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Fradique

Mendes na
Ribeira Lima
J o s é No r t o n

E M DEZEMBRO D E 1842, JosÉ MENDES RIBEIRO que resolver os que de perto e quotidiana­
-comerciante e funcionário público em Viana mente se lhe deparavam nas imensas propri­
do Castelo, bravo do Mindelo, amigo de edades. Dissertava sobre finanças públicas e
Rodrigo da Fonseca e doutros políticos da chegava a mandar cartas aos ministros com as
época - arrematou à Junta de Crédito Público, suas sugestões. Concebia projectos de moder­
pela quantia de 1 8.241$000 reis, «o edifício e nas fábricas impossíveis de realizar naquele
cerca do Mosteiro de Santa Maria, da Congre­ ambiente ainda inóspito para sofisticações
gação dos Cónegos de Santo Agostinho em técnicas.
Refojos de Lima, excluída a Igreja e a Sacristia, A crise da agricultura e a despesa de três
e que se compunham de claustros, casas de filhos a estudar longe de casa, em breve redu­
enfermaria e hospedaria, cozinha e refeitório, ziram a nada o que sobrava do espontâneo
e a cerca ou quinta circundada sobre si, de casa produto da riqueza fundiária.
de eira, lagares e pia, coberto de palheiro, enge­ Estava-se nos anos oitenta e começava
nho de azeite e alpendres, dois m irantes e para Tomaz Mendes Norton e sua mulher um
celeiro» como referia a respectiva escritura. longo calvário. Ela, filha de lavradores, sabia
Infelizmente o negócio não prosperava. lidar com os segredos e as manhas da lavoura,
Ao invés. Comerciava em bacalhau e por 1 858 mas o espírito do marido definhava no meio
teve de hipotecar a dita propriedade ao seu dos milheirais, precisava de subir mais alto.
fornecedor Carlos Henrique Noble, inglês do Foi então que se lhe meteu na cabeça - a
Porto, p or cerca de 16 contos, para garantir o fantasia é refúgio - uma delirante ideia que
saldo da conta entre ambos. Mas os frades resolveria de uma vez por todas as dívidas e a
crúzios, ao serem expulsos do mosteiro p elo falta de dinheiro. Os azulejos que decoravam
liberalismo triunfante, tinham deixado para o interior do mosteiro, o quadro da Ceia que
trás uma maldição. Mendes Ribeiro não mais dominava o refeitório e ainda A Virgem de Sto. Études sur les Oeuvres d'Art de Rophoel Sonzio
d'Urbino ou Monostere de Refojos do Lima.
conseguiu levantar a sua casa comercial. António, eram da autoria de Rafael e o próprio por Tomaz Mendes Norton. Lisbonne,
Aumentaram ainda mais as dívidas, ao inglês edifício na sua arquitectura definitiva era obra Imprimerie Nationale, 1888.
e a outros credores que o atormentavam. de Bramante. Enfim, era a fortuna. Restava
Era casado com Rita Norton Tavares de apenas tornar essas preciosidades conheci­
Rezende, de quem teve vinte filhos! O filho das e não faltariam os pretendentes.
IF.UVRtS D'ART DE R.\MII EL SAXlIO DumNO
varão, Tomaz Mendes Norton, casara com Tomaz Mendes Norton empreendeu
)!ONMTUU;
.
DE RErOlOS 00 UUA

