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A efígie, o primo e o morto:

Um ensaio sobre o ritual do Javari (Alto Xingu, Brasil)

Carlos Fausto e Isabel Penoni1

Era um desses dias secos e frescos de julho no Brasil Central, sem uma só nuvem no céu. A
pouco haviam terminado de erguer a efígie em homenagem a Nahum no centro da praça.
Quatro anos tinham se passado desde a sua morte e ele já havia sido comemorado em um
grande festival funerário, o Quarup, reservado para os chefes. Nahum não nascera chefe, mas
se fizera um, ainda que só tenha adquirido plenamente esse estatuto após a morte. Ainda em
vida, pedira aos filhos que o lembrassem por meio de um Javari, como exímio cantor que
fora.2 Em 2009, a família, liderada pelo filho Jakalu, cumpria então o seu desejo:

Ande tsünaha Jakalu heke tuün hutagü. Hagakai.


O Jakalu está fazendo agora a efígie do seu pai. É o Javari.
Akuãgü hegei, Akuãgü hegei kuge hutohoi
Isto é a alma dele, a efígie é a alma dele.
Tsake hoho Ititü : Kuge hutoho
Escute bem o seu nome: kuge hutoho.
Angi naha ititü. Nahun hutoho hegei egei.
Ele tem nome? Sim, é a efígie de Nahum
Tühengalü hegei.
É aquilo que é flechado.

1
Este texto baseia-se em uma etnografia colaborativa realizada em julho de 2009 na aldeia Kuikuro de Ipatse e
cujo primeiro produto é a dissertação de Penoni (2010). Agradecemos a colaboração de Takumã Kuikuro, que
filmou todas as ações rituais e participou das entrevistas, e de Tommaso Montagnani reponsável pela análise
musical. Dados provenientes de outra etnografia realizada por Fausto, em 2004, foram aqui incorporados.
Mutuá Mehinaku, Jamaluí Mehinaku, Agawa Kuikuro e Takumã Kuikuro trabalharam na trascrição e tradução
do material coletado. Agradecemos a Bruna Franchetto pela colaboração em algumas traduções. Versões deste
texto foram apresentadas em seminários na École des Hautes Études en Sciences Sociales (2010) e no Collège
de France (2011) graças ao Acordo Capes-Cofecub coordenado por Fausto e Severi. A pesquisa foi financiada
pela Faperj, CNPq e PDPI-Ministério do Meio Ambiente. Agradecemos a todos os Kuikuro e especialmente aos
chefes Afukaká e Jakalu, donos, respectivamente, dos Javari de 2004 e 2009, pela oportunidade de deles
participarmos.
2
A maioria dos termos em língua indígena que utilizaremos aqui será em kuikuro, à exceção de Quarup e
Javari, formas aportuguesadas dos termos kamayurá kwaryp (‘árvore do sol’) e jawari (palmeira do gênero
Astrocaryum ou ‘pequeno jaguar’).
Apontando para a praça ainda vazia onde se erguia a efígie recém-terminada, o pajé Tagó
explicava-nos com clareza: aquele boneco meio informe, feito de talas de babaçu e palha,
com uma cabeça improvisada e dois braços semiabertos era a efígie (hutoho) do falecido e
também a sua alma (akuãgü hegei) – um artefato-pessoa animado pelo princípio vital de um
morto. Se a representação artefatual do morto é um fato raro na Amazônia, a interpretação de
Tagó reverberaria um motivo clássico animista. Na ocasião, as palavras do pajé pareciam-nos
oferecer um acesso privilegiado ao sentido profundo do ritual: assim como o Quarup, o Javari
seria um rito funerário no qual o morto é presentificado por meio de um artefato, operação
que, em ambiente animista, corresponde à presença efetiva de sua alma em praça pública.
Esta interpretação, ainda que não incorreta, é por certo insuficiente. O Javari é mais
do que um rito funerário e a efígie é mais do que um artefato-sujeito. A complexidade desta
última não permite que se a interprete por meio de uma identificação unívoca com o morto,
nem tampouco por meio de uma simples operação de subjetificação; i.e., como mais um
exemplo de ensoulment de artefatos (Santos-Granero 2009) ou de transformação de objetos
em sujeitos (Viveiros de Castro 2004) na Amazônia indígena.
Há, pelo menos, duas razões para tanto. A primeira é etnográfica: a proposição de que
a alma do morto encontra-se presente durante o Javari não implica que esta anima o artefato,
como se a efígie fosse um corpo a ser subjetivado por uma alma capaz de intenção e
comunicação. No mais das vezes, sugere-se que a alma está ao lado da efígie, como se esta
fosse um atrator e um suporte de sua presença; outras vezes, afirma-se apenas que o morto
vem assistir à sua festa.
Segundo Ugisapá e seu irmão Hinaku :

Ug: Ande akungagü leha igeha tuhutoho ingilüinha


Agora a alma já está aqui para ver sua própria efígie.
Hk: Tütahakugupe hotelü ingilüinha
Vem assistir o seu ex-arco ser queimado.
Tatute gele anhá ügühütu sagage
O costume de todos os mortos é assim.
Ug: Egitseme inhalütsü sepogele tuhutoho gepo
No Quarup fica ao lado da sua efígie,
Akungagü inhügü
a alma fica.

2
A efígie, como veremos, não parece ser um artefato dotado de subjetividade, mas
antes um pivô relacional a garantir o turn-taking entre vivos. Alguns chegam mesmo a
afirmar que ela está ali apenas para “chamar o primo”, elidindo qualquer relação com o
morto. 3 De certo, há mais de uma perspectiva possível sobre a festa e diferentes
interpretações nativas é algo a se esperar em matéria religiosa. Mas há uma segunda razão,
esta de ordem teórico-metodológica, para contornarmos uma dedução animista: a pronta
atribuição de subjetividade à efígie dissolveria as ações rituais implicadas pelo artefato em
um conjunto de princípios ontológicos, dos quais o rito seria apenas uma atualização. Neste
texto, ao contrário, queremos entender como esse objeto-inerte antropomorfo participa, desde
sua confecção até a sua incineração, de uma série ordenada de ações – executadas em um
contexto não-ordinário segundo um roteiro predeterminado – capazes de constituí-lo como
um suporte compósito das próprias relações que o produzem.4
Para alcançar esse objetivo, iremos inicialmente contextualizar o ritual do Javari para
em seguida falar de seus personagens humanos e artefatual. Em seguida, vamos nos deter na
análise dos insultos rituais que, mediados pela efígie, são desferidos entre primos da aldeia
anfitriã e primos da aldeia convidada, respeitando um turn taking rigoroso. Interessa-nos,
particularmente, entender o por quê desta ação ritual exigir a presença de três termos: o
locutor, a efígie e o destinatário. Mais adiante, passaremos ao duelo de dardos, enfrentamento
– agora não-mediado e sem palavras – entre os primos-adversários que previamente se
insultaram. Por fim, voltaremos ao morto comemorado na festa de modo a articular a série de
personagens mobilizados por meio da efígie: os primos, os inimigos, os animais e o morto.

LEMBRANDO PARA ESQUECER

Localizado em uma zona de transição entre o cerrado e a floresta amazônica, o Alto Xingu é
ecológica e culturalmente uma área singular. Colonizado inicialmente por populações arawak
no final do primeiro milênio, recebeu a partir dos séculos XVI-XVII o influxo de outros
povos que, escapando à compressão territorial pós-conquista, adentraram a região. De um
notável processo de amalgamento e recriação cultural, emergiu o complexo alto-xinguano tal

3
Assim, por exemplo, quando perguntamos a um chefe, membro da facção oposta ao do morto comemorado em
2009, se a efígie representava o falecido, ele respondeu-nos: “aquilo ali é só para chamar o primo”.
4
A formulação é retirada de Strathern: “persons are frequently constructed as the plural and composite site of
the relationships that produce them” (1988:13).

3
qual o conhecemos hoje: um sistema multiétnico e plurilíngue composto por povos arawak,
carib, tupi e pelos Trumai (língua isolada), que partilham um universo socio-cósmico
comum. Embora não se conheça em detalhe o processo social que deu origem a essa
constelação cultural, sabe-se que a vida ritual foi um dos eixos em torno do qual ela se
estruturou (Franchetto e Heckenberger 2001; Heckenberger 2005; Fausto, Franchetto and
Heckenberger 2008). O ritual é, ainda hoje, um dos mecanismos mais poderosos de
articulação social, não apenas ao nível local, como também interlocal (Menezes Bastos
1983). Ele é, ademais, o evento público máximo de uma rede que articula humanos e não-
humanos por meio do complexo do xamanismo e da doença (Barcelos Neto 2008).
Há, porém, três rituais que margeiam esta rede, uma vez que não estão associados à
doença e não estão vinculados diretamente ao xamanismo. Não emergem de uma relação de
reciprocidade instável com os espíritos, mas visam à comemoração de humanos exemplares.
Trata-se do ritual de furação de orelha dos meninos, do grande ritual de final de luto
(Quarup) e do Javari. Os dois primeiros estão em estreita continuidade e associados por
excelência à chefia: o futuro-chefe cuja orelha é furada antecipa o chefe-morto comemorado
no Quarup. Do ponto de vista histórico-cultural, os dois rituais de chefia se distinguem
fortemente do Javari. O Quarup é um ritual de segundas exéquias realizado cerca de um ano
após a morte de um chefe (ou de um campeão de luta). Ele se inscreve na linha principal da
mitologia xinguana, pois o primeiro Quarup foi realizado em homenagem à mãe dos gêmeos
Sol e Lua, heróis culturais responsáveis pelo mundo tal qual o conhecemos. Trata-se também
da principal festa intertribal da região, para a qual são convidados todos os povos que fazem
parte da constelação xinguana, visando produzir a memória coletiva de um nome prestigioso,
nome idealmente já transmitido ao neto durante o ritual de furação de orelha. Deste neto que
porta em si a memória de um nome, espera-se que se torne um grande chefe no futuro.
O Javari é um tertius nesse sistema de dupla iniciação (à vida adulta e à vida póstuma)
dos chefes.5 Como o Quarup, ele também é um ritual funerário, mas nele não se comemoram
chefes e lutadores, e sim cantores e arqueiros de festas passadas. O objetivo do rito, na
formulação kuikuro, é “queimar o ex-propulsor” do morto – ato que, como veremos, marca o
final da festa, quando a efígie também é queimada.6 Diferentemente da furação de orelhas e

