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Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Estudos da Linguagem

TRABALHO FINAL
TL151/252

Rafaela Daroz Mondelli RA: 237394

Campinas
2023
RESUMO DE TEXTO TEÓRICO

Publicado originalmente em 1919, o ensaio Tradição e talento individual, de T.S.


Eliot, propõe-se a discutir brevemente o papel da tradição literária e o do talento na criação
de uma subjetividade poética.
Eliot inicia seu texto definindo como a tradição é raramente reconhecida como uma
característica positiva em obras literárias ou, ainda, ignorada em obras de sucesso crítico. Ao
contrário, sua conotação costuma ser negativa, como o oposto do inovador. Isso demonstra
uma limitação da cultura crítica inglesa, no contexto de produção específico do ensaio. O que
gera aprovação crítica a um poeta, então, é quando ele consegue o feito de inserir em sua obra
aspectos diferentes dos observados em qualquer outra obra, ou seja, o feito da originalidade.
O autor, no entanto, contrapõe essa perspectiva, indicando que o aspecto mais individual de
uma obra pode ser atribuído, justamente, à influência de autores reconhecidos
tradicionalmente.
Para explicar seu ponto de vista, ele primeiro preocupa-se em definir o conceito de
tradição e esclarece que a visão de tradição como a simples aderência, em qualquer nível, aos
sucessos da geração anterior não gera aspecto individual em outras obras. Eliot propõe que a
tradição é conquistada por aquele que deseja escrever. Essa conquista exige compreender o
sentido histórico da tradição, que é a presença do passado no momento presente – toda a
literatura de um país existe de forma simultânea e constituem uma ordem simultânea. O
reconhecimento desse sentido que torna um escritor tradicional, mas, na mesma medida, faz
com que ele tenha consciência da sua contemporaneidade.
O autor continua, acrescentando que nenhum artista tem seu significado sozinho, “no
vácuo”. Todos são apreciados a partir da relação com trabalhos do passado, pois a apreciação
é feita a partir da comparação com o que já foi produzido. A consequência disso para a ordem
simultânea de toda a literatura é que ela só se modifica com a geração de uma obra nova,
realmente original. Sendo assim, a ordem das obras reconhecidas e tradicionais sempre
existe, se alterando com novas adições, mas, ainda sim, sempre existente – com seus valores
reajustados.
O reajuste da ordem literária é feito por meio da comparação entre a obra nova e as
antigas, gerando um novo tipo de harmonia entre o conjunto. Para que haja uma relação com
o passado, o escritor não pode tomar aquele como uma massa homogênea, nem tomá-lo como
representado pelas obras favoritas, nem organizá-lo somente a partir de um período de
preferência. Também é necessária a compreensão de que a arte nunca se aperfeiçoa, mas, sim,
se modifica, nunca voltando para o mesmo lugar e não deixando nada para trás. A
mentalidade da tradição, no sentido de Eliot, que é a ordem formada pelas obras que tiverem
êxito de originalidade e atemporalidade, é mais importante do que a mentalidade individual
de um escritor. Há, no entanto, a vantagem de se estar no presente e poder ter a possibilidade
de se estudar o passado.
O autor do ensaio reconhece que a sua teoria, porém, gera o questionamento: é
necessário estudar todas as obras importantes para que se possa escrever algo novo? Não
seria “intelectualizar” o ofício do poeta, que é pessoal e sensível? A resposta é que o poeta
deve se desenvolver e buscar conhecimento do passado caso queira seguir na empreitada de
escrever algo novo e individual. Acerca disto, Eliot coloca: “O que ocorre é uma contínua
entrega de si mesmo, tal como se é num dado momento, a algo que se revela mais valioso.”,
concluindo que a evolução do artista exige a extinção da sua personalidade.
O estudo da poesia do passado exige tempo e experiência e, por isso, o autor adiciona
que a mente de um poeta maduro difere da mente de um poeta imaturo, pelo tempo de
aperfeiçoamento e pela possibilidade de combinar vários tipos de sentimentos de diferentes
formas. O poeta maduro consegue se separar, quando necessário, dos seus sofrimentos e
felicidades pessoais da sua criação e, igualmente, implementá-los à criação com maior êxito.
A grande questão, para Eliot, é a defesa de que a mente do poeta deve ser um reservatório de,
além de sentimentos, imagens e frases que serão combinados de diversas formas para uma
criação poética. Diante disso, o que conta é a intensidade do processo artístico, que junta
diversas fontes para criar algo novo e não a intensidade das emoções.
Eliot traz “a teoria metafísica da unidade substancial da alma” como o conceito a
qual ele se opõe, que significa que a alma do poeta, como um sentimentalismo, deve ser
expressa em uma obra. Em vez disso, o poeta seria um médium particular, no qual impressões
e experiências se associam em caminhos individuais. Isso significa que não é porque um
poeta, em sua vida pessoal, foi marcado por um determinado sentimento, que esse sentimento
necessariamente significará algo em sua obra, e vice-versa.
Nessa perspectiva, na literatura deve se valorizar a subjetividade poética, e não a
subjetividade pessoal. Isso é feito, como descrito acima, a partir de frases, imagens,
sentimentos alheios e amplamente conhecidos e conectados através da linguagem e da forma,
formando algo novo que só se expressa por aquela obra. A concentração é ressaltada por
Eliot, como o que gera a nova experiência poética, e essa concentração pode ser, muitas
vezes, inconsciente.
Enfim, entende-se que a poesia não libera a emoção do poeta, mas serve como fuga.
Um modo de sair do “eu”, pessoal, para explorar “outros” – sentimentos, experiências,
imagens – e assim conseguir construir algo novo.

