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Jesus Adolescente

no Século XXI

Wanju Duli
2017
Imagem de Capa: “Jeans Bags Back Pockets
Ornaments” por Myriams-Fotos

Design de Capa: Luiggi Ligocky


Sumário

Capítulo 1: Jesus estuda na minha classe! ________5


Capítulo 2: Alguns de meus colegas são anjos____13
Capítulo 3: E outros colegas são demônios______28
Capítulo 4: A Última Batalha_________________48
Jesus Adolescente no Século XXI

Capítulo 1: Jesus estuda na


minha classe!

Meu nome é João. Meu sobrenome é Ninguém.


Sou João Ninguém no nome e na vida. Moro numa
favela, sou feio, vou mal nos estudos e não tenho
nenhuma habilidade especial. Como se isso não
bastasse, tenho outros três colegas que se chamam
João e todos eles são muito populares. Então toda
vez que alguém chama:
– Ô, João!
Eu já nem me viro. Nas primeiras três vezes eu
me virei, só para ouvir essa adorável resposta:
– Não é com você não, seu idiota!
Por isso, tento ficar na minha. Na boa, eu
realmente detesto os outros três Joões. Não sei o que
o pessoal enxerga nesses caras. São uns esquisitões.
Tem o João Batista. O sujeito é totalmente
antissocial. Ele se veste com pelos de camelo e cinto
de couro, mesmo no calorão de quarenta graus. Só
come mel e gafanhotos. Tá certo que a gente aqui na
favela é pobre, mas também não é pra tanto.
Ele só fica lá paradão do lado do esgoto,
batizando todo mundo que passa, e a galera acha o
máximo. Sorte dele que o esgoto passa bem no meio
do nosso colégio. Assim ele pode continuar os
batismos nos intervalos.
– Eu batizo com água! Mas depois vai vir um cara
mais forte do que eu que vai batizar com fogo a

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rapaziada, e eu não vou ser digno nem de desamarrar


os tênis dele.
O Batista não para de falar esse negócio e tira
notas muito baixas. Ele sempre pega recuperação em
biologia, mas o prof Mendel é bonzinho e arredonda
a nota. Os dois gostam de conversar sobre mel e
abelhas, sabe-se lá o porquê.
Já o João da Cruz tira notas melhores, mas
também não é muito sociável. Só quer saber de rezar,
ou “contemplar” seja lá o que for isso. Ele não para
de falar sobre a “noite escura” mesmo quando está
dia.
Ele e um tal de João Clímaco (sim, outro João!
Ainda bem que é de outra turma, para não gerar
ainda mais confusão) são muito amigos e vivem
subindo e descendo juntos os dez degraus da escada
da entrada principal do colégio. Não param de
filosofar sobre a subida da escada, que chamam de
“escada de Jacó”. O Jacó era um aluno antigo que
uma vez pegou no sono e dormiu nessa escada. Não
vi nada de mais nisso, mas nesse colégio o pessoal
cria caso com as menores coisas.
Dizem que o Cruz gosta da Teresa de Ávila, que é
outra colega nossa, mas eu acho que eles são apenas
amigos. Também está cheio de “Teresas” na nossa
classe. Tem a Teresa de Lisieux, que todo mundo
chama de “Teresinha”, porque ela é pequena,
delicada e não para de falar de flores. E tem a Teresa
de Calcutá, que é muito boazinha e sempre quer
ajudar todo mundo.
Nenhuma das três se destaca em termos de notas,
mas a Calcutá sempre faz uns estudos extras. Não

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porque quer aumentar as próprias notas, mas para


ajudar quem precisa.
O sobrenome do terceiro João é Evangelista. Ele
é um aluno modelo: tira ótimas notas e é
extremamente educado com todos. Seus hobbies são
pescar e escrever. Todos gostam dele, porque é
simplesmente impossível não simpatizar com o
sujeito. Eu digo que o detesto apenas para manter a
minha reputação, já que considero uma questão de
princípio desprezar os três Joões.
A estranheza do Evangelista é ao menos
respeitável: ele não sai gritando por aí como o Batista
e nem fica subindo degraus como o Cruz. Ele
anuncia o Juízo Final, mas faz isso de maneira
discreta. Ele escreve histórias sobre anjos com
trombetas, jogando fogo e sangue na Terra e
matando todo mundo.
As histórias dele são muito populares na sala.
Todos estão sempre aguardando o próximo capítulo.
– Quando é que sai o próximo capítulo, João?
– O quê? – perguntei.
– Não tô falando contigo, ô abobado! – retrucou
Judas, com aspereza – por que é que você acha que
todo mundo sempre quer falar com você, hein?
Resolvi deixar quieto. Eu às vezes respondia por
reflexo. Uma falha minha.
Não era uma boa ideia bater boca com o Judas
Iscariotes. Ele era o bad boy da turma e comprava
briga com qualquer um. Se bobear, até com o
Evangelista ele brigava. Havia boatos de que ele já
havia metido uns socos no Simão e no Francisco,
outros colegas nossos, por um motivo banal: eles
eram felizes. Judas não.

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– Também quero ler a continuação! – exclamou


Francisco de Assis, com alegria – adorei os quatro
animais cheios de olhos! O que eles significam?
– Somos eu, Mateus, Marcos e Lucas – respondeu
João Evangelista, com um sorriso amigável.
Esses três eram grandes amigos de João, mas eram
da outra turma. Também gostavam de escrever.
Lucas não andava escrevendo muito ultimamente, já
que estava estudando que nem um condenado para o
vestibular. Ele queria fazer medicina. Era um dos
poucos no nosso colégio que pretendia fazer curso
superior.
Mas os melhores amigos do Evangelista eram
Simão e Tiago. Os três gostavam de pescar juntos.
– O meu primo vai se transferir para nosso
colégio na semana que vem – comentou Tiago.
– Qual o motivo da transferência? – perguntou
Simão.
– Jesus disse que não pode realizar milagres em
sua própria terra, porque lá as pessoas não têm fé,
devido à dureza de seus corações – respondeu Tiago.
– Pensei que Jesus fosse seu irmão e não seu
primo – observou Martinho Lutero.
– Você sempre adora uma boa polêmica, hein,
Martinho! – exclamou Tiago, aborrecido – eu já
cansei de dizer que ele é meu primo e não meu
irmão. Quantas vezes terei que repetir isso?
– Está bem, está bem! – disse Martinho, com
urgência – não precisa ficar zangado. E não é verdade
que eu adoro uma boa polêmica. Erros devem ser
apontados quando são encontrados.
– Eu concordo plenamente com sua afirmação,
meu caro – disse Jerônimo Savonarola – nesse

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momento, por exemplo, vocês estão conversando em


aula, o que é proibido. É melhor que sigam as regras.
Não veem que estão sendo rudes com o professor
Tomás?
– Estou mais preocupado com outra coisa –
comentou o professor Tomás de Aquino.
– Deixe-me adivinhar – disse Jerônimo – o senhor
está preocupado que o seu colega, o professor
Giordano Bruno, está nos ensinando um monte de
heresias nas aulas de física! Eu acho que chegou a
hora de conversarmos sobre fogueiras. Ou será que
devo denunciar o romance imoral do professor
Abelardo com a professora Heloísa?
Jerônimo adorava acender fogueiras nos
intervalos, que ele chamava de “Fogueiras da
Vaidade”. Mas ele nunca queimava pessoas, apenas
objetos que ele considerava ilícitos. As garotas da sala
o odiavam, porque ele mandava que elas jogassem os
brincos, pulseiras e maquiagem lá dentro, porque
aquelas coisas eram do demônio.
– Eu só estou me perguntando o que são essas...
criaturas que Francisco está segurando – disse
Tomás.
– São apenas nossos irmãos vermes, professor –
explicou Francisco – eles estavam num local perigoso
do pátio do colégio e poderiam ser pisados a
qualquer momento. Então eu os protegi.
Hildegarda de Bingen, a aluna mais inteligente da
classe, deu um grito.
– Professor, há hora e lugar para isso –
argumentou Hildegarda – não questiono as boas
intenções de Francisco, mas isso já é um exagero.
Sabemos que os animais devem ser respeitados, mas

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as Escrituras nos dizem com clareza que eles não


estão em primeiro lugar na hierarquia da criação.
– Minha querida irmã Hildegarda – sorriu
Franscisco – em respeito à senhorita e ao professor
Aquino, irei encontrar uma morada adequada aos
nossos irmãos e devolvê-los à natureza. Tenho a sua
autorização, mestre?
– Pode ir – disse o professor Aquino, com um
aceno de mão.
E Francisco saiu da sala aos pulos e com imensa
alegria, cantando.
– Espere! – exclamou Rosa de Lima – deixe
alguns deles aqui para usarmos em nossa penitência.
Prometo que não irei machucá-los.
– A senhorita pode usar o meu cilício em vez
disso – disse Francisco lá da porta, amavelmente –
tenho um para você e outro para a sua amiga
Catarina. Podem pegar na minha mochila.
– Agradeço imensamente – disse Catarina de
Siena.
Rosa e Catarina gostavam muito de fazer
penitências rigorosas, a ponto de sangrar.
Sinceramente, eu tinha um pouco de medo delas e
preferia ficar bem longe. Não entendia como, apesar
de tanto sangue, parecia emanar uma grande paz e
amor daquelas duas.
A próxima aula foi com o professor Agostinho.
Simão sussurrou para Tiago:
– Quando o seu primo chega mesmo?
– Ele acabou de me mandar uma mensagem pelo
celular – sussurrou Tiago em resposta – ele chega
mais cedo: amanhã.

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– Seu primo tem celular? – perguntou Simão,


surpreso – pensei que ele havia feito um voto de
pobreza.
– Ah, mas o celular dele é um modelo muito
antigo – disse Tiago – então não conta. O único jogo
que tem nele é o da cobrinha.
Tiago e Simão foram atingidos na cabeça por duas
pêras.
– Vocês estão muito barulhentos! – exclamou o
professor Agostinho – e estão usando celular no
meio da aula?
– Professor, estamos falando sobre algo muito
importante – argumentou Simão – é sobre a vinda de
Jesus!
– Eu não já avisei a vocês que quem usa celular
em aula vai para o inferno? – perguntou Agostinho.
– Nunca li nada disso em seus livros – observou
Hildegarda.
– Bem, isso somente porque na época em que eu
os escrevi ainda não havia celular – justificou-se o
professor – ou de outra forma esse artigo de fé
certamente estaria lá.
No dia seguinte, estávamos muito empolgados
aguardando a vinda do primo de Tiago. João Batista
não se continha de felicidade e batizou muita gente
no esgoto naquele dia.
Até que ele adentrou pelos portões do colégio.
Usava calça jeans e tênis. Tinha uma barba
respeitável e invejável, rara de se encontrar em
adolescentes como nós. Ele vinha acompanhado de
outros três rapazes de roupas brancas.
Ele cumprimentou Tiago e cada um apresentou os
amigos para o outro.

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– Esses são Miguel, Gabriel e Rafael – disse Jesus


– eles ficarão um tempo conosco.