5
A instabilidade que marca o Javari no interior deste sistema é evidenciada pelo fato de os Kuikuro
considerarem que se trata também de uma classe de espíritos causadores de doença e que o ritual pode ser
realizado para apaziguá-los. A última vez que isso ocorreu, contudo, faz duas décadas.
6
Diz-se também “queimar a alma-imagem do seu ex-propulsor” (itsahakuguakuãgüpe ihotelü). O termo tahaku
designa tanto o propulsor como o arco, do mesmo modo que hügé designa tanto a flecha comum como aquela

4
do Quarup, o Javari foi incorporado recentemente ao sistema xinguano, sua entrada datando
do final do século XIX. Ele se generalizou tardiamente, pois até alguns anos atrás um dos
grupos arawak, os Mehinaku, ainda não o realizavam.7 Sua origem parece ser Trumai, tendo
se difundido no Alto Xingu por meio dos Awetí e dos Kamayurá, o que explica que ele seja
conhecido sobretudo por sua designação tupi, jawari.8 Os Kuikuro o denominam hagaka,
termo que designa a ponta redonda em cera de abelha dos dardos lançados contra a efígie e
contra os adversários por ocasião dos duelos. O ritual é visto como uma pantomima de guerra
durante a qual os participantes podem se decorar e se comportar como ngikogo: i.e., como
índios não-xinguanos, pessoas que « não são gente » (kuge hüngü), pois possuem um etos
beligerante, alimentam-se de animais de pêlo e possuem costumes bizarros.
Embora incorporado mais recentemente, o Javari foi digerido pelo sistema mítico-
ritual local, tornando-se mais do que uma mera representação irônica da alteridade indígena.
Embora os Kuikuro confiram a ele uma clara origem histórica, parte da ação ritual foi inscrita
na mitologia de Sol e Lua, de tal modo que há momentos de sua execução que correspondem
diretamente a uma narrativa mítica. Ele foi incorporado, ademais, como uma cerimônia de
homenagem a um morto exemplar, oferecendo ora uma alternativa, ora um complemento ao
Quarup. No Javari, são relembrados aqueles que foram grandes cantores ou grandes
lançadores de dardo em execuções rituais passadas. A festa serve para anexar prestígio a um
nome transmitido entre gerações alternas. Ele é, pois, assim como o Quarup, produtor de uma
memória nominal entre os vivos, ainda que ambos os rituais sejam realizados não apenas para
lembrar, mas também para esquecer, já que após o seu término espera-se que a alma do morto
parta, deixando a vida apenas para os vivos.

Aiha. Hagaka etsibükilüingo tsüha akungagü


Então, quando terminar o hagaka, a alma dele,
Egeha kuge hutohopé hotelüingo leha.
aquela, a ex-efígie será queimada.
Lepene leha hüle ihotepügüngine leha hüle

sem ponta utilizada no Javari. Neste texto, falaremos em propulsor e dardo e designaremos aqueles que os
portam, arqueiros ou lançadores.
7
Esta informação de Galvão (1979: 40), datada dos anos 1950, é confirmada pelos Kuikuro.
8
A tradução do termo não é consensual: Menezes Bastos (1989:85) verte-o como ‘jaguatirica’, analisando-o
como formado por yawat (‘jaguar’) e o sufixo diminutivo –i. Galvão (1979:40) e Monod-Becquelin (1994)
traduzem-no por (coco de) tucum (tucum designa, contudo, a palmeira Astrocaryum tucuma, enquanto javari
designa sua parente Astrocaryum javari). Para complicar, Menezes Bastos (1989:108) contradiz-se ao também
associar o termo jawari ao coco de palmeira encastrado na flecha a fim de produzir o assobio.

5
Depois de ser queimada,
etelüingo kuale hüle leha
Ela (alma) irá embora,
tapüngui lehüle ataheilüingo
Ela se afastará definitivamente.
[Ugisapá, 2009]

OS PERSONAGENS RITUAIS

O Javari apresenta um repertório cancional e coreográfico extenso, executado ao longo de 15


dias, dos quais apenas os dois últimos dias compreendem a fase intertribal.9 Este é o clímax
da festa. Ele se inicia no final da tarde com a recepção formal dos convidados e se encerra no
dia seguinte com um duelo de dardos entre anfitriões e convidados. Esse confronto direto
interaldeão é antecedido por um confronto verbal mediado pela efígie antropomorfa, que será
queimada ao final da festa.
O Javari é um ritual masculino. As mulheres tomam parte da ação ritual em algumas
sequências coreográficas, mas na maior parte do tempo compõem apenas a assistência.
Diferentemente do que ocorre no Quarup, uma mulher não pode ser representada por uma
efígie. Só homens mortos são comemorados e só homens vivos portam dardos. Os homens,
porém, não formam um grupo homogêneo: não apenas distinguem-se os cantores (eginhoto),
como também quinze personagens aos quais se atribui uma identidade animal. Estes são
escolhidos em cada uma das aldeias participantes dias antes da fase intertribal da festa.10
Denominados tigikinginhü – termo que aqui traduzimos por “personagens” – organizam-se
na seguinte ordem:

Quadro 1: Os tigikinhinhü

Nome kuikuro Identificação Composição

9
Os únicos estudos musicológicos sobre o Javari foram feitos por Menezes Bastos (1989, 1993, 2001, 2003,
2004). Uma análise coreorgráfica preliminar encontra-se em Penoni (2010).
10
Entre os Kuikuro, os tigikinhinhü são escolhidos pelo dono do ritual em reunião na praça, em frente à casa
dos homens, cerca de uma semana antes da fase intertribal. Neste mesmo dia, escolhem-se os trios de
mensageiros que irão convidar as aldeias a participar da festa.

6
Hitse huegü corvídeo trio
Kaka huegü falconídeo casal
Ugonhi acipitrídeo ou falconídeo casal
Ekege onça pintada casal
Ekege tuhugutinhü onça preta casal
Agisa kuegü acipitrídeo casal
Ahúa onça legendária casal

A característica comum a estes animais é seu potencial agressivo: há três casais de


pássaros predadores e três de felinos, sendo o último, Ahúa, identificado como uma onça
negra legendária, inexistente no Alto Xingu. 11 Esses seis casais são liderados por um trio
principal de lançadores, identificados a um corvídeo – possivelmente à gralha cã-cã
(Cyanocorax cyanopogon). Não sabemos qual elemento de seu comportamento é destacado
pelos Kuikuro, mas essa gralha, além de ser capaz de inúmeras vocalizações, tem uma dieta
onívora que inclui pequenas presas mortas a pancadas na cabeça.
A representação desses animais é realizada por evocação mimética. Do ponto de vista
sonoro, aqueles que os encarnam imitam a vocalização de seus protótipos animais de maneira
ordenada, de tal modo que os seus “sons” (itsu) podem ser tomados como parte integrante da
execução da canção. A identidade dos tigikinginhü é desdobrada: cada personagem – a
exceção do trio de gralhas – é constituído por um casal. Cada par compartilha um padrão
similar de pintura corporal e sua identidade vocal é dialógica. Os sons dos personagens
constróem-se por meio de uma conversa ritmada, que faz uso de pequenas frases sonoras: o
primeiro do par (inho, “marido”) enuncia a primeira frase sendo a resposta do segundo
(ihitsü, “esposa dele”) uma repetição da primeira com uma pequena variação, em geral de
altura.12
Do ponto de vista plástico, a pintura corporal busca representar, por meio de um
esquema gráfico sintético, o padrão de plumagem ou pelagem característico à espécie animal.
Assim, por exemplo, no caso da onça pintada, a identificação é dada por um motivo mínimo:
os círculos. Já no caso dos hitse huegü escolhe-se um elemento que marca sua identidade
visual: os corvídeos do gênero Cyanocorax caracterizam-se por uma mancha negra que, da
região inferior ao bico, estende-se até a região peitoral, estreitando-se até desaparecer (figura
1). De modo similar, o modelo mínimo do padrão exibido pelo kaka huegü são os riscos

11
Menezes Bastos (1989:112) apresenta 5 personagens, três falconídeos e dois jaguares.
12
Para uma transcrição dos sons dos tigikinhinhü, elaborada em colaboração com Tommaso Montagnani, ver
Penoni (2010:112).