RELATÓRIO DA OFICINA
Exercício 1
No primeiro exercício, deveríamos escolher entre os poemas “Enquanto leio meus
seios…’, de Ana Cristina César, e “Poesia 1970”, de Paulo Leminski, e acrescentar uma
estrofe nossa ao escolhido. Depois, utilizar a estrofe acrescentada para escrever um texto
próprio. Originalmente, durante a aula, eu acrescentei a estrofe e fiz um poema a partir dos
dois textos, para ver qual eu acharia mais interessante.
Minha interpretação dos dois textos me levou a um lugar parecido. No texto de Ana
Cristina César, interpretei como a insatisfação da própria escrita, que tem muito
sentimentalismo pessoal, e a volta para os poetas adorados com uma admiração invejosa – no
sentido de “Vou ler quem sabe escrever”. Já no texto de Leminski, compreendi o mesmo, mas
por uma visão diferente, considerando o tom irônico do poema: a autoconsciência do poeta
julga a autoconfiança de achar que os próprios textos já são tão bons quanto os clássicos,
como é referido no poema com a última estrofe “Já é um clássico.” A ironia do texto diz que,
não, ainda não está bom para ser um clássico.
Essas interpretações iniciais me levaram para um caminho de escrita autodepreciativa.
A versão que escrevi a partir do poema de Leminski (abaixo), no entanto, foi bem mais
focada nisso do que a versão feita a partir do de Ana Cristina César.

Tudo o que eu faço


Alguém em mim que eu desprezo
Sempre acha o máximo.

Mal rabisco,
Não dá mais pra mudar nada.
Já é um clássico.
(LEMINSKI, Paulo. Poesia 1970.)

Meu poema feito a partir de “Poesia 1970”:


Mal rabisco,
Não dá mais pra mudar nada.
Já é um clássico.

Logo, então, lembro.


Alguém de fora que eu admiro
não escreveria tão pouco.

Alguém de fora não seria


tão patético,
tão genérico,
tão plástico.

Alguém de fora não seria


tão metódico,
tão crítico,
tão paranóico.

Descartei a versão acima, pois considerei ela muito vazia e simples. O que torna o
poema original de Leminski interessante é a ironia e o humor, que foram retirados aqui,
eliminando a autoconsciência e deixando apenas uma autodepreciação, realmente. Lembrei
nesse momento do texto de T.S. Eliot, resumido anteriormente, sobre o uso da subjetividade
pessoal não ser equivalente a um texto interessante. Definitivamente pude observar o que é
proposto por ele.
Apesar de haver, também, um tom autodepreciativo no meu texto feito a partir de
“Enquanto leio meus seios…”, achei interessante a imagem do corpo como fonte da escrita e
isso me levou ao elemento da vergonha. Nesse ponto, já havia relido o poema de César
diversas vezes e passei a interpretar o corpo despido não como uma metáfora para revelar o
pessoal, como anteriormente, mas como se o ato de escrever envolvesse uma performance,
sensualidade. No meu texto, no entanto, o eu-lírico ainda não consegue fazer esse tipo de
performance, nem se imaginar de forma sensual. A primeira versão que entreguei foi a
seguinte:

I.
Enquanto leio meus textos estão cobertos. É difícil encontrá-los no meio da vergonha das
palavras. Então coloco mais uma camada de roupa por cima do meu seio.

II.

Enquanto escrevo vou me despindo. É fácil porque está muito calor não estou nem pensando.
Então bato o olho em meus seios e sinto o constrangimento de estar mexendo com algo sujo.

Conforme será explicado posteriormente, o Exercício 5 pediu a organização dos


textos e suas reescritas, caso fosse necessário. Adicionei mais uma estrofe ao meu poema
após ler duas obras: “O riso da Medusa”, de Hélène Cixous e “O que é escrita feminina?”, de
Lúcia Castello Branco. A primeira é um manifesto pela escrita feminina, que pode ser
definida como “uma linguagem que conceba a mulher como inteira e completa e que parta
desse corpo feminino que é em si.”, com isso, Cixous defende a linguagem flui do corpo para
fazer sentido. Diretamente em relação com “O riso da Medusa”, a obra de Castello Branco
traz o conceito de gozo no texto, de Roland Barthes, que é uma reação física e corporal, no
sentido de nunca ser atingido, nunca satisfazer por completo. Esse conceito aplicado ao texto
traz a questão do “discurso cujo sentido nunca se localiza exatamente ali, mas sempre para
mais além, ainda mais, um pouco mais.”
Utilizei os conceitos citados acima na estrofe adicionada, pensando na superação da
vergonha das estrofes anteriores, como um reconhecimento do que pode ser dito através da
sensualidade do corpo. Não de forma explícita, mas em saber que algo existe sem ser visto,
como o bico do seio e que algo é dito sem ser dito. A sensualidade raramente está em ver um
seio completo, mas muito mais em ver a marca por um blusa e o compreendimento do texto
raramente está nos signos, mas muito mais no que está por trás deles. Essa ideia me guiou no
desenvolvimento dos textos seguintes também.

