mas reage
friamente ao projecto, que Ribbentrop lhe submete, de transfor-
mar o pacto tripartido num pacto quadripartido. A estada de
Molotov é infrutuosa. O comunicado comum que a encerra, publi-
cado na Pravda de 15 de Novembro, mostra não ter sido atingido
qualquer resultado.
No entanto, a 25 de Novembro de 1940, o Kremlin envia ao
embaixador alemão Schulenburg um memorando que expõe as
condições para a entrada da URSS no pacto tripartido: 1) o espaço
a sul de Batum e de Baku em direcção do golfo Pérsico deverá
ser considerado como o centro de gravidade das aspirações da
URSS; 2) as tropas alemãs deveriam evacuar a Finlândia; 3) a
Bulgária tornar-se-á protectorado soviético pela assinatura de um
pacto de assistência mútua 4) será instalada uma base soviética na

"' Citado em A. Werth, ob. cit., t. 1, p. 97.

275
CHARLES BETTELHEIM

zona dos estreitos em território turco; 5) o Japão renunciará às


suas concessões de petróleo e de carvão na ilha de Sacalina "'.
Estas pretensões soviéticas ficam sem resposta. Sabe-se hoje
que, alguns dias após a recepção deste memorando soviético, a 18
de Dezembro de 1940, Hitler toma a decisão de invadir a URSS
em 1941. Corresponde esta decisão ao que é chamado o «Plano
Barba Roxa» que, inicialmente, devia entrar em aplicação a 15 de
Maio de 1941 22 •
A Alemanha utiliza o memorando soviético para assustar os
países nele referidos e a Wehrmacht entra na Bulgária em Janeiro
de 1941. Este país adere ao Eixo no mês de Março.
Moscovo parece querer ignorar a viragem que acaba de se
produzir. No princípio de 1941, Molotov pede resposta às pro-
postas feitas por Estaline e, a 11 de Janeiro, Moscovo assina novo
acordo económico com a Alemanha. Os fornecimentos soviéticos
ao Reich aumentam; a Alemanha recebe, assim, importantes quan-
tidades de trigo, algodão, petróleo, manganés, crómio, cobre e
cauchu, produtos estes aliás parcialmente comprados aos Estados
Unidos. Simultaneamente, os fornecimentos alemães à URSS tor-
nam-se praticamente inexistentes. Nos últimos meses da Prima-
vera de 1941, os fornecimentos soviéticos são provavelmente efec-
tuados na esperança de melhorar as relações germano-soviéticas.
Na realidade, tais relações não fazem senão degradar-se, de-
signadamente quando as tropas nazis entram na Jugoslávia, no
princípio de Abril, algumas horas depois de a URSS ter assinado
um pacto de amizade e de não agressão com o governo recente-
mente formado naquele país. A URSS, aliás, não reage a esta
invasão, como não reagiu à da Grécia, mas as operações militares
e a resistência encontrada pelas tropas alemãs conduzem Hitler
a adiar para 22 de Junho a invasão da URSS.
Certas decisões dos dirigentes soviéticos mostram estarem estes
conscientes de que uma ameaça vai amadurecendo. A 13 de Abril,
a URSS obtém, de resto, um êxito diplomático ao assinar um pacto
de não agressão com o Japão, o que reduz as ameaças que pode-
rão pesar sobre as fronteiras extremo-orientais da URSS 23 • Na

'" Cf. Nazi Saviet Relations, Washington, 1948, pp. 238-239; Decla-
raçõf"s de Ribbentrop em Nuremberg, acta do processo, vol. x, pp. 328-
329. citado por Jacques Martin, ob. cit., p. 99.
'" Cf. R. G. Wesson, ob. cit., p 153.
" Desde 1931, quando o Japão agrediu a China, e mais ainda desde
1935, quando o exército japonês invade a China do Norte, desenvolve-se
tensão entre a URSS e o Japão, cujas tropas se defrontam várias vezes
quando a URSS abandona, em 1937, a «política de apaziguamento» que
havia sido a sua até então. As tropas soviéticas obtêm, ahâs, sucessos

R76
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

intenção de enfrentar melhor a situação que se degrada na Europa,


Estaline toma-se chefe do governo; a 6 de Maio de 1941, substitui
Molotov na Presidência do Conselho dos Comissários do Povo,
tornando-se este último vice-presidente e conservando os Negó-
cios Estrangeiros.
No entanto, as decisões tomadas pelos dirigentes soviéticos
indicam que eles não acreditam (ou «não querem acreditar») num
ataque alemão iminente. Parecem mesmo imaginar que este po-
derá ser evitado ou, pelo menos, retardado, mediante gestos de
servilismo para com a Alemanha ou abstendo-se de tomar medidas
de precaução a fim de <<não provocar» a Wehrmacht.
Entre os gestos de servilismo gratuito, pode mencionar-se o
encerramento das embaixadas e legações em Moscovo de certo
número de paises ocupados pelo Reich (como a Bélgica, a Grécia
e a Jugoslávia), o que equivale a reconhecer de facto as conquistas
alemãs. Além disso, a 14 de Junho, um comunicado da Agência
Tass declara que, aos olhos do governo soviético, «a Alemanha
respeita escrupulosamente as cláusulas do pacto de não agressão»
e que são «destituídos de qualquer fundamento os rumores segundo
os quais a Alemanha teria a intenção de romper o pacto e atacar
a URSS».
Na realidade, o governo soviético recusa-se a tomar em con-
sideração as informações que lhe são comunicadas sobre a imi-
nência do ataque alemão, quer estas provenham de Churchill, por
intermédio de Maisky, embaixador soviético em Londres, quer de
Serge, agente de informação soviética instalado em Tóquio e
notavelmente ao corrente dos planos militares alemães, quer de
Trepper, chefe da rede Orquestra Vermelha instalada em Bruxelas.
A fim de testemunhar a sua «confiança» nos dirigentes alemães,
Moscovo não toma nenhuma medida de precaução nas suas fron-
teiras; pretende - até ao fim - tratar a Alemanha como potência
amiga. Por isso, quando, na manhã de 22 de Junho, Molotov
recebe Schulenburg, que lhe lê uma mensagem de Hitler equiva-
lente a uma declaração de guerra, só sabe dizer: «É a guerra.
Pensais que merecemos isto» "'?

locais não despiciendos e a URSS, tendo celebrado um pacto de não


agressão com a China, começa a fornecer armas ao governo de Chang-
-Kai-Check (que, em Dezembro de 1936, fora obrigado a assinar um
acordo de cooperação com o PCC para uma política de frente unida
antijaponesa). Em fins de 1939, após a celebração do pacto germano-so-
viético, cessam os confrontos entre tropas soviéticas e japonesas (cf. G.
Wesson, oh. cit., pp. 126-127).
.. W. L. Shirer, The Rise and Fa/l o/ the Third Reich, Londres, 1960.
p. 487.

277
CHARLES BETTELHEIM

SECÇÃO V

O princípio da guerra

Não se trata de analisar aqui os acontecimentos militares dos


primeiros meses da guerra mas de lembrar rapidamente o que
então se passou'", a fim de evidenciar como o exército soviético
se encontrava então pouco preparado para enfrentar a agressão
hitleriana, o que levanta uma série de questões sobre a natureza
das relações que os dirigentes estalinistas julgaram poder estabe-
lecer com a Alemanha nazi, sobre o grau de preparação militar
do exército soviético, sobre a doutrina militar deste e sobre o
estado dos soldados e da população soviéticos. Tem este último
ponto também importância particular, porque ilumina o tipo de
apoio que os povos da URSS dão ao regime e ao partido estali-
nistas.
Antes de mais nada, alguns factos. Em menos de cinco meses,
a Wehrmacht ocuoa os países bálticos, a parte da Polónia anexada
pela URSS, a totalidade de Bielo-Rússia, a maior parte da Ucrânia,
chegando às portas de Leninegrado e a menos de cem quilómetros
de Moscovo. Conquista a maior parte do Donetz e o Norte da
Crimeia, territórios e~tes que, antes da guerra, forneciam a maior
parte da produção industrial e incluíam 40'% da população.
O Exército Vermelho, sofre, portanto, em pouco tempo, uma série
de graves reveses, e um grande número das suas divisões dei-
xam-se cercar. Mais de 2 milhões de soldados soviéticos são feitos
prisioneiros. Trata-se de desastres militares sem precedentes ••.
Por tudo isto, a posterior inversão da relação das forças e a vitória
final do Exército Vermelho mostram-se impressionantes. Certo é,
porém, que as derrotas iniciais carecem de ser explicadas.
São numerosos os elementos que estão na origem destas der-
rotas, não sendo possível enumerar aqui senão os mais impor-
tantes.
O primeiro, oficialmente reconhecido, é que os dirigentes
soviéticos foram «surpreendidos» pelo ataque alemão. Apesar de
" Sobre a história da guerra, ver Istoriia Velikoi Otetchesvennoi
Sovestskogo Soyouza (abreviadamente IVOVSS), 6 vols. 1960-1965;
ver também a obra muito importante de Alexandre Nekritch, 22 de Junho
de 1941 (em russo), Moscovo, 1965, traduzido para francês sob o título:
L'Armée rouge assassinée, ob. cit.; e o livro de Piotr Grigorenko, Staline
et la Deuxieme Guerre mondiale, Paris, L'Herne, 1969, no qual se en-
contrarão referências às descrições censuradas na URSS do livro de
Nekritch e das discussões a que deu origem.
"" Cf. A. Werth, La Russie en guerre, ob. cit., pp. 115 a 221; e
A. Dallin, La Russie sous la botte nazie, Paris, Fayard, 1970.

278
I
J

AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

todas as advertências que haviam recebido 21 , não acreditavam


na iminência desse ataque.
Algumas horas após ter ocorrido, Molotov anuncia o ataque
alemão e acrescenta (com uma extraordinária «ingenuidade»,
porque os hitlerianos desde há anos se comportavam como ban-
didos na cena internacional, o que aliás a URSS também fizera
relativamente aos seus vizinhos):
Este ataque contra o nosso país é um acto de perfídia
sem precedente na história das nações civilizadas. Foi este
ataque lançado apesar da existência de um pacto de não
agressão [ ... ] cujas cláusulas sempre respeitámos com o
maior escrúpulo [... ]. Os alemães jamais haviam tido o
menor motivo para censurar a URSS por ter faltado às
suas obrigações.
A alocução de Molotov termina por um apelo a cerrar fileiras
e pela proclamação da certeza da vitória. No entanto, os temas
principais são os da <<perfídia» nazi, da «surpresa» do governo
soviético e da afirmação que a URSS estivera sempre pronta a
todas as concessões para evitar o conflito 2 ' .
Todos os testemunhos confirmam que Estaline acolhe a notícia
do ataque alemão como um acto inconcebível, no qual começa até
por não acreditar. Deixa, aliás, passar bastantes dias antes de dar
directivas 29 , e dez dias antes de se dirigir ao país. Fá-lo, final-
mente, a 3 de Julho, já depois de terem sido sofridas pesadas
perdas. No discurso que pronuncia, reencontram-se os temas da
«surpresa» e da «perfídia». 'É assim que declara: «A Alemanha
fascista violou perfidamente e inopinadamente (!) o pacto de
não agressão ... 30 •
A palavra «perfídia» volta aliás a aparecer constantemente
neste texto, como se a agressão hitleriana tivesse sido não somente
inesperada mas «moralmente» inconcebível!
A «surpresa» de que fala Estaline não intervém como mero
argumento do discurso destinado a explicar as enormes perdas
territoriais e militares sofridas pela URSS. Múltiplos factos pro-
vam que ela foi real. Apesar de todas as informações recebidas
pelo governo soviético sobre a iminência do ataque alemão, a
,., Ver em P. Broué, Le Parti bolchevique, ob. cit., p. 416, uma
lista das advertências recebidas pelo governo soviético, o qual tinha
mesmo sido informado do dia e da hora do ataque alemão. Cf. também
Roy Medvedev, Faut-il réhabiliter Staline?, Paris, Seuil, 1969.
"' Cf. A. Werth, ob. cit,, p. 137.
09
Cf. R. Medvedev, Faut-il réhabiliter Staline?, ob. cit.
"' Cf Estaline, Oeuvres, t. XVI, ob. cit., p, 15.

279
CHARLES BETTELHEIM

URSS não tinha praticamente tomado medidas de mobilização


e, como Estaline reconhece, «o Exército Vermelho não se havia
dirigido para a fronteira» 81 •
A história soviética oficial mostra até que ponto o Exército
Vermelho não se encontrava preparado para enfrentar o ataque
alemão de 22 de Junho, e em particular que as tropas soviéticas
das zonas fronteiriças estavam disseminadas em grandes espaços,
com profundidades indo de 90 km a 500 km. Precisa que:
Toda a defesa da fronteira da URSS estava baseada
na hipótese de estar fora de questão um ataque alemão
de surpresa [ ... ] 32 •
Torna-se, aliás, necessário indicar que o pacto germano-sovié-
tico, longe de ter sido utilizado para dar à URSS um prazo para
preparar melhor a resistência a uma agressão nazi (o que é o
argumento indicado a posteriori para justificar o pacto) foi seguido
de medidas que enfraqueceram as defesas da URSS, por exemplo,
o desmantelamento das antigas fronteiras fortificadas que forma-
vam uma poderosa linha do Báltico ao mar Negro e a não con-
versão da indústria soviética em indústria de guerra capaz de
aguentar o choque dos exércitos alemães; nenhum plano de mobi-
lização havia sido preparado 33 •
Já depois do ataque alemão ter começado, Estaline continuava
a não acreditar na sua realidade. Afirmava que apenas haviam
entrado em acção destacamentos isolados do exército alemão,
agindo em contradição com as ordens de Hitler, a fim de «pro-
vocar» a URSS e, assim, desencadear a guerra. Em consequência,
dava a ordem, mantida o tempo suficiente para provocar pesadas
perdas, de não utilizar a artilharia contra os alemães e de não
ripostar às acções aéreas alemãs. Assim, a maior parte dos aviões
soviéticos eram mantidos no solo, de modo que a maioria da
sem sequer ter combatido. O exército alemão avançou, portanto,
quase sem encontrar resistência e sem que nenhuma obra, ne-
nhuma ponte, tenha sido destruída ••.

31
Cf. Estaline, Oeuvres, t. XVI, ob. cit. p. 15.
" Cf IVOVSS, Moscovo, 1960, p. 47:5.
" Entre as diversas descrições desta impreparação para a agressão
(ocorrida quando as tropas soviéticas se dispersavam para ocupar novos
território,), devem mencionar-se as que se encontram na obra de Piotr
Grigorenko, Stalin et la Deuxieme Guerre mondiale, ob. cit., designada-
mente pp 11 R c segs.
" Cf. TVOVSS; A. Werth, ob. cit., t. 1, pp. 128 a 136; P. Broué
ob. cit., p. 417.

280
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS- IV

A recusa do governo soviético a preparar-se para a agressão


alemã, e depois a reconhecer a realidade desta, bem como todos
os discursos sobre a «perfídia» alemã, testemunham uma con-
fiança espantosa na solidez do pacto celebrado com Hitler (como
se os regimes hitleriano e estalinista estivessem destinados a
entender-se duradouramente) e, uma vez a guerra começada, um
medo extraordinário de encarar de frente a realidade.
Todavia, os desastres militares que continuam a acumular-se
durante muitos meses não são devidos somente ao efeito de
«surpresa» dos primeiros dias. Tais desastres têm causas pro-
fundas, entre elas a decapitação sofrida pelo Exército Vermelho
em 1937-1938 e o carácter irrealista da teoria estratégica soviética
oficial. Encontra-se esta teoria inscrita no Regulamento de 1939
do Exército Vermelho (em vigor ainda em 1941) assim como
noutros documentos. Como reconhece a historiografia soviética:
Estes textos negam a eficácia da Blitzkrieg, apresentada
como uma teoria burguesa ultrapassada. A teoria militar
soviética estava, antes de mais nada, baseada sobre um
princípio de ofensiva, que levaria à completa derrota do
inimigo [... ] no seu próprio território.
Em consequência, a eventualidade de uma retirada forçada
(como aquela que ocorreu durante quatro meses) não havia sido
examinada com atenção, «e o problema de forças importantes
serem forçadas a romper uma ameaça de cerco nunca fora exa-
minado de maneira séria ... »". Ora, quase todas as batalhas que
o Exército Vermelho teve de travar até ao Outubro de 1941
foram batalhas de cerco.
A doutrina militar do principio da guerra corresponde à rejei-
ção das teorias de Toukhatschevski '", condenado e fuzilado com
milhares de outros oficiais em 1937, a pretexto de uma pretensa
«traição». Na realidade, a recusa em conhecer o realismo das
teorias de Toukhatschevski tem por base a vontade da direcção
do partido de conservar domínio absoluto sobre o funcionamento
do exército, quando a concepção da guerra proposta por Toukha-
tschevski, implicando grande mobilidade e alta tecnicidade das
forças armadas, limitava ao dia-a-dia o controlo que o partido
podia exercer sobre o exército.