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Capítulo 2: Alguns de meus


colegas são anjos

– E aí, tudo bem? – perguntou Miguel, apertando


a mão de Tiago.
– Opa – respondeu Tiago, com animação – tudo
em cima?
Eu só olhava de longe. Afinal, eu não fazia parte
do “clubinho exclusivo” dos amigos do João
Evangelista.
João Batista mal conseguia falar de emoção.
Estava parcialmente mergulhado no esgoto, junto
com alguns dos fãs dele.
Jesus gentilmente aproximou-se de lá.
– Bom dia, amigo. Será que posso ser batizado?
– É ele...! – gaguejou Batista – aquele que batiza
com fogo! Por que tu, que tens o fogo, queres a
minha água?
– Por enquanto deixa assim – falou Jesus – para
que se cumpra toda a justiça!
– Eis o Cordeiro de Deus que tira os pecados do
mundo! – anunciou o Evangelista – acho que escrevi
algo assim no meu livro, não é mesmo?
– Foi bem assim! – confirmou Francisco,
entrando pelo portão principal naquele exato instante
– onde está o Cordeiro?
Francisco olhava ao redor, procurando algum
filhote de ovelha nas proximidades, mas não
encontrou nenhum.
– Ele é o Cordeiro! – Batista apontou para Jesus –
é o Filho do Deus Vivo!

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Jesus cumprimentou Francisco.


– Sou o novo aluno transferido.
– Que bom! – exclamou Francisco – você gosta
de observar os passarinhos? Não quer olhar alguns
comigo?
– É claro – concordou Jesus.
– Espere aí, Assis! – bradou Batista – Jesus falou
comigo primeiro, então você vai ter que esperar.
Converse com seu irmão sol enquanto terminamos as
coisas aqui.
– Eu só preciso de um batismo simples – explicou
Jesus – algumas gotas de água já está bom.
– Eu te batizo! – anunciou Batista – em nome do
Pai, em nome de você mesmo e em nome do amor
que os une!
E ele aproveitou a ocasião para dar uma aula de
catequese para seus seguidores.
– Viram que coloquei a mão na testa quando o
batizei em nome do Pai? É porque Deus Pai está no
céu, entenderam?
– Entendemos! – exclamaram todos.
– Quando o batizei em nome dele mesmo,
coloquei a mão para baixo, porque o Filho encarnou
na Terra. Faz sentido pra vocês?
– Faz sim! – foi a resposta em uníssono.
– Quando o batizei em nome do amor, coloquei
as mãos para os lados, porque o amor do Pai pelo
Filho e do Filho pelo Pai se reflete no amor que
temos uns pelos outros. E aqui termina minha
explicação.
Todos bateram palmas, incluindo Jesus e seus três
amigos.

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– A doutrina está perfeita – disse Miguel, e depois


apontou para o céu – mas quem vem lá? Quem como
Deus?
O céu se abriu e de lá desceu uma pomba que veio
sobre Jesus. Francisco gostou muito e cantou de
alegria a seguinte canção:
– Irmã pomba, és tão alva que nenhuma lavadeira
do mundo poderia alcançar tamanha brancura!
E veio essa voz do céu:
– Realmente tens razão, Francisco. Essa pomba é
meu amor, é meu Espírito! E esse é meu Filho único
que tanto amo. Nele pus todo meu agrado. Mandei
que Abraão matasse seu filho Isaac, mas tive
misericórdia e em vez disso lhe dei um cordeiro de
sacrifício. Eis o cordeiro de Abraão, que substituiu
Isaac!
Depois de dizer isso, Deus Pai deu um longo
discurso exegético. Explicou que Abel sacrificou um
cordeiro para ele. Disse que as toras de madeira que
Isaac levou nas costas era a cruz carregada por Cristo.
Melquisedec ofereceu como sacrifício não um animal,
mas pão e vinho. No Egito os judeus marcaram suas
portas com sangue de cordeiros para que seus
primogênitos fossem poupados das pragas. No
Templo de Jerusalém ocorriam sacrifícios de
cordeiros. Foi nesse Templo que Melquisedec fez seu
sacrifício e que Abraão ofereceu seu filho, e o anjo o
parou. Esse Templo foi destruído em 70 d.C. pelos
romanos e até então tinha ocorrido o sacrifício de
255.600 cordeiros, mas o sacrifício de Jesus valeu
mais que todos eles.
Meia hora depois, o discurso de Deus terminou e
as nuvens se fecharam. A pomba também voou para

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longe, embora Francisco tenha tentado correr atrás


dela.
– Ele sabe mais do que o professor Aquino –
observou Francisco.
– É claro que sabe, seu parvo – disse Batista – ele
é Deus.
– Mesmo assim é difícil de acreditar que exista
alguém que saiba mais que o professor Tomás –
insistiu Francisco – ele escreveu um livro de mais de
quatro mil páginas.
– O que vocês estão fazendo aqui fora? Faz mais
de meia hora que a aula começou!
Era o professor de gramática, Pedro Abelardo.
– Professor, Deus estava falando conosco –
argumentou Simão.
– Mesmo que você esteja certo, existem algumas
coisas de caráter prático na vida que devem ser
seguidas – explicou Abelardo – por exemplo, vocês
precisam estudar, para conseguir um bom trabalho e
ganhar dinheiro para comer.
Jesus deu um passo adiante e fez o seguinte
discurso:
– Ninguém pode servir a dois senhores: não se
pode servir a Deus e ao Dinheiro! Não se preocupem
com o que comer, beber ou vestir. A vida é bem mais
que alimento e o corpo é bem mais que a roupa. Não
viram os passarinhos? Eles não têm carro e celular. O
Pai do céu cuida deles. Vocês não sabem que valem
mais que os pássaros? Mesmo se deixarem de comer
fast food, um dia todos morrerão. E por que se
preocupam com a roupa? Olhem os lírios no campo!
Eles não vestem Prada ou Armani. E nem mesmo
Salomão já se vestiu como eles. Se Deus veste assim a

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erva do campo, que logo será pisoteada por vós, não


fará ele muito mais por aqueles que são sua imagem e
semelhança? O Pai celeste sabe que vocês precisam
de comida e roupa. Busquem primeiro o Reino de
Deus e todo o resto lhes será acrescentado. Não se
preocupem com o dia de amanhã, gente fraca na fé!
O professor Abelardo ainda permaneceu alguns
segundos fitando Jesus, silenciosamente.
– Quem é você? – ele perguntou, por fim.
– Eu sou aquele que sou – respondeu Jesus.
Abelardo coçou a cabeça.
– Não sei o que dizer – confessou ele.
– Javé é salvação! Esse é meu nome: Jesus. Sou o
aluno novo. Acabei de ser batizado e agora o Espírito
Santo me chama para o deserto.
– Nada disso – falou Abelardo – agora você vai
para sua aula de gramática.
– Está certo – disse Jesus – mas depois eu vou
para o deserto para ser tentado pelo diabo.
– Depois de assistir à minha aula, você pode fazer
o que quiser.
O professor olhou na nossa direção:
– E vocês, o que estão fazendo aí parados, que
nem um bando de imbecis? Vão ganhar meia
presença.
Eles se entreolharam com preocupação e
resolveram voltar para a sala.
– Também não os conheço – observou Abelardo.
Os três amigos de Jesus se apresentaram.
– Bem, vocês certamente não vão aprender a
conjugar verbos se continuarem aqui fora – disse
Abelardo – os lírios do campo podem até se vestir

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melhor do que Salomão, mas eles com certeza


reprovariam nos meus testes escritos.
E ele finalmente reparou na minha presença.
– Quem é você mesmo? É meu aluno?
– Sim, já faz quase três anos – respondi.
– Qual o seu nome?
– João.
– Batista?
– Não. João Ninguém.
– E vai continuar a ser ninguém se continuar aqui
que nem um palhaço.
Meu professor era ingênuo. Achava que ainda
restava algum traço de existência em mim para ser
diminuído por ele. Pois estava muito enganado.
Dei de ombros e segui os demais. O que eu mais
gostava nos meus professores não era a sinceridade
ao nos insultar. Era a honestidade com que fingiam
dialogar conosco. Ambas as partes sabiam que
quaisquer trocas de palavras entre nós seria nada mais
que um teatro formal, sem nenhum tipo de
significado.
Na sala de aula, estavam todos curiosos sobre os
quatro alunos novos. Não sei se os outros três
pretendiam estudar na nossa turma, mas o professor
Abelardo não deixou a eles muita escolha.
Pelo menos a presença dos outros distraiu os
olhares, que de outra forma estariam todos sobre
Jesus. Mesmo assim, ele era quem mais chamava a
atenção.
Meus colegas que presenciaram o milagre da
abertura do céu e da pomba não paravam de falar
disso. Contaram também que Deus falou com eles
com uma voz vinda dos céus.

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– Tem certeza? – perguntou Tomé – pode ter sido


só impressão.
– Ele fez um discurso de meia hora – justificou
Simão.
– Aposto que consegue falar com você mesmo
por meia hora dentro de sua cabeça – argumentou
Tomé.
– Não consigo nem por cinco minutos – disse
Simão – minha cabeça não é lá muito interessante.
Além do mais, ele nos ensinou muitas coisas. De jeito
nenhum que isso teria vindo de dentro de mim.
– E quem é esse cara sobre quem desceu a
pomba? – perguntou Tomé.
– É o Cristo, Filho de Deus! – exclamou Simão.
– Dizes bem – falou Jesus – pois também eu te
digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a
minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão
contra ela. Aqui, pega esta chave.
Jesus deu chaves para Simão.
– Que é isso? – perguntou Simão.
– São as chaves do Reino dos Céus – respondeu
Jesus – presta atenção, porque tudo o que ligares na
terra será ligado nos céus, e tudo que desligares na
terra será desligado nos céus.
– Como um interruptor? – perguntou Simão.
– Exatamente como um – disse Jesus – ou, mais
precisamente, de forma ainda mais veloz, já que meus
anjos se movem mais rápido que a velocidade da luz.
– Incrível! – exclamou Simão, impressionado –
então agora me chamo Pedro?
– Esse foi o nome que eu te dei.
– E onde estão os teus anjos? – perguntou Pedro.

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Jesus apontou para seus três amigos que vieram ao


colégio com ele.
– Não me diga que esse sujeito de boné e
mascando chiclete é um anjo? – perguntou Tomé –
até parece que eu acredito nisso!
– Nós somos arcanjos – explicou Miguel,
explodindo uma bola de chiclete – significa que
somos anjos, ou mensageiros, que dão mensagens
importantes. Somos em número de sete.
– E onde estão os outros quatro? – zombou
Tomé.
– Você nunca leu as obras de Tolkien? –
perguntou Miguel – só é dada atenção a três Istari
importantes: Saruman, Gandalf e Radagast.
– Mas nós sabemos os nomes de dois magos
azuis! – argumentou Tomé – Alatar e Pallando.
– Não seja por isso – sorriu Miguel – em livros
apócrifos aparece os nomes dos restantes: Uriel,
Baraquiel, Jehudiel e Saeltiel. Se esses nomes estão
certos ou não, deixo para a sua imaginação.
– E por que seus amigos Gandalf e Radagast estão
sempre calados? – perguntou Tomé – você é o chefe
e fala por eles?
– Eles podem falar se quiserem – disse Miguel.
– Você não é o cara que derrotou os exércitos de
Morgoth, isto é, Sauron, quer dizer, Satanás? –
perguntou Tomé.
Miguel levantou uma sobrancelha e deu um meio
sorriso.
– Onde leu isso?
– No livrinho do João – respondeu Tomé – então
você conhece Lúcifer, hã?

