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O "Isso Foi" da era digital: memória, fotografia e tecnologia na cidade de Belém –

Pará1.
Helio Figueiredo da Serra Netto. UFPA

Resumo
A “fotografia é memória e com ela se confunde” (KOSSOY, 2005) e também é produtora
de múltiplas realidades que são invocadas em uma bricolagem de imagens. De uma “foto”
podemos inferir não só o sentido de existência, de algo que existiu e posou para uma
objetiva, que a priori nos torna mais elegível, mas também nos convida a embarcar em
uma viagem imaginária no tempo onde a “história particular de cada um é restaurada e
revivida na solidão da mente e dos sentimentos” (IDEM, 2005). Embora tenhamos na
memória as imagens de algumas de nossas mais estimadas fotografias, jamais as revemos
impunemente, sem com elas rememorar cheiros, sentimentos, situações, pessoas, lugares,
temporalidades e coisas mais que a materialidade da fotografia não nos permite vivenciar.
Assim, essas sensações são vivenciadas por meio de nosso corpo através da memória que
lida com essa amálgama imagética que as fotografias nos impingem. “Reconhecer um
amigo num retrato, é recolocar-se nos meios em que o vimos” (RICOEUR. 2007) e com
isso vivenciar essa experiência pretérita. Na atualidade, as fotografias conquistaram
outras espacialidades, com a inserção da tecnologia digital, houve uma grande
disseminação dessas imagens em ambientes virtuais, bem como a disseminação de
diversos aparelhos que nos permitem capturá-las. Sendo assim, há de se questionar como
as diferentes gerações de pessoas lidam com essas tecnologias imagéticas, e como se dá
a relação delas com as imagens digitais. O jovem de hoje, que imprime uma de suas
milhões de fotografias, tem a mesma relação com elas do que a senhora de seus oitenta
anos que guarda sua pequena dezena de fotos em um antigo álbum? Este trabalho é fruto
de uma pesquisa em andamento e busca traçar uma articulação entre a experiência do
tempo, a imagem fotográfica e a memória entre pessoas de diferentes gerações da cidade
de Belém do Pará. Atentando para interpretar como essas pessoas recepcionam suas
imagens fotográficas pessoais e como elas lidam com a mudança tecnológica ocorrida na
prática da fotografia. Para tal empreendimento buscar-se-á realizar uma etnografia da
memória e das imagens, na tentativa de construir uma interpretação sobre a relação entre
imagem fotográfica, memória e tecnologia em Belém do Pará.
Palavras chaves: Imaginário, fotografia e memória

Introdução
O presente artigo busca empreender uma pesquisa acerca do imaginário e da
memória da fotografia na cidade de Belém-Pará e ir um pouco mais além, buscar
investigar essa relação com a imagem na era digital, como se dará o processo de
recordação e da memória através fotografia em uma era bombardeada de imagens.
Para situar o tema, que encontra-se timidamente dando seus primeiros passos,
gostaria de fazer um breve histórico do meu trajeto até ele, pois ainda que seja um tema