7
negros horizontais que cobrem sua plumagem branca e que aparecem em destaque no tronco
e no rosto do lançador (figura 2).
Temos, pois, uma representação entre icônica e indicial – ou, ainda, um iconismo
minimalista, plástico e sonoro, que atribui uma identidade animal a um conjunto de atores
rituais. Embora pareça haver uma relação um-a-um entre o humano e o referente animal é
preciso notar que esses animais não são os que encontramos em contextos ordinários. Eles
são itseke, “bicho-espírito”, fato evidenciado pela adição do modificador kuegü (ou huegü) ao
nome de alguns dos personagens, indicando sua extraordinariedade. Em outras palavras, não
se trata apenas da atribuição de uma identidade animal a um personagem humano, mas de
uma reverberação entre a identidade humana e aquela de um animal-pessoa. O que se
representa não é um protótipo animal, mas, assim como no caso das máscaras, os corpos
zooantropomorfos dos itseke (Fausto 2011).
Os tigikinhinhü ocupam posições rigorosamente ordenadas e de destaque ao longo de
toda a execução ritual. Na figura 3, vemos a disposição em uma formação coreográfica de
fila (tinapisi), utilizada para ligar o centro da praça à casa do dono da festa (Penoni 2010:49).
No centro, encontram-se o mestre do canto e seus acompanhantes, ladeados pelas onças. A
fila é liderada pelos hitse huegü e finalizada pelos ahúa. Entre os personagens, há sempre
arqueiros comuns. Essa mesma ordem será respeitada nas formações circulares e durante os
ataques desferidos contra a efígie. Já no duelo de dardos, momento em que as aldeias anfitriã
e convidada se representam como coletivos opostos liderados por animais predadores, os
tigikinhinhü enfrentam-se antes de todos os demais, sempre respeitando a sua sequência.
Os personagens-animais são os protagonistas da festa, sobretudo dos duelos. Eles são
a imagem do que foi o morto comemorado, pois, idealmente, este teve um percurso em festas
passadas como arqueiro de destaque. Há pessoas que são escolhidas diversas vezes como
tigikinhinhü, ora repetindo o mesmo, ora ocupando um papel diferente.13 São precisamente
estas as pessoas que podem ser comemoradas em um Javari e ter seu ex-propulsor queimado
– algo que dificilmente ocorre literalmente, pois o que se queima, antes, é a alma-imagem
(akunga) do propulsor enquanto sinédoque do arqueiro.
Se o iconismo minimalista dos tigikinhinhü atribui-lhes uma identidade hiper-animal
(para utilizar a tradução de Franchetto para o sufixo –kuegü), ele contrasta com aquela dos

13
Há uma ordem etária, que pode implicar, na história biográfica, uma progressão em papéis rituais: os hitse
huegü são normalmente mais jovens, muitas vezes recém-saídos da reclusão, assim como as onças pintadas. Já
os demais personagens são adultos plenos, sendo ahúa normalmente os mais velhos. Ver Menezes Bastos
(1989: 132-133) para os Kamayurá.

8
demais atores rituais. Não que estes se paramentem com a típica ornamentação xinguana. Ao
contrário, quanto mais bizarra a ornamentação melhor: aquilo que “combina com o Javari” é
a mistura exagerada e assimétrica dos mais variados materiais e cores a fim de representar a
falta de senso estético dos ngikogo – os índios-outros caracterizados por sua ética e estética
grosseiras (figura 4).14
Se há personagens-animais e personagens-ngikogo, há também personagens
plenamente humanos: de um lado, os membros da família do morto que conservam o luto e,
portanto, estão inteiramente despidos de qualquer ornamentação (e hoje vestidos com roupas
de branco); de outro, os dois “donos” (oto) do ritual que saem do luto na manhã que antecede
à chegada dos convidados a fim de presidir a festa. Ao contrário dos demais homens com
seus dardos e decorações bizarras, movendo-se em demasia, agitando-se, dançando, gritando,
proferindo insultos, os donos permanecem estáticos durante toda o ritual, portando um arco
sem corda, uma de suas extremidades apoiada contra o chão, em uma postura perfeitamente
ereta e silenciosa. Expressão máxima da perfeição humana, ornamentam-se como pessoas
ideais: o grafismo traçado em genipapo nas pernas, o tronco e o pescoço também decorados
em negro, o urucum vermelho no cabelo coberto pelo diadema plumário, o colar e os brincos
característicos do traje de festa (figura 5).
Por fim, há um outro personagem também silencioso e estático, que ocupa o centro da
ação ritual, mas que não porta nenhuma decoração: o kugé hutoho, que aqui traduzimos por
efígie. Kuge significa “gente” ou “humano” em sentido amplo e “xinguano” em sentido
estrito, designando tanto a forma como os atributos morais da humanidade. Já hutoho designa
todo tipo de expressão visual com evocação mimética, seja em duas ou três dimensões.15
Aplica-se a uma escultura de animal, à fotografia, a um desenho figurativo, à efígie do

14
Daí por que, no Javari, muitos dos participantes inventam-se para si novas decorações, fabricando estranhos
diademas e capacetes com os materiais mais diversos – cabaças, penas de garça ou de urubu, palha, redes de
fibra de buriti – que se opõem ao cocar xinguano, com sua combinação bem comportada de preto, vermelho e
amarelo. Aqueles que ousam em sua decoração são vivamente aprovados: Hagaka apogoho higei, ‘isto é que
combina com o Javari’. Hoje, outros adornos fazem-se também presentes na festa: máscaras monstruosas de
carnaval, imensos chapéus de boiadeiro, perucas coloridas e o que mais estiver à disposição de modo a
construirem, para si mesmos, uma imagem da alteridade-menos-que-humana. Há um só elemento comum à
cosmética ritual dos festeiros: a tabatinga, a argila branca que deve recobrir, como uma base, o corpo de todos
os homens de dardos.
15
O termo é formado pela raíz -hu-, “figurar”, e o propositivo –toho. Em Trumai, a efígie é denominada ihan
que significa “sombra”, “reflexo” e “simulacro”. Assim como o hutuho kuikuro, “la ressemblance est un trait
obligatoire de ihan” (Monod-Becquelin 1994:108). Em Kamayurá, a efígie é designada ta’angap, um termo
comum nas línguas tupi-guarani, contendo a raiz anga que conota as noções de alma e imagem.

9
Quarup ou a um espantalho em uma roça. A expressão kugé hutoho pode ser traduzida, pois,
por “efígie antropomorfa” ou “efígie humana”.
A marca formal da efígie do Javari é a sua simplicidade: trata-se de uma figuração
genérica, sem qualquer individualização, pictural ou ornamental (figura 6). Ela é composta de
um poste de madeira com cerca de 1,50m que é enterrado no solo da praça e envolvido com
talas de buriti; adiciona-se no topo uma panela velha e cinge-se ambos com palha da mesma
palmeira, fazendo-se, então, os dois braços. Trata-se de uma representação mínima e genérica
da figura humana, que contrasta fortemente com a sofisticada ornamentação da efígie do
Quarup, a qual é finamente decorada à maneira de um chefe xinguano presidindo um ritual
(figura 7). A efígie do Quarup é dita X-hutoho, onde X é necessariamente o nome do chefe
representado por meio do artefato. Embora as convenções estéticas que presidem sua
manufatura sejam sempre as mesmas – e neste sentido a efígie exprime também a ideia
genérica de chefia – ela é a figuração de um indivíduo particular com uma biografia própria.
No caso do Javari, ao contrário, se à efígie atribui-se a identidade de alguém – ela é o hutoho
de um morto que comparece à festa – tal identificação não é exclusiva. Ao contrário, a função
mais evidentente da efígie é servir como token de primos-adversários.
Os duelos verbais, que ocorrem entre anfitriões e convidados, não se fazem
diretamente, mas sim por meio da figura interposta do kuge hutoho. Em sessões bem
definidas por ações coreográficas que marcam seu começo e seu fim, sucedem-se ataques
individuais à efígie, na qual os performers avançam executando um sapateado de carga
ofensivo até atingi-la com a ponta de seus dardos. Ao mesmo tempo, proferem contra ela
insultos, dirigidos, contudo, a outro destinatário – um primo, identificado entre os homens da
aldeia convidada. Os mais experientes e ferinos tendem a prosseguir com uma fala mais
longa, na qual se voltam para o grupo dos convidados e, dirigindo-se a uma pessoa
específica, desferem um ataque verbal jocoso. Este ataque só pode ser dirigido a um primo
cruzado de outra aldeia, singularizado pelo nome, que deve, necessariamente, estar presente à
festa para poder, em seguida, ir à desforra.

EM NOME DO PRIMO

Os Kuikuro costumam designar esse gesto verbal como “chamar seu próprio primo” (tühaüu
iganügü). Se perguntarmos o que estão fazendo neste momento, receberemos provavelmente
a resposta: Tühaünkinhüko etigatako, “eles estão chamando seus próprios primos”. A raiz
verbal iga não contém qualquer conotação de insulto, significando apenas “denominar” –

10
ação que é central na construção do insulto, produzindo a singularidade de cada ataque e
atribuindo identidades diferentes, em sequência, à efígie. Daí por que entre todas as formas
possíveis de designar o ato verbal insultuoso, os Kuikuro enfatizem a enunciação de um
nome e não o xingamento ou a derisão.16
A efigie é confeccionada alguns dias antes do início da fase intertribal da festa,
coincidindo com a partida dos mensageiros que farão o convite à(s) outra(s) aldeia(s).17 É só
então, e ainda timidamente, que começam as seções de ataque à efígie, denominados pelo
raiz verbal –he, que significa “flechar” ou, de maneira geral, “atingir com objeto perfurante”.
Nessas primeiras e breves seções ainda não se elaboraram as frases jocosas que serão ditas
durante a fase intertribal. Na maioria dos casos, apenas se chama o primo pelo nome
precedido por um ideofone exclusivo a esse contexto: “tuuuuuuu fulano”. Em alguns casos,
nem o nome é pronunciado, sendo substituído por “tuuuu meu primo”. Em outros casos, ao
nome pode se seguir um mero insulto genérico.
Nesta fase inicial, a efígie serve como um token antecipado do primo ainda ausente.
Com o passar dos dias, cada participante começa a formar uma imagem mental de seus
primos e a buscar um elemento característico a eles ou à relação com eles para forjar as
estrófes que serão executadas no ritual. Cada qual vai escolhendo suas temáticas, elaborando
seus versos e inserindo as palavras em uma marcação rítmico-melódica característica dos
ataques verbais do Javari, a qual exige do performer uma boa incorporação de seu esquema
gerativo, sob pena de tropeçar nas palavras e ser vaiado em praça pública pela assistência
adversária.
Nos dias que antecedem à fase intertribal, é preciso também determinar quem serão os
primos-alvo. Uma pessoa pode ter vários primos nas aldeias convidadas e, por isso,
identificar alvos precisos resulta de uma depuração. Normalmente, os adversários pertencem
à mesma geração, além de possuírem uma relação já determinada por meio do cálculo de
parentesco ou da teia tecida por confrontos anteriores em festas passadas. Definir os primos-
adversários é sempre mais simples quando a festa ocorre no interior de um mesmo bloco

16
Pode-se utilizar também o verbo detransitivizado etihijü: tühankginhüko etihitsako, “os primos estão se
cutucando”, “mexendo um com o outro”. Esse verbo caracteriza todo comportamento jocoso entre primos.
Costuma-se dizer também que primos gostam de -kokijü (“sacanear”) uns aos outros, inventando estórias falsas,
em geral sobre proezas sexuais. De todo modo, não se utiliza o verbo “xingar” (hesakilü, literalmente, “falar
feio”) para caracterizar o duelo verbal do Javari.
17
Segundo os Kuikuro, o convite para o Javari ocorria dez dias antes da festa para que os convidados pudessem
se preparar. O passar dos dias era calculado por meio de um cordão cujos nós eram desamarrados a razão de um
por dia (Galvão 1979:46). Hoje, no entanto, a comunicação via rádio permite comunicar a intenção de realizar a
festa com a devida antecedência, e os mensageiros só são enviados à aldeia convidada às vésperas do evento.