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Jesus Adolescente no Século XXI

Miguel contraiu os lábios e olhou ligeiramente


para baixo.
– Escute – disse Miguel – não me leve a mal, mas
a minha briga com ele pelo corpo de Moisés ainda
me soa bem real.
Tomé gargalhou.
– Não sei se você pensa que eu considero sua
conversa como um troço sério – disse Tomé – ou se
você já sacou que estou prosseguindo esse diálogo só
para tirar com a sua cara. Eu só gostaria que vocês
parassem de enganar o Simão. Ele é um rapaz
ingênuo e facilmente impressionável, mas não é má
pessoa. Então parem com isso.
– Meu nome não é mais Simão. É Pedro.
– Certo – disse Tomé, em tom mais sério – agora
eu me enfezei. É melhor vocês quatro darem o fora
do nosso colégio antes de causarem mais comoção.
Vocês podem achar que eu não percebi o que estão
planejando. Mas eu notei. Aquele tal Jesus, em menos
de uma hora aqui, já fez um estrago do caramba.
Eu entendi o que ele quis dizer. Não foi só o
pessoal que presenciou o milagre lá fora que ficou
impressionado com eles. A mera presença de Jesus
cativava de uma forma inexplicável.
Naquele instante, Teresinha deu um grito agudo.
Sua garrafa de plástico com água mineral agora estava
tomada por uma substância cor de vinho.
Na verdade, era vinho. Rosa teve coragem de
provar.
– Aleluia! – bradou Rosa – glória a Deus nas
alturas e paz na terra aos homens por ele amados!
Aquela foi a gota d’água, se ainda houvesse água
para contar a história.

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Wanju Duli

Tomé segurou Miguel pela gola da camisa.


– Faça isso parar! – exigiu Tomé.
– Fazer parar o quê? – perguntou Miguel, bastante
calmo – a glória de Deus?
– Basta! – exclamou o professor Abelardo – Tomé
e o outro idiota: para a diretoria, agora!
Os dois obedeceram e saíram. Se eu soubesse que
bater boca me daria a bênção de ser retirado daquela
aula, teria me metido na briga.
– Já vão tarde! – comentou Judas Iscariotes –
esses alunos novos só vieram para causar o caos.
– Devo concordar – disse Jerônimo – eles estão
ferindo não somente a lei e a ordem, mas também a
moral e os bons costumes.
Havia um colega nosso, geralmente silencioso,
chamado Saulo. Naquele dia ele estava falando
bastante. Queria escutar os diferentes relatos sobre os
milagres, mas não conseguia acreditar em nenhum
deles.
– Como é que você não acredita? – perguntou
Pedro – você pode não ter visto o milagre da pomba,
mas viu o milagre da conversão da água em vinho!
– Até eu consigo colocar corante numa garrafa
d’água sem que os outros percebam – disse Saulo.
– Mas Rosa disse que esse vinho tinha um gosto
impressionante!
– E o que ela entende de vinhos?
– Prove você então!
– Não vou perder meu tempo – argumentou
Saulo – mesmo que seja um vinho bom, isso não
significa nada.
Quando acabou a aula de gramática, Jesus pediu
autorização ao professor para ir ao deserto.

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Jesus Adolescente no Século XXI

– Vá, vá – disse Abelardo, cansado – e eu vou


tomar um café.
Enquanto isso, Tomé e Miguel retornaram.
– Como foi lá? – perguntou Pedro.
– Inútil – disse Tomé – o diretor Ockham não
parava de nos dizer que as entidades não devem ser
multiplicadas desnecessariamente. Não sei o que isso
tinha a ver com o assunto. Ele disse que já ia chegar
no assunto, mas nunca chegava.
– E qual foi a punição de vocês? – perguntou
Tiago.
– Provavelmente escutar esse discurso dos
infernos – disse Tomé.
– Então não foram punidos – sorriu João
Evangelista – que bom.
– Bom? – perguntou Tomé – eu preferia ter que
lavar o colégio inteiro com balde e esfregão do que
ter que escutar essa galhofa.
– E tu, Miguel, que achaste? – perguntou Rafael.
– O diretor é muito inteligente – disse Miguel –
foi uma conversa frutífera.
– Finalmente ele falou! – disse Tomé – qual dos
dois você é? Rafael ou Gabriel?
– Eu sou Gabriel – disse o terceiro, que ainda não
havia falado.
– É difícil diferenciar vocês dois – disse Tomé.
– Nem tanto – disse Gabriel – tive a honra de
anunciar à Santíssima Virgem que daria a luz ao Filho
do Altíssimo. Rafael apareceu diante de Tobias.
– Rafael é um anjo menor e menos importante,
então – concluiu Tomé.

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– Não diga tolices – disse Gabriel, de imediato –


“O maior entre vós seja como o menor; e quem
governa como quem serve” disse o Senhor.
Eu notei a mudança no olhar de Gabriel. Ele ficou
mais sério quando disse isso. Não chegou a ficar
brabo, mas até mesmo eu me senti um pouco
intimidado.
Tomé também reparou. Foi cuidadoso.
– Não quis ser rude – disse Tomé – não tive a
intenção de ofender seu amigo. Reconheço seu
mérito ao defendê-lo.
– Qualquer mérito que eu tenha me foi dado do
alto – disse Gabriel – não tenho nenhum atributo por
mim mesmo.
– Você é mais sério que Miguel – observou Tomé
– e Rafael parece meio tímido.
– Ele não é “tímido” – disse Gabriel – e São
Miguel Arcanjo está sendo apenas gentil contigo.
Sugiro que não abuse.
– São Miguel Arcanjo – repetiu Tomé, um pouco
desnorteado – quando eu ouço Miguel falar, parece
que ele está brincando. Mas o tom que você usa
quase me faz acreditar que vocês realmente pensam
ser anjos. Por que então não me provam?
– Um cético não acreditaria em milagres mesmo
se visse diante dele alguém voltar dos mortos – disse
Gabriel.
– Por que não fazer um julgamento de fogo? –
propôs Savonarola – diga para seu Jesus atravessar o
fogo. Se ele escapar ileso, eu acredito.
– “Não porás à prova o Senhor teu Deus” –
pronunciou Gabriel.

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– Isso é muito conveniente! – exclamou Saulo –


vocês já compraram a alma de muitos aqui, apenas
com essa conversa fiada. João Batista e João da Cruz
são dois que foram comprados de imediato. E tu,
Evangelista? Também vendeu sua alma?
João apenas sorria.
– Gosto de Jesus – respondeu João, naturalmente
– ele é um cara legal.
– Caras legais também podem cometer erros –
disse Saulo – mesmo que ele não esteja enganando
todo mundo, ele pode ser louco. Pode acreditar ser
Deus sem ser, com a melhor das intenções. E daí?
Como saber ao certo?
Miguel apenas acompanhava a discussão com um
largo sorriso.
– Por que está rindo? – perguntou Saulo,
ofendido.
– Admiro seu argumento – disse Miguel – eu
compreendo a linha de raciocínio dos seres humanos
e a dúvida, porque vocês nunca viram Deus. Nós,
anjos, permanecemos sempre na presença do
Altíssimo. Nós podemos contemplar o Senhor no
céu, face a face, sem morrer.
Saulo engoliu em seco, mas manteve a
compostura.
– Estão mentindo – disse Saulo – seus grandes
mentirosos! É uma covardia o que fazem conosco:
como brincam com nossos corações.
– Nós não estamos brincando, Saulo de Tarso –
disse Miguel – mas não te preocupa. Em breve o
Senhor abrirá teus olhos. Mas primeiro terá que
fechá-los.

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Wanju Duli

– Não ousem colocar as mãos em mim – disse


Saulo, com um pouco de medo – me deixem em paz!
– Não iremos ferir a tua liberdade – garantiu
Miguel.
Todos escutavam a conversa com atenção.
– E aí, professora? – perguntou Savonarola – não
vai começar a aula?
– Sim, eu vou – garantiu Heloísa – a conversa de
vocês estava tão interessante que eu resolvi copiar
toda a matéria de hoje no quadro enquanto escutava,
mas já terminei. Podem começar a copiar nos seus
cadernos.
Houve um barulho de cadernos sendo tirados da
mochila. Também peguei o meu.
Notei que Rafael ficou parado. Ele estava sentado
bem na minha frente.
– Ei – eu o chamei.
Ele não ouviu. Toquei no ombro dele levemente e
ele se virou.
– Quer uma folha de caderno e uma caneta para
copiar?
Ele fez que sim. Dei a ele.
– Obrigado.
A voz do agradecimento foi em tom baixo, mas
pareceu bastante sincero.
Eu era um João Ninguém, mas aquele sujeito na
minha frente parecia estar em situação pior que a
minha. Talvez eu tentasse conversar um pouco com
ele.
Eu não acreditava realmente que eles fossem anjos
e nem que o primo de Tiago fosse Deus. Mas havia
algo de diferente naqueles caras. Eu não sabia
explicar bem o que era.

26
Jesus Adolescente no Século XXI

Saulo parecia determinado a descobrir e Tomé


parecia determinado a duvidar sempre. Já no meu
caso, eu não sentia urgência nem de descobrir e nem
de duvidar.
Eu achava que eles tinham alguma boa razão para
fazer o que faziam. Eu não sabia bem se tinha relação
com algo pomposo como a verdade, mas parecia ser
algo importante. Por isso, eu apenas sentia que valia a
pena ficar próximo daquilo tudo e participar.
Eu podia ser um pouco fraco ao pensar assim e ao
desejar algo tão pequeno. Poderia ser até covardia,
não sei ao certo. Mas senti que era o que eu devia
fazer por enquanto.
Resolvi apenas ter paciência e não me angustiar.
Lembrei do sorriso bondoso de Jesus quando ele
disse que ia lutar contra o demônio, quase como se
fosse encontrar um amigo. Isso me trouxe esperança.
No intervalo da aula, resolvemos procurar Jesus
no pátio do colégio. Eu também queria saber onde
era seu deserto.
Jerônimo Savonarola era outro chato da nossa sala
que parecia acompanhar tudo o que acontecia com
ligeira indiferença. Mesmo assim, ele contou a
situação para um amigo, que quis conferir com os
próprios olhos.
Tomás de Torquemada também daria um passeio
pelo deserto.