1
Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto
de 2014, Natal/RN

1
novo para mim - pois em minha graduação e no mestrado (SERRA NETTO. 2011) lidei
com a temática do corpo investigando a prática da tatuagem – ele não surgiu a esmo, ele
é fruto de uma percepção dada pelas pesquisas que tenho dedicado em minha carreira
acadêmica. Para tal, é importante fazer uma ligação com a temática que desenvolvi em
minha graduação e mestrado e a temática que pretendo aqui desenvolver.
Tanto na graduação quanto no mestrado estudei a prática da tatuagem e a forma
como os sujeitos percebem o seu próprio corpo, entretanto, no mestrado, me dediquei um
pouco mais ao imaginário da tatuagem ocidental e como podemos perceber a
manifestação desse imaginário no corpo, investigando o simbolismo que emerge da
prática da tatuagem. Deste modo, percebi o corpo como local de manifestação da memória
é também como espaço da imaginação criadora e do imaginário. Os sujeitos contam suas
histórias de vida através de seus corpos, através do processo de rememoração de suas
marcações, das tatuagens.
Como a tatuagem se trata de uma imagem e possui uma significação simbólica
notória para a interpretação dos sujeitos e da própria coletividade, percebi que para a
compreensão desta prática eu deveria lançar mão de uma visada hermenêutica que me
permitisse uma maior sensibilidade na forma como lidaria com os sujeitos e com a própria
temática. Sendo assim, a minha aproximação com a antropologia visual foi inevitável no
sentido de implementar uma perspectiva que respeitasse o poder simbólico das imagens
que emergiam em minha pesquisa, sejam imagens fotográficas, mentais, publicitárias e
literárias. Sendo assim, essas diferentes imagens que emergiam em minha prática
etnográfica me fizeram compreender as tatuagens contemporâneas como uma forma
simbólica de representar o sentido da vida de alguns sujeitos, ou também, como uma
forma de comunicação, ligação entre os sujeitos, ou com o sagrado – muitos interlocutores
apontavam a tatuagem como um elemento de ligação entre pessoas vivas ou mortas, ou
como forma de expressar uma sacralidade.
Ao imergir neste campo me deparei com diferentes sujeitos que interpretavam
seus corpos evocando traços de uma memória individual, mas que muitas vezes nos
remetiam a memória coletiva e ao próprio imaginário dessa coletividade. E foi neste
processo de “rememorar” o próprio corpo, que surgiu a ideia estudar este processo, mas
com uma materialidade diferente, deixando as práticas corporais de lado, e embarcando
em uma viagem pela memória das fotografias pessoais.
De todo modo, é bom salientar que esta nova temática faz parte não só dessa
percepção que surge com minha dissertação, mas também de inclinações que surgem com

2
minha própria experiência pessoal, de vivência, meus trabalhos possuem forte ligação
com meu olhar enquanto sujeito/pesquisador2, pois não há uma dissociação entre esses
dois papeis. Parte disso está ligado a perspectiva que utilizo como forma de orientar meu
horizonte hermenêutico, para aludir ao grande mestre Hans George Gadamer, que é uma
perspectiva que entende a hermenêutica não só como método, mas também como
ontologia, como um horizonte que se amplia com a vivência e a experiência de vida. É
por esse motivo que minhas pesquisas também fazem parte de minha trajetória pessoal, o
processo compreensivo sobre determinado tema é fruto de uma relação conjunta, entre o
olhar afinado e “estranho” do pesquisador, e a dedicação e sensibilidade do sujeito que
aqui escreve. Vejamos um pouco do que pretenderei abordar buscando compreender a
relação das subjetividades com as imagens fotográficas.

1. Imagens, fotografia e memória

A fotografia me obrigava assim a um trabalho doloroso; voltado


para a essência de sua identidade, eu me debatia em meio a
imagens parcialmente verdadeiras e, portanto, totalmente falsas.
(BARTHES. 1984)

Assim escreveu Roland Barthes sobre a dor e a profunda angústia que o invadia
ao revisitar suas fotografias de família, logo após o falecimento de um ente querido, sua
mãe. Foi então que, tomado pelo fascínio despertado por essas imagens que escreveu uma
de suas principais obras, “A Câmara Clara”; que embora seja um livro erigido sobre os
pilares da semiótica, se percebe que o trabalho é permeado por uma profunda
emotividade. As fotografias o convidam para uma viagem interpretativa de sua existência
revelando através de sua memória seus gostos, frustrações e a própria subjetividade.
Há de se perguntar, quantos outros “Barthes” anônimos existem pelo mundo?
Quantas pessoas ao rememorarem suas fotos não embarcam em uma viagem pelas
profundezas da memória e do imaginário coletivo? A este processo dedicamos um gesto
em especial, não estamos somente vendo alguma coisa qualquer, estamos “mergulhando”
em fotografias, e não são quaisquer fotografias, elas fazem sentido para que as vê, as
fotografias pessoais fixam o espectador “num congelamento do tempo do mundo e o
convidam a entrar na espessura de uma memória” (SAMAIN. 2005).