11
linguístico – no caso kuikuro, entre os povos de língua carib (entre os quais os
intercasamentos são mais frequentes). Muitas vezes, essa multiplicidade de primos pode ser
pouco determinada para uma pessoa ainda jovem. Assim, por exemplo, em 2009 um rapaz
kuikuro, filho de uma mulher kalapalo e que pela primeira vez proferia um insulto em um
Javari, atacou a efígie enumerando todas as aldeias kalapalo, como se afirmasse que todos os
convidados eram potencialmente seus primos. Essa pouca determinação da relação pode dar-
se também por razão diversa (pela distância): na festa de 2009, que reunia convidados de
língua arawak, muitos Kuikuro não eram capazes de enunciar o nome de um primo-
adversário e recorriam ao genérico “meus primos”. Tabata Kuikuro, um chefe de 50 anos,
utilizou esse tema como mote para um gesto verbal mais sofisticado:

Uhandão uhandão
Meus primos, meus primos
Inhalü matsange eititüko uhunümi uheke
Eu não sei mesmo o nome de vocês
Inde kepegamini igiagage uhandão
Aqui, deste modo, vamos duelar, meus primos.

A grande maioria dos ataques, no entanto, identificam (e ao mesmo tempo produzem)


um primo, pois com o passar dos anos o critério fundamental da escolha passa a ser a
memória de ataques jocosos em festas passadas.18 Entre os Kuikuro, primos são produzidos
antes por uma pragmática do que por uma definição categorial. As pessoas da geração de Ego
se dispersam em um contínuo +primo/-irmão ------ +irmão/-primo. A oscilação dravidiano-
iroquesa do sistema de parentesco resolve-se por meio do comportamento: fulana é minha
prima porque faço sexo com ela, fulano é meu primo porque faço graça com ele. Isso parece
sugerir que quanto mais primo, menos irmão se é; i.e. menos se faz parte de minha
brotherhood, daqueles que incluo na categoria, de extensão variável, uhisuandão.19 Contudo,

18
Em 2004, quando um de nós foi convidado a participar do ritual, a primeira reação evasiva foi dizer: “mas eu
não tenho primos entre os Matipu e os Kalapalo”, asserção prontamente refutada por meio de um cálculo
simples de parentesco: “como não? Fulana é sua mãe e o irmão dela é Kalapalo, logo o filho do irmão dela é
seu primo”. Ainda hoje, quando ocorre um Javari em uma dessas aldeias, os primos a quem Fausto chamou no
ritual de 2004, mandam avisar-lhe que estão esperando por ele.
19
U-hisüandão (Poss 1a sg-‘irmão mais novo’-Plz). Este termo que significa literalmente “o conjunto de meus
irmãos mais novos” é usado para designar aqueles que trato como irmãos. Não há um termo kuikuro que possa
ser traduzido por “parente”, pois a identidade é predicada por extratos geracionais: kukotomo (“nossos donos”)

12
isto é mais complicado no caso de primos cruzados de primeiro grau, entre os quais por vezes
ocorrem casamentos, fazendo-os primos e, ao mesmo tempo, membros da mesma
brotherhood. Tal fato não impede que primos de primeiro grau sejam “chamados” durante o
Javari, mas implica certos limites. Não é apropriado, por exemplo, usar insultos fortes contra
eles.
No Javari, só posso chamar o nome de um primo de outra aldeia e, ao chamá-lo, faço
dele ainda mais primo. Primos esquecidos, primos não-chamados, podem inclusive reclamar
publicamente durante os ataques à efígie, como fez o mestre de cantos Katagagü pela manhã,
após ter sido negligenciado por Kanela no duelo verbal noturno em 2009:

Tuuu Kanela
Uõta nika eheke egei
Você não gosta mais de mim?
Ahaüum ijogo tãka umbege egei
Puxa, mas eu sou teu primo
‘aua’ ukinhalü kukoto hugene hekeha
Eu sempre dizia ‘tio’ para teu falecido pai.

Neste quarteto, Katagagü lembra seu oponente que eles são primos, pois ele chamava
o pai de Kanela de “tio”. Ao não insultá-lo, deixando de confirmar pragmaticamente o
vínculo, Kanela nega a relação, lançando Katagagü na indiferença, na condição de um outro
genérico. Daí seu reclamo. Os ataques à efígie se fazem, assim, não em nome do pai, mas sim
em nome do primo.

GESTO RITUAL E RELAÇÃO COTIDIANA

Não se deve estabelecer uma ruptura simples entre o que é dito no rito e o que é feito no
cotidiano, pois o rito reconfigura relações dadas fora de seu âmbito. O “chamar o primo” em
praça pública resulta da radicalização de uma forma cotidiana de relação: a derisão que, aqui,
desliza em direção ao insulto. No dia a dia, a relação entre primos de sexo masculino é
permeada pelo humor e por brincadeiras, a maioria delas sexualizadas. Fazer troça do primo,
sugerir que ele tem muitas amantes, beliscar o seu pênis é parte necessária do que é ser

para G+1, kukisuandão (“nossos irmãos”) para Gø e kulimo (“nossa prole”) para G-1. Esses termos variam em
extensão e compreensão conforme o contexto.

13
primo. Sem isso, assim como na ausência de sexo entre primos de sexo oposto, a relação
tende a se redefinir como entre irmãos, mesmo que distantes.
Vários insultos desferidos contra os primos durante a festa são construídos nesse
registro das brincadeiras sexualizadas. Veja-se, por exemplo, os dois insultos abaixo,
executados sequencialmente de modo a criar um suspense em torno do adversário a quem é
dirigida a gozação.

Tapogi kutale uãke


Foi engraçado o que aconteceu.
Inde uãke
Foi aqui.
Itão itahingatelü uhandão heke
Meus primos foram paquerar uma mulher,
Inhohugu bela
mas era a bunda do marido.
Inhaka belaha itsiholü iheke
Ela quase os mordeu.

Ausuki Kalapalo conta uma história engraçada: os primos saíram para namorar, mas
em vez de seguir a mulher para o mato, seguiram inadvertidamente o marido dela. Após o
primeiro ataque a efígie, Ausuki retorna para um segundo ataque e em vez de chamar outro
primo, completa seu gesto verbal, revelando o nome do primo trapalhão:

Kanariko heke balegei ukita


Eu estou dizendo que foi o pessoal do Kanari.
Tijatonkginhüko heke egei
Foram ele e o marido de sua cunhada.
Apahugu heke itsiholüko
Foi a bunda de meu pai que quase os mordeu.

Neste caso, em vez de singularizar logo um primo, o locutor cria uma expectativa, só
revelando contra quem desfere o ataque na segunda carga, quando adiciona ainda a fonte de
sua informação: o marido da mulher é, na verdade, seu próprio pai. O efeito jocoso é
produzido, de um lado, pela mudança abrupta de perspectiva (uma história de namoro mal

14
sucedido se torna uma história de seu pai) e, de outro, pela imagem da bunda que quase
morde os primos trapalhões.20 Esse uso do grotesco para produzir a derisão é bastante
frequente no Javari e pode ser mobilizada de forma autoderrogatória:

Tuuuu
Tü nigei Hehutsi heke igegagü akepungui
Hehutsi, por que você não abriu o caminho?
Isanetügü naha uégei
Você é o chefe do caminho.
Ekü heke okõ heke uhihenügü uinhutitü kaenga
Um marimbondo picou meu saco.
Tsekegüi ekugu leha
Ele ficou grande demais.21

Neste quarteto Ngakuá Kalapalo acusa o primo anfitrião de não ter limpo o caminho
pelo qual ele, como convidado, chegara à aldeia kuikuro. Toda aldeia xinguana tem um
“dono do caminho” (ama oto) pela qual chegam os convidados a uma festa. Esse caminho
cerimonial deve ser retilíneo e muito bem cuidado, tarefa que cabe ao seu dono-chefe, que
mobiliza o trabalho coletivo para esse fim, fornecendo alimento aos que participam do
mutirão. Aqui, Ngakuá acusa seu primo Hehutsi, bastante idoso, de não ter cuidado do
caminho, mesmo sendo seu chefe, tornando-se assim responsável pela picada do marimbondo
e pelos testículos inchados. Ngakuá cria um insulto-jocoso que apela para o grotesco ao
mesmo tempo em que imagina uma cena que todos sabem impossível (a de um velho
deficiente capinando). 22
Se no Javari, “chamar o primo” implica preparar-lhe um gesto jocoso que está em
continuidade com a relação cotidiana entre primos, esse gesto, no entanto, é reconfigurado
em ato de ataque, tornando visível aquilo que está obviado no cotidiano: que a afinidade é
uma forma de inimizade, que a face escura do gozo é a guerra. Esse caráter ofensivo do duelo

20
A imagem da bunda movente é típica do namoro às escondidas, pois ele costuma iniciar-se com uma mulher
saindo para o mato, como se estivesse indo ao banheiro. O homem aguarda um pouco e a segue, vislumbrando
lá na frente, pelo caminho, a mulher de costas com suas nádegas movendo-se sinuosamente.
21
Tradução de Bruna Franchetto e Mutuá Mehinaku (Fausto e Franchetto 2008:59).
22
Na verdade, Hehutsi nunca foi ama oto, mas sempre gostou de limpar os caminhos. A derisão é construída
pela referência a uma história antiga e pelo jogo de assimetria etária. Hehutsi quer dizer “velhinho” e é o apelido
de Kanápa, que além de idoso manca de uma perna em virtude de uma picada de cobra.