Exercício 2
Nesse momento, tivemos que escolher um texto livremente e, também, uma palavra
que remetesse ao mundo material retirada do texto anterior. Eu escolhi o poema XI, da
coleção “Trovas de muito amor para um amado senhor”, de Hilda Hilst. A tarefa era escrever
um texto autoral utilizando a forma do texto escolhido valorizando a palavra material.
Considerei a forma do poema XI relativamente simples, por ser sem métrica fixa.
O poema original fala sobre o sofrimento de amar alguém, associado ao medo da
perda. Como palavra, escolhi “roupa”, que também remete ao corpo, novamente peguei o
conceito da sensualidade, mas abandonei o de vergonha, optando por uma versão focada no
ânimo do início da paixão, em que você só quer ser notado pelo outro. A roupa é o meio pelo
qual você se faz atraente para esse outro.
A última estrofe do meu texto, originalmente entregue é a seguinte:

Tenho a vestido
Porque de amor
Tenho vivido.
Amor tão grande
Tão apropriado
Que se a perdesse
Outra encontraria
Mais cobiçada.

Na aula seguinte a que esse exercício foi feito, o professor comentou que a estrofe
manteve o tom de sofrimento e de medo da perda do poema original de Hilst, e que seria
interessante modificá-la para continuar o tom de desejo e ânimo pelo olhar do outro. Com a
alteração, que pode ser observada na segunda página da plaquete, quis demonstrar que não é
a roupa, em si, que traz a sensualidade, mas sim o amor e o desejo que o eu-lírico sente. Para
ficar marcada a diferença com o tema do poema XI, no qual os últimos três versos são “Que
se o perdesse (o amor)/Nada seria/Mais cobiçado”, que apresentam uma passividade do
eu-lírico, de perdeu seu amor e não poder fazer nada além de desejar tê-lo de volta; no meu
fiz “Que se quisesse/Tudo encontraria/Para por você ser cobiçada.”, querendo demonstrar o
eu-lírico como ativo, motivado a fazer tudo para ser desejado pela sua paixão.
Os dois primeiros versos ficaram mais parecidos com o poema original em relação à
forma, tendo estruturas sintáticas praticamente iguais. O último, na versão final, teve que ser
adaptado na última estrofe.

Exercício 3
O exercício 3 foi um dos mais difíceis para mim. Foi necessário fazer uma lista de
funções inabituais da palavra escolhida anteriormente, “roupa”, e escrever um texto
descritivo com elas. Consegui pensar em poucas funções realmente inabituais e, além disso,
não tenho muito contato com textos descritivos.
Querendo manter o tema do poema anterior, eu originalmente tentei descrever a
relação do eu-lírico com uma roupa emprestada por sua paixão, e as funções inabituais
demonstrariam o nível de envolvimento e obsessão. Não achei que focou nas funções
inabituais ou que ficou sequer um texto descritivo.
Para reescrevê-lo, eu procurei um poema que falasse sobre corpo e achei “Poemeto
erótico”, de Manuel Bandeira. A primeira estrofe, a seguir, me guiou de alguma forma.

Teu corpo claro e perfeito,


– Teu corpo de maravilha,
Quero possuí-lo no leito
Estreito da redondilha…

Utilizei uma estrutura similar em minha segunda versão, também na primeira estrofe,
e, assim, o poema segue com a imagem da roupa da pessoa amada sendo substituída pela sua
peça de roupa. Imaginei o poema como uma metáfora para conhecer a outra pessoa
profundamente até ela ficar completamente despida, por isso adicionei o verbo “Pois assim te
amo: desnudo até o osso”, que foi retirado do poema II da coletânea “Sobre a tua grande
face”. O esperado é que outra pessoa também queira despir o eu-lírico.
Por fim, ainda não considerei um texto descritivo, mas gostei do resultado.

Exercício 4
As orientações do exercício 4 foram as mesmas do exercício 3, com a exceção de que
a palavra agora seria escolhida pelo professor, retirada do texto anterior. A palavra escolhida
para mim foi “avesso”. Considerei uma palavra difícil de se trabalhar, por ser mais um
conceito de algo que pode acontecer a um material. Dessa forma, tentei pensar em coisas que,
habitualmente, não ficam do avesso.
Querendo me diferenciar um pouco do que já foi feito nas atividades anteriores,
pensei em um texto de terror e lembrei de um sonho que tive, semanas antes desse exercício,
sobre uma mulher que vira um tipo de monstro em uma floresta, mas ela se agoniza por virar
essa criatura.
Como no exercício anterior escolhi o formato de poema e não considerei que consegui
trabalhar com o tipo textual descritivo, optei por alterar o formato para prosa. Inicialmente,
pensei em fazer uma história de cem palavras, me inspirando no conto “Nicholas was…”, de
Neil Gaiman, que foi escrito como um cartão de Natal e retrata uma versão sombria e
mitológica do Papai Noel. Me inspirei, também, na escrita direta e curta, mas aterrorizante.
Infelizmente, não consegui manter o texto em apenas cem palavras.
A PED da disciplina, em seu comentário sobre o texto, colocou que não era
exatamente uma descrição da minha palavra-tema, “avesso”, com o que eu concordo. No
entanto, como expliquei acima, considerei uma palavra um pouco difícil de ser trabalhada por
“conta própria” e o que fiz no texto foi a solução que consegui pensar para fazer algo que
seguisse um tema em comum com os textos anteriores. Tendo isso em mente, considerei que
a troca da forma, de poema para prosa, bem sucedida, gerando um texto descritivo.