" IVOVSS, vol. 1, citado em A. Werth, ob. cit., p. ll7.


" O mais trágico é que foi o exército alemão que se apoderou des-
tas teorias e as pôs em prática, como mostra P. Grigorenko no seu livro
Staline et la Deuxieme Guerre mondiale, ob. cit., pp. 82-83.

281
CHARLES BETTELHEIM

A hecatombe sofrida em 1937 pelos quadros militares (os ofi-


ciais experientes eram substituídos por homens rapidamente pro-
movidos, e sem formação prática, treino e conhecimentos teóricos)
explica também as derrotas dos primeiros meses da guerra.
Outro elemento explicativo: a insuficiência dos meios materiais
relativamente àqueles de que dispunha o exército alemão. Com
efeito, entre 1939 e 1941, a relação da<; forças materiais entre a
Wehrmacht e o Exército Vermelho evoluiu em detrimento deste
último. Malgrado um esforço de rearmamento importante mas
parcial, o Exército Vermelho está muito pior equipado do que
o inimigo em artilharia, carros e aviões. Novos e excelentes
modelos de aviões e de carros começam a ser fornecidos ao Exér-
cito Vermelho, mas em quantidades irrisórias, de modo que o
material envelhecido é retirado sem ser substituído 37 •
A todos estes elementos explicativos das gigantescas derrotas
iniciais, vem acrescentar-se um outro fundamental: a falta de
combatividade de uma parte das tropas e as inúmeras rendições.
No seu discurso de 3 de Julho, Estaline mostra-se já forte-
mente inquieto com esta situação, e é com vigor que a denuncia.
Testemunha este discurso claramente que existe, nas fileiras do
exército e no país. um «estado de espírito» que preocupa grave-
mente Estaline. Volta várias vezes a este tema: proclamando:
.É necessário [ ... ] que não haja lugar nas nossas fileiras
para os choramingões e os poltrões, os semeadores de
pânico e os desertores [e ainda]: devemos organizar uma
luta implacável contra os desorganizadores da retaguarda,
os desertores, os semeadores de pânico [... ] ••
Não se trata, agora, da sempre eterna denúncia dos <<inimigos
nas nossas próprias fileiras» mas sim de uma dura realidade que
confirma os comunicados militares de Julho.
A ruptura entre a população e o regime explica que. durante
os primeiros tempos da guerra, uma parte da população dos terri-
tórios ocupados tente organizar-se e estabelecer colaboração com
o exército ou a administração alemã, e que esta última consiga
recrutar um número importante de elementos «anti-soviéticos»,
numa ocasião em que o partido desabou praticamente nesses ter-
ritórios, a tal ponto se encontrava desconsiderado. Os horrores
cometidos pelas tropas nazis transformaram, depois. esta situa-

" IVOVSS, vol. I, pp. 415-416, 455 e 475-476.


" Cf. Estaline, Oeuvres, t. XVI, p. 16 e 17.

282
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

ção ••, ao mesmo tempo que, nos territórios que permaneciam


sob controlo soviético, o partido tentava momentaneamente gerir
as coisas de forma diferente da que havia sido a sua desde há
anos, fazendo nascer a esperança na «liberalizaçãO>> do regime.
Desta forma, muito rapidamente, a guerra transformou-se real-
mente em guerra patriótica, sobretudo para o povo russo.
Para voltar aos acontecimentos do princípio da guerra e ao
pacto germano-soviético, pode evidentemente perguntar-se se este
foi vantajoso para os dirigentes da URSS. Foi esta questão posta
muitas vezes, mas não é pertinente porque omite um facto fun-
damental: na situação em que se encontrava a URSS, em 1939.
por culpa dos seus governantes, o pacto era inevitável, o país não
podia permitir-se outra política estrangeira.
Em contra11artida, o uso que os dirigentes soviéticos fizeram
do pacto é duplamente significativo.
Por um lado, desperdiçaram largamente o tempo que o pacto
lhes permitiu ganhar; o esforço de armamento foi mal condu-
zido 40 • Além disso, no decurso do período que separa a assinatura
do pacto da agressão hitleriana, os dirigentes soviéticos foram
incapazes de melhorar as relações do partido e do poder com as
massas populares. Pelo contrário, esses anos caracterizaram-se
pelo acréscimo da exploração dos trabalhadores e por exigências
brutais impostas à classe operária, designadamente através da
legislação do trabalho.
Por outro lado, os dirigentes soviéticos utilimram o pacto para
conduzir uma política cxpasionista e «chauvinista>>. Embora
Molotov tivesse proclamado no ~eu discurso de 1 de Agosto de
1940 que, ao estender o seu poder para novos territórios, a URSS
havia realizado <mm acréscimo importante da [sua] potência e
do [~eu] território;>, perdia de vista que este expansionismo não
melhorou de forma alguma as condições de defesa da URSS.
As forças armadas soviéticas ficaram mais dispersas, as suas linhas
de comunicação alongaram-se consideravelmente e, sobretudo,
passaram a atravessar territórios cuja população era particular-
mente hostil. Assim, a expansão territorial de que Molotov e&tá
tão orgulhoso é militarmente inútil e mesmo nociva. Revela, por
outro lado, a natureza imperialista do poder «soviético)), o seu
desprezo pelos povos, a sua avidez e as suas afinidades com o
nazismo e o imperialismo.

" Sobre esta questão, ver a obra já citada de A. Dallin, La Russie


sous la botte nazie.
•• Cf. P. Grigorenko, ob. cit., pp. 117-120.

283
POSFÁCIO
PARA NAO CONCLUm

Aqui acaba o nosso inquérito sobre o sistema «soviético» nas-


cido das transformações e das lutas dos anos 30. Não nos conduz
este inquérito a enunciar conclusões formais. Com efeito, o seu
próprio objecto proíbe-nos fazê-lo, porque o sistema constitui
uma totalidade que continua a sofrer transformações, o que impõe
a necessidade constante de novas e múltiplas análises. Nestas
condições, seria vão querer imobilizar os resultados obtidos com
a finalidade de os apresentar sob a forma ilusória de uma visão
«total».
Relembremos, todavia, alguns dos resultados deste inquérito:
as transformações económicas, sociais e políticas dos anos 30 na
URSS permitiram que se instaurasse ali um novo tipo de capi-
talismo, um capitalismo de partido, marcado pelas condições
específicas da sua emergência e comportando um novo tipo de
classe dominante: uma burguesia de partido.
No fim dos anos 30, durante a guerra e o imediato pós-guerra,
o poder político concentra-se no vértice do partido, cujo grupo
«dirigente» se acha estreitamente dependente do secretário-geral
que exerce uma ditadura autocrática à qual nenhuma força polí-
tica e nenhuma camada social opõem resistência eficaz, já que
as formas terroristas do poder e as formas da ideologia oficial
paralisam qualquer acção organizada.
Durante uma parte da guerra, algumas das caracteristicas deste
sistema de dominação política e ideológica parecem esbater-se um
tanto mas, uma vez o conflito terminado, voltaram a afirmar-se
com força: o terrorismo de Estado e a repressão funcionam de
forma mais implacável do que nunca, atingindo milhões de homens
de todos os meios, inclusive colaboradores próximos de Estaline.
Quando Estaline morre, no princípio de Março de 1953, está
em preparação um vasto expurgo: deve este prolongar a vaga de
!285
CHARLES BETTELHEIM

repressão e de terror que se expandiu a seguir à guerra até aos


países ocupados pela URSS, nos quais foram implantadas «demo-
cracias populares» cujo sistema económico, social e político está
condenado a reproduzir os traços essenciais do sistema soviético
ao qual estão estreitamente sujeitos.

1. Alguns acontecimentos importantes dos anos de 1953


e seguintes

As condições difíceis em que se efectuou a substituição de


Estaline à testa da Uníão Soviética revelam que o sistema exis-
tente na época (o que ainda hoje é verdadeiro) não é capaz de
assegurar formas regulares de devolução do poder. Com efeito,
essa substituição só é assegurada após uma série de confrontos:
Nikita S. lKhrouchtchev, aliado a Malenkov e a Molotov, elimina
Béria, no princípio do Verão de 1953. O chefe da polícia é, então,
preso, julgado e executado um pouco mais tarde. Em Setembro
de 1953, Khrouchtchev torna-se primeiro-secretário do partido'.
Em Fevereiro de 1955, !Khrouchtchev elimina Malenkov que
havia sido, até então, presidente do Conselho; é substituído por
Boulganine. !Khrouchtchev detém, então, o máximo de poder e,
em Maio de 1955, assina o Pacto de Varsóvia, que liga militar-
mente as «democracias populares» à URSS. A partir de Setembro,
a Alemanha do Leste. tornada «República Democrática Alemã»,
adere a este pacto.
O carácter pessoal da direcção do partido e do Estado exercida
por lKhrouchtchev precisa-se em 1956, por ocasião do XX Con-
gresso, e mais ainda, em Julho de 1957, quando procede, com a
ajuda do marechal Jukov, à eliminação do «grupo antipartido»
(Malenkov, Molotov, 'Kaganovitch e Chepilov).
Em Outubro de 1957, Khrouchtchev firmará ainda mais o seu
poder ao desembaraçar-se do marechal Jukov, que é afastado
de todas as suas funções. A 27 de Maio de 1958, o primeiro-secre-
tário torna-se também presidente do Conselho.

' O título de secretário-geral havia sido suprimido. Ê restabelecido


em Abril de 1966, quando Brejnev dirige o partido. Na mesma época,
o termo de «buream> político (que havia sido provisoriamente substituído
pelo de «Presidium do Comité Central») é de novo empregue.

286
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

Seis anos mais tarde, em Outubro de 1964, é a vez de Khrouch-


tchev ser afastado de todas as suas funções. Ê reformado pelo
Comité Central. Durante os seis anos do seu maior poder, o
primeiro-secretário suscitou o descontentamento crescente dos seus
colegas do Presidium e do secretariado. As censuras que recebe
são numerosas: direcção cada vez mais pessoal do partido, aten-
tados contra as prerrogativas do aparelho, reveses na politica
exterior (em 1960, ruptura dos acordos com a China; em Outu-
bro de 1962, a URSS, que havia instalado mísseis em Cuba, é
obrigada a retirá-los sob pressão dos Estados Unidos); resultados
desastrosos da sua política agrícola; deterioração das relações com
o exército.
Leonid I. Brejnev substitui Khrouchtchev à testa do partido.
O período que então se abre é marcado pela consolidação quase
contínua (até ao princípio de 1982) dos poderes de Leonid Brejnev.
Manifesta-se esta consolidação pela extensão dos domínios nos
quais o primeiro-secretário (depois secretário-geral) intervém di-
rectamente. Manifesta-se também pela multiplicação das funções
que ele ocupa. Assim, no princípio de 1976, Brejnev torna-se
marechal da URSS e assume a presidência do Conselho da Defesa.
Um ano mais tarde, elimina Podgorny da sua função de presi-
dente do Presidium do Soviete Supremo, tornando-se, assim, pra-
ticamente chefe de Estado e ocupando-se do conjunto dos pro-
blemas de política exterior, que, aliás, já antes disso largamente
supervisionava.
Durante o período que se abre em 1964, assiste-se à multipli-
cação das intervenções internacionais da URSS, que tomam cres-
cente amplitude. Tais intervenções, apoiadas numa potência militar
em rápida expansão, cada vez mais dão à URSS um novo esta-
tuto de superpotência mundial, apesar de a situação económica
anterior se tornar cada vez mais difícil a partir de 1975.
Em Agosto de 1968, a ocupação da Checoslováquia, cujo
partido se havia afastado da linha preconizada por Moscovo, ainda
é apresentada como operação de defesa do statu quo resultante
da guerra mundial. Porém, relativamente às operações exteriores
conduzidas mais tarde, a URSS não pode reclamar-se de nenhum
tratado internacional reconhecido; age sob o pretexto de uma
«ajuda fraterna»; envia para os países em causa «especialistas
militares» ou apoia-se em contingentes armados cubanos. Dizem
estas operações respeito designadamente, ao Iémen do Sul, à
Etiópia, a Angola 'e, em Dezembro de 1979, ao Afeganistão.
Este país é, então, invadido pelas tropas soviéticas, supostamente
para dar o seu concurso a um governo cujo chefe é, imediata-
mente, assassinado. A invasão do Afeganistão desemboca, na
287
CHARLES BETTELHEIM

realidade, numa guerra que opõe o povo daquele país ao exército


soviético, apoiado por forças militares locais fracas e de pouca
confiança.
Este sobrevoo dos acontecimentos mostra que, no decurso dos
últimos trinta anos, a cena política soviética sofreu numerosas
perturbações, ao mesmo tempo que o aumento da potência militar
da URSS faz desta um Estado interventor à escala mundial, o
que a conduz, cada vez mais frequentemente, a chocar-se com
os Estados Unidos e, também, a estabelecer diferentes acordos
com este país com a finalidade de travar pior ou melhor uma
competição militar que se torna perigosa. O novo estatuto da
União Soviética repousa, antes de tudo, sobre a edificação de
um enorme aparelho de guerra e um impressionante desenvolvi-
mento industrial (que contrasta com as penúrias e as crises que
o país conhece e das quais voltaremos a tratar).
Uma das questões que se põem é a seguinte: em que medida
as alterações e os desenvolvimentos que acabam de ser recordados
terão perturbado o sistema totalitário edificado no decurso dos
anos 30?
Responder a esta questão não é simples porque as modifica-
ções ocorridas no sistema soviético são diversas. Pode, todavia,
dizer-se que, no seu conjunto, o sistema estalinista continua ins-
talado, no princípio de 1980. Sem dúvida, algumas das suas carac-
terísticas modificaram-se sob a pressão de numerosas contradições
e das forças sociais que o atravessam. Tais modificações, no
entanto, não fizeram nascer estruturas económicas, sociais e
políticas realmente novas. Pode mesmo dizer-se que permitiram
que o antigo sistema se consolidasse ao transformar alguns dos
seus traços secundários, mas sem o tornar capaz de resolver ade-
quadamente as contradições que o minam e o tornam cada vez
menos apto a enfrentar as aspirações daqueles que o dirigem e as
dos simples trabalhadores. A ausência de resposta adequada do
sistema il.s contradições e às crises, cada vez mais agudas, que
conhece conduz a uma paralisia progressiva da vida económica
e política.
Para justificar estas afirmações é necessário exami~ar _quais
são os elementos (dominantes) de continuidade e qums sao os
elementos (secundários) de mudança que marcam o sistema e o
seu funcionamento, isto é, as suas práticas. Sublinhe-se, aliás,
destle já, que os elementos de continuidade se situam, ao mesmo
tempo, nos domínios político, ideológico e económico. Neste
último, continuam a dominar o primado da acumulação e a dita-
dura do capital sobre os operários e os camponeses.
288
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

2. Continuidade e mudan{la no sistema


e nas práticas políticas
Uma das continuidades fundamentais entre o sistema político
actual e aquele que tomou forma nos anos 30 é o papel que cabe
à direcção do partido como lugar de concentração do poder.
Apesar das mudanças secundárias, continua a ser a direcção do
partido que toma as decisões políticas (e económicas) fundamen-
tais: é também ela que enuncia as formulações ideológicas que
devem ser consideradas «justas».
Para se fazer respeitar, a direcção do partido continua a «gerir»
os privilégios de que goza a classe dominante e aqueles -menos
numerosos- de que beneficiam algumas camadas das classes
exploradas. Continua a recorrer largamente à polícia política que
vigia de perto os cidadãos e dispõe de amplos poderes para prender
os «suspeitos» e fazê-los condenar a internamento nos campos,
na prisão ou no «hospital psiquiátrico».