15
verbal, que se faz aparente na decoração corporal e na carga contra a efígie, pode ser também
explicitada verbalmente. A ameaça homicida é um tema recorrente nas festas. Em 2009, Paka
ameaçou seu primo Ipa com uma vara de madeira (figura 8):

Ipa, Ipa, Ipa…


Ipa, Ipa, Ipa...
Tuuuuu, Ipa!
Tuuuuu, Ipa!
Inke hõhõ ehetohoingo uheke ‘vara’23
Veja a vara com que vou te acertar.
Indele angaatelüingo uheke
É aqui que vou te enterrar.
Ehüngenümingo higei iheke
Ela te fará desfalecer.

Este tipo de ataque com ameaças de morte de parte à parte só pode ser feito entre
“primos de verdade” (-haüum hekugu); i.e., entre pessoas que são inapelavelmente primos e
que jamais se chamam ou se comportam reciprocamente como irmãos. Pois é fato que alguns
primos chamados no Javari podem se portar como irmãos fora do contexto ritual. O insulto
não está, pois, em simples continuidade com o tratamento entre primos, mas implica uma
reconfiguração ritual de relações cotidianas, no qual uma pessoa que é simultaneamente
primo e irmão é feita inteiramente primo. Em outras palavras, a ambivalência consanguíneo-
afim é resolvida por meio de uma obviação da consanguinidade, produzindo uma
simplificação em que os interlocutores aparecem unicamente como afins simétricos.24
Essa topologia é similar àquela descrita para a Nova Guiné por Marilyn Strathern, ao
analisar a reconfiguração da dualidade masculino-feminina da pessoa (individual e coletiva)
como pessoa unigenérica. 25 Tomando um exemplo amazônico, Vilaça utiliza a mesma
topologia para analisar o rito funerário wari’, no qual a pessoa dual do morto (ao mesmo
tempo, consangüíneo e afim, predador e presa) aparece progressivamente como somente afim

23
Aqui ele usa o português.
24
Mas sempre afins terminológicos, pois afins reais – cunhados, genros e sogros – não podem se insultar.
25
O movimento aqui encadeia três formas: do plural ao dual e deste ao singular. A individuação requer, pois,
duas reduções em cadeia: “To be individuated, plural relations are first reconceptualized as dual and then the
dually conceived entity, able to detach a part of itself, is divided. The eliciting cause is the presence of a
different other” (1988:15).

16
e somente presa, em oposição ao coletivo dos vivos (consanguíneos e predadores). Como
afirma Vilaça, é graças “à individuação, ou seja, à descomplexificação da pessoa por meio da
obviação de um de seus componentes, que a criação de um novo par, ou de um outro
contexto relacional, por um processo de diferenciação ou de cismogênesis simétrica, é
possível” (este volume:#).
Algo comparável ocorre no Javari: a afinização dos atores rituais permite a construção
de uma figura relacional complexa em outro nível, figura esta formada por pares de primos-
inimigos articulados por uma efígie. Vimos, ademais, que os protogonistas rituais assumem
não apenas identidades simétricas e opostas, mas também uma identidade animal
suplementar. Veremos mais adiante, como esses primos-adversários não apenas se opõem
simetricamente por meio do ato ritual, como também se identificam mutuamente. Em outras
palavras, a redução à afinidade e a obviação da consanguinidade abrem caminho a um outro
nível de complexidade, desta vez propriamente ritual, pois emerge das interações que se
constituem no próprio contexto do ritual.

A EFÍGIE COMO PERSONAGEM RITUAL

Nas interações rituais do Javari há personagens rituais moventes – os primos opostos, assim
como os pássaros e onças que alguns deles representam. Mas há também um personagem
inteiramente estático, indispensável à ação ritual: a efígie. Que papel devemos lhe atribuir?
Vimos no início deste capítulo que há uma identificação entre o morto e a efígie, mas
que ela é uma das perspectivas possíveis sobre o ritual, sendo particularmente importante
para a família e para os pajés. Em pelo menos um momento do ritual, como veremos mais à
frente, ela se impõe como a perspectiva geral. Durante os insultos verbais, no entanto, a
identificação entre a efígie e o morto homenageado é obviada – o artefato assume outro papel
que não o de figurar um morto ausente. Esse papel é o de servir de pivô em uma relação entre
dois interlocutores simetricamente opostos. Aqui se entende melhor o por quê da efígie, na
sua completa ausência de decoração, figurar uma humanidade genérica. Ela é um token do
humano enquanto condição ainda não-determinada à qual se pode atribuir sucessivamente
uma série de identidades.26 Ela difere assim de sua congênere, a efígie do Quarup, que é

26
Como afirma Monod-Becquelin: “on peu donc le considérer comme un personnage, pourvu du sens de
l’audition et silencieux, mais non muet, puiqu’on lui prête des répliques, des propos offensants et railleurs et
même de gestes obscènes. Il prend tour à tour l’identité de chacun des adversaires de chaque tireur: il ressemble
à un pronom personnel sur pieds.” (1994:108 – ênfase nossa).

17
pintada e adornada cuidadosamente à maneira de um chefe e que indexa uma e só uma
identidade ao longo de toda a cena ritual. No Quarup, como vimos, cada efígie representa um
morto específico – fulano hutoho e não kugé hutoho.
Se há algo comum a essas duas representações antropomórficas é o conceito de
hutoho, que designa um artefato feito para figurar mimeticamente uma outra coisa. A
mímesis contida no poste do Quarup é complexa. De um lado, ela mobiliza a noção
culturalmente específica de que o chefe é um poste, um suporte (iho) da comunidade, feito de
madeira nobre e rija. Com a mesma madeira com que se confecciona a efígie funerária –
madeira denominada uëgühi em Kuikuro e kwaryp (“árvore do sol”) em Kamayurá – fazem-
se a casa (tajühe) e a sepultura (tahite) dos chefes. Dita ser a chefe das árvores (i anetügü),
uëgühi já traz em si a condição-chefe, não se prestando à figuração de um humano
qualquer.27 Essa unidade substancial é afirmada também pelo mito, pois a mãe de Sol e Lua,
para quem se comemorou o primeiro Quarup, era, ela mesma, uma mulher-de-pau, um
pinóquio feminino feito de uëgühi, que ganhara vida ao ser animada pelo sopro-reza de seu
pai Kuantüngü.28
O caráter genérico da efígie do Javari é condição para que ela seja o suporte material
à atribuição de várias identidades. Isso não quer dizer que, no momento dos insultos, se lhe
atribua um estatuto de pessoa, nem tampouco que se a associe ao morto presente à sua festa.
Essa série de associações é realizada no percurso total do ritual e não em cada um de seus
momentos. Durante os insultos, a efígie é pragmaticamente constituída como personagem
ritual por meio de atos de fala sucessivos (ou, mais precisamente, por gestos verbais – i.e.,
uma coreografia-insulto). As regras constitutivas do ritual que regulam o turn taking da
palavra entre os primos requer a presença do artefato, instituindo um terceiro termo em uma
interação dialógica. Se ao longo das seções de flechamento da efígie, que antecedem à
chegada dos convidados, o gesto verbal de cada participante vai sendo construído, é só na
presença dos primos-contrários que ele é plenamente executado. Nesse momento, a efígie
deixa de ser mero token de um primo ausente para torna-se o pivô em torno do qual se
estabelece um jogo de identificações, ao mesmo tempo cruzadas e recíprocas.

27
Daí por que a sua fabricação exige um procedimento ritual cuidadoso desde o corte (quando os xamãs
oferecem tabaco e suco de pimenta ao espírito da árvore) até sua pintura em praça pública. Já a efígie do Javari
é confeccionada de modo casual com um material ordinário (as talas e palha da folha da palmeira de buriti) por
um dos responsáveis pela organização da festa.
28
Na versão kuikuro, os seis irmãos da cosmogonia xinguana são Kuantüngü, o primogênito, seguido por
Kuamutsini, Uahasa, Uhasaka, Ahinhuká e Kutsahu.

18
Na fase intertribal, ocorrem duas sequências de duelos verbais: uma durante a noite e
a outra na manhã seguinte, sempre iniciadas pelos anfitriões. Não há como antecipar todos os
movimentos desse confronto verbal, uma vez que é possível – e necessário – compor novas
falas a fim de retaliar um ataque prévio. Há um aspecto dialógico que exige sempre
improvisação, ainda que se possa tentar antecipar mentalmente a tréplica a uma réplica.29
Esse caráter, digamos, macro-dialógico dos insultos, configurado pelos quatro eventos de
ataque à efígie (dois para cada locutor), no qual se estabelecem pares de primos opostos, é
complementado por elementos micro-dialógicos. Alguns insultos contêm citações de falas
prévias do primo, como ocorre no exemplo a seguir em que Jamaluí “chama” seu primo
Robinho, que fora abandonado pela esposa e não conseguira uma nova mulher:

Tuuuuu Robinho
Ainde kaha kupitsü leha
E aí, cadê nossas esposas?
Egei suüam uhitsü agikenümingo
“No ano que vem, cortarei a franja da minha esposa”
Ekigatühügü
Foi o que você disse.