Exercício 5
Aqui foi feita a primeira reescrita dos textos e a primeira organização deles como
conjunto, já os considerando como textos autorais. Para isso, eles deviam ser organizados
sem as obras de apoio e devia ser dada a primeira versão de um título.
Foi na realização desse exercício que fiz a reescrita de todos os exercícios acima,
conforme foram descritas.
Mantive a ordem de entrega dos exercícios para a organização do conjunto. Até o
momento de realização do Exercício 5, considerei que estava seguindo um caminho que
estava fazendo sentido: no primeiro texto, há a questão da vergonha e de um novo olhar sobre
o corpo; no segunda, a questão do desejo e sensualidade; no terceiro, a obsessão pelo outro,
que segue um tom mais visceral e, por fim, a volta de um olhar aterrorizante sobre o próprio
corpo.
A partir dos temas de roupa e corpo, escolhi para o conjunto o nome “Tecidos”, que
pode se referir ao tecido como material e tecido que forma o corpo humano. Foi o título que
mantive na versão final, também.

Exercício 6
Para a realização do sexto exercício, o professor pediu que escolhêssemos uma obra
visual conhecida que se relacionasse com a palavra tema.A princípio, considerei utilizar
“Vampire”, de Edvard Munch, porém conclui que ele se relacionava mais à questão do corpo
presente nos textos, do que com a palavra “avesso”. Olhei, também, diversas obras de Egon
Schiele, que se relacionavam à palavra-tema, mas todos os que me interessaram eram sobre
casais e momentos de relações íntimas, tive receio de se assemelhar muito aos textos
anteriores em conteúdo.
Enfim, escolhi “Amor e Morte”, de Gustav Klimt. Para a escolha, pensei apenas na
ideia da morte como avesso da vida, mas, durante a aula, o professor pediu que um colega de
sala escolhesse um detalhe secundário da obra para motivar a escrita. A colega que estava ao
meu lado escolheu o detalhe do bebê esconder a mão da mulher por estar por cima dela.

Fiquei bastante tempo pensando no que eu poderia escrever a partir desse detalhe,
relacionado-o com a palavra-tema. Parti do ponto de que, visualmente, não é possível saber
se o braço da mulher está escondido pelo bebê ou se está ligado a ele, assim como todos os
outros personagens no quadro, que parecem estar “embolados”, até como uma colcha de
retalhos, já que a “massa” que reúne eles tem diversos padrões diferentes. A interpretação de
existir uma ligação física entre a mulher e o bebê me lembrou um trecho do conto que baseou
o filme “A Chegada”, chamado “Story of your life”, de Ted Chiang:

You’ll be incessantly running off somewhere, and each time you walk into a door
frame or scrape your knee, the pain feels like it’s my own. It’ll be like growing an
errant limb, an extension of myself whose sensory nerves report pain just fine, but
whose motor nerves don’t convey my commands at all. (CHIANG, 2005, p.
119-120)

Prestei atenção, também, no fato do bebê estar desenhado de uma forma estranha: seu
peito parece fazer um relevo, ou ele parece estar meio retorcido, com as costas viradas para
trás, apesar de a parte inferior estar, claramente, virada para frente.
Reunindo as interpretações feitas, assumi a mulher e o bebê como mãe e filho e o
embolado de pessoas como uma ligação de relações humanas e familiares, em que não existe
ação individual: uma decisão afeta a vida de outro, assim como puxar a ponta de uma colcha
inevitavelmente puxa, também, o resto. Eu tentei relacionar a palavra “avesso” de forma
subjetiva, a partir da imagem da colcha, mas não considerei que a associação fez sentido ou
ficou clara.
Em relação à forma, esse foi o segundo exercício que fiz um poema de estrofes com
quatro versos, por deixar a escolha de rimas a escolha de rimas mais simples. Sendo assim,
penso que é uma escolha fácil e automática e que não enriquece o texto. Aqui, novamente, é
possível citar o texto de Eliot (1919), pois é possível que, para obter um resultado que eu
apreciasse mais, fossem necessárias mais referências poéticas.

Exercício 7
A partir da segunda metade da disciplina, marcadamente a partir do exercício 7, tive
problemas de ordem pessoal que, infelizmente, não permitiram minha produtividade nos
exercícios da mesma forma que havia sendo feito. Esse foi um dos exercícios que não
consegui entregar no prazo.
Com a proposta de ready-made, pesquisei textos a partir de palavras chaves que foram
utilizadas em meus textos: corpo, avesso, roupa, avesso do corpo. Novamente, houve a
associação de corpo como roupa, algo que vestimos para ser. Não escrevi uma forma
específica em mente, encaixei os versos conforme considerei melhor para ler.