2
Ver SERRA NETTO, H. F. . O pesquisador-objeto: entre subjetividade, estigma e tatuagens.. In:
Seminário Ética e Sociedade: Reflexões Sobre a Violência e Sobre a Paz, 2011, Belém. Mesa Redonda:
Diálogos da Antropologia com a Ética, 2011.

3
A “fotografia é memória e com ela se confunde” (KOSSOY, 2005) e também é
produtora de múltiplas realidades que são invocadas em uma bricolagem de imagens. De
uma foto podemos inferir não só o sentido de existência, de algo que existiu e posou para
uma objetiva, que a priori nos torna mais elegível, mas também nos convida a embarcar
em uma viagem imaginária no tempo onde a “história particular de cada um é restaurada
e revivida na solidão da mente e dos sentimentos” (KOSSOY, 2005). Por isso, algumas
vezes, as fotos nos parecem adquirir vida, nos transmitindo um sentimento de presença e
de vivido, que muitas vezes nos dá a possibilidade de sentir um ente ausente ou de
vivenciar múltiplas temporalidades. Daí algumas pessoas abraçarem, beijarem e
acariciarem certas fotografias, pois elas remetem a esse sentimento de presença.
Por outras vezes essa sensação nos é tão forte, que recortamos alguém indesejável
de uma fotografia em particular, pois desejamos que ela não faça mais parte de nossas
vidas, e essa morte simbólica tenta legar essa pessoa ao esquecimento ou neutralizar o
sentimento de presença. É bem verdade que, na maioria das vezes, este nos é um trabalho
inútil, ao passo que, embora destruída a imagem materializada, nem sempre alcançamos
esse esquecimento nas imagens mnemônicas e/ou oníricas. É certo que há uma mana
nestes “pedaços congelados de passado” (IDEM, 2005).

2. Fotografia e espetáculo

Desde a primeira imagem captada por Niépce em 1823 a fotografia passou por
diferentes transformações, que tangem tanto o desenvolvimento técnico, quanto os seus
múltiplos significados simbólicos, que perpassam por um caráter documental ao estatuto
de arte (ROUILLÉ. 2009). Não por menos, quem nunca posou para uma fotografia?
Acredito que poucos foram os perfis que jamais foram captados por esta técnica, e cada
vez mais, devido a disseminação da tecnologia digital, a fotografia se faz mais presente
em nossas vidas. Em Belém, o número de pessoas interessadas em fotografia cresce a
cada dia, inclusive pode-se escutar das pessoas mais irônicas a seguinte frase: “em Belém,
todo mundo é fotógrafo”. Embora em tom jocoso, essa afirmativa serve para nos mostrar
a que ponto esta prática se disseminou.
Podemos encontrar em Belém nichos onde a fotografia tem um destaque especial,
do mesmo modo que ainda encontramos disposto na cidade estúdio fotográficos que
cruzaram o tempo e as diferentes tecnologias que influenciaram a fotografia. Os estúdios