uma senhora de Ponte de Lima, riquíssima então elaborados estudos de historia de arte e
proprietária. Perante o desespero do pai e arquitectura, encomendou dezenas de livros,
pensando que assim fazia uma excelente apli­ contratou fotógrafos, gastando tempo e o
cação de capitais, aceita a doação do mosteiro dinheiro que não tinha. Escreveu a meio
com a obrigação de assumir a dívida ao inglês mundo e Camilo, um dos correspondentes da
que já ia nessa altura em mais de quarenta e altura, defendia-o (talvez para não perder a
oito contos de reis! oportunidade de cascar em alguém) , apesar
Tomaz estudara Matemática em Coimbra de reconhecer que nada entendia de coisas de
de lá saindo Bacharel. Cultivava o espírito mas arte: <<As ironias galhofeiras de alguns jornais
não tinha queda pára as comezinhas culturas que medram entre o Chiado e o Páteo das
da terra. Era-lhe mais dado escrever sobre os Almas não me demoveram de acreditar que o
magnos problemas da agricultura nacional do espírito cauto e esclarecido de V.Exa. se hou- 216
É a certeza de que Eça alguma coisa
conhecia do mosteiro. Não é de excluir que já
das obras de arte tivesse ouvido falar a Pindela
ou Guerra Junqueiro. Ou p ela leitura da
Gazeta de Portugal onde Augusto Fuschini,
preocupado com a saída de obras de arte do
reino, falava em «Rafaeis». Mas a carta é um
dado seguro, e seria de estranhar que não
folheasse o livro ao recebê-lo.
Há outras questões às quais se tem de res­
ponder pela negativa. Não consta que tivesse
visitado Refojos, apesar de uma temporada no
Minho em Maio de 1 892. Tão-pouco é possí­
vel afirmar que Eça e Tomaz fossem conheci­
dos. Nem em Coimbra se cruzaram, p ois este,
mais velho, já lá não estava quando o outro
iniciou os seus estudos de direito.
É porém nos próprios textos de Eça de
((o cosarão conventual que habitamos. . . !I. vesse alucinado com o seu tesouro tomando Queirós que se encontram as provas de que
Mosteiro de Refojos, em Ponte de Lima.
como prata de lei a mera casquinha». precisamos.
Em 1 888 estava o livro pronto, em francês, Não importa que ele tenha escrito «Quinta
que era na altura a língua da cultura, de Frades»1 na Quinta do Mosteiro, proprie­
Também nesse ano Norton confidenciava dade de Luis de Magalhães, em Moreira da
a um amigo a propósito do mosteiro: «tem Maia, como nos informa Guerra da Cal.
sido o meu inferno». São as alterações que Eça introduziu
Mas que tem tudo isto a ver com Fradique nesse texto, para o transformar na carta nO XII
Mendes? Acaso esteve no mosteiro? de Fradique, a Mme. De Jouarre, que contêm
Dada a natureza de tal p ersonagem, as chaves para Refojos.
parece mais fácil provar que os azulejos sem­ Logo no cabeçalho da carta: Quinta de
pre foram pintados por Rafael! Refaldes (Minho) ! Tal nome não existe na
Contudo, vamos tentar. toponímia nacional, nem parecido s equer. A
Para tanto servimo- nos em primeiro lugar semelhança com Refojos não é, assim, casual.
de uma carta que um dos filhos de Tomaz A carta propriamente dita está polvilhada
Mendes Norton (o futuro general Norton de de alterações, em p alavras ou frases inteiras,
Matos), na altura aluno da Escola de Guerra maiores ou menores, que nada nos esclare­
em Lisboa, enviava ao pai em 1 890: «O Antó­ cem, salvo no começo!
nio Feijó disse-me que o Eça de Queiroz lhe Sublinho as palavras que do primeiro
tinha pedido um livro seu, ou antes as fotogra­ texto se mantiveram, para melhor compreen­
fias dos quadros, para os mostrar ao pintor são:
Bonnard de Paris, que lhe tinha falado neles. « Estou vivendo pinguemente em terras
Em vista disto mandei um dos livros, que tinha eclesiásticas, porque esta quinta foi d e frades,
217 o Silva, a casa do Eça de Queiroz». Agora pertence a um amigo /1WU, que é, como
Carta de Norton de Matos. enviada ao pai em 1890.