27
Wanju Duli

Capítulo 3: E outros colegas


são demônios

– Então aí está você! – exclamou Torquemada –


aquele que chama a si mesmo “Cristo”, o Filho de
Deus. Espero que você conheça a história “O
Grande Inquisidor” de Dostoiévski, pois assim não
precisarei me deter nas considerações mais óbvias.
Jesus tinha encontrado uma caixa de areia na parte
do pátio do colégio destinada às crianças. Ali travava
suas lutas contra o demônio.
Havia uma boa plateia para assistir à discussão dos
dois. Torquemada sentou-se na caixa de areia ao lado
dele.
– Belo deserto! Veja bem, eu gostaria que isso se
transformasse num verdadeiro debate. Não quero
que somente eu dê um belo discurso e você apenas
me beije no final. Então me diga: você é Deus?
– Tu o dizes – respondeu Jesus.
Torquemada suspirou, resignado.
– Vou mudar o método – decidiu Torquemada –
se tu és mesmo Deus, poderá me dar respostas para
perguntas difíceis. Eu gostaria de saber porque esse
mundo foi criado com tanto sofrimento. Um Deus
todo poderoso poderia ter optado por reduzir o
sofrimento do mundo. Por que não o fez?
– Um Deus todo poderoso também poderia ter
optado por aumentar o sofrimento em vez de
reduzir, caso isso levasse a uma maior elevação
espiritual – interviu Miguel – mesmo se vocês só
sofressem apenas um segundo ao longo de toda a

28
Jesus Adolescente no Século XXI

existência, ainda assim alegariam que Deus não


existe, pois um Deus de amor não permitiria nem
mesmo um segundo de dor. É essa a lógica de vocês:
a felicidade deve ser sinônimo de prazer eterno, e não
de busca da verdade e do bem. Vocês, humanos, são
eternos insatisfeitos.
– Então por que Deus todo poderoso nos fez
assim, eternos insatisfeitos? – desafiou Torquemada,
elevando a voz – por que ele não nos fez como
deuses desde o princípio?
– Deus quis nos dar liberdade – respondeu Miguel
– e com a liberdade existe o risco de fazer o mal. Mas
quando amamos, não fazemos o mal por acidente.
Quando há amor, até mesmo o sofrimento é doce,
pelo ser amado.
– Por que eu não posso ser um Deus? – insistiu
Torquemada.
– Você pode – disse Miguel – aqueles que servem
o Altíssimo, se tornam deuses por participação no
seu amor divino. Mas para isso deverão aprender a
amar tudo e todos, até mesmo o sofrimento.
– Se é assim, por que Deus tornou o caminho da
apoteose tão árduo? – perguntou Torquemada – por
que não nos fez como deuses desde o princípio?
– Ele fez – respondeu Miguel – vocês possuíam a
divina felicidade no Éden. Mas para que fossem
dignos dessa felicidade, deviam passar por um teste.
Vocês falharam e se esqueceram de sua essência
divina. Mas Deus é misericordioso, por isso deu a
vocês uma nova chance e não cansa de perdoar. Está
sempre de braços abertos para receber quem se
arrepende.

29
Wanju Duli

– E por que devíamos passar por um teste? –


perguntou Torquemada – por que não nascer como
Deus e permanecer Deus para sempre, desfrutando
da felicidade divina, sem a possibilidade de cair no
erro?
– Porque assim não haveria liberdade – disse
Miguel – ou seríamos meros fantoches de Deus.
– E por qual teste o Deus todo poderoso teve que
passar? – exclamou Torquemada, como se tivesse
chegado ao ápice da discussão – por que todos
tivemos que sofrer e morrer e ele não? Por que para
ele tudo foi mais fácil?
Miguel silenciou. Fechou os olhos.
– Você não tem resposta? – insistiu Torquemada.
– A resposta – disse Miguel – está bem diante dos
teus olhos.
Torquemada voltou os olhos para Jesus, sentado
na caixa de areia.
– Tu és mesmo Jesus, o Filho de Deus? –
perguntou Torquemada – aquele mesmo Jesus das
Escrituras, que morreu pelos nossos pecados, para
que o imitássemos?
– De que adianta eu dizer “sim”? – perguntou
Jesus – se eu der testemunho de mim mesmo, isso
mudará o teu coração de pedra? Não posso te dar um
coração de carne somente por palavras. Eu não vim a
esse mundo para discursar, mas para viver e morrer.
A árvore se conhece por seus frutos.
– Então faça um milagre! – exclamou
Torquemada.
– Ele já fez – eu intervi – o milagre da pomba,
com a voz de Deus vindo dos céus, e o milagre da
conversão da água em vinho. Eu vi os dois.

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Jesus Adolescente no Século XXI

Todos voltaram os olhos para mim.


– Quem é esse cara? – perguntou Torquemada.
– Não se incomode comigo – eu me apressei em
dizer – pois eu não sou ninguém.
– Que arrogante! – exclamou Torquemada –
quem diz que não é ninguém está querendo se fazer o
menor de todos para merecer o Reino de Deus, mas
isso é falsa humildade!
– Não é nada disso – esclareci – o meu
sobrenome é Ninguém.
– Que bom para você – rosnou Torquemada,
pouco interessado na minha pessoa – mas uma
pomba e um pouco de vinho não provam nada. Por
que não faz um milagre maior do que esse, hã? Cure
os doentes, exorcize os demônios, reviva os mortos!
O que está esperando?
– Estou esperando ser tentado pelo diabo no
deserto – explicou Jesus – por isso estou jejuando. O
Espírito Santo me chamou para cá e só poderei fazer
milagres maiores depois de muito jejum e oração.
– Isso é bom, pois jejuns fazem bem à saúde, a
não ser quando nos matam – comentou Torquemada
– mas o que mais faz bem à saúde do espírito é uma
boa fogueira! Jerônimo, que tal queimarmos um ou
dois deles para dar-lhes um passaporte direto para o
céu, já que gostam tanto de lá? Quem sabe possamos
queimar esse Jesus e esse Miguel que está tão falante.
– Eu entendo porque a Santa Inquisição usou a
tortura e a fogueira como caminho de expiação –
disse Jerônimo – já que se a dor no corpo pode nos
levar à elevação espiritual, isso é preferível a perder
tanto a alma quanto o corpo no inferno. Mesmo

31
Wanju Duli

assim, isso fere a liberdade, que é o nosso princípio


mais sagrado.
– No fundo, há sempre uma escolha – insistiu
Torquemada – a Igreja convida ao caminho do
arrependimento: humilhe-se ou queime! Perca todo o
seu dinheiro, seus bens e sua honra, ou queime!
Quem queimam são os orgulhosos, que só poderiam
mesmo se livrar do orgulho pelo fogo. Nós apenas
damos uma força para salvar suas almas. Jesus, é dito
que você usa seus anjos para queimar e julgar todo
mundo no Juízo Final! Então a Igreja não está errada
ao fazer o mesmo, mandando os pecadores para a
fogueira, certo?
– Não julguem uns aos outros – disse Jesus –
somente os perfeitos podem julgar, porque só sendo
perfeito para não errar no julgamento. Enquanto
apenas um desses pequenos correr o risco de ser
ferido por um julgamento incorreto, não se deve
tentar. Se tens um cisco no teu olho, por que tentas
tirar o cisco do olho do teu irmão? Tira o teu cisco
primeiro e só então tira o do outro. Apenas quem
nunca pecou, que atire a primeira pedra. Jogar pedras
não é errado conforme a antiga Lei, mas somente
quando se é um santo. Não vim para abolir a Lei e os
profetas. Não sabeis que vós humanos, aqueles de
vós que se tornarem santos, julgarão até os anjos nos
últimos dias que estão por vir?
Torquemada ficou surpreso.
– Eu vou te julgar? – Torquemada perguntou para
Miguel.
– Tu já te julgas salvo? – perguntou Miguel.
– Ninguém jamais pode julgar que está na graça –
respondeu Torquemada.

32
Jesus Adolescente no Século XXI

– Deus pode te dizer se serás salvo, pois ele


conhece o futuro – disse Miguel – tu queres saber?
– Não – disse Torquemada.
– Respeito tua decisão – disse Miguel – mas não é
a nós que tu julgarás caso suba aos céus. É aos anjos
caídos, aqueles que reprovaram no teste feito
conosco no início dos tempos.
– Foi um teste difícil? – perguntou Jerônimo.
– Dificílimo – falou Miguel – mas se Deus os julga
com maior ou menor rigor do que julgou a nós, os
anjos, não cabe a mim determinar.
Naquele momento, Bartolo Longo, colega de
Torquemada, foi até a nossa direção.
– Eu sei como invocar o diabo – declarou Bartolo
– se Jesus quer ser tentado, posso fazer isso por ele.
Mas Bartolo não perguntou se alguém precisava
de sua ajuda. Ele simplesmente traçou um triângulo
no chão com uma faca e começou a pronunciar
fórmulas evocatórias numa língua antiga.
Vários dos presentes deram um pulo para trás,
fizeram o sinal da cruz e se protegeram com rezas.
– Se o próprio diabo vier, é melhor eu já preparar
uma fogueira – disse Torquemada, ateando fogo
sobre alguns gravetos – se for o diabo eu posso
queimar, não posso, Jesus?
– Ele disse que os anjos caídos só serão julgados
pelos santos! – protestei.
– Quem é você mesmo? – perguntou
Torquemada.
– Isso já está ficando chato – eu disse.
Do interior do triângulo, surgiu um rapaz mais ou
menos da nossa idade. Ele tinha boa aparência e

33
Wanju Duli

usava um terno arrumado e impecavelmente limpo.


A gravata era da cor vermelha.
– Bom dia a todos – disse o diabo.
E até apertou a mão de Bartolo Longo, com um
aperto firme.
– Até que ele é bem educado – comentou Teresa
de Ávila – e bonito.
– Eu não acho – comentou João da Cruz – ele
está querendo nos enganar.
– Enganá-los, gentil senhor? – perguntou o diabo
– não me julgue apenas porque surgi de um triângulo
e respondi a uma evocação demoníaca. Esses anjos
que são arrogantes, que só aparecem visivelmente aos
mortais depois que eles se sacrificam muito e passam
por diversas dores. Eu, ao contrário, apareço a quem
me chama, com alegria.
– Como ousa...? – começou a dizer Gabriel.
Mas Miguel o deteve. Tomou a palavra.
– Como vai lá no inferno, Lulu? – perguntou
Miguel, despreocupado.
– O de sempre – respondeu Lúcifer – muita
diversão, regada a fogo, sangue, torturas e gritos. No
começo é difícil, mas depois que se acostuma, não é
tão ruim assim.
– Não escutem esse mentiroso! – exclamou
Gabriel – ele é o príncipe da mentira e da enganação.
– Por que está tão brabo, Gabi? – perguntou
Lúcifer – é porque Deus me criou como superior a
você na hierarquia? Ou é porque você se arrepende
de ter obedecido ao demiurgo desde o princípio, e
agora sente a dor de ser um mero escravo?