4
mais antigos de Belém ainda guardam um acervo de fotografias analógicas considerável
que remetem a cidade e as pessoas que fizeram ou fazem parte dela.
Embora tenhamos na memória as imagens de algumas de nossas mais estimadas
fotografias – sejam as ditas “formais” de um aniversário passado, ou as “informais”
(LEITE. 2005) que remetem a momentos de ócio ou de férias em família – jamais as
revemos impunemente, sem com elas rememorar cheiros, sentimentos, situações, pessoas,
lugares, temporalidades e coisas mais que a materialidade da fotografia não nos permite
vivenciar. Assim, essas sensações são vivenciadas por meio de nosso corpo através da
memória que lida com essa amálgama imagética que as fotografias nos impingem.
“Reconhecer um amigo num retrato, é recolocar-se nos meios em que o vimos”
(RICOEUR. 2007) e com isso vivenciar essa experiência pretérita.
A relação do corpo com a fotografia, com esse “o quê quer que seja de passado”,
nos faz embarcar em múltiplas temporalidades, que re-encenam ou re-montam o passado
em uma experiência imaginária, onde as imagens fotográficas se misturam às imagens
oníricas em uma miscelânea imagética da memória do vivido. A essa experiência com o
passado Roland Barthes (1984) recorre a fenomenologia e atribui para as fotografias o
noema “Isso-foi”, devido a essa característica inalcançável (intratável nas palavras de
Barthes).
O “Isso-foi” lida não somente com pessoas, mas com objetos, e com paisagens
(SIMMEL. 1996) em geral, através dessas imagens e das histórias de vida podemos
também visualizar os lugares, as relações entre pessoas, os personagens dessa trama, as
famílias e seus estilos de vida. As fotos nos ajudam a imaginar não só os entes, mas
também o cenário que eles habitaram, e assim construindo paisagens urbanas e humanas.
Imagens antigas de Belém são dispostas em edifícios contemporâneos, como shopping
centers, laboratórios e locais turísticos, e nós faz reconstruir a memória do que foi a cidade
e de como ela se apresenta atualmente.
Da mesma forma, as fotos fazem parte dos objetos que nos rodeiam – não por
menos elas costumam figurar em nossas cabeceiras e na parede de nossas casas (será que
ainda se encontram nas casas contemporâneas3?), bem como em nossos ambientes de
trabalho – muitas vezes elas compõem a materialidade do cenário que nos cerca, elas
também dizem aos outros um pouco de quem somos, com quem nos relacionamos, por

3
Jean Baudrillard diagnostica a ausência dos retratos no interior dos ambientes modernos. Ver
BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2004.

5
qual lugares passamos. Podemos dizer que através das fotos partilhamos um pouco do
nosso self e da coletividade que estamos imersos.
Na atualidade, as fotos conquistaram outras espacialidades, com a inserção da
tecnologia digital, houve uma grande disseminação dessas imagens em ambientes
virtuais. O próprio porta-retrato, com o avanço da tecnologia, ganha novas disposições,
que ao invés de comportar uma única foto, comporta vários arquivos digitais de imagem
que são armazenados em um pequeno cartão de memória e então, projetados em uma
pequena tela em uma espécie de Slide Show.
Bem como os próprios álbuns de família4 vão sendo re-significados e vão
ganhando outras disposições, sendo que algumas delas superam inclusive a materialidade
que são o caso dos álbuns online que se dispõem nas diferentes redes sociais. Vemos na
atualidade um número crescente desses álbuns que se dispõem de diversas formas nas
páginas da internet – sejam através de sites de relacionamento e dos aplicativos de
manipulação e postagem de imagens como instagram, flickr, Tumbrl – figurando como
uma espécie de re-atualização das antigas carte de visite5, onde se busca tornar pública
essas imagens pessoais, ou melhor, a maneira como quero me apresentar para o olhar do
outro.
Muitas são as mudanças propostas pela tecnologia, e embora haja uma grande
profusão dessas imagens virtuais, devido a disseminação da tecnologia digital, a
fotografia (mesmo que timidamente) não abandona totalmente sua materialidade. Basta
pensarmos que os antigos álbuns ainda sobrevivem em outras versões como é o caso dos
scrapbooks, que são álbuns artesanais de fotografias recheado de toques pessoais e
artísticos, e os photobooks, onde suas decorações variam de acordo com a temática
proposta pelas fotos que eles abarcam, como: fotos de casamento, férias, formatura,
aniversários, etc.
E ao passo que a tecnologia traz mais portabilidade à fotografia – tornando as
câmeras cada vez menores e presente em diversos acessórios pessoais, como celulares,
reprodutores de arquivos de música (os chamados MP3), computadores portáteis, tablets