Exercício 8
O exercício 8 propunha a escrita de um texto a partir de uma imagem em movimento.
Apesar de ser orientada a preferência por filmes, escolhi o trecho de um episódio de uma
série de televisão que havia visto há pouco tempo, “Yellowjackets”. O programa retrata a luta
por sobrevivência de jogadoras de futebol de ensino médio após o avião em que viajavam
cair em uma região da tundra canadense. Como no filme “Mean Girls”, o seriado mostra a
selvageria que é ser uma garota adolescente, especialmente na relação entre Jackie, a capitã
do time e menina mais popular da escola, e Shauna, sua melhor amiga tímida e ofuscada. No
2º episódio da 2ª temporada, as meninas finalmente chegam ao inevitável: o canibalismo –
elas comem o corpo de Jackie, que morreu congelada, com a iniciativa de Shauna. A cena é
de todas devorando o corpo como lobos famintos.
A série foi muito impactante para mim e achei que a cena, visualmente, se relaciona
muito com os textos que haviam sido feitos até o momento. Além disso, o que está por trás
dela também me interessou: as meninas enfim conseguindo consumir tudo que Jackie era,
principalmente sua melhor amiga, que a amava tanto quanto a invejava.
Voltando ao primeiro exercício, me “nutri dos seios” de Ana Cristina César (2016) e
usei a forma de um de seus poemas, de forma parecida ao segundo exercício, também:

Minha boca também


está seca
deste ar seco do planalto
bebemos litros d'água
Brasília está tombada
iluminada como o mundo real
pouso a mão no teu peito
mapa de navegação
desta varanda
hoje sou eu que
estou te livrando
da verdade

O eu-lírico seria a Shauna, que comeu o primeiro pedaço de sua amiga. A escolha de
uma forma curta e sem métrica ou rima favoreceu a escrita, por permitir maior liberdade
lexical e, também, porque evitou que eu me alongasse e ficasse muito expositivo.

Exercício 9
A proposta do exercício 9 foi escolher um texto narrativo curto a partir de uma
imagem selecionada pelo professor. Dentre essas, eu escolhi “Man in a chair” (1983-1984),
de Lucian Freud, que retrata um homem sentado em uma cadeira. Quando fui pesquisar a
origem do quadro, descobri que ele retrata H. H. Thyssen-Bornemisza, um magnata bilionário
da indústria de materiais do século XX. Na mesma época da produção escrita, eu estava
assistindo a “Succession”, da emissora de televisão HBO, que conta a história da família
fictícia Roy, dona de um dos maiores conglomerados de mídia do mundo. O patriarca, Logan,
já é idoso e doente, e precisa escolher um sucessor entre seus três filhos, Kendall, Roman e
Shiv. Todos estão sempre em conflitos entre si e com o pai, que é uma presença suprema e
controladora. Ninguém, nem personagem, nem espectador, tem acesso ao que Logan pensava
e porque agia da forma que agia, e foi isso que tentei retratar no conto.
A série tem como nome de diversos episódios, versos do poema “Dream Song 29”, de
John Berryman, sobre um homem que tem a paranoia de que matou alguém e que precisa se
lembrar constantemente de que não matou. O verso que inspirou o nome do último episódio
da série, “With open eyes”, é o seguinte: “Ghastly, with open eyes, he attends, blind.” Foi,
também, o que me inspirei para escrever.
Na primeira versão, descrevi o homem na cadeira como alguém que não lembra com
clareza dos eventos de sua vida e, como consequência, quem lê também não pode ter clareza.
Aqui tentei aplicar bastante o conceito de gozo no texto, como colocado por Castello Branco.
No entanto, ficou uma narrativa confusa. Em seu comentário, a PED apontou que o que
motiva não estava claro. Sendo assim, na reescrita tentei construir uma narrativa com
elementos estruturais tradicionais.
Em um dos últimos episódios da série, no funeral de Logan, seu irmão, com quem ele
se desentendia há anos, faz um discurso. Baseei-me no seguinte trecho para fazer as
alterações:

A four year old and a five and a half year old speaking with our eyes. (...) I
loved him, I suppose, and I suppose some of you did too, in whatever way he would
let us and we could manage. But I can’t help but say he has wrought some of the
most terrible things.

Utilizei, então, a relação entre irmãos para construir um plano de fundo sobre as relações que
o homem tem na infância e que repete, depois, com seus filhos. Além disso, também o “falar
com olhos” como o símbolo de entender o outro, coisa que ele não faz ao fim do conto.

Exercício 11
No exercício 11, devíamos fazer um diálogo com uma obra literária bem conhecida.
Escolhi “A paixão segundo G.H.”, de Clarice Lispector. Fiz isso através da barata e da
psicóloga chamando o eu-lírico de G.H.
Apesar de, novamente, ter usado estrofes de quatro versos, quis utilizá-los para
demonstrar que a experiência se iniciou de forma comum e pouco inspirada. No encontro
com a barata destroçada, desaparecem as estrofes e as rimas, para indicar um acontecimento
desordenado e caótico. Comparado à Lispector, não considerei que minha escrita chegou nem
perto de seus estilo catártico, mas considerei que atendeu ao que foi pedido.

Exercício 12
Como este exercício propunha a escrita a escrita teatral, fiquei bem insegura, pois não
costumo ver peças de teatro e, muito menos, ter contato com roteiro teatral. Para escrever eu,
honestamente, apenas segui me instintos. Tive a ideia a partir de um sonho, novamente.
Escrevi o texto me imaginando como alguém na platéia: o que eu gostaria de ver, o
que eu entenderia, com uma linguagem informal. Temo que talvez o roteiro tenha ficado mais
parecido com que seria feito para a televisão, mas, para o que foi possível fazer, achei
interessante.