Neste quarteto, Jamaluí questiona o primo que, supostamente, teria dito que se casaria
novamente com uma menina saindo da reclusão pubertária (saída que é marcada pelo corte da
franja). Em seguida, ele insere a citação direta, estabelecendo um diálogo com a própria fala
do primo-adversário. Dirigindo-se à efígie, Jamaluí fala para e pelo primo.
Há uma outra fórmula dialógica na qual o gesto jocoso é construído por meio de uma
identificação explícita com o adversário. Assim, por exemplo, no ataque verbal executado
por Onogi Matipu contra Paka Kuikuro em 2004:

Paka paka paka


Aagage uinhümingo
Vou ficar como você.

29
Um dos cuidados tomados pelos convidados é guardar suas armas para os ataques diurnos, pois nestes eles
sempre terão a palavra final. Se gastarem todos seu arsenal à noite, permitirão aos anfitriões replicar pela manhã
após uma madrugada gestando a resposta. Pegos de calça curta, no meio da praça e no calor da hora, os
convidados podem ver-se sem munição para uma resposta final.

19
Uhüsoho ikulüingo uheke
Eu vou transar com minha sogra.
Ehüsoho ikunimbüngü tsale egei
Você é aquele que transou com a sogra.30

Neste caso, o insulto não começa pelo ideofone tuuuuuuuu seguido pelo nome do
primo, mas pela repetição três vezes do nome, enfatizando-se a explosiva inicial, mas sem o
alongamento da vogal. Em seguida, o locutor identifica-se com o destinatário: “vou ficar
como você”; i.e., vou me colocar no mesmo estado que você, tornando-me “aquele que
transou com a sogra”. No jogo de identidades que inclui a efígie, temos aqui um ato de fala
na qual o enunciador diz “eu serei você” ao artefato, que é uma figuração do primo presente,
estabelecendo uma identidade complexa, oposta e recíproca, cujo ponto de rotação é a
própria efígie.
Foi esse o procedimento que guiou a construção das falas noturnas de um de nós,
quando participou como arqueiro no ritual de 2004. A singularização dos primos-adversários
foi feita pelos Kuikuro, e os insultos foram construídos ao longo das seções de treinamento
com base em uma fórmula-padrão bastante simples:

Verso 1: tuuuuu + [nome]


Verso 2: minha[característica negativa] + hungu (parecido com) + tokó (ideofone)

Esta foi a fórmula verbo-actancial mínima que os Kuikuro mobilizaram para ensinar
um não-índio a tomar parte no ritual: a) ataque a efígie, b) singularize um primo pelo
ideofone seguido do nome, e c) diga “você é como eu” em alguma característica negativa ou
grotesca. Ou seja, conjugue um ato ofensivo a um nome e estabeleça uma relação de
identificação por meio de uma qualidade comum: “fulano você é igual a mim nessa
característica (física, comportamental, moral) negativa ou risível”.31 A efígie muda e estática
adquire aqui uma série de identidades simultâneas: ela é meu primo, que é como eu e,
portanto, ela também sou eu. Esse jogo reflexivo aparece em outras formulações, como a que
se segue, na qual o enunciador se auto-deprecia para finalizar com um alerta:

30
Ver Fausto e Franchetto (2008:59). A tradução foi ligeiramente modificada.
31
Na ocasião, a fórmula não nos pareceu interessante por produzir um jogo de identificações recíprocas, mas
sim porque permitia fazer troça de um primo-jamais-visto, incluindo-se, ao mesmo tempo, na própria ofensa.

20
Tuuuuu, uhandão
Tuuuuu, meus primos!
Ngongo kaengotatsu ugei
Eu sou aquele que come terra.
Uhitsüpe heke ungodipügü
Minha esposa me abandonou.
Uhandão inke atsange egeage einhünkgo
Meus primos, cuidado senão vocês ficam assim [como eu].

Ao dirigir-se a efígie por meio de um jogo reflexivo de atribuição de identidades – eu


sou (serei) como você, você é (será) como eu – cada enunciador constrói uma figura
complexa em que oponentes se identificam e mudam de posição ao longo do ritual. Essa
estrutura temporal inerente ao turn taking do ato verbal, bem como ao jogo de identificações
entre primos, nos remete ao diálogo ritual entre o matador e a vítima na antropofagia ritual
tupinambá. No diálogo relatado por Léry, a futura vítima estabelecia uma identificação com
seu algoz por meio da enunciação de atos sucessivos de devoração encadeados no tempo: eu
que comi os seus, sou agora comido por vocês, que serão comidos no futuro pelos meus.32
Em contraste com o exemplo tupinambá, no entanto, no Javari, esse jogo verbal
identificatório requer um terceiro termo: a efígie. Esse talvez seja o problema mais difícil que
enfrentamos em nossa análise: por que, afinal de contas, constitui-se um jogo a três termos;
por que a intermediação artefatual é obrigatória, não se podendo jamais insultar um primo
sem dirigir-se à efígie? Que modalidade de fala é esta que requer um imagem-efígie para
articular o diálogo entre dois interlocutores presentes?

A REDUPLICAÇÃO DO LOCUTOR-RECEPTOR

Em um artigo no qual retoma o clássico texto de Vernant sobre o kolossos e a noção de duplo
na Grécia Antiga, Severi (2009) propõe-se a dar conta da articulação entre linguagem e
imagem, focalizando as condições do contexto de enunciação não apenas em termos
linguísticos como extra-linguísticos. Trata-se de mostrar como, em contextos rituais,

32
“I’ay mãgé tõ pere: à l’autre I’ay a∫∫ommé & Boucané tes frere […] & au re∫te ne doutez pas que les
Margaias de la nation dont ie ∫uis pour venger ma mort n’en mangët encores cy apres autant qui’ils en pourront
attraper” (Léry 1578:239). Sobre a temporalidade produzida pelo ritual antropofágico, ver Carneiro da Cunha e
Viveiros de Castro (1985).

21
constitui-se uma relação de implicação recíproca entre palavra e imagem, de tal modo que o
uso da linguagem não pode ser desvinculado da mise en scène ritual. A fim de exemplificar
sua démarche, Severi analisa não a pedra bruta dos kolossoi, mas as bem talhadas estátuas
funerárias do século VI aC, que representavam homens e mulheres mortos na flor da idade.33
Com suas linhas delicadas e sorriso cordial, uma postura ligeiramente inclinada para frente
acompanhada de um olhar atento, essas estátuas não apenas representavam um ideal de
beleza e nobreza, mas convidavam alguém a ocupar a posição de interlocutor. Esta
interlocução estava prevista na articulação entre imagem e palavra, pois as estátuas traziam
uma inscrição a ser lida em voz alta por aqueles que a miravam. Como mostra Severi, essa
posição de interlocução não é a de um simples outro, pois aquilo que a inscrição implica é a
posição de um “Eu” do próprio morto – quem a lê, diz: “Eu sou fulano…”, emprestando sua
palavra ao falecido, cuja presença é assim convocada. A presentificação do morto é função
não do iconismo da forma, mas da imbricação entre palavra e imagem em um contexto de
enunciação com regras constitutivas, que modificam a identidade dos locutores.
Diferentemente das finas estátuas naturalistas gregas, a efígie do Javari caracteriza-se
pela ausência de traços singularizantes, aproximando-se formalmente das estelas funerárias
gregas do século XIII aC, que se resumiam a blocos quadrangulares com a extremidade
superior mais fina a fim de sugerir um pescoço ou cabeça humana (Vernant 1988). Assim
como esses kolossoi, o kugé hutoho tem uma localização funerária precisa: ele se ergue na
praça, local onde os chefes são enterrados e onde, idealmente, o morto comemorado no Javari
foi sepultado.34 Ao contrário dos kolossoi e dos kouroi, contudo, a palavra dirigida ao kugé
hutoho não é para um morto ausente que se quer fazer presente. A palavra não é emprestada a
um morto incapaz de pôr-se a si mesmo como locutor, mas sim dirigida a um primo que deve
estar presente (pois não se pode “chamar” um primo ausente). Por que, então, é preciso falar
a um artefato?
Nossa hipótese é que a efígie do Javari permite um desdobramento do receptor e, em
virtude do jogo de identificações recíprocas, também do locutor. O outro-adversário
desdobra-se em artefato e pessoa, ambos presentes. O gesto físico contra a efígie antecipa o
duelo contra um inimigo bizarro e não-humano, enquanto a emissão vocal conecta primos
afinizados por meio de ofensas comuns. Temos aqui uma operação de desdobramento muito
diversa daquela que encontramos na efígie real que, na Europa medieval, ocupava um papel

33
As estátuas eram denominadas kouros no caso de um rapaz e korê no caso de uma jovem.
34
A associação entre local da sepultura e da efígie é obrigatória no caso do chefe principal comemorado no
Quarup. No caso do Javari, não há a necessariamente esta associação.

22
central nos funerais, prolongando a existência do rei já morto (Ginsburg 2001). Não se trata
tampouco de um duplo à maneira das estatuetas huauque (“irmão”), talhadas em pedra,
insufladas com a alma do Inca e que o acompanhavam como um alter ego com funções
oraculares e de representação (Van de Guchte 1996). Se a efígie do Javari é um duplo como o
huauque, antes de ser um outro-Eu, ela é o outro-do-Eu e, ao mesmo tempo, um Eu-outro. A
efígie não é meu irmão gêmeo, mas sim meu primo cruzado, meu afim, meu inimigo (o outro
do que eu sou); ao mesmo tempo, como vimos acima, eu me identifico a esse outro no
insulto, de tal modo que a efígie é a exteriorização da alteridade que sou eu, deste outro que
me constitui enquanto unidade dual.35 A efígie condensa a alteridade-interior do locutor e a
alteridade-exterior do receptor permitindo que locutor e receptor, ambos presentes, se
distinguam maximamente (como inimigos e afins) e se identifiquem (como duas figuras da
exterioridade).
Ademais, do ponto de vista coletivo, como vimos, o Javari é um ritual em que os Alto
Xinguanos entretêm a possibilidade de fazerem-se “índios bravos” (ngikogo). Se o Javari é,
assim, uma reflexão sobre – e uma reversão controlada de – o processo de xinguanização, ele
tem como limite prático a guerra. A forma ritual que tangencia o confronto armado é o duelo
de dardos que se segue às sessões de xingamento. Neste momento, o campo de lutas se
desloca e a efígie antropomorfa que estivera no centro da ação ritual até então é deixada de
lado.