4
Ver o trabalho de LEITE, Miriam Moreira. Retratos de Família: imagem paradigmática no passado e no
presente. In SAMAIN, Etienne. O Fotográfico. / Etienne Samain, organizador. Editora SENAC São Paulo.
2005.
5
Carte-de-visite ou carte de visite (em português: cartão de visita) é o nome dado a um antigo formato
de apresentação de fotografias, patenteado pelo fotógrafo francês André Adolphe Eugène Disdéri em 1854.
De tamanho diminuto (9,5 x 6 cm), a foto, geralmente revelada pela técnica de impressão em albumina, era
colada em um cartão de papel rígido um pouco maior (10 x 6,5 cm aproximadamente). Ver
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carte-de-visite acessado em 27/09/2010 às 11h.

6
e diversos outros – temos também, uma maior facilidade de ter essas fotografias impressas
em mãos, já que há um grande número de impressoras domésticas, inclusive algumas
portáteis, que são capazes de imprimir as imagens diretamente da câmera e em uma
velocidade espantosa em relação às “revelações” analógicas. Bem, mas é também devido
a essa mesma tecnologia, que temos a possibilidade de lidar com centenas de milhões de
imagens, não só materializadas como também virtuais, pois cada vez se torna mais fácil
de armazená-las.
A grande profusão de imagens que vivemos no mundo de hoje Guy Debord
magistralmente diagnosticou como a sociedade do espetáculo (DEBORD. 1997), onde as
relações sociais são permeadas por imagens, imagens essas que perpassam pelas imagens
fotográficas. A tecnologia digital proporcionou um aumento significativo na produção e
profusão de imagens e teve com a internet uma aliada fundamental na divulgação dessas
fotografias, principalmente dos anônimos, que antes estavam relegados ao ostracismo.
Isso se dá devido à grande acessibilidade à tecnologia, podemos dizer que ela
“democratizou” (mais ainda), pois agora, cada vez mais, se faz presente nas classes ditas
populares.
E aqui temos a pedra de toque deste trabalho, no sentido de investigar como as
diferentes gerações de pessoas lidam com essas tecnologias, e o que muda nessa relação
em comparação com as antigas máquinas fotográficas analógicas. O jovem de hoje, que
imprime uma de suas milhões de fotografias, tem a mesma relação com elas do que a
senhora de seus oitenta anos que guarda sua pequena dezena de fotos em um antigo
álbum? Como se dão os processos de rememoração dessas fotografias? Como esses
diferentes corpos se adaptam a essas tecnologias? O corpo retratado adquire outros
contornos, a imobilidade de outrora – necessária para longas exposições exigidas para a
fixação química das imagens – é subitamente libertado pela mobilidade do instantâneo.
E diante dessa mobilidade e dessa multiplicidade de retratos como se comportará esse
corpo?
A postura das celebridades, suas construções corporais, tão desejadas pela
fotografia são disseminadas em várias versões caseiras, os anônimos tomam “voz” e
reproduzem essa corporalidade das celebridades em seus álbuns virtuais, e assim o corpo
é a todo tempo re-atualizado.
Assim como a fotografia familiar não é revista impunemente, as imagens
proferidas no espetáculo não são neutras e muito menos isentas de sentido, desta forma,
iremos lidar com múltiplas subjetividades, não só de quem vivencia essas imagens e

7
narrativas, como também de quem as observa, no caso, o antropólogo. Nesse sentido,
visamos empreender uma hermenêutica das imagens e das narrativas (RICOEUR, 2010)
buscamos compreender como se dá a profusão e a recepção das imagens pelos
interlocutores.
Este trabalho tem como objetivo traçar uma articulação entre a experiência do
tempo, a imagem fotográfica e a memória entre pessoas de diferentes gerações. Atentando
para interpretar como essas pessoas recepcionam suas imagens fotográficas pessoais e
como elas lidam com a mudança tecnológica ocorrida na prática da fotografia. Com isso
buscar-se-á traçar uma hermenêutica da recepção das imagens e sua relação com o papel
social da fotografia, da tecnologia da imagem fotográfica e suas mutações da primeira
metade do século XX até os dias atuais.