Exercício 13
Para fechar o conjunto de textos, quis fazer algo “agridoce”: um fim que não é feliz,
mas que dá brecha para um vislumbre de melhoria. Me inspirei em uma música que, para
mim, simboliza isso, chamada “Garden Song”, da compositora Phoebe Bridgers. Em especial,
no trecho:

Someday, I'm gonna live


In your house up on the hill
And when your skinhead neighbor goes missing
I'll plant a garden in the yard then

Com isso, há um jardim que cresce a partir de algo negativo. Optei por escrever o
último texto de forma fluida e direta.

Conclusão
Conforme T.S. Eliot propôs em “Tradição e talento individual”, durante a disciplina
TL151/252, observei que a produção de escrita poética se trata muito pouco, sobre os
sentimentos e experiências pessoais do escritor. Se se tratasse apenas desses elementos, eu
certamente teria produzido grandes obras esse semestre. No entanto, foi tranquilizante
enxergar a escrita como prática e estudo, em vez de talento nato. Foi mais tranquilizante
ainda poder observar o que Eliot propõe com os exercícios, dos quais tive mais sucesso
quando pude reescrever e pesquisar referências e exemplos.
Com a experiência prática, pude, também, diagnosticar os pontos que precisam ser
revisados. Para mim, em especial, há a questão de estudo de estruturas e formas de gêneros
literários, além de estudos sobre versificação. Sobretudo, conclui que para praticar a escrita
poética é necessário todo o tipo de leitura. De forma análoga à Eliot, a autora Elena Ferrante,
em seu ensaio “Histórias, Eu” (2023), coloca que:
(...) escrever é, a cada vez, entrar em um cemitério infinito no qual cada tumba
espera para ser profanada. Escrever é acomodar-se em tudo que já foi escrito – a
grande literatura e a literatura de consumo, se for útil, o romance-ensaio e o
melodrama – e, dentro do limite da própria vertiginosa e abarrotada individualidade,
tornar-se, por sua vez, escrita. (FERRANTE, 2023, p.81-82)

REFERÊNCIAS
BERRYMAN, John. Dream Song 29. In.: poets.org
CASTELLO BRANCO, Lúcia. O que é escrita feminina. 1ª ed., Editora Brasiliense, São
Paulo: 1991.
CESAR, Ana Cristina. A teus pés. 5° reimpressão, 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras,
2016.
CHIANG, Ted. Story of your life. In.: Stories of your life and others. Tor, 2005.
CIXOUS, Hélène. O riso da Medusa. 1ªed., Bazar do Tempo, Rio de Janeiro: 2022.
FERRANTE, Elena. Histórias, Eu. In.: As margens e o ditado: sobre os prazeres de ler e
escrever. 1ª ed., Intrínseca, Rio de Janeiro: 2023.
GAIMAN, Neil. Nicholas was…In. Smoke and Mirrors, Headline Book Publishing, London:
2005.
HILST, HILDA. Exercícios. 1ª ed., MEDIAfashion, São Paulo: 2012.
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. 1ª ed., Editora Rocco, Rio de Janeiro: 1998.
MARTIN, Laura. Succession: read Ewan Roy’s revelatory funeral eulogy in full. Culture,
Esquire, 22 de mai. 2023.
TECIDOS
Lina Telles
I.
Enquanto leio meus textos estão cobertos. É difícil encontrá-los no meio da vergonha
das palavras. Então coloco mais uma camada de roupa por cima do meu seio.

II.
Enquanto escrevo vou me despindo. É fácil porque está muito calor não estou nem
pensando. Então bato o olho em meus seios e sinto o constrangimento de estar mexendo
com algo sujo.

III.
Enquanto me visto de novo paro para olhar no espelho. É curioso perceber que uma
blusa que uso não se molda a mim da forma como esperava. Ela cobre, mas descobre o
necessário – ela realça os seios e mostra sem mostrar. Então eu pego a caneta para dizer
sem dizer.
Tenho vestido
roupas piores.
Melhores
Só as de agora:
Blusa tão fina
Tão apropriada
Que se serve
Também não é pena
Ser bem usada.

Não servir não há perigo.


Mal usada nem consigo.
É pena servir
Se serve
Sem você ver?
É pena ser bem usada
Em quem a usa
Somente
Para o seu olhar?

Tenho a vestido
Porque de amor
Tenho vivido.
Amor de tanta vontade
Amor tão ávido
Que se quisesse
Tudo encontraria
Para por você ser cobiçada.
Seu corpo forte e macio
– Seu corpo elegante
Quero usá-lo em mim
como quem usa um casaco.

Na falta de você
Uso mesmo seu casaco
que você emprestou
e eu que não devolvi.

Quero sentir cada centímetro.


Usá-lo do avesso e de cabeça para baixo
Usá-lo como calça e como bandana.
Quero cheirá-lo e colocar nele meu próprio perfume.

Quero usá-lo para limpar minhas sujeiras


e ver se ele aguenta.
Quero usá-lo como travesseiro enquanto choro
e ver se ele absorve.