34
Jesus Adolescente no Século XXI

– Você é o único escravo aqui – retrucou Gabriel


– o maior dos escravos, eternamente trancado nas
correntes de seu próprio orgulho e inveja.
– Mas pelo menos eu tenho amigos – disse
Lúcifer, com um sorriso malicioso – me dá um
cigarro, Bartolo?
Bartolo Longo obedeceu prontamente e até
acendeu o cigarro de Lúcifer.
– Ele não é seu amigo – Gabriel advertiu Bartolo
– só está usando você.
– Em troca de nossa amizade, dou a ele o que
desejar – disse Lúcifer – muito dinheiro, todo o
poder e toda a glória. E o que a amizade de um anjo
geraria em troca? Muita dor e sangue derramado.
– A amizade com Deus gera apenas um único
bem, que é o único que precisamos – disse Gabriel –
o próprio Deus. Todo o resto é barganha.
– Eu não acredito que você seja o próprio Satanás
– disse Tomé – por que não nos prova?
– Minha chegada triunfal de um triângulo traçado
no chão já não foi o bastante? – perguntou Lúcifer,
fingindo surpresa – eu tinha ouvido falar que o
século XXI estava cheio de céticos, mas também não
sabia que a situação tinha chegado nesse ponto. Por
isso que nesses tempos nós demônios temos pouco
trabalho a fazer.
– Tem uma árvore logo ali – apontou Tomé – e a
fumaça da fogueira de Torquemada estava
atrapalhando a visibilidade. Você pode muito bem ter
surgido de lá.
– Por mim tanto faz – sorriu Lúcifer – é até mais
fácil que duvidem da minha identidade. Facilita meu
serviço.

35
Wanju Duli

– Aqui, senhor – Teresinha deu ao diabo uma


pequena florzinha que acabara de colher – para você.
Lúcifer ficou um pouco confuso.
– Não quero esse lixo – disse Lúcifer – saia daqui.
E esmagou a flor embaixo do próprio pé.
Teresinha começou a chorar. Francisco foi até lá
consolá-la.
– Não se preocupe, irmã – disse Francisco – a
irmã flor ficou contente com seu gesto. Quem sabe o
irmão diabo prefira os irmãos vermes?
Francisco ofertou-os inocentemente para Lúcifer.
Ele fez uma careta.
– Vocês fedem a amor por Deus – disse Lúcifer –
saiam da minha frente, seus esquisitos!
– Todas as garotas estão apaixonadas por esse
sujeito, só porque ele é bonito – comentou João da
Cruz, torcendo o nariz – pra completar, ele é
malvado. Aí sim, elas ficam caidinhas. Por que as
meninas só gostam dos caras que não prestam?
– Eu não estou apaixonada por ele – defendeu-se
Hildegarda, a melhor aluna da turma – ele irá provar
seu valor se nos demonstrar conhecimentos das
Escrituras. Por que você não nos faz uma exegese do
Apocalipse?
– Com o maior prazer – disse Lúcifer – eu fui um
dos primeiros anjos criados por Deus. Vocês pensam
que não conheço o conteúdo dos seus livrinhos?
Quando chegou no trecho em que Miguel lidera
exércitos de anjos para batalhar contra o dragão,
houve uma ligeira discussão.
– Não foi bem assim – disse Miguel – você está
distorcendo a história.

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Jesus Adolescente no Século XXI

– Pessoal – disse Jesus – estou realmente com


fome. Então, se vocês não se importam, será que
posso ter minha vez de lutar contra Satanás?
– Estou sendo disputado – comentou Lúcifer,
todo vaidoso – o que é que você quer agora, Jesus? Já
lutamos no deserto uma vez, por quarenta dias. Quer
repetir a experiência?
– Podem ser apenas quarenta minutos dessa vez –
sugeriu Jesus.
– Mas assim a gente vai se atrasar para a aula! –
protestou Hildegarda – não tem como vocês irem
mais rápido? Em cinco minutos vai tocar o sinal.
– Está bem – disse Jesus – são só três perguntas,
certo?
– Sim – confirmou Lúcifer – vou cronometrar.
– É uma batalha bem comportada – aprovou
Teresa de Calcutá.
– Droga – disse Lúcifer, jogando seu celular no
chão – que porcaria de buraco é esse que não tem
wi-fi?
– Eu posso te emprestar meu celular – ofereceu
Jesus – meu cronômetro não precisa de internet.
– O celular do Lulu é tão moderno que até para
usar o cronômetro tem que ter wi-fi – riu Miguel.
– Cale-se, Mimi – disse Lúcifer – eu tenho tanto
dinheiro que não sei mais o que fazer com ele.
– Por que não doa para os pobres? – perguntou
Teresa de Calcutá.
– Os pobres raramente me invocam, porque são
muito apegados ao demiurgo – explicou Lúcifer –
geralmente são os ricos que me pedem ainda mais
dinheiro, em troca de suas almas. Jesus, me desculpe
dizer, mas esse seu celular é uma m...

37
Wanju Duli

– Que aconteceu? – perguntou Jesus.


– Estou até agora esperando ligar. Pelo jeito,
vamos ter que esperar até amanhã. Bem, vai servir de
cronômetro. Quando seu celular ligar, significa que já
passou há muito dos cinco minutos. Vamos começar.
Lúcifer pigarreou e bradou:
– Se és Filho de Deus, mande que estas pedras se
transformem em pães!
– Está bem – disse Jesus.
E Jesus transformou algumas pedras em pães.
Todos soltaram uma exclamação impressionada.
O diabo ficou irado. Deu pulos indignados no
chão, batendo os pés.
– Não, não, NÃO! – berrou Lúcifer – você
deveria ter dito: “Nem só de pão vive o homem, blá,
blá, blá”.
– Você está com uma cara péssima – observou
Jesus – pensei que estivesse ainda com mais fome
que eu. Por isso fiz esses pães para você. Vamos, não
se acanhe. Pode comer.
– Eu não como o pão dos anjos – Lúcifer fez uma
careta e colocou a língua para fora – eles me dão
ânsia de vômito e diarreia.
– Tem alguém aqui com pouco pecado que se
proponha a comer o pão dos anjos? – perguntou
Jesus.
– Posso dar para meus bichinhos? – perguntou
Francisco.
Jesus assentiu. Francisco também ofereceu alguns
pães para Rosa e Catarina, mas elas recusaram
educadamente, dizendo que os pães estragariam seus
jejuns perfeitos de meses a fio. Mesmo sendo pão

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Jesus Adolescente no Século XXI

dos anjos, pão era pão. Elas só consumiam a


eucaristia.
– Agora precisamos ir para um lugar alto –
lembrou Lúcifer.
– Não tem algo tão elegante assim no nosso
colégio – disse João da Cruz – o mais perto disso é a
escada de dez degraus.
– Vai servir – disse Lúcifer.
Ele e Jesus foram até lá, acompanhados da
multidão de alunos curiosos que os seguiam. Lúcifer
bradou:
– Se és Filho de Deus, joga-te daqui abaixo! Pois
está escrito: “Ele dará ordens aos teus anjos e eles te
carregarão”.
– Vem, vem, vem, Jesus! Pode pular! – disse
Miguel, ao pé da escada – a gente tá aqui pra te
segurar!
Miguel, Gabriel e Rafael estavam lá embaixo na
escada. Lúcifer esganiçou-se de fúria:
– Vocês estão fazendo isso errado! Bem, já que
estragaram tudo, serei eu a pular. Vamos ver se vocês
me seguram!
Lúcifer saltou da escada. Antes mesmo que os
anjos se movessem, surgiram muitas garotas para
segurá-lo.
– Lúcifer lindo!
– Muito gatinho!
– Tira uma selfie comigo?
– Me LARGUEM!! – berrou Lúcifer – isso não é
um teatro! Estamos fazendo um negócio sério aqui,
sabiam? Só tiro selfie com quem me vender a alma!

39
Wanju Duli

Miguel não conseguia conter o riso. Gabriel


apenas ignorou a situação e Rafael observava tudo
em silêncio.
– Agora é a última chance para fazermos isso dar
certo – disse Lúcifer, levantando-se e espanando o pó
de seu terno – Eu te darei todos os reinos do mundo
e suas riquezas se caíres de joelhos para me adorar!
– Por que não ficamos ambos de joelhos e
rezamos juntos para Deus? – propôs Jesus.
– Companheiro Torquemada – disse Lúcifer –
será que eu posso pular na sua fogueira? Esse lugar já
está enchendo minha paciência.
– Pode ficar à vontade – disse Torquemada – eu a
fiz para você.
– O que todos vocês estão fazendo aqui fora?! –
gritou o professor Giordano Bruno – pensam que é
festa de São João? Por que não estão na aula de
física?
– Seria um gesto legal fazer uma festa para mim –
disse João Batista – mas eles estão apenas queimando
hereges.
– Queimando hereges, hã? – repetiu Giordano –
vocês acham que fazendo isso vão conseguir uma
boa nota nas provas de física?
– É claro que sim – disse Torquemada – se
queimarmos o senhor, que é o maior dos hereges
desse colégio!
– Tomás, isso foi desrespeitoso – disse Giordano
– vá agora mesmo para a diretoria.
– Não, por favor! – exclamou Torquemada – eu
não quero ouvir um discurso sobre a Navalha de
Ockham!

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Jesus Adolescente no Século XXI

– Não se preocupe, é um discurso empolgante –


incentivou Miguel – ele vai provar que existe um só
Deus, porque não devemos aumentar as entidades
desnecessariamente.
Com imensa tristeza, Torquemada apagou sua
fogueira e se retirou.
– Você é aluno novo? – Giordano perguntou para
Lúcifer.
– Eu me pareço com um? – perguntou Lúcifer.
– Sinceramente, você me parece meio burrinho.
Melhor levá-lo junto também. Em vez de apenas
brincar com Deus, você deveria tentar enxergar o
mundo da perspectiva científica, aos olhos da física.
E Giordano levou Lúficer pela mão, que o seguiu
a contragosto.
Naquele dia, o professor aplicou uma prova
surpresa. Hildegarda pensou que ia tirar a melhor
nota, pois errou apenas uma questão. Porém, Jesus
gabaritou a prova.
Todos ficaram boquiabertos.
– Jesus é Deus! – concluiu Saulo.
E finalmente se convenceu depois daquilo.
– Bem-aventurado sejas tu, Saulo de Tarso! –
clamou Jesus, com alegria – a partir de agora, teu
nome será Paulo!
– O Senhor mudou teu nome, assim como mudou
o meu – disse Pedro, contente – agora somos Pedro
e Paulo, apóstolos de Jesus. Isso te traz alegria?
– Não muita, porque eu não estou enxergando
nada – confessou Paulo – o que aconteceu com meus
olhos?
– Já vou resolver esse problema – disse Jesus,
cuspindo nas mãos e passando nos olhos dele.

41
Wanju Duli

Paulo ficou impressionado.