A) O apagamento relativo do papel dos órgãos de segurança


e do terror de Estado

No entanto, após a morte de Estaline, assiste-se a um apaga-


mento relativo do papel do terror de Estado e dos órgãos de
segurança.
Inicia-se este apagamento, logo após a morte de Estaline, por
iniciativa do próprio Béria que decide libertar um pequeno número
de detidos e os médicos que haviam sido presos soh a acusação
de actos de homicídio cometidos contra altos dirigentes: trata-se
da pretensa conspiração dos «assassinos de bata branca». Tal
como as coisas se apresentam nas vésperas da morte de Estaline,
a condenação dos médicos presos deveria abrir caminho a novos
processos e a uma deportação em massa de judeus acusados de
actividades sionistas e pró-americanas.
Após a eliminação de Béria, a direcção do partido reduz o
papel dos órgãos de segurança (ou, mais brevemente, dos «órgãos»,
segundo a expressão russa corrente) e expurga o MVD 2 , divi-

' O MVD é o Ministério do Interior que substitui o NKVD quando,


a seguir à guerra, a denominação de «ministério>> substitui, para todos
os organismos deste nível, a de «Comissariado do povo)). Em Março de
I 954, é criado o KGB (Komitet Gousoudarstvennoi Bezopasnosti) ou
Comité da Segurança do Estado que assume as principais funções de segu-
rança. Em 1962, Khrouchtchev abole, aliâs, o MVD ao nível da URSS
e transforma-o em Ministério para a Protecção da Ordem Pública. Os

Est. Doe. 220-1~ 189


CHARLES BETTELHEIM

dindo-o em diversas administrações que lhe ficam mais estrita-


mente subordinadas. No entanto, progressivamente, os represen-
tantes dos «órgãos» assumem peso crescente no seio das instâncias
dirigentes do partido, o que compensa os esforços feitos após a
morte de Estaline para reduzir a influência da polícia política.
As primeiras decisões que visam reduzir este papel só puderam
ser aplicadas, durante o Verão de 1953, com a cooperação do
vértice do exército. Tais decisões começam por traduzir a vontade
dos membros do grupo dirigente de controlar os «Órgãos», já que
eles próprios viveram o temor permanente de serem presos e
condenados, acusados de qualquer crime. A redução da auto-
nomia dos «órgãos» também é desejada pelos quadros do partido,
do Estado, da economia, etc., os quais, na época de Estaline,
receavam igualmente ser presos sob qualquer pretexto.
O apagamento relativo do papel dos «Órgãos» conduz a tornar
mais selectivas as suas operações. Em consequência, as pessoas
exprimem-se, doravante, um pouco mais livremente do que nos
últimos anos do período estalinista, e são menos temidas as prisões
arbitrárias. O terror de Estado recua, portanto, como prova a
diminuição do número dos internados nos campos. Este, todavia,
ainda orça por 2 a 3 milhões no principio dos anos 80 contra
os 8 milhões do fim de 1952. As avaliações relativas ao número
de concentracionários, e tudo o que se sabe a respeito das prisões
e dos processos instaurados sob pretextos mínimos (tanto na época
de Khrouchtchev como na de Brejnev) mostram bem que, embora
o terror de Estado tenha recuado, está muito longe de ter com-
pletamente desaparecido. Continua a abater-se sobre os simples
trabalhadores que -por erros «benignos»- podem ser submeti-
dos a um trabalho punitivo (pago com salário reduzido); abate-se
também sobre os contestatários e os «dissidentes».
De maneira geral, o medo inspirado pelo KGB é sempre sufi-
ciente para que este encontre facilmente as «testemunhaS)) de
que carece para fazer condenar quem quer que o deva ser, isto
até durante a época a que se chamou o degelo (1956-1964) •. Ao
longo deste período, o recurso aos hospitais psiquiátricos (como

agentes locais do MVD são, então, colocados sob a autoridade formal dos
Comités executivos dos Sovietes de região. Em 1966, Brejnev reconstitui
um ministério pansoviético da Preservação da Ordem Pública; em Novem-
bro de 1968, volta a dar-lhe o nome de MVD. Os poderes deste ministério
e os do KGB voltam a crescer regularmente após 1965, sem que, todavia,
retomem a amplitude que tinham no fim da era estalinista.
' Ver, por exemplo, o que escreve a este respeito Efim Etkind em
Dissident malgré /ui, ob. cit., livro no qual o autor relata alguns dos pro-
cessos e das condenações arbitrârias que ocorreram entre 1963 e 1974.

290
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

meio de conservar detidos aqueles que não se deseja levar perante


os órgãos judiciários mas cujas opiniões são condenadas pelo
poder) torna-se mais frequente; representa uma forma particular
(menos espectacular do que o processo) do terrorismo de Estado.
Desde há uma dezena de anos, o recurso aos hospitais psiquiátricos
toma nova amplitude ao mesmo tempo que também aumenta o
número das condenações.
O carácter limitado do recuo do papel dos «órgãos» explica
a razão pela qual o aparelho repressivo continua a ser extrema-
mente potente. É assim que o 'KGB dispõe de uma força militar
própria que controla 130 000 homens equipados como as unidades
de infantaria, a que se adicionam os 800 000 homens do MVD,
bem como uma milícia de 250 000 pessoas. As tropas do KGB
e do MVD têm os seus próprios parques de carros, de veículos
blindados e de helicópteros •.
Globalmente, as modificações representadas pelo recuo rela-
tivo do papel dos órgãos de segurança e de terror de Estado não
devem, portanto, ser sobrestimadas; a repressão continua a exer-
cer-se em larga escala embora revestindo carácter mais selectivo;
além disso, e de forma arbitrária, todos os meios se mantêm aptos
a permitir que a repressão possa ampliar-se rapidamente.

B) A substitnicáo de uma dlreccão autocrática


por uma dlreccão ollgárqulca

De fins de 1934 a Março de 1953, o poder está concentrado


-como se sabe- nas mãos de Estaline, que o exerce de ma-
neira autocrática, procedendo à eliminação dos seus mais próximos
colaboradores, incluindo os que fazem parte do grupo dirigente,
quando toma a decisão de o fazer. À morte de Estaline segue-se
uma alteração importante neste aspecto do funcionamento do
vértice do poder: o grupo dirigente teme, se os seus membros
começarem a entredevorar-se, deixar de ser senhor dos aconteci-
mentos. Esforça-se, portanto, a princípio com dificuldade mas
progressivamente com mais sucesso, por governar colectivamente
e por não deixar surgir um novo chefe supremo que reduzisse
drasticamente a influência dos outros membros da direcção. Esta
mudança opera-se progressivamente e é muitas vezes contrariada
por tendências opostas.

• Cf. sobre este ponto, Helêne Carrêre d'Encausse, Le Pouvoir con-


jisqué, ob. cit,, p. 172.

291
- ' ' . ---

CHARLES BETTELHEIM

Antes de mais, de 1953 a 1957, as lutas internas no seio do


grupo dirigente são intensas. Conduzem, como vimos, à preemi-
nência de Khrouchtchev que, entre Julho de 1957 e Outubro de
1964, exerce um verdadeiro poder pessoal; este poder não tem,
todavia, paralelo com aquele de que Estaline dispunha, porque
os outros membros do grupo dirigente não estão à mercê do
primeiro-secretário, dado que os «órgãos» e o exército já lhe
não estão inteiramente subordinados.
O carácter colectivo da autoridade do grupo dirigente provém
também de que os membros deste têm uma base própria de poder
mais nitidamente definida do que na época de Estaline. Corres-
ponde esta base própria de poder ao domínio de actividade colo-
cado sob a direcção dos diferentes membros do grupo dirigente
e resulta dos laços que cada um destes estabeleceu com os dife-
rentes aparelhos e com aqueles que se encontram à frente destes,
ao mesmo tempo que a função de uns e outros se encontra esta-
bilizada em virtude do recuo do terror de Estado. Na situação
que se estabelece, cada membro da direcção dispõe de uma espécie
de «feudo» político-administrativo e de uma clientela com a qual
todos os outros membros da direcção, incluindo o primeiro-secre-
tário, são obrigados a contar. Estabelece-se, assim, uma hierarquia
entre os membros da direcção. O lugar de cada um nesta hierar-
quia é determinado de maneira complexa: pelas suas funções
oficiais (que situam o primeiro-secretário no vértice), pela maior
ou menor extensão dos diferentes «feudos» e das diferentes «clien-
telas» que lhes estão subordinadas e pelo seu peso na vida política
e económica global.
Os últimos anos do «reino» de Khrouchtchev são, no entanto,
marcados pelos esforços por este desenvolvidos no sentido de que-
brar -em proveito do seu poder pessoal- a estrutura hierár-
quica e as «feudalidades administrativas» que se criaram; ataca,
em particular, certos «feudoS)), dividindo-os, a fim de reduzir os
poderes dos outros membros da direcção e o papel dos quadros
dirigentes que não estão colocados sob a sua autoridade imediata.
Trata-se de uma tentativa que visa, ao mesmo tempo, tomar o sis-
tema mais flexível e restaurar um poder cada vez mais pessoal,
que suscita a hostilidade dos outros membros da direcção. Acres-
centados os factores de descontentamento já mencionados, os
esforços de Khrouchtchev para quebrar ou reduzir a solidez das
estruturas hierárquicas existentes levam os outros dirigentes a
afastá-lo e a substituí-lo por um novo primeiro-secretário, ao qual
o grupo dirigente impõe maior respeito pelo princípio de uma
«direcção colectiva». Isto não evita que o conjunto das estruturas
do sistema bem como a ideologia oficial convidem a uma perso-
292
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

nalização do poder que incita aquele que ocupa o primeiro lugar


a colocar-se «acima» dos outros membros da direcção.
É assim que Brejnev desempenha um papel cada vez mais
preeminente, sobretudo após o XXIII Congresso (Abril de 1966)
quando é restabelecido, em seu favor, o lugar de secretário-geral.
Este papel acrescido do secretário-geral não conduz, todavia, a
restaurar um verdadeiro poder pessoal mas antes a personalizar
mais o poder que aquele exerce. Os sinais desta «personalizaçãO>>
são numerosos. Assim, o título de «chefe do partido» é-lhe atri-
buído por diversos oradores no XXIII Congresso e, por ocasião
do seu aniversário, em 1976, Brejnev é mesmo qualificado de Vojd
(guia) como o havia sido Estaline. Apesar disso, não deixa de ser
exacto que a situação de Brejnev permanecerá sempre radical-
mente diferente da dos seus predecessores, já que o poder que ele
pode exercer sobre os membros do grupo dirigente é muito mais
limitado. Esta situação faz-se sentir particularmente nos meses
que decorrem entre a morte de Souslov (princípio de 1982) e a
do próprio Brejnev, a 10 de Novembro de 1982.
Em definitivo, no princípio dos anos 80, o vértice do poder
está efectivamente ocupado por 14 homens, a maior parte dos
quais pertence, simultaneamente, ao bureau político e ao secre-
tariado "; é o que pode chamar-se o vértice da oligarquia política
dirigente. O CC forma uma camada oligárquica mais larga mas
cujos poderes são menores. Finalmente, a oligarquia política, num
sentido menos restrito, compreende, além das pessoas precedentes,
os secretários das regiões e os secretários da cidades e dos distritos
importantes e ainda alguns dos chefes de departamento do Comité
Central do PCUS. O conjunto destes dirigentes e quadros forma
uma colectividade de algumas centenas de pessoas que constituem
o aparelho político da burguesia de partido (frequentemente
designada, na linguagem popular, por «nobreza do partido»). Man-
tém este aparelho com o conjunto dessa classe relações de coope-
ração, o que tende a fazer desaparecer as lutas abertas e os con-
frontos característicos dos anos 1930 a 1953.
O vértice da oligarquia política desempenha um papel de gestor
colectivo da burguesia de partido. Doravante, assegura esta gestão
seguindo regras relativamente precisas em matéria de promoção
e de avanço; em virtude destas regras, um nomenklaturista não
pode ser reduzido a zero (salvo em casos absolutamente excepcio-
nais).

• Cf. sobre este ponto, H. Carrere d'Encausse, ob. cit., pp. 292 e
302-}03.

291
CHARLES BETTELHEIM

As relações entre o grupo dirigente do partido e a classe domi-


nante estão pacificadas: a violência e o arbítrio anteriores, são,
em larga medida, abandonados. O vértice do poder aceitou ver
estabilizada uma larga camada de quadros, de administradores, de
dirigentes de empresas; as tentativas para impedir tal estabilização
tinham-se revelado, de resto, geradoras de um verdadeiro caos
administrativo e económico.
_ Após a eliminação de Khrouchtchev, os principais aparelhos
dispõem de um número cada vez maior de representantes no BP
(não oficialmente, mas de facto). As relações que se estabelecem
entre o grupo dirigente e os aparelhos não estão, é certo, isentas
de contradições mas um esforço constante é realizado para as limi-
tar e para evitar os confrontos. Em consequência, a maior parte
das decisões são essencialmente o resultado de negociações que
tomam em consideração relações de força. A passagem a seme-
lhante prática constitui mudança importante na forma das regu-
lações dos conflitos no seio da classe dominante. A evolução no
sentido desta prática efectuou-se sob o impulso das diversas cama-
das interessadas em que o sistema funcionasse mais pacificamente.
Não decorre, aliás, esta evolução sem choques, como testemunham
os confrontos que se produziram entre dirigentes durante o período
1953 a 1964.
A regulação «pacífica», por negociação, das contradições entre
as diversas camadas da classe dominante, tornou-se possível por-
que estas camadas estão praticamente representadas no seio do
grupo dirigente, através dos aparelhos entre os quais se repartem.
Desde 1976, pode con&iderar-se que o próprio exército está repre-
sentado no bureau político por D. F. Oustinov que então entra,
pela primeira vez, nesta instância. Oustinov é, aliás, ministro da
Defesa desde 1973 e fora nomeado marechal da URSS três meses
após haver chegado ao seu .posto ministerial. lÉ certo que D. F.
Oustinov não é um verdadeiro militar de carreira, porque é
oriundo do corpo dos engenheiros de armamento. Praticamente,
defende os interesses do exército, a fim de que este fique apto a
enfrentar as exigências que lhe são impostas pelo conjunto da
direcção política. Quanto ao KGB, as suas posições reforçaram-se
desde 1965 no seio dos órgãos dirigentes •. Após a morte de
Brejnev e a ascensão de Andropov ao Secretariado-Geral, pode
considerar-se que o KGB ocupa lugar decisivo na direcção do
partido.
Toma-se necessário falar do papel crescente que o complexo
militar-industrial &oviético desempenha na política interna e inter-

• Cf. infra, P. 312.

294
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

nacional. Existe, com efeito, um conjunto de forças que formam


esse complexo dotado de peso considerável na vida soviética devido
aos recursos de que dispõe, às posições ocupadas por aqueles que
o dirigem, ao prestígio que os rodeia e à importância que os diri-
gentes políticos ligam aos problemas militares. Esta importância
deve-se, entre outras ra:z;ões, à lembrança dolorosa deixada pela
derrota no princípio da Segunda Guerra Mundial, à saída pouco
gloriosa da «crise dos mísseis» de 1962 (cf. infra, p. 308) e também,
cada vez mais, às ambições políticas mundiais dos dirigentes
soviéticos. O complexo militar beneficia de numerosas vantagens
financeiras e de prioridades de toda a ordem na atribuição dos
investigadores e dos quadros mais eficientes, na obtenção das
matérias-primas e importações necessárias ao seu desenvolvimento;
no entanto, embora o seu peso político e económico seja real, seria
falso ver nele (de momento) uma força «independente», já que
está estreitamente integrado e ligado à oligarquia política diri-
gente.
Em globo, depois de 1953, e sobretudo depois de 1954, existe
integração crescente (mas não fusão) das principais funções civis,
militares e de segurança no seio da oligarquia política dirigente,
funções estas materializadas nos diferentes aparelhos que as exer-
cem. Esta institucionalização das funções permite que se efectuem
negociações no interior da fina camada constituída pelas princi-
pais hierarquias do partido. Ê no interior desta camada que as
decisões são tomadas tendo em conta as forças em presença na
burguesia do partido. Evitam-se, assim, os confrontos abertos e
procuram-se as soluções de compromisso. Tem esta prática por
contrapartida o extraordinário imobilismo do sistema político,
imobilismo tal que toma o sistema cada vez menos capaz de resol-
ver os problemas complexamente crescentes que se apresentam ao
país. Após numerosos anos, com efeito, nenhum grande problema
económico foi objecto de decisões que teriam permitido trazer-lhe
verdadeira solução; veremos isto ao examinar rapidamente o que
aconteceu às diversas reformas adoptadas depois de 1965. Neces-
sário é sublinhar que a política estalinista, que procurou atomizar
a burocracia privilegiando as relações verticais, preparou, graças
a uma inversão dialéctica, a constituição de corpos burocráticos
que, a partir do fim dos anos 50, defendem os seus interesses
próprios no seio do grupo dirigente.
Em última análise, as mudanças políticas verificadas desde há
uns trinta anos modificaram não o sistema político, mas somente
certos aspectos do seu funcionamento. Permitiram enfrentar os
assuntos correntes, fazer progredir (é certo que cada vez mais
dificilmente) os sectores prioritários da indústria e evitar os cho-
295
CHARLES BETTELHEIM

ques sangrentos entre dirigentes, mas não foram suficientes para


encontrar soluções para as contradições crescentes verificadas no
país e no regime.