Quero rasgá-lo, estragá-lo permanentemente


E depois fazer o mesmo com todas as suas roupas,
Pois assim te amo: desnudo até o osso
Depois te dou as minhas.
Ela teve um calmo período, mas era impossível evitar: voltou a sentir seu corpo ser puxado
de dentro para fora, como uma meia usada sendo reutilizada. Primeiro saem seus órgãos
internos, como o bico da meia: seu coração batendo desenfreado, seu pulmão arquejando
como estrangulado, seu intestino se desembola e se arrasta como uma corda. Eles puxavam
seus tecidos dos pés à cabeça e ela se sentia envelopada dentro de si mesma. Ficavam
aparentes sua pele viva, vermelha carmesim, seus músculos esticados e duros, suas veias. O
cérebro quando exposto se desfazia como um macarrão, levando a um grito estrangulado pela
troca de boca e garganta; levando a um grito desesperado pela incompreensão da realidade.
As pupilas dos olhos dentro obrigadas a encarar a deformação de dentro. Ela estava do
avesso. Você ainda ama o que você não consegue ver?
Ela, quando viu seu bebê pela primeira vez,
Reconheceu um movimento que ele fez
Ele fazia assim dentro dela também.
Ela o tem como um membro em desvantagem.

A verdade é não se sabe onde ele começa


e onde ela termina. Como uma convalescença
que liga ela à própria mãe, e à mãe da mãe
que liga à irmã e a todos os irmãos de irmãos.

E assim vão todos conectados


por extremidades que tocam lugares indefinidos
como linhas de um tecido que se costura.
Os retalhos diferentes em total mistura.

Ele se estica, dobra e se embola


Às vezes do avesso a todos ele coloca
E o seu bebê pode se sentir de dentro para fora
Como ela já, tantas vezes. Mas por alguma extremidade o apara.
Corpo Humano do Avesso Capa dura – 14 agosto 2013

O que tem embaixo da sua pele?


Na configuração da espécie humana, formado por cabeça, tronco e membros.
O corpo humano do avesso é formado por vários sistemas
envolve órgãos que atuam para manter as funções vitais e perfeitas.

Na metáfora do corpo como pura matéria,


é casa daquilo que somos.
O corpo nos é mais proximamente dado, em nossa existência.
O ser humano é antes de tudo corpo.

O corpo humano é caracterizado como vivido, experienciado,


o dar-se da coisa acontece na experiência.
Experiência que deixa rastros a serem observados e continuados.
O reconhecimento da potencialidade define a vida humana
que não segue um fluxo de sobrevivência

É socialmente que os corpos ganham sentido,


o vestuário relacionando-se diretamente com os próprios corpos.
As dimensões do interior dos produtos, denominadas “avesso”
não se limitam apenas ao conforto físico e visual, mas também
ao conforto moral e emocional do usuário.

Um corpo para o outro,


os indivíduos podem escolher entre construir e reconstruir seus corpos como bem desejarem.
Fetichistas sexuais focavam o vestuário como objetos de desejo em si,
transferindo para eles suas relações com a pessoa amada
– revela elementos ocultos do avesso do objeto.
Meu estômago também
está oco
desta terra congelada da floresta
comemos litros de neve
O selvagem está próximo
assumido como o essencial
pouso a mão no seu braço
prato principal no convivium
desta cabeceira
hoje sou eu que
estou tirando de você
todo seu avesso
Com os olhos abertos, ele senta em sua cadeira. Seus dedos agarram sua coxa e às vezes ele
força os pulsos, tensionando-os. Ele sempre pensa em tudo. Tudo que é seu, já faz um tempo.
Quanto tempo?

Quando ele e seu irmão eram crianças, podiam perceber quando o tio ficava furioso apenas
pelo olhar dele. Assim eles desenvolveram também entre si uma linguagem entre olhares,
quando falar, quando não, enfim. Para sobreviver com o tio, às vezes eles tinham que
machucar um ao outro, cachorros brigando para provar qual é o mais forte. Pelos olhares, no
entanto, eles sabiam que tudo estava bem.

O engraçado é que o tio já morreu há uns cinquenta anos. E ele se recusa a ver o irmão há
praticamente cinquenta anos. Machucados incuráveis, diferenças irreconciliáveis. Certamente
se esqueceram da linguagem desenvolvida.

Algo estranho se instalava dentro dele, um peso imenso, que não poderia ser levantado
nunca em sua vida, nem se ele tivesse mais cem anos. Aliás, quantos anos mais?

A verdade é que uma hora alguém precisa vencer a luta, e para isso, você tem que desviar o
olhar para dar o golpe fatal. Decerto ele perdeu os olhos que tinha quando criança.

Alguém bate na porta.

- Senhor, seu filho Ângelo está aqui. Ele está muito nervoso, quer falar sobre a nomeação do
irmão como presidente da empresa. Ele disse que se não deixá-lo entrar vai ser pior.

Ele senta em sua cadeira, com os olhos abertos. Abertos ao avesso, cegos para fora.

- Diga que não tenho nada para conversar. Se ele quiser pode falar com os advogados.
A clínica da minha terapeuta
tem uma gata de estimação.
Vive como uma selvagem senhorita.
Invejável estado de semi-domesticação.

Às vezes ela está lá em sua própria psique,


esticada no divã sem interesse.
Psi psi psi, gatinha, vem aqui.
Psicolepsia na psicanálise.

Um dia cheguei mais cedo.


Sentada na sala de espera,
chegou ela com o andar obstinado
e com inusitado olhar facínora.