3. Diálogo com a bibliografia

Durante muito tempo, desde o seu surgimento, coube imputar a fotografia um


papel eminentemente documental, onde tinha-se a foto como uma espécie de película
estática do real. Pelo fato de as fotografias terem surgido com a captação da luz emanada
dos objetos, tinha-se a ideia de que a fotografia era uma espécie de representação
mimética do real, devido a esse contato “direto” com o referente. Embora seja uma
concepção ultrapassada, em termos contemporâneos de filosofia da imagem, esta noção
ainda se faz presente em algumas áreas do conhecimento. Um conceito que nos ilustra
bem essa concepção mimética da fotografia é a noção de índice fotográfico que:

são signos quem mantêm ou mantiveram num determinado


momento do tempo uma relação de conexão com o real,
contigüidade física, de co-presença imediata com seu referente6.
(DUBOIS. 1993)

Apesar da estreita ligação que se tem entre fotografia, pintura e desenho – a


fotografia herda da pintura os enquadramentos, as posições corporais dos modelos, além
do fato de que, devido a popularidade da fotografia, muitos pintores se tornaram
fotógrafos – há uma distinção fundamental com relação a esses sistemas de representação,
bem como em relação aos sistemas linguísticos, que é justamente esse que remete ao seu
caráter indiciário, ou seja, esse modelo que concebe a fotografia como resultado de um

6
Conceito proposto a partir da semiótica de Charles Pierce.

8
contato “direto” do objeto com o “real”. Deste modo, pensava-se que a fotografia atestava
a existência de determinado objeto, já que atuava como uma espécie de fixação deste
rastro luminoso emanado diretamente do real. Assim, da metade do século XIX ao pós
primeira guerra, o “valor documental da fotografia, a crença em sua exatidão e em sua
verdade, vai estabelecer-se nos mecanismos, nas práticas e nas formas da ‘fotografia-
documento’”. (ROUILLÉ. 2009)
Essa noção de documento e de certa forma, de atestação de fatos, foi uma noção
que esteve muito presente, principalmente no meio científico, o que refletia diretamente
no fazer ciência. A fotografia foi um instrumento importantíssimo para a pesquisa
científica, na antropologia, os primeiros antropólogos utilizaram da fotografia para
ilustrar a construção de seus trabalhos, não só documentando as pessoas (nativos) como
também construindo um inventário de sua cultura material; o que antes era construindo
com esboços e desenhos, cede lugar a fotografia.
Bem como a fotografia, o cinema tem uma estreita ligação com as ciências sociais,
o filme etnográfico, ao contrário do que muitos poderiam inferir, é tão antigo quanto as
primeiras incursões a campo dos primeiros antropólogos. Basta sabermos que três meses
depois em que se proclamava o surgimento da cronofotografia (1882) – através do “fuzil
fotográfico”, que proporcionava a produção de imagens em movimento – o então “jovem
alemão, geógrafo de formação, Franz Boas, embarca para o Ártico Canadense (...) [e]
durante quase dois anos, Boas vive com os Inuit” (JORDAN. 1992).
Deixando o cinema de lado, o fato é que, desde o surgimento dessas tecnologias
de imagem, há uma preocupação de se captar o real, de se atestar a verdade, traço tão
característico de nossa ciência e de nosso pensamento ocidental. Mas o fato que se critica
é que, embora muito usada, a fotografia ainda não havia se libertado de seu estatuto
documental, figurando então nos trabalhos acadêmicos como meras ilustrações e anexos
textuais, sendo desprezada dessa forma o seu poder narrativo.
Por isso, ao se pensar o estatuto da imagem, dentro do fazer científico percebe-se
que alguns dos trabalhos clássicos da antropologia são pioneiros dessa perspectiva mais
“livre” da imagem, onde ela mais que uma ilustração também aparecerá como texto. Em
uma análise do clássico trabalho de Bronislaw Malinowski “Os Argonautas do Pacífico
Ocidental” (1984) – que queiramos ou não, sempre nos aparece como referência de
praticamente tudo na antropologia – por Etienne Samain7 nos é apontado que existia toda

7
Ver SAMAIN, Etinne. “Ver e “dizer” na tradição etnográfica: Bronislaw Malinowski e a fotografia. In:
Horizontes Antropológicos: Antropologia visual. Ano 1 número 2. 1995.