C) A politica de desanuviamento

A política internacional dos dirigentes que sucederam a Esta-


line parece caracterizar-se por uma viragem que teria substituído
a «guerra fria» da época estalinista por uma «política de desanu-
viamentO>>. As coisas, porém, não são assim tão simples. A partir
de 1953, assiste-se, sem dúvida, ao recuo das formas abertas da
«guerra fria» que havia sido inaugurada por dois discursos: um
pronunciado por Estaline, a 9 de Fevereiro de 1946 7 , e o outro
por Jdanov, que desencadearam a campanha contra a influência
da cultura ocidental e preparam a formação do Kominform (subs-
tituto da 3. • Internacional). Pouco tempo depois, a «guerra fria»
tornava-se «quente», com o desenvolvimento de uma série de
confrontos militares apoiados pela URSS, entre os quais a guerra
da Coreia que começou em Junho de 1950.
Após a morte de Estaline, o discurso é diferente: torna-se o
da «coexistência pacífica» e do «desanuviamento». Tomam-se deci-
sões importantes que dão certa credibilidade a este discurso e de
que provêm períodos de «degelo» à escala internacional. O pri-
meiro é o que começa em Julho de 1953 com o armistício da
Coreia. Prolonga-se até 1956, com a redução em um terço das
forças armadas soviéticas em 1955 e 1956, o reconhecimento
mútuo da RFA e da URSS e a celebração do tratado de Estado
com a Áustria (Maio de 1956) que põe fim à ocupação deste país.
Este «degelo» é favorecido, do lado da União Soviética, pela
necessidade em que esta se encontra de desenvolver as suas trocas
com as potências ocidentais, a fim de importar equipamentos e
uma tecnologia mais moderna. lÉ também facilitado pelo facto de
que a URSS, a partir de 1955, desenvolve as suas armas termo-
nucleares. Desde então, a União Soviética participa mais de perto
nas actividades das Nações Unidas e envolve-se em conversações
que visam preparar uma política concertada de «limitação dos
armamentos».
Em 1956, este primeiro «degelo» é interrompido pela inter-
venção soviética na Hungria (em seguimento à revolta do povo
húngaro) e pela intervenção franco-britânica no canal de Suez.
7
Cf. Izvestia, 19 de Fevereiro de 1946. Neste discurso, não se fala
nem de socialização nem de comunismo, mas do Estado, do regime sovié-
tico, da sua grandeza e da grandeza da pâtria.

296
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

Após um período de tensão, abre-se novo período de «degelo»,


em Setembro de 1960, com a viagem aos Estados Unidos de
Khrouchtchev e as conversações deste com o presidente Eisenho-
wer. Este «degelo» é interrompido pela crise dos mísseis instalados
em Cuba, crise que acaba, como se sabe, por um compromisso.
Começa, em seguida, outro período de «degelo», o qual se mani-
festa sob a palavra de ordem frequentemente repetida de «desa-
nuviamento» e, consoante os momentos, reveste aspectos muito
diferentes.
Durante o fim do período khrouchtcheviano, o desanuviamento
tende so~retudo a servir Jc argumento em favor de uma coope-
ração aberta entre a URSS e o mundo ocidental. Nc decurso dos
anos 70, quando se produz o aumento da potência do exército,
da marinha e da aviação' soviéticas, o discurso e os esforços dos
dirigentes da URSS orientam-se novamente no sentido da nego-
ciação de acordos que incidam sobre a «limitação dos armamen-
tos». Estas negociações e estes acordos não conduzem, aliás e de
forma nenhuma, a parar a política de armamento de grande enver-
gadura seguida pela URSS, antes fazem surgir tal política como
estando em conformidade com acordos previamente assinados
com algumas potências, acima de tudo com os Estados Unidos.
Conduzem estas negociações, por outro lado, a que a URSS limite
a ajuda trazida à República Democrática do Vietname em luta
contra a agressão americana. O tema do «desanuviamento» é, do
lado soviético, acompanhando por discursos a defender a multi-
plicação das trocas culturais, técnicas, científicas e económicas
com os países ocidentais; na realidade, são estes três últimos tipos
de trocas que interessam, antes de tudo, à URSS.
tÉ no quadro do «desanuviamento» que os dirigentes soviéticos
e as potências ocidentais assinam os acordos de Helsínquia, em
seguimento da conferência reunida nesta cidade a 31 de Julho e
1 de Agosto de 1975. Para o governo soviético, esta conferência
consagra o statuo quo herdado da Segunda Guerra Mundial; em
contrapartida, aceita assinar um documento que comporta uma
série de «compromissos» respeitantes aos direitos do homem. Na
realidade, os dirigentes soviéticos mais não fazem do que renovar
compromissos já tomados de respeitar os termos da Carta das
Nações Unidas e a Declaração dos Direitos do Homem, documen-
tos por eles já assinados há muito tempo e sempre tratados como
farrapos de papel. As coisas não se passam de forma diferente
com a Carta de Helsínquia. Em última análise, a Conferência de
Helsínquia forneceu à direcção brejneveniana um tema de auto-
congratulação mas não a levou, de modo algum, a abandonar a
corrida aos armamentos.
297
. '

CHARLES BETTELHEIM

Na realidade, a política de «desanuviamentO>> mais não é do


que uma forma particular da «guerra fria». De modo algum sigm-
fica que os dirigentes soviéticos hajam renunciado a uma expan-
são mundial que se desenvolve sob a cobertura ideológica da «mis-
são histórica)) da URSS. Afirma esta ideologia que o país deve
contribuir para estender através do mundo o que o PCUS chama
o socialismo, e proclama que a URSS deve ajudar a «libertação
dos povos)) (a qual coloca, de facto, os povos «libertados)) na depen-
dência económica e militar da União Soviética). É por isso que a
política de «desanuviamento)), tal como é concebida pelo PCUS,
é compativel com o envio de especialistas militares para outros
países 'C com intervenções militares directas em todo o mundo •.
O tema do «desanuviamentO>> combina-se, aliás, com a procla-
mação de uma concepção activa do «internacionalismo proletá-
rio)), em nome do qual a URSS se arroga o direito de intervir nos
assuntos interiores de países dirigidos por outros partidos que se
afirmam marxi&tas-leninistas. Tais intervenções produ7iram-se,
efectivamente, em 1956 na Hungria, em 1968 na Checoslováquia.
A Polónia evitou, em 1981, a intervenção porque os seus chefes
militares, dirigidos pelo general Jaruzelski, efectuaram um golpe
de Estado que respondia, pelo menos provisoriamente, ao que exi-
giam os Soviéticos. Diferentemente, noutros países cujos partidos
estavam menos ligados à URSS e que haviam desenvolvido a sua
própria ideologia nacional, como a Albânia e a China, tais inter-
venções não puderam ocorrer. Todavia, a recusa destes países a
submeter-se à hegemonia soviética conduziu a URSS a agredi-los
política e economicamente (rompendo unilateralmente acordos de
cooperação com eles celebrados), o que suscitou graves dificulda-
des à Albânia e à China. A vontade hegemónica soviética originou
também, designadamente em 1969, confrontos sangrentos na fron-
teira soviético-chinesa. Estes acontecimentos são o resultado de
uma longa história cujo exame ultrapassaria os nossos propósitos.
A política de «desanuviamentO>> que a URSS pretende pros-
seguir assim como o seu «internacionalismo proletário» surgem,
pois, como máscaras atrás das quais se dissimula a política mun-
dial hegemónica da União Soviética. Esta mesma política leva a
URSS a desenvolver relações económicas e militares com países
que, segundo ela, não seguem uma «via socialista» ou mesmo «não
capitalista». Tal foi o caso do Egipto, tal é o caso da índia, tal é
• Deve notar-se que, para os dirigentes soviéticos, o termo «desanu-
viamento>> não sigmfica um qualquer «relaxamento» mas, pelo contrário,
como diz um dicionário político soviético, «um reforço incessante das
posições do campo socialista>> (cf. Kratkii Polititcheskii Slovar, Moscovo,
1978, p. 321).

298
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

também o caso da Argentina e o do Brasil com os quais a URSS


mantém estreitas relações económicas e ao lado dos quais vota,
muitas vezes, nas Nações Unidas. A vontade de os dirigentes sovié-
ticos desempenharem um papel mundial e as necessidades econó-
micas da URSS incitam este país a desenvolver as suas exportações
de armas; trata-se de um domínio em que ela ocupa hoje o segundo
lugar no mundo, imediatamente após os Estados Unidos •.
A politica hegemónica soviética também alimenta o discurso
proferido pela URSS sobre «a divisão internacional socialista do
trabalho», discurso que substitui o respeitante à cooperação entre
os países do bloco soviético ou com os países aderentes ao COME-
CON 10 • Este organismo, fundado em 1949, em resposta ao lança-
men~o do plano Marshall e também para isolar a Jugoslávia, só
em 1959 toma realmente vida, ano esse em que os dirigentes sovié-
ticos lhe dão novo impulso. A partir deste momento, o COMECON
e a teoria da divisão internacional socialista do trabalho servem
de substituto à política de pilhagem das «democracias populares»
(isto é, das requisições de produtos melhor ou pior pagos) que
prevalecia na época de Estaline, uma política de dominação eco-
nómica sobre estes países, que visa instaurar uma div1são inter-
nacional do trabalho que submeta o desenvolvimento dos países
ligados à URSS às exigências nacionais desta última, em par-
ticular às suas necessidades de armamento, de tecnologia e de
acumulação. Dá a referida política à URSS a possibilidade de
explorar regularmente os países a ela associados no COMECON
e de fazer pressões sobre eles para os obrigar a participar em
investimentos próprios na URSS, o que contribui para acrescer
a acumulação que se realiza em território soviético. A análise con-
creta do funcionamento do COMECON permite trazer à luz do
dia o papel efectivamente exercido por este e esclarece a signifi-
cação real do discurso sobre a divisão internacional socialista do
trabalho 11 •

' Segundo os dados da Agência Americana de Controlo dos Arma-


mentos, o total das exportações de armas soviéticas atinge, para o período
1974-1978, mms de 27 mil milhões de dólares contra 28,4 mil milhões
para as exportações do mesmo tempo provenientes dos Estados Unidos.
Entre 1974 e 1980, as vendas de armas soviéticas foram multiplicadas
por 3.
" Esta sigla designa o Conselho para a Assistência Económica
Mútua.
" Sobre estes diferentes pontos, ver Giovanni Graziani, Comecon:
dommation et dépendances, Paris. Maspero. 1982

299
CHARLES BETTELHEIM

3. Continuidade e mudança na ideologia soviética

A actual ideologia soviética oficial é essencialmente aquela que


tomou corpo entre 1932 e 1950. Fundamentalmente, tão alienada
é uma como é a outra. A única alteração que sofreu diz respeito
à articulação dos seus temas centrais, a qual se modificou a fim
de adaptar o discurso ideológico oficial à conjuntura interior e
internacional. Esta adaptação tornou um pouco menos gritantes
as contradições entre a ideologia oficial e a realidade e contribuiu
para apagar certos traços do dogmatismo anterior que tiveram de
ceder lugar a mais «realismo» ou empirismo.

A) O papel dirigente do partido


e a denúncia do «culto da personalidade»

No conjunto, o tema do «papel dirigente do partido» -que,


próximo do fim do período estalinista, tendia a recuar um tanto
perante a afirmação do papel crescente do Estado- regressou
ao primeiro plano. O desenvolvimento deste tema está ligado ao
esforço que visa assegurar mais autoridade à direcção do partido,
designadamente no que se refere aos aparelhos de Estado propria-
mente ditos. Com efeito, as negociações entre os vértices dos dife-
rentes aparelhos efectuam-se no seio do grupo dirigente e tornam
indispensável a subordinação destes aparelhos ao grupo que se
acha à frente do partido.
Uma importante mudança afecta este aspecto da ideologia
oficial: a que apresenta o grupo dirigente como uma «direcção
colectiva» ou «colegial» e já não confere papel decisivo à pessoa
do secretário-geral, como era o caso na época de Estaline.
Esta mudança efectuou-se através da denúncia por Khrouch-
tchev do que ele chamou o «culto da personalidade» de Estaline.
Um dos momentos culminantes desta denúncia foi o XX Con-
gresso do PCUS (1956). A denúncia do «culto» desempenha na
realidade funções ambíguas. Visa não só barrar o caminho à res-
tauração de um poder autocrático (e, portanto, consolidar a auto-
ridade colectiva da oligarquia política dirigente) mas também (ao
tornar Estaline «pessoalmente» responsável por todos os crimes
cometidos quando era secretário-geral) dissimular a participação
em tais crimes dos seus próximos colaboradores (que são, precisa-
mente, os seus sucessores: Khrouchtchev, Brejnev, Boulgarine,
Kaganovitch, etc.), e, sobretudo, ocultar o facto de que os refe-
ridos crimes não foram «acidentes>> mas sim o produto de um
sistema que permanece fundamentalmente inalterado.
300
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

A denúncia do «culto» desempenha, de resto, muitos outros


papéis. Visa tranquilizar os quadros e a população, dando-lhes a
impressão de que, doravante, viverão numa sociedade onde é agora
menos perigoso falar e tomar iniciativas, o que, de resto, não é
inteiramente falso.
Por outro lado, não deve esquecer-se que a denúncia do «culto»
passou por altos e baixos e que, no decorrer do período brejneve-
niano, diversas correntes se manifestaram visando mais ou menos
«reabilitar» Estaline, o que implica a perspectiva de um certo
renascimento do terrorismo de Estado. Neste sentido se manifes-
taram algumas tendências nos meados dos anos 70.
Após a queda de Khrouchtchev -como vimos acima- a
autoridade do KGB foi de novo reforçada. Um dirigente de alto
nível do partido é, então, colocado à testa do KGB, e a direcção
deste organismo já não dá somente «direito» a um lugar simples
no Comité Central: em 1967, o novo dirigente dos órgãos de segu-
rança, Andropov, é nomeado membro candidato do Politburo e,
em 1973, torna-se membro titular deste organismo (como Béria
havia sido). Em 1978, os dois adjuntos de Andropov, polícias pro-
fissionais, são membros do CC, um efectivo e outro suplente, e
ambos passam a ser, como Andropov, generais do exército. Em
1982, Andropov é nomeado para o secretariado do partido e um
dos seus próprios colaboradores dirige os órgãos de segurança.
Trata-se de promoções de grande importância que realçam o «pres-
tígiO» oficial do KGB e reforçam os laços deste com o partido e
com o exército. A repressão, aliás, volta a endurecer nos anos 70
e, em Janeiro 1980, um decreto regulamenta severamente a dis-
ciplina do trabalho, estabelecendo uma série de sanções para os
atrasos, as «passeatas» e as ausências injustificadas 12 •
De maneira geral, o tema do papel dirigente do partido serve
para estender, quando julgado útil, a repressão a todos aqueles que
emitem reservas ou críticas contra a direcção ou a política do
partido, já que tais reservas e críticas são assimiladas a crimes, a
actividades subversivas e anti-soviéticas emanadas do inimigo e ins-
piradas pelo «imperialismO>>.
A ideologia oficial continua a apresentar a direcção do partido
como a fonte de toda a decisão política legítima. Atribui-lhe sem-
pre o monopólio do conhecimento das leis da sociedade e da his-
tória e identifica-a com as forças progressistas do povo; por isso,
o que ela decide é oficialmente identificado com a expressão da
verdadeira vontade popular. A ditadura da direcção do partido
continua, pois, a ser considerada como a forma superior da dem<r

" Cf Prm•da, I2 de Janeiro de 1980.

301
,,,._

CHARLES BETTELHEIM

cracia. Ritos e cerimónias múltiplos, por ocasião dos quais os


Soviéticos são convidados a aplaudir os seus dirigentes e a apro-
vá-los, designadamente votando neles, visam simbolizar esta iden-
tificação e interditar a expressão pública de um pensamento polí-
tico distinto do oficial.
Todavia, em última instância, a fidelidade exigida a cada um
não é uma fidelidade à ideologia (a qual pode mudar, de modo
que permanecer fiel às suas afirmações passadas seria trair) mas
antes é uma fidelidade aos dirigentes que se comportam como
proprietários do saber e do Estado e, por consequência, como «pro-
prietários» dos cidadãos que lhes devem estar submetidos e não
podem, perante o Estado, invocar nenhum direito.