– Agora eu vejo! – exclamou Paulo.
– Mais um milagre! – celebrou Pedro – glória a
Deus!
– Nada disso me convenceu – insistiu Tomé –
você está convencido, Judas?
– Bem, eu tirei sete na prova – disse Judas – se
tivesse estudado mais um pouquinho, também
poderia gabaritar. Quanto você tirou, João?
– Eu tirei cinco – informei.
– E quem te perguntou, babaca? – gritou Judas –
eu tô falando com o Evangelista e não contigo, ô,
animal!
– Eu tirei oito e meio – disse o João Evangelista.
Os três anjos tiraram nove e todos ficaram muito
surpresos que eles tivessem superado o Evangelista.
– Mas eu ganhei – disse Hildegarda – tirei nove e
meio.
– Eu ganhei – disse Jesus – é brincadeira, haha!
Não fique braba.
Mas Hildegarda lançou a ele um olhar mortal.
Mesmo tirando ótimas notas, Jesus não pretendia
fazer curso superior. Ele queria ser carpinteiro.
Todos admiravam sua grande humildade.
No dia seguinte, cheguei no colégio no horário
habitual e já estava lotado. Havia muita gente no
pátio escutando os discursos de Jesus. Ele dizia
assim:
– Felizes os que não têm bolsas da Louis Vuitton,
porque deles é o Reino dos Céus. Felizes os que não
têm o último modelo de iphone da Apple, porque
serão consolados.

42
Jesus Adolescente no Século XXI

– Jesus anda muito bem informado sobre as


marcas da moda, hã? – zombou Judas.
– Ele é Deus – argumentou João Evangelista –
então ele sabe de tudo.
– De tudo mesmo? – perguntou Tomé, duvidando
– Jesus, qual foi o resultado do último jogo de
futebol do Vasco com o Flamengo?
– Dois a zero – respondeu Jesus.
– Viu só? – disse o Evangelista.
– Isso só prova que ele assistiu ao jogo, oras –
disse Tomé – se é assim, também sou Deus.
De repente, o rosto de Jesus se iluminou e suas
vestes se tornaram brancas como a neve. Houve uma
voz vinda dos céus que dizia:
– Este é o meu filho amado e nele coloquei todo o
meu agrado. Escutai-o!
– Você não já tinha dito isso da outra vez? –
perguntou alguém na multidão.
– Sim – respondeu Deus Pai – mas a vossa
memória é tão ruim que eu preciso repetir as mesmas
coisas mil vezes.
Depois disso, Jesus atravessou uma grande poça
d’água sem afundar. E tudo isso antes de começar a
aula.
– Senhor, chama a mim também para caminhar
sobre a poça! – pediu Pedro.
– Vem, Pedro! – chamou Jesus.
Porém, Pedro tropeçou e caiu. Começou a se
afogar na poça, embora ela fosse muito rasa.
– Senhor, salva-me! – gritou Pedro.
E Jesus gentilmente estendeu a mão.
– Por um momento pensei que eu fosse morrer
afogado – disse Pedro.

43
Wanju Duli

– Morrer afogado nessa poça é um milagre que


nem eu mesmo seria capaz de fazer – disse Jesus.
Jesus já tinha seus três melhores amigos: João
Evangelista, Tiago e Pedro. Mas seu favorito era
João. Isso não era nenhuma surpresa, pois todos
gostavam de João. E Tiago era seu primo, portanto
era algo natural. Mas ninguém entendia porque Jesus
gostava tanto de Pedro e havia dado a ele suas chaves
do céu.
Judas ficava particularmente irritado com isso.
– João é inteligente e criativo – comentou Judas –
Tiago é um cara razoável e pesca bem. Mas Pedro é
um desastrado e fala muito alto! O que Jesus enxerga
nele?
Parecia que Judas acreditava cada vez mais que
Jesus era Deus, mas ficava aborrecido por não ser
parte do clubinho exclusivo dos melhores amigos.
Conhecendo seus pensamentos, Lúcifer disse a
ele:
– Judas, você é melhor que todos eles. Esqueça-os
e seja meu amigo.
– Sai pra lá, Satanás! – exclamou Judas – você
tirou zero na prova de física. Não quero saber de
você.
– Mas eu sou bonito. Se andar comigo, eu te
apresento para as meninas e você vai conseguir uma
namorada.
– Quero uma namorada – resolvi me meter –
posso andar contigo, Lúcifer?
– Não sei quem é você e nem quero saber – disse
Lúcifer – está cheio de gente popular nesse colégio,
então por que eu andaria com você?

44
Jesus Adolescente no Século XXI

Era uma boa pergunta. Talvez eu devesse ser


eternamente o cara invisível que apenas observava
tudo de longe, sem participar de nada. Deus não
queria nada comigo e nem o diabo.
No intervalo daquele dia, Jesus reuniu seus
melhores amigos, mas não apenas os três preferidos.
Também chamou outros caras com quem
simpatizava e incluiu Judas no grupo, que sentia-se
orgulhoso. Jesus até mesmo o adicionou como amigo
no Facebook e Judas se gabou disso para todos.
Jesus dividiu seu lanche com eles e instituiu a
eucaristia. Ele tinha trazido na mochila um pouco de
pão velho e o partiu. Como não tinha vinho,
transformou a água do bebedouro em vinho. Todos
queriam tomar daquela água e tornou-se um
bebedouro muito popular.
Até mesmo eu provei. Por um momento,
acreditei. Podia ser que aquele Jesus fosse mesmo o
Cristo.
Mas se ele era Deus, por que não me amava? Por
que não me chamava para ser seu amigo? Em vez
disso, mantinha apenas um grupo restrito de
seguidores.
É verdade que ele também dava sermões em
público. Desses eu participava, pois todos eram
convidados. Mas depois ele só contava os maiores
segredos para seu círculo de amigos.
Eu queria entender. Por isso, perguntei para um
dos únicos caras que não parecia ter muitos amigos e
podia estar a fim de um papo comigo: Rafael.
– Escuta – eu disse a ele – por que Jesus esconde
tantos segredos?

45
Wanju Duli

– Algumas pessoas não estão preparadas para


ouvir demais – respondeu Rafael, naturalmente – ou
iriam quebrar ao meio.
Senti um frio na espinha.
– Você quer dizer, morrer? – perguntei.
– Iriam sofrer muito, além de suas forças – disse
Rafael – a verdade não é sempre bonita. Jesus não
chama os escolhidos para lhes dar presentes, mas
para que carreguem sua cruz com ele. Você está
preparado para beber desse cálice?
É claro que eu tinha medo. Descobri que Jesus
chamava a todos, mas ele não me trouxe para mais
perto porque eu ainda não estava pronto. Eu era uma
espada incompleta e sem fio, com medo de ser afiada
e forjada pelo fogo. Não iria vencer a batalha contra
o diabo naquele estado.
Jesus não iria me convocar para lutar nas linhas da
frente da batalha se soubesse que eu seria fuzilado
nos primeiros segundos. Por isso ele era tão
cauteloso.
Mas eu não achava que Judas era muito melhor
que eu. Então por que Jesus chamou a ele e eu não?
No fundo, só não fiquei tão chateado porque
nunca tive altas expectativas em relação à minha
pessoa. Eu não me achava realmente interessante.
– Você parece confuso – disse Rafael – talvez eu
não tenha explicado direito. Deus não escolhe só os
fortes. Ao contrário, muitas vezes prefere os fracos.
No fundo, não é ser fraco ou forte que faz com que
ele chame alguém. Deus chama os que ele quer,
porque ele quer. Isso é tudo.
De uma forma inexplicável, aquilo soou profundo.

46
Jesus Adolescente no Século XXI

Nos dias que se seguiram, Jesus começou a fazer


algumas curas e exorcismos. Coisas pequenas.
Nossos colegas começaram a chamar conhecidos
doentes para serem curados. Em pouco tempo, havia
filas e filas no nosso colégio.
Ninguém sabia direito onde Jesus morava. Parecia
que era um lugar bem humilde e ele só mostrava aos
seus amigos próximos. Ainda bem, ou ele também
teria sido incomodado em casa e não teria mais paz.
Conforme crescia o amor das pessoas por ele,
também crescia o ódio. Os professores, por exemplo,
não aguentavam mais toda aquela gente entrando e
saindo do colégio. Queriam colocar um fim naquela
bagunça.
João Batista não parava de batizar gente no portão
principal. Por isso, ele foi o primeiro a ser expulso.
Os professores pensavam que a situação iria se
acalmar um pouco com a saída de João Batista, mas
isso não aconteceu.
A situação era óbvia: apenas com a expulsão do
próprio Jesus aquilo chegaria ao fim.
Mas não era algo fácil. Ele tirava as melhores
notas. Então para expulsá-lo precisariam arranjar um
motivo bem justificado.
Por isso, antes de qualquer ato drástico,
resolveram chamar os pais de Jesus para uma
conversa.

47
Wanju Duli

Capítulo 4: A Última Batalha

José e Maria, os pais de Jesus, chegaram numa


sexta-feira pela manhã. Eram pessoas muito simples,
mas de alguma forma se destacavam na multidão.
Maria, em especial, emanava uma grande paz.
Lúcifer, quando a viu, não quis chegar perto dela.
– Más memórias, Lúcifer? – perguntou Miguel,
que presenciou a cena – alguma relação com um
fruto proibido?
– Deixe estar – ameaçou Lúcifer – que o seu Jesus
será expulso do colégio em breve.
– Isso não importa – disse Miguel – acha mesmo
que irá vencê-lo dessa forma?
– Talvez eu não precise vencê-lo – disse Lúcifer –
não sou tão ganancioso como você, que quer sempre
caminhar ao lado dos mais fortes. Eu me contento
com uma humilhação. Eu quero humilhar Jesus. E
você. Se eu conseguir tirar esse sorrisinho do seu
rosto, já vou ficar contente.
– E como pretende fazer isso? – perguntou
Miguel.
Até então, eu havia me considerado um
expectador passivo. Nem me passava pela cabeça que
os dois tinham sequer reparado que estavam sendo
atentamente observados por mim.
Lúcifer surgiu por trás de mim. Não sei como se
moveu tão rápido. Ele colocou uma lâmina no meu
pescoço. Não vi de que instrumento provinha aquela
lâmina e eu não queria saber. Eu apenas senti o metal
frio e gelei.