PANTOMIMA DE GUERRA

Todo ritual intertribal xinguano tem como clímax o combate entre os campeões de luta da
aldeia anfitriã e das aldeias convidadas. O Javari é o único desses rituais em que não há
combates corporais, mas sim duelos de dardos realizados entre dois indivíduos segundo uma
lógica recíproca: um lança, o outro tenta se desviar; em seguida, é a vez do segundo lançar o
dardo e do primeiro tentar escapar ao golpe. Os dardos, que na verdade são flechas sem
pontas, só podem atingir o adversário da cintura para baixo, causando hematomas nas coxas e
nádegas, sem jamais causar sangramento. Os duelos ocorrem na seguinte ordem: primeiro,
cada hitse huegü enfrenta seu congênere de outra aldeia, lançando dardos à distância com o
auxílio de um propulsor; em seguida, ocorrem duelos à curta distância entre os demais

35
Refiro-me aqui à noção, corrente na literatura, de que a pessoa na Amazônia indígena é pensada e tratada
como compósita, pois necessariamente constituída pela dualidade mesmo e outro (consanguíneo/afim;
parente/inimigo; humano/animal). Ver Vilaça (este volume).

23
personagens-animais, desta vez sem uso do propulsor e com o uso de proteções feitas de
madeira, segundo a ordem sequencial dos tigikinhinhü (figura 9); por fim, ocorrem os duelos
entre os primos que se chamaram em praça pública.36
Somente as disputas entre os personagens-animais contam para saber qual das aldeias
será a vencedora. Toda vez que um adversário é atingido, seus coaldeãos comemoram
animadamente com uma dança. Leva-se a disputa mais e menos a sério do que os combates
corporais das demais festas intertribais: menos porque há sempre uma atmosfera de
jocosidade, na qual o duelo dos personagens-animais emerge como a representação de uma
representação; mais porque sempre se fala na possibilidade do duelo degenerar a ponto de
tornar-se de fato aquilo que ele representa como pantomina: uma guerra cruel.
Em contraste com o caráter marcial do combate entre os dez maiores lutadores de
cada aldeia – lutadores que representam a capacidade de um povo xinguano de fabricar
pessoas ideais – aqui se representa, em meio a grande balbúrdia, a capacidade de figurar-se a
si mesmo como um não-xinguano por meio de animais predatórios que se colocam, frente à
frente, como primos-adversários. Embora seja um substituto da luta e, portanto, mais um
exemplo de “esportificação da violência” (Elias and Dunning 1986), o duelo dela se
diferencia por colocar em evidência não exemplares perfeitos da condição xinguana, mas
predadores animalescos, oferecendo assim um comentário irônico ao comportamente bélico
dos não-xinguano e, simultaneamente, uma visão ao revés do próprio processo de
xinguanização. 37 Temos, novamente, uma construção em abismo de várias figuras da
alteridade, que confere ao duelo um caráter antes ritual do que de simples jogo ou
competição.
A afinização do primo durante os insultos verbais conduz à reconfiguração
momentânea da relação entre coletivos. O ataque à efígie implica a conversão dramático-
ritual das relações pacíficas entre aldeias em relações de guerra e inimizade, contrariando o
etos xinguano e sua cuidadosa construção da paz interna. Paródia de e flerte com a
agressividade dos outros, o duelo elucida o gesto antecipado pelo arqueiro contra a efígie: o
ataque falado contra o artefato torna-se ataque silencioso contra o inimigo (uimütongo,

36
Os Kuikuro afirmam que, no passado, utilizava-se o propulsor nos combates à curta distância, mas que em
virtude de um evento no qual a ponta de cera de um dardo se quebrou e um adversário foi ferido vertendo
sangue, decidiram, sob os conselhos de Orlando Villas-Boas, abandonar o propulsor. Para informação
semelhante, ver Monod-Becquelin (1994:106).
37
O espírito que acompanha os lutadores, conhecido como ioto (“dono da raíz”), é um ser inteiramente
antropomorfo que porta os ornamentos xinguanos. Assim, como no caso das efígies, o dono da raíz está sempre
ao lado do lutador, de tal modo que se poderia dizer que este último é uma efígie daquele.

24
“aquele que me faz face”). A continuidade entre estes dois atos é enfatizada pelos Kuikuro,
sendo um dos temas recorrentes das sessões de insultos: “é assim que vou te acertar” ou
“assim vamos nos flechar (kepelükoingo)”, diz-se não raras vezes.
Este é um dos eixos centrais em torno do qual gira o Javari: trata-se de uma
pantomima de guerra, na qual tematizam a possibilidade de transformarem-se em não-
xinguanos, flertando com o belicismo dos outros. Isso talvez explique por que o ritual é
denominado, se aceitarmos a tradução de Menezes Bastos, “pequeno jaguar” (jawari) pelos
Kamayurá ou “ponta de flecha arredondada” (hagaka) pelos Kuikuro: trata-se sim de uma
guerra, mas uma guerra em modo menor.38

O MORTO DE VOLTA À CENA

Podemos agora retornar à relação entre a efígie e o morto, com a qual abrimos o texto. Se o
fazemos, é porque o próprio ritual, em seu término, volta-se para o falecido. Ao se
encerrarem os duelos, há uma mudança marcada de tom. Várias ações rituais ocorrem
simultaneamente, entre elas a queima, no centro da praça, do kugé hutoho, dos anteparos de
proteção usado nos duelos e (da alma) do propulsor do falecido. Neste instante, o dono da
festa e sua família achegam-se ao fogo e entoam um lamento ritual, repetindo o vocativo de
parentesco com que se dirigiam ao morto em vida (figura 10). Os chefes das aldeias
convidadas são, então, chamados a chorar com a família.39
Chorar os mortos dos outros é um serviço que se deve prestar aos familiares do
falecido em muitas ocasiões. No Javari, contudo, isso é feito em praça pública impondo, por
um breve momento, uma nova perspectiva sobre o ritual. Aquilo que estava dito no início dos
preparativos da festa pelos familiares: “vamos fazer a festa para queimar a alma do propulsor
de dardos de meu pai”, torna-se ação ritual que redefine a totalidade de seus atos e também
de seus personagens. A família do morto impõe neste instante a sua perspectiva sobre o
ritual, comunicando-a através dos chefes das aldeias convidadas. Até a cremação, nenhum
ato indica que a efígie possa estar ali figurando o morto, pois ela é tratada como token
38
Uma das sequências coreográficas que antecede os insultos à efígie é chamado hügé hokitsoho, “para afiar a
flecha”, como se ela tivesse uma ponta fina e perfurante (lembrem-se que o verbo utilizado é helü). Os
Xinguanos, ademais, falam seriamente do perigo envolvido nos duelos, pois se teme que os adversários
coloquem pedra ou metal escondidos na cera para tornar os dardos mais pesados.
39
No ritual descrito por Menezes Bastos, o chefe kamayurá convoca seus congêneres adversários dizendo: “eu
tenho saudades de meu irmão júnior ... ele era grande campeão de luta e no jogo de dardos. Ele era um grande
pescador. Vocês, Matipu, vêm nos ajudar a fazer a festa dele. Venham chorar conosco e por nós, ó Matipu,
chefes Matipu” (1989:215).

25
genérico da relação simétrica entre afins potenciais. Esta é a perspectiva dominante para boa
parte dos participantes durante a maior parte do ritual.
Como vimos no começo deste capítulo, porém, mesmo aqueles que não estabelecem a
equação direta “a efígie é o morto” – e poucos parecem dispostos a (ou preocupados em)
estabelecê-la – partilham da ideia de que o morto está presente ao ritual, que ele desce do céu
pela última vez a fim de assistir à sua festa. Como explicaram-nos os irmãos Ugisapá e
Hinaku, quando se faz a efígie, o morto chega à aldeia, ficando primeiro na casa de seus
filhos para, em seguida, postar-se como um observador de sua própria homenagem. A efígie
aqui não é o próprio morto, mas sim um atrator: ao ser confeccionada, ela faz a alma do
morto descer à aldeia.40
Essa é uma proposição geral sobre todos os rituais, sobretudo aqueles realizados para
os itseke – afinal, eles são realizados precisamente para que os espíritos possam dançar e
comer o que lhes é ofertado pelos humanos. Se os itseke comparecem aos seus rituais, por
que os mortos, que são a forma itseke dos vivos (Fausto 2012:71), não compareceriam ao
deles? Na maioria dos rituais essa ideia é ativada por dois índices: primeiro, por uma
distinção interna entre momentos mais ou menos “sagrados” (tainpane). Dentro do extenso
repertório cancional e coreográfico de uma festa, há momentos em que cantos obrigam o
dono da festa a realizar certos atos rituais : normalmente a oferta formal de um alimento, que
é acompanhada por um discurso formuláico em que se enuncia o nome do itseke.41 Este
alimento é considerado tainpane e só pode ser comido pelos mais velhos – além, é claro, dos
espíritos.
O segundo elemento que atualiza o pressuposto sobre a presença dos itseke durante a
festa é que toda ação do dono (oto) é mediada por um conjunto de 3 a 6 indivíduos
denominadas ihü (“corpo”), que são aqueles que pediram a um ex-doente para que se
tornasse dono de um determinado ritual e que, em seguida, serão os responsáveis por auxiliá-
lo a realizar a festa. Elas terão lugar de destaque em sua execução como organizadores das
atividades, como mensageiros a convidar outras aldeias ou, ainda, como especialistas rituais

40
No Alto Xingu, uma figuração hutoho serve para atrair aquilo que se está representando. A arte de figurar é,
de resto, cara aos feiticeiros que fazem pequenas esculturas de anta ou porcos quando querem que estes animais
destruam a roça de um inimigo, ou desenhos de raio para que um relâmpago atinja a casa de seu desafeto, ou
ainda imagens de mosquitos quando querem infernizar a vida de seus co-aldeões. Não é incomum, aliás, que os
pajés encontrem esses objetos, muitas vezes esculpidos com bastante realismo.
41
A cada festa corresponde um nome de espírito. No caso do Javari de homenagem a um morto, o dono do
ritual não usa esta fórmula, mas sim uma maneira, igualmente formuláica, de oferecer comida.