B) O recuo relativo do dogmatismo

Tal como na época estalinista, a ideologia oficial reveste essen-


cialmente a forma de um discurso que se dispensa de demonstrar
o que declara e pretende conferir ao que afirma a autoridade impe-
rativa própria de um decreto político. Esta ideologia apresenta-se,
portanto, como um discurso dogmático; é apenas quando é julgado
necessário e possível que este discurso procura justificar as suas
afirmações, mas fá-lo sobretudo recorrendo a citações de Marx
ou de Lénine e/ou a decisões e resoluções anteriormente adopta-
das pelo partido.
Para além da forma do seu discurso, a ideologia oficial tem a
pretensão de chegar ao conhecimento das relações reais através
de meros conceitos e de princípios abstractos, sem que tenha de
submeter as suas afirmações à experimentação científica. Trata-se
de uma posição e de uma prática dogmáticas análogas às que a
ideologia estalinista havia elevado ao máximo quando pretendia
julgar, segundo os seus próprios critérios, a validade de qualquer
posição científica (na física, na matemática, na biologia, na his-
tória, na economia, etc.).
No entanto, ao passo que se mantém o discurso dogmático, a
posição e as práticas dogmáticas da ideologia oficial do período
pós-estalinista tendem a recuar, pelo menos no domínio das ciên-
cias da natureza, mostrando-se, porém, aparentemente pouco aba-
ladas no domínio das ciências sociais, da história, da economia e
da política. Todavia, mesmo no domínio das ciências da natureza,
a posição dogmática da ideologia oficial só dificilmente recua,
como mostra o apoio obstinado dado por IKhrouchtchev ao lys-
senkismo. No princípio dos anos 60, Lyssenko e os seus partidá-
rios ainda ocupam posição dominante na biologia e na agronomia.
A direcção do partido vê no lyssenkismo uma concepção que
302
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

permite resolver mais facilmente as dificuldades da agricultura e


da pecuária, concepção esta «fundada» nas leis do materialismo
dialéctico. Pelo contrário, as outras concepções da biologia, em par-
ticular as conclusões da genética e da biologia molecular, são rejei-
tadas ou encaradas com desconfiança, apesar dos seus incontestá-
veis êxitos, sob pretexto de que não estão em conformidade com
as leis do materialismo dialéctico e que representam «ciências bur-
guesas».
A partir de 1962, os meios científicos tentam resistir mais acti-
vamente a este dogmatismo. Em Maio desse ano, a Academia das
Ciências organiza um colóquio que sublinha as perspectivas aber-
tas pela genética e a biologia molecular. O colóquio chega ao
ponto de concluir pela necessidade de fundar institutos de inves-
tigações que assegurariam o desenvolvimento destes ramos da bio-
logia; como a fundação destes organismos de investigação exige
um decreto do governo, uma comissão da Academia prepara o
respectivo texto. Não obstante, a direcção do paltido e, sobretudo,
Khrouchtchev tomam atitude negativa perante esta comissão e
acabam por a dissolver a 12 de Julho de 1962. Por ordem da
direcção do partido, os arquivos da Comissão da Academia das
Ciências são apreendidos e deixam mesmo de estar acessíveis".
A direcção do partido cria uma outra comissão no sentido das
concepções lyssenkistas; porém, os cientistas que nela participam
resistem a tais directivas, de tal modo que esta comissão é, final-
mente, substituída por um pequeno grupo de trabalho que a direc-
ção do partido espera que seja mais dócil. Na realidade, até este
grupo restrito afirma a necessidade de desenvolver todas as ten-
dências da biologia, embora pondo o acento nas concepções lys-
senkistas; a resolução adoptada pelo grupo de trabalho é aprovada
pelo Comité Central e pelo governo sob a forma de um decreto de
25 de Janeiro de 1963.
Tal decreto parecia um compromisso; ora, três dias mais tarde,
a Pravda e as lzvestia publicam simultaneamente (o que é absolu-
tamente excepcional no caso de um texto deste género) um artigo
a duas colunas de Lyssenko. Este reafirma ali todas as suas posi-
ções, condena os erros de Darwin e de Morgan, expõe uma lei
nova de transformação da matéria não viva em matéria viva, nega
o papel dos genes na hereditariedade, etc. ~ este artigo o ponto
de partida de uma grande ofensiva lyssenkista apoiada por Krou-
chtchev. Todavia, a situação política e económica é tal que não
é possível limitar-se a dar o debate por encerrado e que se abre

" Cf. Jaurés Medvedev, Grandeur et Chute de Lyssenko, Paris,


NRF, 1971, pp. 246-247.

303
CHARLES BETTELHEIM

uma polémica. Os lyssenkistas publicam numerosos artigos, num


dos quais se referem a uma frase pronunciada por Khrouchtchev,
a 8 de Março de 1963, dirigida aos escritores, na qual declara:
A coexistência pacífica no domínio da ideologia é uma
traição ao marxismo-leninismo, uma traição à causa dos
operários e dos camponeses 14•
Em Fevereiro de 1964, Khrouchtchev pronuncia um longo
discurso perante o Comité Central, onde faz o elogio das con-
cepções de Lyssenko que permitem, diz ele, obter elevadas produ-
ções de cereais, carne e leite'". A ofensiva lyssenkista prossegue,
portanto, e conduz, entre outros efeitos, a preparar a liquidação
de todas as raças bovinas indígenas.
No entanto, em Junho de 1964, a Academia das Ciências volta
a resistir. Esta resistência exaspera Khrouchtchev que ameaça dis-
solver a Academia. Mas, finalmente, os desastres que atingem a
agricultura soviética conduzem, entre outras causas, à queda de
Khrouchtchev e ao fim do lyssenkismo.
Este episódio marca o recuo das posições e das práticas dogmá-
ticas nas ciências biológicas e físicas, mas não no domínio das
ciências sociais onde elas permanecem vivazes e onde largamente
se continua a escolher entre o «verdadeiro» e o «falso» em nome
de um marxismo-leninismo, aliás sempre ajustado às necessidades
do momento.
Quanto ao discurso dogmático, em nada cede terreno já que
uma das suas funções é a de permitir denunciar aqueles que se lhe
opõem'".
C) As relações ideológicas
da. população com o poder

As relações ideológicas da população com o poder, com o par-


tido e o Estado estão muito longe de ser relações de confiança
na capacidade dos dirigentes e na veracidade do seu discurso,
antes são relações de sujeição baseadas maciçamente no concei-
to do carácter inevitável do poder estabelecido. Alimenta-se este
conceito da repressão exercida contra a crítica organizada dirigida
14
Cf. Jaurés Medvedev, Grandeur et Chute de Lyssenko, ob. cit.,
p. 254.
'" Cf. Pravda, 14 de Fevereiro de 1964.
16
Esta função do discurso dogmãtico no sistema soviético é eviden-
ciada por Alexandre Zinoviev, como nota Jon Ester, cf. o artigo deste
autor: «Négation active et négation passive», em Archives européennes
de sociologie, designadamente pp. 330-331.

304
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

ao sistema, da brutalidade dessa repressão e da lembrança do


terror da época estalinista.
A solidez desta representação repousa, em última instância,
sobre o medo de pensar diferentemente, medo a propósito do qual
um autor clássico já falava da «espinha moida de pancada do
homem russo» 11• Certo é que a repressão e o medo não impedem
as revoltas, as quais são numerosas tanto na época de Estaline
como depois; como, porém, não podem organizar-se em larga
escala, ficam limitadas às localidades em que tomam nascença,
como Novotcherkassk (em 1962), Grozny, IKrassnodar, Yaroslav,
e muitas outras'".
A representação do carácter inevitável do poder estabelecido
sente-se de algum modo confortada pelas dificuldades que se
deparam (devido, exactamente, ao modo específico de dominação
ideológica) à elaboração em escala minimamente ampla de um
projecto que representa outro tipo de sociedade. Nestas condições,
não parece que a ideia de rejeitar o que existe possa desembocar
noutra coisa que não seja o «vazio». O receio deste «vaZio» é
ampliado pelos efeitos de dezenas de anos de privações de toda a
liberdade, de tal modo que a própria ideia de uma inversão ou de
um enfraquecimento significativo do poder e das normas que este
impõe é geradora, nas camadas mais amplas, de um verdadeiro
pânico. Intervém aqui um «medo da liberdade»'" que não deixa
de ter analogia com aquele que sentem os que viveram durante
muito tempo num universo prisional e que ficam desnorteados
perante a perspectiva das responsabilidades que deverão assumir,
uma vez libertados. O constrangimento é, assim, ressentido como
uma segurança. Por isso, aqueles que an1eaçam a estabilidade do
regime podem ser considerados «inimigos», seja porque a sua
acção se apresenta como geradora de uma «anarquia» não domi-
nável, seja porque a sua coragem envergonha aqueles que aspira-
riam também a mudanças mas que o medo impede de agir nesse
sentido.
No entanto, as relações ideológicas da massa da população com
o «sistema soviético» não estão ligadas somente à representação da
«necessidade inevitável» do poder estabelecido. Comportam tam-

" Segundo a fórmula lembrada por Grigori Svirski em Ecrivains de


la liberté, ob. cit., pp. 57-58.
" Cf. Mtchel Heller e Aleksandr Nekritch, L'utopie au pouvoir,
Paris Calmann- Lévy, 1982, pp. 492-495.
1• La Peur de la liberté é o título dado em francês a uma obra de
Erich Fromm, Paris, Buchet-Castel, 1963, publicada em mglês sob o
título Escape from Freedom, na qual o autor se interroga sobre as razões
que ocasiOnaram a submissão ao totalitarismo nazi e fascista.

Est. Doe. 220-20 305


CHARLES BETTELHEIM

bém elementos «positivos» ligados a certos aspectos da política


seguida pelo poder.
Na época de Estaline, o populismo estalinista foi um destes
elementos. Contribui, então, para fazer surgir o secretário-geral
(apesar dos ódios contra ele acumulados) como o instrumento de
uma unidade social -na realidade, inexistente- e como um diri-
gente que corrige os «abusos» cometidos pelos privilegiados e os
poderosos. A realidade dessa relação ideológica com Estaline, con-
trapartida da atomização da consciência social, é confirmada pelo
enorme fluxo de cartas dirigidas a Estaline por operários e cam-
poneses 20 • Ao populismo estalinista responde, na época, um abso~
lutismo popuiar que vê na repressão exercida pelo poder (repressão
que, todavia, atinge também inúmeros operários e camponeses) o
meio indispensável para eliminar os «inimigos do povo» cuja acti-
vidade parece ser, mesmo aos olhos dos cidadãos vulgares, uma
das razões das dificuldades que encontram na sua vida quotidiana.
Esta representação incita à delação, à caça aos traidores, a prá-
ticas que dividem indefinidamente o povo, ao mesmo tempo que
o unem numa «vigilância» comum.
As relações ideológicas da população com o poder variam no
decurso do tempo e, tendo sido historicamente constituídas, são
extremamente complexas. Podem ser, simultânea ou sucessiva-
mente, relações de «confiança», de «dependência», de «hostili-
dade», etc., que se combinam de maneira variável. Assim, a rela-
ção de confiança da população com o poder parece ter sido
mínima no fim dos anos 30 e no princípio do conflito germano-
-soviético (o que desempenhou certo papel nas derrotas iniciais),
ao passo que se reforça com os sucessos militares e, sobretudo, no
momento da vitória de 1945, mas enfraquece rapidamente nos
anos após o fim da guerra, quando a fome e a morte atingem, de
novo, milhões de camponeses 21 •
A relação de confiança com Estaline varia também consoante
as classes e as camadas sociais. iÉ particularmente fraca entre os
kolkhozianos e os quadros do exército (alguns dos quais são envia-
dos para o guiag após a guerra e se mostram capazes de organizar
aí verdadeiras revoltas)".
Malgrado estas flutuações e estes aspectos contraditórios, a
relação de confiança no poder, que a personalidade de Estaline
havia feito nascer numa parte da população, desaparece em larga
" O livro de Nicolas Werth, P:tre communiste ... , ob. cit., fornece
importante informação a este respeito.
" Cf. M. Heller e A. Nekritch, ob. cit., p. 390.
" Esta' revoltas, frequentemente conduzidas por antigos oficiais, são
numerosas de 1945 a 1955 (cf. ibid., p. 413).

306
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

medida com a morte do secretário-geral. As relações ideológicas


da população com os dirigentes que sucedem a Estaline são ainda
mais instáveis do que as estabelecidas com este. Dependem larga-
mente daquilo que se espera da política desses dirigentes (os quais
não têm, atrás de si, uma história conhecida -real ou falsifi-
cada- que possa servir de base a relações ideológicas minima-
mente duradouras). Assim, de 1956 a 1960, Khrouchtchev benefi-
ciou das esperanças que as suas promessas fazem, então, nascer
(e, também, algumas mudanças objectivas). Tais esperanças des-
cem ao mais baixo nível em 1962-1964. A queda de Khrouchtchev
faz nascer, de novo, uma certa esperança e é mesmo acolhida com
alegria entre os operários, embora Brejnev pouco beneficie de
simpatias (é considerado o «traidor» que eliminou o «velho» starik
que o havia feito «subir»). Kossyguine, que preside ao Conselho
de Ministros, é objecto de confiança, sobretudo no fim dos anos
60 e princípio dos anos 70, período durante o qual se regista uma
real progressão do nível de vida. Porém, na segunda metade dos
anos 70, o nível de vida deixa pouco a pouco de progredir. Por
isso, após o desaparecimento de Kossyguine, a grande massa da
população parece estar cada vez mais farta da equipa dirigente,
sem que exista alguém que possa ser considerado como um futuro
dirigente que beneficie de simpatias populares. O início dos
anos 80 está marcado pela espera morosa do desaparecimento
de Brejnev e da sua equipa; é com indiferença que é acolhida pela
população, a sua morte, em Novembro de 1982.
As relações da população com aqueles que exercem o poder
após a morte de Estaline dependem largamente das medidas de
politica económica e social que tomam, das esperanças que tais
medidas fazem nascer e dos seus efeitos reais, sobre as diferentes
classes e camadas sociais, porque as promessas referentes a um
longínquo «futuro radioso» perderam todo o prestígio. As condi-
ções estão prontas, no decurso dos anos 70, para que se produza
uma verdadeira crise ideológica.
Perante esta crise que resulta, simultaneamente, dos insucessos
económicos e da crescente erosão dos efeitos de um discurso este-
reotipado sobre o marxismo-leninismo que guia a política do par-
tido, este último defende cada vez mais os temas políticos con-
servadores que já faziam sentir a sua acção na ideologia estalinista.
Como justamente mostra Hélêne Carrêre d'Encausse, os três
principais temas ideológicos doravante expostos aos povos da
URSS referem-se à trindade: trabalho-família-pátria:
A reabihtação da família anda a par com uma adesão
<W' valores morai~ tradicionais, da recusa da permissivi-

307
"\

CHARLES BETTELHEIM

dade e de todas as formas de marginalidade. O estereótipo


do «bom» cidadão soviético veiculado pelos media é o tra-
balhador que luta pelo bem dos seus e o bem comum
confundidos, disciplinado, que adere totalmente ao sistema
cujos valores transmite à sua família".
A ideologia soviética oficial actual quer, portanto, fazer da
família um verdadeiro mecanismo do Estado e do partido; pen-
sa-se que deve funcionar como um prolongamento destes, encar-
regado de tarefas de vigilância e de educação. Este papel confe-
re-lhe posição elevada na hierarquia dos valores oficiais. No
entanto, factualmente, o lugar da família nos valores aceites está
em recuo, como testemunha o facto de serem numerosos os
homens que abandonam a sua família. Quanto ao papel que a
ideologia oficial leva o trabalho a desempenhar, desenvolve-se
tanto mais quanto funciona como contrafogo à indiferença cres-
cente de que os Soviéticos dão provas perante o trabalho prestado
nas fábricas, nos organismos de Estado e nos kolkhozes, trabalho
que decorre sob as condições de uma disciplina organizada segundo
o modelo militar dos princípios do século. Esta «indiferença» é
uma manifestação específica da luta de classe dos trabalhadores.
A propaganda oficial tenta combater estes fenómenos procla-
mando que o trabalho se tornou uma necessidade «moral», uma
necessidade de servir o povo; estas afirmações são constantemente
desmentidas pelos factos e pelos discursos dos dirigentes que de-
nunciam o «deixar andar» e afirmam, como Khrouchtchev fazia
por ocasião elo XX Congresso, que «é indispensável travar uma
luta ainda mais resoluta contra as sobrevivências do capitalismo,
tais como a preguiça, o parasitismo, a embriaguez e o exibicio-

msmo ... » '24.
Quanto ao dzscurso patriótico, reforça uma política naciona-
lista grande-russa que, em cada república, confia o poder real a
dirigentes russos ao mesmo tempo que os postos honoríficos são
dados a «alógenos». As repúblicas periféricas servem de local
para a formação e a promoção dos futuros quadros centrais essen-
cialmente russos, o que não é nada favorável ao desenvolvimento
do «patriotismo soviético» tão apregoado pelo discurso oficial. As
publicações do exército queixam-se, aliás, da baixa do patriotismo
da juventude, baixa que afecta não somente os jovens das repúbli-
cas não russas mas também os jovens russos.
Assim, os discursos sobre o trabalho, a família e a pátria, bem
como aquele qae condenam o alcoolismo ou anunciam um futuro
" Cf. H. Carrhe d'Encausse, Le Pouvoir confisqué, ob. cit., p. 169.
" Cf. Cahiers du communisme, n.' 12, 1961, p. 120.