48
Jesus Adolescente no Século XXI

– Ninguém sabe quem ele é – disse Lúcifer –


então você não vai se importar se eu o matar, certo?
Eu não costumava conversar com Jesus e com os
anjos. No máximo, já tinha falado umas duas vezes
com Rafael. Miguel era popular, inteligente e
divertido. Dele eu nem tentei me aproximar, já que
eu não me considerava interessante o bastante para
uma conversa com uma pessoa assim.
Mas lá estava ele. Olhando para mim. Um anjo
próximo do próprio Deus.
Eu ainda não tinha decidido se acreditava
completamente nos papos deles. Podia ser que Jesus
e os anjos tivessem grandes poderes, mas e daí? Isso
não provava que eles teriam poderes após a morte ou
fossem senhores do céu. No máximo, tinham
aprendido uns bons truques de manipulação da
natureza. Como magos.
Será que eles mexiam só na matéria? Ou faziam
tudo aquilo porque tinham encontrado o espírito por
trás do mundo visível? Eu estava pensando em tantas
coisas porque estava desesperado.
Já não fazia mais diferença. Eu me sentia feliz.
Estava contente por ser olhado por um anjo e ser
morto por um demônio.
– Largue-o, Satanás – disse Miguel, em tom sério
– ou vai se arrepender.
Era raro ver Miguel sério. Ele costumava ser
brincalhão. Mas naquele instante ele parecia
considerar a minha vida como um assunto digno de
sua seriedade.
Por que ele não queria que eu morresse? Era
porque queria me poupar da dor e do medo? Afinal,
se eles eram senhores da vida e da morte, não fazia

49
Wanju Duli

diferença se me matassem. Eles podiam me salvar


depois e me guiar até o céu, certo?
Foi só então que eu descobri que isso não era
verdade.
Eu tinha minha liberdade. Eram somente minhas
ações e principalmente meu amor que arrastariam
minha alma para o céu ou para o inferno, assim
como uma bola jogada para cima ainda sofrerá o
peso da força da gravidade.
Eles podiam realizar milagres, mas jamais iriam
interferir na minha liberdade.
Ao longo daqueles 18 anos, eu tinha feito muitas
coisas boas e ruins. Eu não me achava
particularmente bom. Era apenas normal. Mas será
que minhas más ações poderiam pesar o bastante
para me arrastar para o inferno?
Eu tive medo. Não da morte e sim de não ser
salvo. Por consequência, tive medo da morte porque
eu ainda queria um pouco mais de tempo.
Se eu ainda pudesse viver por mais alguns anos,
ainda poderia me arrepender. Endireitar a minha
vida. Mas me arrepender de quê?
Eu não tinha amigos e não atribuía a culpa a mim
mesmo e sim aos outros. Eu só ficava no meu canto,
mas os outros eram crueis, porque não me davam
atenção. Por que as pessoas não vinham até mim?
Por que Deus não vinha conversar comigo e me
salvava? Por que era sempre eu que tinha que fazer o
esforço de caminhar? Por que o céu não caminhava
até onde eu estava e eu o conquistava, de mãos
beijadas?

50
Jesus Adolescente no Século XXI

As lágrimas afloraram em grande quantidade dos


meus olhos. Eu estava com muito medo, mas
inexplicavelmente feliz.
Comecei a rir. Miguel ficou surprso. Até mesmo
Lúcifer estranhou.
Era um prazer ter o poder de surpreender seres
extraordinários como eles.
– De que está rindo, seu vermezinho? – perguntou
Lúcifer – da sua própria morte inevitável? Está assim
tão desesperado?
– Não – respondi – eu estou feliz.
– Então você quer morrer? – perguntou Lúcifer,
com cautela, para não me dar o que eu queria – você
é suicida?
– Não faz diferença se eu morrer – respondi –
afinal, nunca fui ninguém. Vocês por acaso sabem o
meu nome?
– Me desculpe – disse Miguel – eu não sei. Mas
isso não significa que você não seja importante.
As palavras de Miguel eram vazias. No entanto, eu
não me lembrava de já ter rezado para ele algum dia
tampouco. Ele não tinha nenhuma obrigação de me
conhecer.
– Eu estou feliz porque essa foi a conversa mais
longa que tive esse ano – eu disse – frequentemente
eu me esqueço que estou vivo e hoje você me fez
lembrar, Satanás. Obrigado.
Lúcifer não gostou.
– Eu não quero te fazer nenhum favor – disse
Lúcifer – mas se você me irritar de novo, vou dar o
que você quer, e também o que você não quer.
– O que tens a fazer, faze logo – eu disse.

51
Wanju Duli

E Lúcifer passou a lâmina com força pelo meu


pescoço. Eu sabia que ele não erraria. Já devia ter
feito isso muitas vezes antes.
Ainda tive o deleite de ver a expressão de pânico
de Miguel, antes de eu perder a consciência.
Eu sentia uma tristeza mortal. Muitos sentimentos
se misturavam. Era um medo de arrebentar o
coração, mas também uma estranha paz.
Finalmente as cortinas se fecharam. O teatro do
mundo havia terminado. Mesmo na hora da morte,
não entendi direito o que eu fui fazer naquele lugar.
Algumas memórias se passavam aleatoriamente
pela minha mente. Cenas das histórias do João
Evangelista: anjos, fogo e sangue. O fim do mundo.
E também era uma realidade, já que era o fim do
meu mundo.
Não sabia direito onde eu estava. Era um espaço
vazio. Perdi a noção de tempo e espaço.
Surpreendi a mim mesmo ao me ver rezando,
talvez pela primeira vez. Eu disse algo assim em
minha mente:
– Deus, se houver um Deus, salve minha alma, se
eu tiver uma alma.
Ainda repeti isso alguma vezes.
Até que ouvi uma voz.
– Não tenha medo. Estou aqui contigo.
Era um estranho conforto saber que eu não estava
sozinho. Eu já tinha me acostumado há muito tempo
com a solidão. Mas ser sozinho e ver pessoas ao meu
redor, mesmo que elas nem tivessem consciência da
minha existência, era uma coisa. Outra coisa diferente
era ser apenas eu mesmo num mundo sem formas e
presenças.

52
Jesus Adolescente no Século XXI

Nesse tipo de mundo, minha solidão triplicou. Eu


não era nem mesmo capaz de abraçar meu próprio
corpo e encontrar minha presença perdida.
– Aqui estou, com uma forma semelhante a de um
humano – explicou ele – então não precisa ter medo
de me olhar.
Eu abri os olhos. Se é que eu ainda tinha olhos.
Era um rapaz, como eu. Usava uma roupa branca
e tinha um sorriso gentil.
– Não quero que isso soe mal, mas você está
morto – disse ele.
– Eu já desconfiava – respondi, com uma voz que
não saiu direito – mas havia melhores formas de você
me contar isso, não?
– Sempre tento uma forma diferente a cada vez.
Parece que falhei de novo. Enfim, sou seu anjo da
guarda.
Eu fiquei um pouco zangado.
– Onde você estava esse tempo todo?
– Sempre estive ao teu lado! – ele protestou –
você que não reparou.
– Sabe meu nome? – perguntei.
– É João Ninguém.
Fiquei sinceramente surpreso que ele soubesse.
– Por que nunca conversou comigo?
– Eu sempre falo contigo – respondeu o anjo –
mas nem sempre de forma direta. Eu dou muitas
pistas.
– Por que se esconde? – perguntei – isso torna as
coisas muito mais difíceis.
– Faz parte do teste estabelecido por Deus que
não nos mostremos claramente. Mas eu sempre te
protegi.

53
Wanju Duli

– E por que falhou dessa vez?


– Porque você pediu para morrer. Então eu não
podia fazer nada. Não podia interferir.
Então era assim que funcionava.
– Eu tentei mudar seu coração nos seus últimos
minutos, te enviando medo da morte e vontade de
viver – disse o anjo – mas mesmo nós, anjos, somos
proibidos de entrar muito fundo no coração dos
humanos, mesmo que isso ameace suas vidas.
– O que Deus considera acima da vida?
– A liberdade humana.
Eu sentia uma sensação inexplicável. Nada
parecido com o que eu sentia enquanto estava vivo.
Era um desconforto ligeiramente bom.
– Estou no céu ou no inferno? – perguntei – você
iria me buscar até no inferno, meu anjo guardião, se
eu tivesse caído lá?
– Se você tivesse caído lá, teria sido sua própria
escolha – ele explicou – você está no purgatório, mas
eu tive que lutar para te proteger das chamas de
baixo. Uma parte de você as desejava.
Eu senti verdadeiro terror ao ouvir isso.
Significava que eu tinha escapado do inferno por
muito pouco.
– E nesse momento eu estou usando todas as
minhas forças para que você não sinta a dor do
purgatório, pois aqui também há um tipo de dor
ainda maior do que aquela da Terra.
– Por que está fazendo tudo isso por mim? – eu
perguntei.
– Porque eu te amo – respondeu o anjo – eu te vi
nascer. Eu estava contigo. Levei sua alma, que veio
de Deus, até a barriga da sua mãe. E eu fiquei contigo

54
Jesus Adolescente no Século XXI

até o fim. Coloquei sua alma num globo de fogo e te


trouxe com segurança até aqui.
– Não entendo bem tudo isso, mas obrigado. Não
te amo porque não te conheço, mas agradeço pelo
seu amor.
– Assim também é Deus – explicou o anjo – ele
nos ama muito antes de aprendermos a amá-lo. Ele
sempre nos amou primeiro. E ele espera que seu
amor seja correspondido. Ele aguardará até o fim do
mundo se for necessário.
– Será que eu morri de uma forma estúpida? –
perguntei – e, o que é pior: será que eu vivi de uma
forma ainda mais estúpida?
– Na verdade eu tenho uma notícia, que não sei se
te soará boa ou ruim – disse o anjo – você ainda
voltará para a Terra.
– Mas como, se eu morri? – perguntei.
– Você foi um dos escolhidos por Deus.
– Eu? – quase ri – um escolhido?
– Você, dentre todos, foi um dos poucos
escolhidos para nascer na época da Segunda Vinda de
Cristo. E, dentre esses poucos, faz parte de um grupo
ainda mais seleto, que viu Jesus com os próprios
olhos enquanto caminha na Terra.
Nunca pensei nas coisas dessa forma.
– Então aquele cara lá embaixo curando os
doentes e falando sobre bolsas da Louis Vuitton é
mesmo Deus?
– Ele é. Infelizmente, depois que você voltar para
lá, começará a se perguntar se esse nosso encontro
não foi um sonho ou uma alucinação. Os seres
humanos são assim.
– Que pena – eu ri – sou mesmo um desgraçado!

55
Wanju Duli

– Não se desespere. Tenha esperanças! Deus está


contigo. E eu sempre estarei, até o momento de
nosso reencontro face a face.
– Mal posso esperar para esse reencontro –
confessei – ao mesmo tempo, como quero voltar
para a Terra! Sempre me senti indiferente sobre estar
vivo. Cheguei a pensar que a vida era um fardo. E
agora que perdi a vida, me dou conta de como a
valorizo. De como ela é uma flor preciosa e rara!
– Continuarei contigo, mesmo quando invisível e
em silêncio. Mas agora chegou a hora de voltar.
Comecei a chorar. Foi um choro espontâneo e
natural.
– Por favor, não me deixe! – exclamei.
– Nunca vou te deixar – ele riu de mim – isso está
parecendo uma novela mexicana.
– Não importa! – gritei, com lágrimas ainda mais
fortes – eu te amo, Eduardo Antônio!
– Eu te amo, José Carlos Henrique! Espere... seu
nome é João, certo? Estou brincando.
– Muito engraçado – falei, enxugando as lágrimas
– mas falando sério, capriche mais nos seus sinais,
para me fazer lembrar da sua existência. Seu respeito
à minha liberdade está um pouco excessivo.
– Pode deixar.
E eu apaguei outra vez.
Quando abri os olhos na Terra, eu ainda estava
deitado no chão, ao ar livre. Exatamente onde morri.
E o primeiro rosto que vi foi um rosto conhecido,
estranhamente familiar. Mas eu ainda não o tinha
visto tão de perto.
– Sente-se bem? – perguntou Jesus.