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uma preocupação na construção da narrativa em relação a imagem fotográfica, bem como,
uma preocupação acerca do que deveria ser retratado na pesquisa. Malinowski, tanto
quanto antropólogo tentou ser fotografo, e foi mais além, pensou em uma articulação
entre, o fazer antropológico e o uso das imagens fotográficas, deste modo:

As fotografias de Malinowski funcionam; não como meros “suportes”.


“excrescências” do texto que escreve. Não são, também, os “álibis”
forjados em vista do texto que pretende escrever”. Nas obras de
Malinowski, as fotografias funcionam, ao contrário, como se fossem
“pontos de partidas”, “desencadeadoras”, “molas inspiradoras”, do texto
que, com elas, procura elaborar. (SAMAIN. 1995)

Assim, embora as imagens de um modo geral tentassem ser expurgadas do


pensamento ocidental, por serem tidas como indutora do erro – como magistralmente
tratou Gilbert Durant em relação ao “iconoclasmo ocidental” (Durand, 1998) – é
necessário retomarmos um pouco da sensibilidade e da imaginação como forma de
compreensão deste processo que aqui estamos apresentando, pois, como estamos lidando
com a memória das pessoas é importante possamos proporcionar a construção imagens
textuais que sejam capazes de adentrar nesse terreno do sensível e da imaginação criadora.
É desta maneira, que para falar de fotografias é necessário empreender uma
incursão nos meandros da memória e do imaginativo, já que elas estabelecem em nossa
memória um arquivo visual de referência insubstituível para o conhecimento do mundo
(KOSSOY.2002). É em face disso que há uma reação de nosso imaginário diante das
imagens visuais, reação que se dá de acordo com nossas concepções de vida, situações
sócio-econômicas, ideologias, conceitos e pré-conceitos (IDEM. 2002).
Para me ajudar a pensar as questões da memória utilizei a obra de Paul Ricoeur
“A memória, a história e o esquecimento” (2007) que nos apresenta uma síntese das
principais correntes de estudos mnemônicos desde os gregos – com a “busca” pela
recordação – passando pelos esforços de memória de Bergson e o trabalho de
rememoração de Freud, para então entrar na fenomenologia da memória individual e da
memória coletiva em uma espécie de sociologia da memória.
E como lidar com fotografia não é somente lidar com memória individual, é
importante também adentrarmos no pensamento de Maurice Halbwachs, já que nos ajuda
a pensar essa “memória dos outros” e de como se dá esse lembrar a partir da memória
coletiva. Ao passo que cada “memória individual é um ponto de vista sobre a memória
coletiva, e esse ponto de vista muda segundo o lugar que nele ocupo e que, por sua vez,