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� �. 6- 218
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Virgílio, poeta e lavradO!; e canta piedosa­ efectivamente une a parte habitada do con­
Inente as origens heróicas de Portugal vento com a Igreja.
enquanto amanha os seus campos e engorda Mas é o longo primeiro parágrafo que
os seus gados. Rijo, viçoso, requeimado dos mais fortemente nos sugere o Mosteiro de
sóis, tem oito filhos, com que vai povoando Refojos do Lima. Não que Norton fosse o
estas celas m,onásticas forradas de cretones amigo a que se refere - apesar de pej orativa­
claros. E eu justamente voltei de Lisboa a estes mente se lhe p oder chamar poeta por tanta
milheirais para ser padrinho do derradeiro, fantasia, e ser «malgré lui» agricultor e ter
um famoso senhor de três palmos, cor de muitos filhos.
tijolo, todo roscas e regueifas, com uma careca É o padre Teotónio, nome invulgar, mas
de melão, os olhinhos entre rugas como vidri­ que vamos encontrar no livro: S. Teotónio é
lhos, e o ar profundamente céptico e velho. No santo que pertence ao imaginário dos Cóne­
sábado, dia de S. Bernardo, sob um azul que gos Regrantes, e tinha no mosteiro a sua
S. Bernardo tornara especialmente vistoso e capela, a qual dominava de um nicho onde
macio, ao repicar dos sinos claros, entre aro­ estava representado em estátua de madeira
mas de roseiras ejasmineiro, lá o conduzimos, policroma, enorme, de tamanho natural. É
todo enfeitado de laçarotes e rendas, à Pia, desta estátua a última reprodução fotográfica
onde o padre Teotónio inteiramente o lavou que nos oferece Tomaz Mendes Norton.
da fétida crosta de pecado original, que desde E finalmente, voltando à carta para Mme.
a bolinha dos calcanhares até à moleirinha de Jouarre, temos a comparação de Refaldes
o cobria todo, pobre senhor de três palmos que com a ilha2 dos Latofágios! Para os romanos,
a inda não vivera da alma e já perdera diziam os eruditos de tempos passados, o rio
a alma . . . E desde então, como se Refaldesfosse Lima era o rio do esquecimento. Quem o atra­
a ilha dos Latofágios, e eu tivesse comido vessava, vindo do Sul, p erdia a memória e não
Estátua de S. Teotónio, Refojos.
em vez da couve-flor da horta a flor do Loto, mais abandonava aquelas mágicas p aragens.
por aqui me quedei, olvidado do m undo e de Ora para chegar a Refoj os, que está na mar­
mim, na doçura destes ares, destes prados, gem direita, há que atravessar o rio Lima. E
de toda esta rural serenidade que me afaga e assim percebemos que Fradique nos diga:
me adormece. «por aqui me quedei, olvidado do m undo e de
O casarão conventual que habitamos, e mim, na doçura destes ares, destes prados, de
onde os cónegos Regrantes de Santo Agosti­ toda esta rural serenidade que me afaga e me
nho, os ricos e nédios crúzios vinham pregui­ adonnece».
çar no Verão, prende por U/n claustro florido de
hidrângeas a uma igreja lisa e sem arte com 1 Este texto jornalístico, que nunca voltou a ser publicado, foi
um adro assombreado por castanheiros, pen­ amavelmente cedido pela Professora Elza Miné. Constará
do volume Textos de Imprensa IV de Eça de Queirós, no pro­
sativo, grave, como são sempre os do Minho». jecto da edição integral das obras do escritor (no prelo na
Folheando o livro de Tomaz Mendes Nor­ Imprensa Nacional).
2 Comedores de Lótus - "No mito grego, eram os habitan tes
ton, é a fotografia do impressionante casarão
dum território visitado por Ulisses no seu atribulado
conventual que nos aparece em primeiro regresso de Tróia. Eles viviam de comer 'o pão feito dos f/'l l ­

lugar. A seguir, numa vista do claustro, atra­ tos da árvore do lótlls' - pão qlle fazia esqllecel; a quem o
comesse, a família e os amigos e também a desejar viver
vés de um arco vislumbramos, entre outra nessa terra estranha para sempre.. , Jorge Campos Tavares,
219 vegetação, as hidrângeas. E esse claustro Dellses, Mitos e Lendas.

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