56
Jesus Adolescente no Século XXI

– Sim – respondi, ligeiramente desnorteado – você


me reviveu?
– Parece que eu fiz isso mesmo – sorriu Jesus.
Eu abracei os pés dele em agradecimento e enchi
seus tênis de lágrimas.
– Muito obrigado!! – exclamei.
– Imagina, não foi nada – disse Jesus.
– Como assim não foi nada, cara?! – exclamei –
você me reviveu, caramba! Ó, meu Deus!
E voltei a chorar. Eu não tinha planejado fazer
aquele drama. Apenas aconteceu. Nunca pensei que
me sentiria tão contente por voltar à minha vida
miserável. Mas como eu era um perfeito idiota, em
breve eu iria esquecer daquela sensação e ignorar
outra vez as coisas importantes. Mesmo assim,
deveria continuar lutando.
Quando ergui os olhos, notei que havia muita
gente ao nosso redor. Optei por ignorar que ouvia
sussurros do tipo: “Quem é esse sujeito que voltou à
vida? Ele estuda no nosso colégio?”.
E, mais espantoso ainda: Miguel e Lúcifer ainda
estavam ali perto, mas estavam completamente
mudados.
Os dois usavam imponentes mantos e portavam
espadas. Das costas de Miguel saíam seis enormes
asas brancas. Das costas de Lúcifer, asas
assustadoras, de uma cor escura.
Eles tinham mudado também em outros aspectos.
Já não tinham o porte de adolescentes. Pareciam
adultos e com uma constituição mais forte. Miguel
parecia um guerreiro, um general de exércitos.

57
Wanju Duli

– É uma lástima termos chegado a esse ponto –


disse Miguel, com uma voz poderosa – mas você não
me deixou escolha.
– Você sempre terá a sua amada e maldita escolha
– disse Lúcifer, com uma voz profunda e grave –
então não me diga que eu te “fiz fazer” coisa alguma.
Estou apenas lutando pela minha vida, exatamente
como você.
– Pois é aí que somos diferentes – sorriu Miguel –
eu nunca luto pela minha própria vida. Para mim, ela
não vale nada. Eu morro por Cristo, a cada segundo
da minha existência. Morrer é lucro, pela glória de
Deus.
E enquanto lutava, Miguel rezava. A reza era sua
respiração e suas declamações se tornavam cada vez
mais impressionantes.
– Eu professo: quem é igual a Deus! Tu, ó Deus
Trino e Eterno! Santo, santo, santo és Tu, diante de
cuja majestade os poderes das trevas com todo o seu
ódio não podem subsistir. Eles estremecem diante do
Teu poder e grandeza, e são rechaçados por Ti,
juntamente com seus ataques!
Enquanto isso, Lúcifer apenas ria e zombava das
rezas, fazendo paródias satânicas de todas elas.
– Eu creio: Vitorioso, cheio de glória e majestade
és Tu, Jesus Cristo.
Tu que venceste o poder de satanás, e com isso
também o poder de todos os pensamentos
tentadores. Jesus, ó Cordeiro de Deus, a Ti os
demônios têm de obedecer, e diante das Tuas chagas,
os sinais da vitória, eles têm de fugir.
Naquele ponto, muita gente tinha fugido. Afinal, a
luta dos dois estava devastando o pátio do colégio. O

58
Jesus Adolescente no Século XXI

portão principal já tinha ido ao chão e algumas


árvores. Também havia uma violenta ventania e areia.
Miguel berrou com mais força:
– Jesus Cristo, ó meu Redentor, com Teu Sangue
Tu me resgataste do poder e dos ataques das
potestades das trevas, e com isso também das suas
tentações. Em Ti e na Tua redenção é que creio e
para Ti eu vivo. Jesus, por Tu me dares a força, quero
ser fiel a Ti e trilhar meu caminho vitoriosamente, até
o fim!
Quando pronunciou a palavra “fim”, Miguel teve
o braço direito decepado. Sua espada caiu na terra e
seu corpo tombou pesadamente no chão.
Lúcifer não conseguia se conter de felicidade. Ele
gargalhava e zombava de seu sofrimento.
– Você é patético, Miguel – disse Lúcifer – eu
tenho pena da sua existência miserável de servidão.
Por que não foi se divertir e curtir a vida? Por que,
Miguel? Por que as coisas tinham que ser assim? Por
que tinha que ser esse o seu fim? Um mero boneco
sem vontade. Um cão de Deus, que mordisca apenas
as migalhas. Isso é vida? Jamais! É apenas uma gaiola.
E agora eu ganho e você perde. Eu vivo e você
morre.
Mas Miguel sorria.
– Como me sinto feliz de estar no chão! – clamou
Miguel – sim, aqui é o meu lugar. Tu me mostraste
isso, Lúcifer. Obrigado. Deus não deseja o mal, mas
ele permite o mal no mundo porque ele é o Senhor
capaz de tirar o bem até mesmo daquilo que é
terrível. E é através de ti que conheço o maior amor.
Eu te amo.
Lúcifer ficou sem fala.

59
Wanju Duli

– Você me ama? – perguntou Lúcifer, para ter


certeza.
– Sim – confirmou Miguel – Deus permite que tu
ainda permaneças pelos arredores para levar o amor a
todos, através da prova da superação do sofrimento.
– Então está dizendo que no fundo eu também
sou um cachorro de Deus? – perguntou Lúcifer, sem
acreditar – e que tenho apenas a ilusão de ser livre,
mas estou sendo usado, eu e meus feitos, para seus
propósitos de amor?
– Nós somente somos livres à luz de Deus – disse
Miguel – quem foge dessa luz em busca de outra
menos brilhante, torna-se o escravo dos próprios
desejos desordenados.
Lúcifer ajoelhou-se e deu um grito de fúria na
direção dos céus.
– Senhor Deus dos desgraçados, o que foi isso
que tu me fizeste? – gritou ele, em desespero.
Jesus caminhou até lá. Aproximou-se dele e o
abraçou.
– Solte-me! – ordenou Lúcifer – esse abraço é
como fogo! Eu me sinto queimado, derretido...!
– Vá – disse Jesus – e desfruta de teus últimos
dezesseis anos de liberdade.
E Lúcifer desapareceu, como se fugisse do fogo
do inferno.
Somente quando tudo se acalmou que eu tive uma
oportunidade para conversar a sós com Jesus.
Miguel foi imediatamente curado. Foi então que
eu entendi que Deus permitiu tudo aquilo. Foi
somente porque Miguel perdeu o braço que a glória
de Deus se manifestou com maior poder. Mas logo o
arcanjo do Senhor recuperou sua antiga força.

60
Jesus Adolescente no Século XXI

Sentei-me para conversar com Jesus sobre uma


pedra, olhando a paisagem.
Inicialmente, eu não tinha perguntas sobre o Juízo
Final ou sobre os recentes acontecimentos, mas um
questionamento bem simples:
– Como foi a conversa do diretor com seus pais?
– Chegamos a um acordo – contou Jesus – não
serei expulso do colégio, mas sairei por minha livre
vontade. É cedo para que as coisas comecem a
acontecer. Ainda bem que iniciei num lugar pequeno.
Assim poderei me retirar por mais alguns anos, sem
ser notado.
– Você vai permanecer no anonimato até seus
trinta anos outra vez?
– Parece ser a melhor escolha.
– E irá morrer na cruz aos 33 anos, como antes? –
perguntei, com medo.
– É o meu destino ser o Cordeiro Imolado. É para
isso que vim a esse mundo. Mas as coisas dessa
segunda vez não serão exatamente iguais às da
primeira. Olhe ao seu redor: o mundo mudou. Já não
há crucificações. Mas há outros meios de crueldade,
ainda mais sofisticados.
– E você continua disposto a derramar o próprio
sangue por nós, mesmo depois de tudo – comentei,
com certa tristeza – mas confesso que também temo
por mim mesmo. Quando eu tiver trinta e poucos
anos, minha fé será forte o suficiente para suportar o
teu Juízo?
– Tenha esperança – disse Jesus – deixei o
Espírito Santo dentro de vós. Nunca estarão
sozinhos. Mesmo que eu esteja longe em corpo,
sempre vos habito em espírito.

61
Wanju Duli

Desviei os olhos por um momento, porque senti


comoção e era duro olhá-lo. Quando olhei de novo
em sua direção, Jesus já não estava ao meu lado.
Ele partiu naquele dia, não se sabe para onde. E
nunca mais foi visto. Nem Tiago conhecia seu
paradeiro.
Depois soubemos que foi Judas, por má influência
de Lúcifer, que insistiu aos professores e ao diretor
do colégio para que chamassem os pais de Jesus para
uma conversa. Ele desejou que o tirassem de lá e
conseguiu o que queria.
Tomé viu tudo: os milagres, minha volta dos
mortos, a batalha entre Lúcifer e Miguel. E mesmo
assim, seu coração continuou endurecido. Ele não
acreditou.
Tomé dizia que um bom médico ou curandeiro
podia realizar curas parecidas às que Jesus fez. Ele
insistia que eu não tinha morrido, mas que apenas
desmaiei. E quanto à luta, ele teimava que as asas
eram falsas, que era tudo uma armação.
Talvez ele esteja certo. Pode ser que meu
encontro com meu anjo da guarda no outro mundo
tenha sido nada mais do que uma fantasia que tive
enquanto estava inconsciente.
Mas nada disso apagava o fato de que Jesus era
uma pessoa extraordinária e que valia a pena segui-lo,
quem quer que ele fosse. Ele parecia saber um pouco
mais que eu. Somente isso já era o bastante para não
desejar caminhar sozinho.
Hoje tenho trinta anos e me pergunto se Jesus já
reapareceu em algum lugar do mundo e se já
começou a realizar os seus milagres. Descobri que
nunca estarei preparado para morrer e para ser

62
Jesus Adolescente no Século XXI

julgado. Minha fé jamais será forte o bastante. Se


mesmo depois de tudo aquilo eu não acreditei, o que
mais poderia me fazer acreditar?
Ontem fui atravessar a rua e quase morri. Eu ia
ser atropelado por um ônibus, mas por algum motivo
estranho dei um passo para trás. Fiquei intrigado com
aquilo por algum tempo e depois esqueci.
– É melhor você emagrecer, porque dessa vez deu
trabalho para te puxar, José Carlos Henrique.
Pensei ter ouvido uma voz que me dizia isso. Mas
com certeza foi apenas minha imaginação.
Até hoje, não entendo bem porque há pessoas que
acreditam em coisas como Deus, anjos e vida após a
morte. Acho esse tipo de gente meio supersticiosa,
mas é só um pensamento meu. Afinal, pelo menos a
minha vida não me mostrou evidências de que tais
coisas existem. Por isso, a fé é ainda a única
esperança da humanidade.

FIM

63

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