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esse lugar muda segundo as relações que mantenho com outros meios (RICOEUR. 2007).
Há desta forma, uma alternância entre essas imagens coletivas e individuais.
Não se pode rememorar o contexto particular em que se captou a imagem
fotográfica – considerando a história do momento e dos personagens que a compõem –
somente com a materialidade dessa imagem, ao passo que, o sentido desse contexto se
encontra em outra instância que não a da materialidade. E por este motivo que essa
realidade interior não é captada pelo dispositivo óptico, pois ela só pode ser imaginada
(KOSSOY.2005). O processo imaginativo, inerente ao rememorar as fotografias, se torna
o fio condutor do processo interpretativo da história de vida dessas pessoas, que contam
suas vidas a partir desses recortes de passado.
Não por menos, “as imagens são certamente unidades de devaneio” (Bachelard.
1988) e desta forma “a imagem só pode ser estudada pela imagem, sonhando-se as
imagens tal como elas se acumulam no devaneio” (IDEM. 1988). Por isso, para a análise
dessas imagens, não se pode proceder através de um “ato de contemplação passiva e
vazia” (DURAND. 1995), mas devemos experiênciá-las “com a totalidade das faculdades
de uma inteligência ativa” (IDEM, 1995). O trabalho etnográfico nesse empreendimento
servirá como um processo interpretativo da relação das pessoas com suas fotografias,
buscando compreender então como elas lidam com a poética das imagens, pois só através
de uma análise sensível pode-se aproximar minimamente dessa viagem imaginária.
Devemos então conceber “imaginação como a capacidade de fazer e de decifrar
imagens” (BACHELARD, 1988), já que, faz-se necessário imaginar em busca de um
sentido, quando o significado não é mais absolutamente apresentável e não se refere
unicamente a um objeto (DURAND, 1998). Como foi proposto aqui, iremos lidar com
imagens fotográficas, mas, no entanto, o processo de interpretação dessas pessoas
ultrapassam as imagens fotográficas, nessa odisséia pela memória, utiliza-se as mais
variadas imagens mentais, sendo então necessário um empreendimento semelhante ao
adotado por Benjamim, onde a imagem ocupa uma categoria central de sua teoria da
cultura (BOLLE. 1994). É nesse sentido que ele atribui a imagem uma possibilidade de
nos dar acesso a um saber arcaico e a formas primitivas de conhecimento, na medida em
que ela lida com qualidades míticas e mágicas, capazes de ler a mentalidade de uma época
(IDEM. 1994).
Lidar com a memória é também lidar com temporalidades, principalmente no que
tange a recordação de uma fotografia, ao passo que, “no próprio instante em que é tirada
a fotografia, o objeto desaparece” (KOSSOY, 2002). E é a esse desaparecimento que

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remetemos imediatamente ao sentido de finitude, sentido pela qual busca-se compreender
o tempo, pois “se o tempo encontra seu sentido na eternidade, é preciso que seja
compreendido a partir dela”. (HEIDEGGER apud NUNES. 1992). É o sentido de
impotência do homem frente ao fim de sua existência, que o faz refletir sobre sua
temporalidade, pois só a temporalidade “pode abranger o homem como um todo, porque
se remete (e nos remete) à morte, ao inultrapassável fim do ser-no-mundo” (NUNES.
1992).
Articulando a memória com a temporalidade impingida pelas fotografias Barthes
escreve:

Sozinho no apartamento em que ela há pouco tinha morrido [sua


mãe], eu ia olhando sob a lâmpada clara, uma a uma, as
fotografias de minha mãe, pouco a pouco remontando com ela o
tempo, procurando a verdade da face que eu tinha amado. E
descobri. (BARTHES. 1984)

É em um pedaço de papel que se sonha com entes queridos que o corpo sente e se
transporta, pela via do imaginário, ao ente que se foi, ao tempo que passou, a pessoa que
fui, e que agora, olhando em uma espécie de espelho do passado trazemos à tona,
sentimentos e experiências vividos que um simples olhar nos faz revivê-los.

Referência Bibliográfica:

BACHELARD, G. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

BARTHES, Roland. A câmara clara: notas sobre a fotografia. Rio de Janeiro. Nova
Fronteira.1994

BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2004

BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. Obras Escolhidas, volume II. São Paulo: Brasiliense, 1993

_________________. Passagens. Belo Horizonte. Editora UFMG; São Paulo. Imprensa Oficial
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BOLLE, Willi. Fisiogonomia da Metrópole Moderna: representação da história em Walter


Benjamin. São Paulo. Editora USP. 1994.

DUBOIS. Phillippe. O ato fotográfico e outros ensaios.Campinas/SP. Papirus. 1993.


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12
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