308
,_ ~ {" -

j
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

de abundância, não exercem influência sobre a população. As prá-


ticas qualificadas de «sobrevivências do capitalismo» pelos dirigen-
tes (designadamente a especulação e a embriaguez) 25 estão em
plena expansão, ao passo que a política económica permanece
encerrada em limites que lhes fia um sistema que não experimen-
tou mudanças fundamentais.

4. Continuidade e mudança na economia

A continuidade do sistema económico manifesta-se pela manu-


tenção das mesmas relações de produção e de exploração, e das
mesmas formas de propriedade, embora a importância relativa
do salariato e da propriedade de Estado aumente e a do trabalho
concentracionário e do trabalho kolkhoziano diminua, relativa-
mente ao período estalinista.
Ao nível de gestão corrente, mantém-se igualmente a subordi-
nação estreita das administrações económicas, das empresas, dos
técnicos e dos sindicatos à direcção do partido. O principal crité-
rio da selecção dos quadros e da nomeação para um lugar político,
administrativo, económico ou mesmo técnico, continua a ser
essencialmente a fidelidade daquele que é escolhido à linha e à
ideologia do partido e a sua dedicação aos dirigentes deste. Seme-
lhante critério favorece, geralmente, a promoção de homens me-
díocres, destituídos de carácter e de verdadeiros conhecimentos.
No entanto, após os anos 50, as reformas económicas foram
numerosas. Ao passo que, no decurso da guerra e logo após esta,
os comissariados industriais centrais (depois ministérios) intervi-
nham cada vez mais na vida das empresas (o que reduzia o alcance
do princípio da «direcção única>> e conduzia a forte centralização
administrativa), em 1957, um grande número de tais ministérios
é suprimido. É esta uma das principais reformas introduzidas por
Khrouchtchev: transfere as incumbências desses ministérios para
novos organismos regionais, os Sovnarkhozes ou Conselhos da
Economia Nacional. Esta descentralização é acompanhada pelo
acréscimo do papel económico do partido. A resistência dos apa-
relhos de Estado a estas medidas e o descontentamento de grande
número de apparatchiki contribuem para o seu insucesso.

" O consumo de álcool na URSS aumentou tão fortemente que


exerce visíveis efeitos negativos sobre a mortalidade (voltarei a este ponto)
o que obrigou a «apanhan> os bêbedos nas ruas das cidades, para serem
conduzidos para locais de «desembriaguez».

309
''. '\,... .,,

CHARLES BETTELHEIM

Após a queda de Khrouchtchev, esta reforma é abandonada


e, em 1956, os ministérios centrais são restabelecidos, mas outra
reforma é tentada que procura deixar maior iniciativa às empresas
reduzindo o número de objectivos que lhes são impostos e permi-
tindo-lhes ter, em certos casos, laços económicos directos entre si
próprias e com os organismos comerciais. Em 1967, os preços são
revistos a fim de corresponderem melhor aos custos monetários
e dar melhor utilização ao cálculo económico em moeda. No en-
tanto, estas reformas pouco atingem o planeamento central. Res-
pondem a concepções contraditórias e têm poucos efeitos práticos.
Uma nova reforma económica, promulgada em 1973, extrai
a~ consequências deste insucesso. Caminha no sentido de uma nova
centralização e insere grande número de empresas em associações
industriais que intervêem na gestão corrente. Reduzem-se, assim,
novamente, as iniciativas que podem tomar os dirigentes das uni-
dades de produção. Os resultados desta reforma são decepcionan-
tes. Por isso, em 1979, aparece outra reforma, cuja finalidade ofi-
cial consiste em «melhorar» o funcionamento da economia,
modificando o modo de fixação dos objectivos do plano e recor-
rendo de novo à centralização das decisões económicas e do planea-
mento. Como Marie Lavigne nota muito justamente, o texto desta
reforma constitui «um extraordinário reconhecimento do insu-
cesso da reforma realizada em 1965» "6 •
Em definitivo, as diferentes reformas económicas representam
uma sucessão de malogros. Tendem, em vão, a reduzir a enormi-
dade dos desperdícios, os transportes inúteis de produtos de uma
ponta a outra do pais, a melhorar a qualidade da produção, a
encurtar os prazos de entrada ao serviço dos equipamentos e a
«acelerar o progresso técnico>>, a assegurar um aprovisionamento
mais regular das fábricas, das explorações agrícolas, das organiza-
ções comerciais e, por último, da população.
O insucesso das reformas parece traduzir a incapacidade pro-
funda do sistema instalado no decurso dos anos 30 para se trans-
formar realmente, para suportar mudanças que modifiquem de
maneira séria o lugar dos diferentes agentes de produção e redu-
zam a pesada e paralisante tutela exercida pelos órgãos adminis-
trativos centrais e pelo partido sobre a vida económica do país.
Ora, semelhante tutela é cada vez mais incompatível com a com-
plexidade da economia e com o esgotamento das reservas de for-
ças de trabalho de que o país dispõe.

" Cf. M. Lavigne, «Nouvelle réforme économique en Union sovié-


tique», Le Monde diplomatique, Setembro de 1979, p. 3

310
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

Assiste-se mesmo ao malogro das tentativas feitas para trans-


formar a organização do trabalho nas fábricas, afastando-a do
velho modelo militar e formando brigadas polivalentes, tudo isto
em conformidade com directivas por várias vezes dadas no decurso
dos anos 70. Este fracasso é também devido às múltiplas resistên-
cias com que tais directivas se defrontam. Aliás, nos casos em que
as referidas brigadas se formam e funcionam bem, dissolvem-se
rapidamente porque os operários que nelas participam as aban-
donam geralmente após terem recebido os prémios que esta orga-
nização do trabalho lhes atribui; com efeito, os rendimentos nomi-
nais de que assim beneficiam não têm contrapartida no mercado,
razão pela qual os operários julgam inútil prosseguir o esforço
exigido pelo trabalho em equipas ".
Esta incapacidade parcial e tardia revelada pelo sistema para
se transformar prejudicou a progressão da produção. Até estes
últimos anos, com efeito, a economia soviética pôde mobilizar
reservas de mão-de-obra, continuou a transferir novos trabalha-
dores dos campos para a indústria e elevou ao máximo o recurso
ao trabalho feminino. No entanto, hoje, as potencialidades deste
tipo de desenvolvimento extensivo estão praticamente esgotadas.
Deve acrescentar-se que os insucessos e as dificuldades cres-
centes do sistema se encontram em parte atenuados pelas condições
reais de funcionamento, que estão longe de corresponder plena-
mente às regras que se julga deveriam ser respeitadas pelas empre-
sas e administrações, designadamente do ponto de vista das gamas
de produtos que deveriam ser fornecidos, das qualidades que tais
produtos deveriam ter e das condições técnicas da respectiva
produção.
As violações do plano e das regras formais de funcionamento
da economia verificam-se tanto mais facilmente quanto os quadros
locais delas retiram vantagens pessoais, já que abrem largamente
a via ao desenvolvimento de uma produção e de um comércio
«clandestinos» (quer nas empresas de Estado, quer nas unidades
industriais e comerciais privadas que funcionam ilegalmente, em-
bora toleradas) que dão origem a uma economia paralela ou subter-
rânea. Impossível é avaliar a importância desta segunda economia,
mas sabe-se que, em numerosos domínios, ela desempenha papel
importante e até indispensável, garantindo aprovisionamentos que,
sem ela. fariam falta à população, às empresas, ao Estado e aos
kolkho:.es.

"' Cf. sobre este ponto o artigo de Daniele Leborgne, «1930-1980:


50 ans de croissance extensive en URSS» em Critique de I'économie poli-
tique, n.' 19, Abril-Junho de 1982.
311
CHARLES BETTELHEIM

A extensão da economia paralela aumenta consideravelmente


os rendimentos reais dos quadros do partido, do Estado e da eco-
nomia, principalmente ao nível dos distritos, onde poucos quadros
têm acesso às lojas «fechadas» (reservadas aos quadros superiores).
Para deixar funcionar esta economia paralela, aqueles quadros
fazem com que lhes seja entregue uma parte das receitas dela pro-
venientes ou, no caso de serem directamente utilizáveis, uma parte
dos produtos desta. Impõem, assim, um verdadeiro tributo que
lhes permite, entre outros benefícios, dispor de carros particulares
e mandar construir moradias (com materiais desviados dos esta-
leiros de construção de escolas e hospitais). Conseguem, assim,
obter objectos de consumo de toda a espécie (comprados «atrás do
balcão» nos armazéns de Estado ou na economia paralela) e ser
servidos em salas separadas nos melhores restaurantes a preços
geralmente muito vantajosos. Os dirigentes de empresas que não
aceitassem pagar este «tributo>) aos quadros locais arriscar-se-iam
a grandes incómodos porque estes têm sempre possibilidades de
os acusar de diversos delitos e de os fazer condenar.
O tributo desta forma percebido por certos quadros que
ocu_;Jam níveis bastante elevados na hierarquia não deve ser con-
fundido com as «luvas>> que os simples cidadãos são forçados a
pagar para obter uma parte dos serviços aos quais teoricamente
têm «direito», designadamente, para conseguir certos tratamentos
médicos, receber dados medicamentos ou determinados cuidados,
etc. Tal tributo também não deve ser confundido com a confusão
que permite àqueles que dispõem de dinheiro suficiente para com-
prar diplomas, graus universitários ou até uma situação no apa-
relho do partido e do Estado "".
A economia paralela, além de permitir que a economia oficial
funcione, constitui, portanto, uma das bases dos privilégios da
burguesia de partido. Por isso, esta última encoraja até certo
ponto este fenómeno e constrange mesmo a que nele participem
agentes económicos. No entanto, simultaneamente, como o desen-
volvimento de semelhante economia, ao tornar-se demasiado inva-
sor, arabaria por ser nocivo à economia oficial, ela só é tolerada
dentro de certos limites (variáveis segundo a conjuntura e as apre-
ciações subjectivas das autoridades); quando tais limites são ultra-

" Sobre o tributo e as «luvas», cf. Konstantin Simis, The Second


Economy at the D1stnct Levei, Occasional Paper n.' 111, Washington,
Kenan InstJtute. Sobre a concussão, cf. M. Heller e A. Nekritch, L· U to-
pie ... , oh. cit., p. 527. Ver também G. Duchêne, «L'officiel et le parallêle
dans l'économ1e soHétJque». L1bre, n." 7, 1980, e do mesmo autor
<<L'Économíe parallcle en Union Soviétique», em Le Courrier des puys de
l'Est, Outubro de 1980.

312
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

passados, algumas das actividades que entraram no campo da


economia paralela dão motivo a sanções penais, incluindo a conde-
nação à morte de dirigentes de empresas, seus colaboradores e ope-
rários.
Embora a economia paralela permita que o sistema funcione,
é certo que torna mais opacas as realidades da produção e das
trocas supostamente regidas pelo plano de Estado.
A economia paralela já existia na época de Estaline, mas to-
mou enorme expansão no decurso destes últimos anos. Em globo;
no interior dos limites que o poder consegue impor-lhe, ela não
modifica fundamentalmente o funcionamento do sistema econó-
mico soviético, o qual continua a suportar as exigências da
acumulação do capital e as crises económicas delas resultantes.
Doravante, estas crises inserem-se, todavia, numa série geral do
sistema.

5. A crise geral do sistema

A crise do sistema soviético diz respeito, ao mesmo tempo, à


economia, à ideologia e à política, reagindo estes seus três aspectos
uns sobre os outros.

A) As crises económicas

Numa visão superficial das coisas, o sistema soviético parece


ignorar as crises e conhecer um crescimento excepcional. Assim,
pode estimar-se que, em 1980, a produção soviética global (me-
dida pelo produto nacional bruto) é multiplicada por cerca de 3 '"

" Este coeficiente de aumento de 3 corresponde a um crescimento


anual médio de 4,5 'o/o; é infe1 ior àquele que apontam as estatísticas ofi-
ciats (a saber, um coeftciente de 5) porque elimma as sobreavahações
que estas estatísticas comportam. Apoia-se em reavaliações concordantes
de dtversos economistas e estatísticos ocidentaiS. Encontram-se algumas
destas reavaltações e as respectivas fontes em A. Bergson, «Soviet Eco-
nomJc Siowdown>>, Problems of Commumsm, Maio-Junho de 1981, pp. 24
e segs. Tats reavaliações foram utilizadas por nós e completadas por esta-
tbt•cas oftctais antigas e recentes; foram também utilizadas as est1mattvas
efectuadas por Jacques Sapu num texto não publicado, redigido em Outu-
bro de 1981 e mtitulado: Premtere synthese sur l'économie suv1e11que-
1950-1975, e no seu artigo aparecido em Le Monde diplomatique, Novem-
bro de 1981.

313
- .; , .

CHARLES BETTELHEJM

relativamente ao nível atingido em 1955. Corresponde este último


ano ao que se pode chamar a «política económica estalinista»
caracterizada, entre outros aspectos, por termos de troca muito
desfavoráveis à agricultura.
Na medida em que tais comparações são significativas, o cres-
cimento acima indicado do PNB faria passar o rendimento nacio-
nal global da URSS de cerca de um quarto do dos Estados Unidos
para cerca de metade'".
A progressão do PNB e do rendimento nacional da URSS é
certamente considerável. Corresponde principalmente a um forte
aumento da produção não agrícola. Tendo em conta este facto
e o aumento rápido dos investimentos e das despesas militares, o
consumo individual só progride muito mais lentamente. Infeliz-
mente, neste domínio, as estatísticas soviéticas são ainda mais
deficientes do que noutros, não sendo, por isso, possível fazer
avaliações senão aproximadas.
Lembremos, antes de mais, no que se refere ao salário real
dos operários soviéticos, em rublos constantes, não ter ele atingido
o nível de 1913 e de 1928 senão em 1963 e 1965, o que corres-
ponde a uma estagnação de quase meio século". Os dez anos
que seguem acusam uma «recuperação» relativamente rápida:
o salário real cresce cerca de 37 '% entre 1965 e 1975 32 • De 1975
a 1980, o consumo por cabeça progride somente 1,6'% por ano 33 •
Pode estimar-se que o salário real não progrediu mais depressa
do que o consumo médio por cabeça, ou seja, um acréscimo de
10,6'% cm cinco anos, o que colocaria o salário real de 1980 em
cerca de 50% acima do nível de 1955. Segundo as estimativas
do Joint Economic Council, o consumo soviético por cabeça

" Segundo cálculos dos órgãos estatísticos soviéticos oficiais, o ren-


dimento nacional da URSS teria passado de 31% do dos Estados Unidos,
em 1950, para mais de dois terços, em 1979 (cf. N. Kh . .. v 1979 g), mas
estas percentagens correspondem a uma forte sobreavaliação do rendi-
mento nacional soviético, como mostra a comparação das produções
industrial e agrícola dos dois países. Lembremos que a população da
URSS é superior em 20 % à dos Estados Unidos, o que significa que um
1

rendtmento nacional global igual a 50 lo/o do dos Estados Unidos repre-


senta um rendimento soviético por cabeça equivalente a 40 'o/o do daquele
país, mas o nível de vida soviético comparado ao do consumidor ameri-
cano é inferior a esta percentagem, devido às penúrias (carne, leite,
manteiga, ovos, etc.) e à má qualidade dos produtos.
" Cf. supra, p. 226.
" Cf. os trabalhos de G. E. Schroeder e B. C. Severin, em Industrial
Labour in USSR, Londres. Pergamon, 1978.
" Cf. M. Elizabeth Dentou, «Soviet Consumer Policy», em Joint
Economic Council (JEC), Soviet Economy in a time of Change, vol. I,
Washington, 1979.