26
que confeccionarão ou vestirão as máscaras, tocarão as flautas ou cantarão as músicas dos
itseke. São eles, enfim, que dão “corpo” aos espíritos, tornando-os visíveis e audíveis.
Nos ritos funerários, contudo, não há ihü; os principais oficiantes não são designados
“corpo” – ninguém pode ser o corpo de um morto (sob pena de estar ele mesmo morto) – mas
sim tajópe, termo que designa todo coordenador de trabalho coletivo.42 É, pois, nos rituais em
que os humanos não podem figurar espíritos por meio de seus corpos que surgem as efígies
antropomorfas – artefatos que ocupam o lugar de um corpo. Neste sentido, podemos dizer
que a efígie, instrumento de desdobramento de si e do outro, é também o duplo do morto, o
modo que ele se donne à voir em praça pública.
Há, porém, uma diferença importante entre as imagens visíveis dos itseke – também
figuradas por artefatos (máscaras e instrumentos musicais) – e aquela do morto. Enquanto as
primeiras tornam visíveis corpos zooantroomorfos (Fausto 2011:60), a efígie é uma figuração
mínima do humano. Citemos uma nova passagem da entrevista com o pajé Tagó:

Ülepene leha hagitope hüge agilü kinümingo leha


Depois de jogarmos a flecha contra os convidados,
Ihotelüingo leha
Ela [a efígie de Nahum] será queimada.
Ihetahisukoingo leha, ihetahisukoingo leha, ege inümingo ihekeni
Eles vão chorar, vão chorar, sobre aquele ali [apontando para a efígie]
Ihetahisukoingo leha inümingo, ülehungu egeitsüha, kuge egei kuge
Eles vão chorar, é assim que é, ele é gente.
Akungagü kuge. Engike hõhõ ikungu angiha sukugetipügü
A alma, gente. Veja o braço dele. Ele se transformou em gente.

Nas palavras de Tagó, a efígie “tornou-se gente”.43 Um tronco com os braços semi-abertos
evoca a forma mínima do humano: a efígie, para usar um neologismo, “gentificou-se” – o
processo inverso àquele de “fazer-se espírito” (sitseketipügü). Em uma festa na qual todos
(menos os donos da festa) figuram a alteridade não-humana, a efígie rústica e sem decoração,
ergue-se como modelo genérico do humano.

42
No caso do Quarup e do Javari, os tajope são aqueles enterraram a pessoa comemorada.
43
Sukugetipügü (3a pessoa + kuge + Vblz -ti- + completivo –pügü). O verbalizador -ti- possui uma semântica
incoativa, indicando uma mudança de estado, uma transformação (Santos 2007:140).

27
Se a presença do morto durante sua festa é uma ideia consensual, verbalmente
explicitável e explicitada, ela precisa ser atualizada pragmaticamente de modo a tornar-se
uma perspectiva interna ao ritual. Isto ocorre no momento em que o kugé hutoho é cremado.
Neste instante, redefine-se o eixo da relação com a efígie : até então o eixo dominante era
horizontal, simétrico e de oposição entre os primos-inimigos. Agora, o eixo vertical,
complementar e linear passa a ocupar a cena pública e o chefe da aldeia convidada deve
partilhar, por meio de seu choro, da perspectiva da família. De perspectiva privada e privativa
(os que guardam o luto não participam dos insultos e dos duelos), a relação vertical com o
morto passa a ser comum a todos e, por isso mesmo, desfeita. Família e chefe (representante
de um coletivo-outro) unem-se agora na condição comum de vivos e o morto pode, assim,
partir definitivamente.
Em 2009, durante a cremação da efígie, uma das filhas de Nahum desmaiou. Viu,
então, o pai que assistia à sua própria festa. No dia seguinte, narrou a seu filho o que ouvira
então:

Ige hungu, igia hüle uüilü ehekeni


– “Era mesmo assim que vocês deviam fazer-me”.
Utelü leha higei leha hüle, api kilü uheke
– “Agora eu vou embora”, seu avô me disse.
Ege hüle egei unguentagüi
– “Era isso o que eu estava esperando”.
Uhangagü heke leha itsata
Eu escutei com o meu próprio ouvido.

CONCLUSÃO

Neste texto, buscamos analisar uma série de configurações relacionais internas ao ritual do
Javari focalizando um artefato, cuja particularidade reside em pelo menos dois aspectos:
primeiro, trata-se de uma efígie antropomorfa, algo extremamente raro na Amazônia
contemporânea; segundo, esta efígie é de uma simplicidade notável, despojada de qualquer
ornamento ou decoração em uma área cultural, o Alto Xingu, que é celébre por sua
sofisticação decorativa. O antropomorfismo e a simplicidade da efígie do Javari não são fruto
de desleixo ou descaso, mas uma forma positiva que deve ser compreendida no interior de
um sistema de relações que inclui uma outra efígie, a do Quarup, que não exibe braços e é

28
hiper-decorada. A forma humana genérica da primeira permite que ela seja o pivô de
articulação entre diversas identidades, enquanto a forma-chefe da segunda estabelece uma
relação específica com uma e só uma pessoa.
Contudo, vimos também que uma das identidades atribuídas à efígie do Javari é
aquela de um morto específico. Boa parte de nosso argumento foi construído de modo a
mostrar que essa afirmação não podia ser compreendida a partir de elicitações verbais ou
narrativas míticas, mas só poderia ser elucidada a partir da análise interna da ação ritual. A
efígie do Javari nos oferecia um exemplo particularmente apto para realçar este pressuposto
analítico, uma vez que dificilmente poderíamos recorrer a uma labilidade ontológica entre
sujeito e objeto para dar conta de sua existência. Mesmo a atribuição de agência – sem
implicar a atribuição de subjetividade – não poderia ser feita fora do contexto ritual, uma vez
que a efígie do Javari não se adequa nem a uma teoria internalista, nem a uma teoria
externalista da abdução de agência: ela não parece ter um interior a ser preenchido por uma
anima – e a ausência de orifícios, olhos, boca parecem mesmo querer desmarcar essa
interioridade – e tampouco possui um exterior elaborado, um desenho complexo, capaz de
capturar visualmente o receptor (Gell 1998). O poder de sua imagem recai antes sobre a
desmarcação de qualquer elemento saliente – desmarcação esta que, no contexto xinguano, é
culturalmente saliente.
Na sua face inexpressiva, a efígie articula diferentes figuras da alteridade: primos
cruzados, animais predadores, índios bravos. Suporte de uma humanidade genérica – e,
portanto, não necessariamente xinguana como no caso dos donos da festa – a efígie torna-se o
articulador de uma série bastante conhecida na Amazônia: afins, animais e inimigos. Pivô
entre vivos, a efígie é também o atrator de um morto e, ao mesmo tempo, seu duplo: “era
mesmo assim que vocês deviam fazer-me (uüilü)”, diz a alma de Nahum a sua filha. A raiz
verbal -üi- designa não a manufatura de um objeto (cuja raíz verbal seria ha-), mas o fazer
que se aplica a uma pessoa: pais “fazem” (-üi-) seus filhos durante a reclusão. Na sua fala,
Nahum refere-se à festa como um todo, que o “fez”, mas também, por subsunção, à efígie.
Não é apenas a efígie que pode ser dita um duplo do morto. Os personagens-animais
são eles também representações daquilo que foi a pessoa homenageada, pois o Javari
comemora, justamente, seus cantores e arqueiros do passado. O morto pode ser, assim,
incluído na série afins-animais-inimigos – uma conclusão que, para muitos Amazonistas, já
estaria dada de saída em função da noção, bastante difundida entre os povos da região, de que
os “mortos são os outros” (Carneiro da Cunha 1978), alteridade frequentemente associada a
uma condição animal. No Alto Xingu, contudo, isto é um pouco mais complicado. O Javari é

29
um exemplo da oscilação existente entre a figura do morto como inimigo-predador e o morto
como ancestral a ser comemorado. Ao longo deste texto, vimos de que modo um boneco
rústico torna-se personagem de um drama ritual ao servir de suporte para relações
incompatíveis : simétricas e horizontais entre afins-inimigos ; complementar e vertical entre
vivos e morto. As identidades atribuídas ritualmente ao kugé hutoho definem dois eixos de
relações, ambos indexados a um mesmo personagem ritual, um artefato que acumula em si
identidades heterogêneas.
É neste sentido que o Javari é um tertius no complexo dual arawak para “fazer” (-üi-)
chefes: a furação de orelha e o Quarup. Estes ritos expressam e produzem o etos hierárquico
local. O Quarup transforma a memória deixada por um humano exemplar de modo a que a
família possa separar-se de um parente, a coletividade possa lembrá-lo e seu nome possa
perpetuar-se, servindo à fabricação (-üi-) de novos chefes. O Javari – também rito funerário,
também para esquecer e lembrar – funda-se em outra configuração: aquela do chefe
guerreiro, do matador que precisa incorporar uma alteridade animal para apropriar a
alteridade de uma vítima humana. O Javari inscreve-se, assim, na série horizontal das
máquinas de guerra ameríndias, mas no processo de sua incorporação xinguana é
domesticado: a guerra se torna pantomima, o chefe guerreiro torna-se arqueiro de uma flecha
sem ponta e o rito torna-se uma representação de como seríamos “nós”, xinguanos, se
fôssemos ainda aquilo que já não somos mais.

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