314
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

representaria aproximadamente, em 1976, 37% do nível ameri-


cano ". Semelhante número sobrestima certamente o consumo
soviético, já que não toma em conta nem a má qualidade dos
produtos nem certas penúrias; de qualquer modo, é extremamente
fraco para uma potência económica com a dimensão da União
Soviética. Confirma que o sistema só muito secundariamente
funciona de modo a satisfazer as necessidades dos consumidores
e, antes de tudo, para realizar a acumulação e a produção de
armamentos ": quando abranda a progressão do PNB, continuam
a progredir estes dois tipos de utilização da produção a ritmo
elevado, incidindo cada vez mais pesadamente sobre o consumo
individual.

a) AS CRISES CíCLICAS

O movimento da produção e do investimento soviético continua


a estar submetido a crises cíclicas, como esteve desde os anos 30;
suporta, outrossim, uma crise estrutural cada vez mais profunda.
As crises cíclicas, ligadas às contradições usuais da acumu-
lação do capital, surgem designadamente em 1960, 1963, 1967-
1969, 1972 e 1975 ' 6 (a partir daí, a fusão da crise cíclica com
uma crise económica estrutural torna mais difícil descortinar a
manifestação dos ciclos propriamente ditos).
Tal como as crises cíclicas dos anos 30, também as dos anos 50
e seguintes são marcadas por uma sobreacumulação geradora de
penúrhs generalizada~. incluindo a da força de trabalho"", a dos

,. Cf. M Elizabeth Denton, oh. cit., p. 379


" Segundo as estimativas mais correntemente admttidas, os investi-
mentos e as despesas mtlttares consumiram mais de 35 'o/o do PNB (cf. o
artigo precedentemente citado de Jacques Sapir em Le Monde diploma-
tique, quadro n.' 4). Outras fontes utilizadas por Jacques Sapir (cf. o
quadro n. • l do mesmo artigo) fazem ressaltar que a percentagem das des-
pesas militares relativamente ao PNB é mais elevada do que a citada
acima de 35 'o/o que inclui investimentos e despesas militares.
,. Estas crises foram estudadas por J. Sapir no texto já citado: Pre-
mii':re Smthese ... e num texto datado de Março de 1982, até hoje não
publicado
,., A política soviética tenta atenuar uma parte da penúria de mão-
-de-obra recorrendo a importações de forças de trabalho; por motivos
muito diversos, utiliza este paliativo com muita precaução. Assim, a
União Soviética procede à importação de trabalhadores búlgaros e finlan-
deses. Desde hã algum tempo, pensa-se em recorrer também à imigração
de trabalhadores cubanos e vietnameses. Até ao princípio de 1982, tra-
tava-se de projectos que ainda não haviam tomado forma, mas na Pri-
mavera de 1982 foi a<~malada a chegada de trabalhadores vietnameses.

315
••r" '1, -,,,

CHARLES BETTELHEIM

meios de produção e dos objectos de consumo, e por uma ten-


dência para a alta dos preços, cada vez mais dissimulada, aliás,
por medidas administrativas e por subvenções. Tais crises ocasio-
nam uma baixa momentânea mas significativa da taxa de cresci-
mento e esforços tendentes a «desnatar» os efectivos de certas
unidades de produção ou de certas administrações, a fim de trans-
ferir a mão-de-obra por eles empregue para sectores mais eficientes
ou mais «rendíveis». Revestem estes fenómenos amplitude maior
na época presente do que no decurso dos anos 30, já que as
enormes reservas de forças de trabalho outrora representadas por
um campesinato ainda numeroso desapareceram praticamente.

b) A CRISE ECONóMICA ESTRUTURAL

O esgotamento progressivo das reservas de força de trabalho


e a incapacidade demonstrada pelo sistema de se adaptar à situa-
ção, passando de uma acumulação largamente extensiva para uma
acumulação largamente intensiva (que permitiria fazer subir mais
rapidamente a produtividade social do trabalho) estão na origem
de uma crise económica estrutural caracterizada pelo enfraqueci-
mento, cada vez mais nítido e duradouro, das taxas de cresci-
mento do PNB ".
As diversas fontes estatísticas disponíveis indicam diferentes
taxas de crescimento mas todas confirmam a tendência regular
para a descida destas.
Limitar-me-ei a apresentar números citados por A. Bergson ••:

" É assinalável que a crise estrutural da economia soviética se apro-


funde no próprio momento em que a crise económica dos países de «Capi-
talrsmo privado>>. cm particular nos Estados Unidos. assume maior gra-
vidade· as equipas dirigentes destes países rapidamente se mostram inca-
paLes sequer de encontrar paliativos para esta crise que se prolonga numa
crise ideológica, moral e política particularmente séria.
" Cf. A Bergson, Problems o/ Communism, Maio-Julho de 1981,
p. 26. O número relativo ao período 1955-1965 foi por mim recalculado
u partir dos dados oficiais soviéticos, rectificando-os por utilização dos
métodos empregues para o restante desta série. Acrescento que, de 1 %
(ver o quadro 2 do artigo citado de J. SaPir em Le Monde dip/omatique),
inferior, portanto, à do aumento da população.

316
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV
Taxa de crescimento anual do PNB
(Percentagem)

1955-1965 1965-1970 1970-1975 1975-1980

5,5 5,3 3,8 2,8

As indicações disponíveis aplicadas às previsões oficiais mos-


tram que, durante o quinquénio 1980-1985, a taxa de crescimento
do PNB deverá cair abaixo de 2 'o/o. Tendo em conta o aumento
previsto das despesas militares (que, de há dez anos para cá, cres-
cem 5 1% ao ano, e que deverão continuar a manter-se, pelo menos,
neste ritmo) e o acréscimo da população, pode, portanto, prever-se,
para esse quinquénio, uma estagnação, e sem dúvida mesmo um
recuo, do consumo por cabeça, apesar do aumento previsto das
produções do sector B (objectos de consumo) da indústria, e isto
tanto mais quanto a agricultura dá numerosos sinais de um agra-
vamento da sua própria crise, como adiante se dirá em algumas
palavras. Em 1981, regista-se aparentemente uma baixa do PNB
porque a colheita dos cereais se mantém em nível muito baixo
há bastantes anos: não passa de 175 milhões de toneladas (estima-
tiva oficiosa) contra a média de 239 milhões prevista no plano.
Além disso, a produção industrial de 16 ramos da indústria, entre
os 32 referidos nas estatísticas oficiais, está igualmente a decli-
nar 40 •
A crise económica estrutural já tem efeitos negativos para a
população: o aprovisionamento das lojas é cada vez mais defei-
tuoso, as altas dos preços oficiais e as ocorridas no mercado para-
lelo são múltiplas. Isto não impede a população de dispor àe um
«pcder de compra» potencial inutilizável, equivalente a alguns
meses de salário.
A deterioração das condições de existência não se limita ao
consumo individual. Toca as condições de trabalho (em todos
os seus aspectos: disciplina de trabalho mais dura e. sobretudo,
multiplicação dos acidentes de trabalho, alguns dos quais, parti-
cularmente graves, ocorreram em Moscovo c noutras cidades
acessíveis aos estrangeiros no fim de 1981 e princípios de 1982.
Observa-se também, a partir de 1970, ~.;ma grave deterioração
das condições de saúde e dos cuidados médicos. iÉ característico
que os últimos números publicados pela Direcção Central das

" Cf Pravda 24 de Abril de 1982, e Herald Tribune, 25 de Abril


de 1982. · '

317
CHARLES BETTELHEIM

Estatísticas sejam os de 1975. Todavia, estes números já eviden-


ciam um forte aumento da mortalidade infantil, a qual aumentou
um terço entre 1971 e 1975, e a análise estatística mostra ainda
que esta mortalidade está subestimada em 14 '%. A taxa de mor-
talidade das crianças com menos de nm ano atinge, pois, 40 o/o
contra 13 '% nos Estados Unidos e na Europa. A URSS, por este
motivo, fica situada ao nível dos países em vias de desenvolvimento
da América Latina e da Ásia (Costa Rica, Japão, Malásia). Por
sua vez, a esperança de vida baixa desde o princípio dos anos 60,
e é inferior em 6 anos à dos países industriais desenvolvidos. Em
1978, a esperança de vida era de 61,9 anos para os homens contra
66 em 1963-1965, ou seja uma baixa de mais de 4 anos. Trata-se
de fenómeno excepcional que se explica pela degradação da
alimentação e dos cuidados médicos, pelo mau funcionamento
do sistema de saúde (que recebe uma parte cada vez mais redu-
zida do orçamento), pela subida do alcoolismo (consequência da
crise económica e ideológica), pelo aumento da poluição e dos
acidentes de trabalho 41 •
Está-se, portanto, claramente em presença de uma crise econó-
mica e social geral, profunda, de longa duração c com efeitos
múltiplos. Afecta, ao mesmo tempo, a situação internacional da
União Soviética e a vida quotidiana dos cidadãos.

C) A CRISE CRóNICA DA AGRICULTURA

A crise estrutural é tanto mais grave quanto se enxerta sobre


nma crise crónica da agricultura, acerca da qual é indispensável
dizer algumas palavras porque ela se tornou parte integrante da
crise estrutural. Tende a bloquear o crescimento do PNB e, além
disso, revela que, embora certas soluções sejam conhecidas, têm
sido consideradas, até ao presente, como inaceitáveis pela direc-
ção do partido, pelo menos no estado actual da relação das forças
sociais e políticas.
Comecemos por lembrar alguns factos impressionantes. Deve
notar-se, por exemplo. que, em 1979. a produção por hectare
das culturas cerealíferas se limita a 14,2 quintais, o que coloca

" Cf. Nil Eberstadt, «The Health Crisis in the USSR». The New
York Review of Books, 19 de Fevereiro de 1981. Encontra-se também
um estudo sério destes problemas em «Aspects de Ia santé publique en
URSS» em Problémes économiques et sociaux, Documentation française,
28 de Dezembro de 1981. Ver também Dr. Knauss, Médecine en URSS.
Paris, Belfond, 1982, e os estudos de Murray Fisbach citados em Le
Monde, 9 de Novembro de 1982.

318
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

a URSS abaixo do nível da Grécia e da Jugoslávia em 1956-1959


e abaixo do seu próprio nível no princípio dos anos 70, quando
a agricultura soviética absorvia 27% dos investimentos inscritos
no orçamento. A agricultura kolkhoziana e sovkhoziana reve-
lou-se, portanto, incapaz de progredir seriamente, mesmo depois
de lhe terem sido fornecidos importantes meios financeiros e
materiais (por exemplo, a produção de adubos minerais passou,
em unidades convencionais, de 55,4 para 94,5 milhões de toneladas
entre 1970 e 1979) 42 •
A crise crónica da agricultura soviética tem como conse-
quência a URSS ser, doravante, obrigada a comprar cada vez
mais cereais nos Estados Unidos, Canadá e Austrália. Esta política
de compras, inaugurada por Khrouchtchev, tem prosseguido
desde então. Em 1972, a URSS comprou 18 milhões de toneladas
de cereais aos Estados Unidos e, em 1979, 24 milhões.
A verdadeira falência agrícola da URSS surge em toda a sua
amplitude quando se comparam os rendimentos da agricultura
soviética com os da agricultura americana no princípio dos
anos 70. Os números destes anos são, com efeito, sempre signi-
ficativos devido à estagnação dos resultados agrícolas da URSS.
Antes de examinar outros números, deve ser lembrado que, no
princípio dos anos 70, a agricultura soviética emprega 26,6 mi-
lhões de pessoas contra 3,8 milhões na agricultura americana,
e que os dois países dispõem de efectivos pecuários mais ou
menos iguais. Por cada pessoa empregue, as produções são as
seguintes:

Produção por pessoa empregue na agricultura"

URSS Estados Unidos


(por ano) (por ano)

Cereais ................................. . 4,5 t 54,7 t


Carne (peso morto) ................ . 320 kg 4570 kg
Leite .................................. . 2,8 t 11,8 t
Batatas ................................ . 2,43 t 3,2 t

" Cf. NKH ... y 1979 g., pp. 177 a 220.


" Cf. o quadro que figura a p. 18 do artigo de B. Kerblay, «L'expé-
rience soviétique d'agriculture collectiviste», em Revue d'Études compa-
ratives Est-Ouest, Setembro de 1979.

319
CHARLES BETTELHEIM

Além de os rendimentos unitários da agricultura soviética se-


rem fracos, os seus custos de produção são muito superiores aos
da agricultura americana, embora o salário mínimo horário na
URSS seja apenas de 44 kopeks, o que representa 59 cêntimos
dos Estados Unidos (números de 1968), contra um salârio horário
agrícola americano de 1,72 dólares. Malgrado estes baixos salários,
o preço do trigo no produtor é de 102 rublos por tonelada na
URSS contra o equivalente (em rublos) de 49,5 nos Estados Uni-
dos; para o milho, os números são os seguintes: 136 rublos (na
URSS), 32,25 (nos Estados Unidos); para a beterraba sacarina:
32 rublos contra 9,4; para a carne bovina: 1113 rublos contra 337 44 •
Assim, malgrado os salários soviéticos serem três vezes mais
fracos do que os salários americanos, seria mais «vantajoso)) para
a URSS comprar aos Estados Unidos os seus produtos agrícolas
em vez de os produzir nas condições em que os produz, isto sem
ter em conta os problemas de segurança dos aprovisionamentos
e os da balança de pagamentos.

B) A crbe ideológica

As transformações das relações ideológicas entre a população


e o poder conduziram, pouco a pouco, a uma crise ideológica, que
não está ligada somente à crise económica estrutural de que aca-
bamos de falar visto ser mais antiga do que as manifestações
mais evidentes desta última. Hoje, no entanto, as duas crises refor-
çam-se mutuamente.
A crise ideológica manifesta-se sob formas múltiplas. Refe-
re-se, aliás, igualmente, às relações dos dirigentes políticos com
a ideologia oficial de que são os porta-vozes. Não há, com efeito,
lugar a dúvidas que, em seguimento dos insucessos económicos
acumulados pela URSS, o credo da época estalinista e da época
khrouchtcheviana sobre a capacidade de a URSS «alcançar e
ultrapassar num mínimo de tempo os Estados Unidos)) se apresenta
presentemente como irrealizável àqueles que detêm o poder na
União Soviética, a tal ponto que se esforçam antes de tudo por
ultrapassar aquele pais no domínio militar.
Para os dirigentes e para as camadas superiores do aparelho
em geral, quebrou-se a unidade aparente da ideologia oficial: são
apenas alguns elementos desta ideologia que desempenham um
papel activo: o seu conservantismo, a sua afirmação do imutável
«papel dirigente)) do partido, da necessidade de, para governar,

" Cf. o artigo de B. Kerbllay citado, p. 28, quadro 4.

32(}
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

controlar ao máximo a circulação da informação 45 • Esta ideologia


continua a condenar toda a intervenção na vida política das cama-
das «insuficientemente formadas» da população, a qual é con-
cebida como devendo ser constantemente educada e reeducada
pelo partido; em suma, a oligarquia política dirigente permanece
fundamentalmente agarrada ao elitismo da ideologia totalitária
que quer submeter inteiramente os indivíduos ao partido e ao
Estado. O «chauvinismo» e a crença no papel mundial da URSS,
incluindo aquele que lhe competiria para libertar os outros povos,
continuam igualmente a ocupar um lugar central na ideologia
das camadas dominantes e contribuem para o desenvolvimento
da política de armamento e da política internacional soviéticas.
A política de armamento visa, aliás, também -quando já se
desmoronou o anterior credo económico- demonstrar aos povos
da URSS o poder do seu governo, a sua capacidade de acção e
o carácter irreversível do seu poder.
No entanto, a crise ideológica reveste ainda outra dimensão:
não se limitando à oligarquia política e aos meios dirigentes,
desenvolve-se no seio de todas as camadas da população e põe
em causa as relações desta com o poder. São numerosos os ele-
mentos que contribuíram para o desenvolvimento dessa crise.
A libertação de parte dos detidos políticos, em 1953, depois
e em maior número a partir de 1956, e a denúncia dos crimes
do período de Estaline, desempenharam papel considerável quando
foi posta em causa abertamente a ideologia oficial.
O regresso dos antigos internados dá a uma parte da população
a possibilidade de se reapropriar do passado do país (que havia

" Todo o atentado à censura aparece como ameaça ao poder. Foi


possível verificá-lo numerosas vezes, por exemplo na época de Khrouch-
tchev, por ocasião da enorme campanha conduzida contra Boris Pastemak,
cujo Doutor Jivago havia aparecido no estrangeiro; na época de Brejnev,
em Maio de 1967, quando Soljénitsyne escreveu ao IV Congresso dos
Escritores para protestar contra a censura exercida pelo glavit, carta
que nenhum escritor pôde ler na tribuna. Viu-se, ainda, em Julho de
1969, por ocasião da reunião dos PC do Leste convocada para Varsóvia,
reunião em que Gomulka se manifestou contra o projecto do PC checo
de suprimir a censura, indo até ao ponto de declarar: «A supressão da
censura significa simplesmente que a direcção do partido renunciou a
exercer a menor influência sobre a evolução geral do país» (cf. Erwin
Verit, Dans l'ombre de Gomulka, Paris, 1927, p. 277). A imprensa sovié-
tica, ao comentar aquele projecto, escreve que ele permitiria à contra-
-revolução «apoderar-se dos média para desmoralizar a população do país
e envenenar a consciência dos trabalhadores com o fel das ideias anti-
-socialistas» (citado por Michel Heller e Aleksandr Nekritch, L'Utopie au
povoir, ob. cit., p. 517). Muito recentemente, na Polónia, os Soviéticos
exerceram pressão rigorosa contra toda a supressão de censura nesse país.

Est. Doe. 220-21 321


CHARLES BETTELHEIM

sido ocultado por uma história profundamente mentirosa, e que


continua a está-lo em larga medida). Constitui esta reapropriação
o terreno no qual se desenvolve uma reflexão histórica e política
independente que põe directamente em causa a ideologia do
partido.
Nasce, assim, uma atmosfera nova, que incita à intervenção
de gerações que não conheceram, ou conheceram pouco, o terror
em grande escala da época estalinista. Nascem círculos de jovens
que se tornam focos de uma reflexão autónoma. Obras soviéticas
são publicadas no estrangeiro e circulam na URSS, clandestina-
mente. Começam também a circular no país textos que não
foram submetidos a censura e que são policopiados. É o samizdat.
Os primeiros destes textos provêm de antigos deportados: as recor-
dações de Evguenia Guinsburg, A Vertigem, depois os Contos de
Kolyma de Chalamov, circulam desde os anos 50. No princípio
dos anos 60, assiste-se também ao aparecimento de revistas clan-
destinas como Syntaxis e Phoenix 61. Começam desta forma a
expandir-se uma literatura e uma poesia que escapam à censura,
cujos autores, como Boukovski. E. Kouznetsov, V. Ossipov, são
presos a partir de 1961, ao passo que outros intervêm mais tarde,
como Siniavski, Youri Daniel, L. Pliouchtch e muitos outros,
que também serão presos ou forçados ao exílio.
Durante estes mesmos anos, o prestígio acrescido dos cien-
tistas (que o regime procura poupar) permite a alguns deles, mais
lúcidos, mais corajosos ou mais conhecidos do que outros, expor
ideias diferentes das da ideologia oficial, como é o caso, a partir
de 1958, do académico Andrei Sakharov que prosseguiu a sua
luta e está hoje exilado em Gorki. Surge assim, de maneira ainda
embrionária, um começo de opinião pública, de uma opinião di-
versa daquela, fictícia, fabricada pelo poder.
Simultaneamente, começa a desenvolver-se a luta pela defesa
dos direitos inscritos na Constituição mas não respeitados, luta
esta que a oligarquia política considera particularmente perigosa:
exigir o respeito pela legalidade constitui, aos seus olhos, um
atentado contra os fundamentos do Estado soviético, porque tal
exigência põe a nu a natureza fictícia de uma lei destinada, antes
de tudo, a dissimular o arbítrio total do Estado; por isso, reclamar
respeito pela lei constitui uma manifestação de oposição ao sistema.
Nos anos 60 e 70 surgem outras formas de luta: as travadas
pelos crentes das diferentes confissões, um número crescente dos
quais exige respeito pela sua fé, a possibilidade de se organizarem,
e a independência dos servidores do seu culto. As nacionalidades
reprimidas participam igualmente na recusa da ideologia oficiaL
A Ucrânia, a Lituânia e as outras nacionalidades dos paises bál-
322
AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

ticos, as nações do Cáucaso e da Asia Central desempenham aqui


papel importante, através de porta-vozes ainda minoritários mas
que beneficiam da simpatia de numerosos operários, camponeses
e intelectuais das respectivas nações.
Todos estes movimentos são reprimidos, mas não com violência
igual à de antes de 1953. Embora a repressão seja real e que tenha
atê endurecido após a queda de Khrouchtchev e o acesso de Brejnev
à testa do partido, prosseguem as diferentes formas de contestação
que contribuem para desenvolver novas relações ideológicas e
novas formas de organização. Nestas condições, manifesta-se
também em expressão mais aberta o descontentamento dos tra-
balhadores. Não se trata somente de revoltas locais, severamente
reprimidas, mas de tentativas de criar organizações sindicais inde-
pendentes. Nasce, assim, a Associação dos Sindicatos Livres dos
Operários da União Soviética, fundada por um mineiro, Khle-
banov, associação que só funcionou alguns meses, entre Fevereiro
e Outubro de 1978 (até à prisão de Khlebanov, enviado para um
hospital psiquiátrico). A este primeiro sindicato livre sucede-se
a Associação Livre lnterprofissional dos Operários (SMOT), que
dá uma conferência de imprensa a 28 de Outubro de 1978 e cujo
animador é Vladimir Borissov. Este segundo sindicato comporta
activistas que já possuem experiência política e que tiram lição
da prisão de Khlebanov. Ainda que submetido à repressão ••, o
SMOT mantém-se. Forma grupos restritos, concentrados sobre-
tudo em Moscovo e Leninegrado, e difunde um material de edu-
cação política e sindical, principalmente registado em bandas
magnéticas ••. O número de operários que participam neste movi-
mento ê certamente muito reduzido, mas a própria existência
destes sindicatos testemunha que os trabalhadores põem em causa
os sindicatos oficiais e o mito da unidade da classe operária em
tomo do «seu partido dirigente».
As chamadas à ordem dirigidas pelas autoridades aos sindicatos
oficiais só vêm confirmar que estes são tão incapazes como outrora
de ajudar os trabalhadores a defender as suas condições de exis-
tência. Esta impotência do sindicalismo oficial manifesta-se, por

•• Borissov, que havia sido preso em 1964, por ter criado um círculo
de estudos marxistas clandestino, esteve então num hospital psiquiátrico
durante três anos. Após a sua primeira libertação é de novo preso em
1969, como membro de um grupo de defesa dos Direitos do Homem.
Conhece de novo o hospital psiquiátrico até 1974. Após a fundação do
SMOT, é preso em Março de 1980 e expulso da URSS em Junho do
mesmo ano (cf. Chronique des petites gens de l'URSS, ob. cit., p. 19).
•• Sobre este ponto, Heléne Carrêre d'Encausse, Le Pouvoir confis-
qué, ob. cft., pp. 271-272

323
CHARLES BETTELHEIM

exemplo, na repetição que Brejnev faz, a cinquenta anos de


distância, do que Estaline dizia nos anos 30. Assim, no princípio
de Março de 1982, por ocasião do XVII Congresso dos Sindicatos.
Brejnev repete, quase uma a uma, as palavras do antigo secretá-
rio-geral, ao afirmar que «os sindicatos não fazem uso suficiente
dos seus direitos para melhorar as condições de trabalho» 4 ".
A crise ideológica que se desenvolve desta maneira é tanto
mais significativa quanto, como se sabe, a repressão prossegue,
e a população está submetida a propaganda constante, para a
qual está mobilizado um exército ideológico que ultrapassa em
número o exército, a marinha militar e a aviação ••. Esta pro-
paganda na qual intervêm, segundo as palavras de Souslov, «mi-
lhões e milhões de quadros ideológicos», con:>titui um processo
que «deve ser ininterrupto» 00 •
A propaganda não tem por fim suscitar uma «fé>> ou uma
«crença» mas sim, literalmente, esmagar a população sob os
lugares-comuns do pensamento inculcado « [ ...] , do raciocínio
obrigatório, quotidianamente introduzido nas gargantas magné-
ticas dos rádios, reproduzido em milhares de jornais [... ], resu-
mido em 'digesto' para os círculos de educação política [... ] » "'.
Não se trata de convencer as pessoas (no limite, pouco importa
o que elas pensam) •• mas sim de as impedir de pensar, de mutilar
o seu espírito, de as obrigar a dizer o que o poder quer, de privar
as palavras do seu sentido, de mergulhar os Soviéticos no barulho
ensurdecedor de afirmações repetidas sem cessar, cuja inanidade
acaba por levar a duvidar da própria capacidade de reflectir.
A ideologia oficial difundida de manhã à noite pela propaganda
desempenha, pois, um papel de obscurecimento dos espíritos, de
diversão ideológica e de esmagamento da palavra dos indivíduos.
Obtém-se isto pelo constrangimento, por um constrangimento
imposto pelo medo: medo da repressão no sentido usual da palavra
e medo sentido por todos os que usufruem o menor «privilégio»
(mas que não têm nenhum direito) de o perder, por mínimo que
seja, nem que se limite a ter um posto de trabalho um pouco
menos penoso ou em ter acesso, de tempos a tempos, a alguns
produtos «raros» (como batatas, por exemplo, quando escasseiam).
Ora, os diversos movimentos de contestação testemunham que
esse medo -ainda que sempre presente- já não é tão universal

•• Cf. Le Monde, 18 de Março de 1982.


" Cf. M. Hellere e A. Nekritch, L'utopie au pouvoir, p. 545.
•• Cf. Pravda, 18 de Outubro de 1979.
"' Cf. Des voix sous les décombres, Paris, Senil, 1975, p. 12.
"' Como nota A. Zinoviev, em A Casa Amarela.

32-1
' - -
~

AS LUTAS DE CLASSES NA URSS-IV

como era; faz isto também parte de uma crise ideológica cujo
alcance não deve ser subestiinado.

C) A crise politica

Em definitivo, crises económicas e crise ideológica, com as


suas particularidades, revelam que o sistema soviético depara com
um bloqueio extraordinário, que levanta obstáculos às transfor-
mações verdadeiras. Conduz este bloqueio a uma crise política
profunda, que paralisa a equipa dirigente, a reduz a gerir os
assuntos correntes, a torna incapaz de operar as reformas que
talvez evitassem o agravamento das dificuldades nas quais o pais
cada vez mais se encontra mergulhado. Incita esta crise também
um número ainda fraco de homens e mulheres pertencentes às
diferentes camadas e classes sociais a organizar-se, a afirmar pon-
tos de vista diferentes dos do poder e a contestar certas decisões
deste último. No entanto, este segundo aspecto da crise política
está ainda muito limitado, porque todas as camadas e classes
sociais se encontram profundamente divididas: no seio de cada
uma delas, existem, como é sabido, indivíduos que gozam de certos
privilégios, legais ou ilegais (mas tolerados), ainda que minimos
e aparentemente insignificantes; dependem eles frequentemente
do statu quo, apoiam mais ou menos o poder e representam ele-
mentos de estabilidade.
Assim, após bastantes decénios, o sistema instalado na época
de Estaline revela-se, ao mesmo tempo, muito sólido e incapaz de
fazer frente à novidade. Cresceu, envelheceu, mas não conseguiu
amadurecer e pôr em marcha as transformações que lhe teriam
permitido tratar com alguma eficácia os problemas que se vê
obrigado a defrontar. Em parte para fugir às dificuldades internas,
o poder entrou numa política mundial expansionista de carácter
hegemónico e empreendeu um esforço de armamento em grande
escala; criou, assim, um temível poderio militar ao qual consagra
-mesmo durante os anos de «desanuvaimentO>>- esforços e
quantias enormes.
Neste sistema, a classe dominante, formada por uma burguesia
de partido à testa da qual se encontra uma oligarquia dirigente,
está profundamente cortada dos problemas reais da população.
Vive em condições cada vez mais privilegiadas quando o nível
da massa dos trabalhadores estagna, desde há alguns anos, e tem
mesmo tendência a degradar-se. Revela-se aquela classe, de mo-
mento, impotente para resolver os problemas que a assaltam, já
que os diferentes grupos e camadas entre os quais se divide estão
325
CHARLES BETTELHEIM

enredados em relações de poder que exercem influência parali-


sante. No meio desta classe, cada um é vassalo de um superior
e soberano de um maior ou menor número de pessoas. A sua
frente, encontra-se um soberano supremo, o secretário-geral, que
só pode agir tendo em consideração o que querem aqueles que,
na hierarquia, estão mais perto dele.
Certos traços ideológicos e políticos do sistema, descritos no
presente trabalho, mostram a grande similitude daquele com os
poderes de tipo fascista.
Economicamente, a burguesia de partido vive da reprodução
das relações sociais capitalistas. Impõem estas a primazia da
acumulação, ao mesmo tempo que a forma altamente específica
revestida pela dominação social e política e o modus operandi da
ideologia sujeitam a acumulação a constrangimentos correspon-
dentes, antes de tudo, às exigências da estabilidade do poder da
classe dominante e das suas principais fracções. De momento,
estas exigências impedem-na de inovar realmente e conduzem-na
a seleccionar quadros políticos praticamente inamovíveis, mesmo
quando são incompetentes e corrompidos. Por esta razão, o sis-
tema trava o desenvolvimento da produção, a penetração do pro-
gresso técnico (salvo em alguns domínios onde são procurados
resultados espectaculares) e a elevação geral do nível de vida.
Daí uma crise geral do sistema. A existência desta crise impõe
numerosas mutações, na falta das quais a formação soviética não
conseguirá sair duradouramente das dificuldades crescentes em
que está mergulhada. No entanto, o desenvolvimento da crise não
significa que o sistema esteja condenado a «desmoronar-se» nem
que, inevitavelmente, uma revolta amadureça no seu seio, embora
os elementos de descontamento se acumulem. As contradições
inerentes à crise podem desenvolver-se de múltiplas maneiras, pelo
que seria vão querer predizer-lhes a saída.
Paris, Dezembro de 1982

326
BIBLIOGRAFIA DOS PRINCIPAIS ARTIGOS E LIVROS

I) DOCUMENTOS DO PARTIDO BOLCHEVIQUE E COMPILAÇÕES DOS TEXTOS


OFICIAIS

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UI) IMPil1INSA
Bolchevik
Ejenedelnik Savietskoi Iouatituii
Ekonomitcheakdia lizn (El)
lndoustria SSSR
Izveatia
lzveatia Narkomtrouda
Machinoatroenie
Partinoe Stroltelavo (PS)
Planovoe Khoziaia:tvo (PK)
Pravda
Sobranie Ouzakonenii
Sobranie Zakonov
Sotsi'alistitcheskoe Selskoe Khoziaistvo
Sotsialistitcheskoe Zemledelie
Savietskoe gosudarstvo i pravo
Sovietskdia Ioustizia
Troud
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OE
JUAN
VI VÉS
Antigo combatente ao lado de «Che» Guevara ...
Membro do Serviço Secreto Cubano ...
Em 1977. soldado cubano em Angola .••
Revela agora quem são e como actuam
os donos de Cuba
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tual da 1f miio S;1Viét1ca, em que .SC
.analb.a ». ~ociedadc, a t:-t·ononna, a e~-
trutura polítíca , • . ,.
Uma ohra quc 1 JIHlependentemt~nte das
OJnmôlo:-. polítll'a~ do lcttor, pl•rmite for-
111<11 o "'f'll prúp1 ío juízo .HL't'Tpt rla União.--
Sovil•t1ta,

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Rlcom•ndo·o viv•m•nti.JJ (N. O~rwick, direc·
tor d11 Associ11çio Jntlrnllcion•l dos Chefes
d11 Políci•.J
Não pense que o crime s6
sucede aos outros. Em
qualquer momento você
pode ser a pr6xima vrtima.
Infelizmente é este a SO·
ciedade em que vivemos.
Este livro diz-lhe tudo o
que deve saber antes de o
crime acontecer ... e o que
fazer quando ele aconte·
ce ... Dual o lugar mais se·
guro para guardar o di·
nheiro? Que deve fazer se
ouvir um intruso? Em férias, que deve fazer para
que o ladrilo pense que você está em casa? Como
evitar ser assaltado na rua? Como proteger-se con·
tra violaçlles? Como proteger os seus filhos da dro·
ga e do rapto? Como proteger a sua empresa contra
o roubo? Como reconhecer um vigarista? Como de·
fender a casa e a família?
MANUAL DE PROTECÇÃO
CONTRA O CRIME
o livro que voei e 01 11101 devem ler
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA
Uma editora diferente que pensa ... em si!
CHARLES BETTELHEIM

Com este último volume. consagrado ao período


1930-1941, Charles Bettelheim conclui o vasto fresco
da luta de classes na URSS. da Revolução de Outubro
à segunda guerra mundial.
No volume anteriormente publicado, Os Domina-
dos, analisava-se a expropriação do campesinato. a mi-
litarização da classe operária e a formidável acumula-
ção de capital obtido pelo terror e pela uniformização
social. Neste volume revela-se a lógica última do estali-
nismo: o estabelecimento de um regime de partido de
Estado. O ccpartido dirigenten organiza a nova burgue-
sia, institucionaliza a ideologia e, na cena internacio-
nal, defende os seus interesses. Assegura. enfim, a do-
minação política destes novos exploradores sobre o
conjunto do processo de produção.
Verdade seja dita que, após a morte de Estaline. o
sistema não evoluiu, entrando numa crise generalizada
de que a URSS tenta sair, nos nossos dias. através de
uma política expansionista.

Anteriores volumes:
• 1. o Período: 1917-1923
• 2. o Período: 1923-1930
• 3. o Período: 1930-1941 - Os Dominados

ESTUDOS E DOCUMENTOS
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