Do outro lado do cômodo vazio


tirou dos dentes a sua presa.
Confortável com sua escolha de homizio,
mostrou-me como uma caçadora virtuosa.

Era uma barata, destroçada.


A dentada foi mais que brutal.
Como se pelo avesso foi fisgada,
o que saía era quase rudimental.

De alguma forma o canino


empurrou a superfície crocante.
Pedaços estourados de algo obsceno
Uma gosma branca saindo proeminente.

Nunca havia visto uma por dentro


Recuei inundada por tremendo asco
mas o plasma esbranquiçado puxava um outro –
eu ser primal fascinado pelo escatológico.

Me vi refletida nos olhos felinos


Meu próprio olhar indomesticado.
O avesso rompido da barata meu próprio íntimo
Vestia uma fantasia de pele
para cobrir minha abominação inata
Todo o teatro da vida para esconder
o interior pegajoso sim e horroroso sim
mas o material essencial que espreita assim
derramando-se de repente como se aberta uma fenda
levando-me a tocar o mais cru da existência
como se ah! agora entendi, entendi
sou um boneco com um forro de matéria escura e-

“GH, estou pronta, vamos entr- Ah, nossa, que nojo,


perdão, às vezes ela traz essas coisas pra dentro, mesmo.
Vou limpar. Você pode ir entrando.”

A gata parou de me encarar e saiu rapidamente.


Eu pisquei para a barata uma vez.
“Ah, imagina. Essa coitada não deu sorte.”
“Pois é, mas a gata deve ter trazido pra você, talvez.”

Enfim, eu nem tinha muito para falar naquela sessão.


(Duas mulheres. A sentada em uma cadeira de escritório olhando para o computador
sob a escrivaninha tem cabelo castanho e é a Mulher 1. A outra, ruiva, sentada em uma
cama lendo, é a Mulher 2.)

Mulher 1: Aí, viu aquele negócio novo de robô? Lina o nome.

Mulher 2: Ah, aham, tipo Alexa, né? Não pego muito a brisa dessas coisas, não.

Mulher 1: É, mas essa aqui é diferente. Mais elaborada.

Mulher 2: Pois é.

(Mulher 2 balança a cabeça em sinal de concordância, levanta a sobrancelha e abaixa as


pontas dos lados – uma expressão “Interessante mas não ligo muito”.)

Mulher 1: Ó, vou botar o vídeo.

(Mulher 2 não levanta a cabeça da sua leitura.)

(L1N4 entra no palco, com as luzes apagadas, e se posiciona no meio do palco com a
cabeça baixa. Tem a aparência de uma mulher em seus 20 anos, com cabelo ruivo. As
luzes se focam apenas nela e ela levanta a cabeça, sorrindo para o público.)

L1N4: Olá, eu sou a L1N4, um dispositivo pré-programado, capaz de realizar atividades


autônomas. Fui desenvolvida pelas grandes mentes da empresa de tecnologia Capital Earth.
Mas, se você preferir, eu sou seu mais novo robô e você pode me chamar de Lina. Minha
função é ser exatamente o que você espera de mim! (Aponta para o público) Posso ser a
filha que você sonha que se torne médica. Posso ser a melhor nadadora do seu clube. Posso
ser a pesquisadora mais produtiva da sua instituição de ensino. 100% de certeza de realização
por apenas 20 mil dólares. Eu tenho uma garantia de 6 meses e posso ser devolvida nesses
casos: problemas com a recarga de energia, baixo desempenho nas atividades programadas
e/ou recusa em realizar as atividades. Maus cuidados comigo não justificam a devolução,
como: vírus, falta de atenção e sobrecarga do sistema. Para isso, procure técnicos licenciados.

(Luzes sobre L1N4 se apagam e voltam a iluminar as mulheres.)

Mulher 2: Hmm, e será que presta mesmo?

Mulher 1: Deixa eu ver alguns comentários aqui.

(Luzes se apagam. Alguém sentado na plateia se levanta e um holofote a ilumina)

Tatiana M.: Comprei uma Lina pra mim um tempo atrás… Funcionava muito bem, mas nos
últimos meses tem dado muito problema. Comprei e programei pra ser uma filha bem
sucedida e organizada, mas só consegui que ela funcionasse parcialmente. Vi tutoriais e
consegui com que ela se dedicasse aos estudos, mas ela nem sempre dá conta de tudo. Além
disso, incapaz de fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo, tipo estudar e ser organizada.
Seu ambiente está sempre bagunçado, com arquivos todos espalhados. Não é atoa que não
funciona com tudo revirado do avesso. O pior é que passou do meu tempo de garantia e estou
tendo que gastar horrores com conserto, psicólogo e psiquiatra e mais um monte de coisinhas
que eles pedem para fazer a reforma.

Unigamp.: Obtivemos uma dessas para a nossa instituição. Certamente prometeu mais do que
cumpriu. Ela não tem um funcionamento integral e, especialmente nos últimos meses, está
completamente viciada em bateria, não conseguindo realizar a maioria das tarefas por
completo, que dirá com a qualidade esperada. Já houve até momentos de recusa completa do
sistema em fazer determinadas ações, um funcionamento totalmente do avesso às tecnologias
de última linha. Levamos aos técnicos e diagnosticaram como “sobrecarga de sistema”. Bom,
é um sistema que aguenta muito menos do que precisamos, então.

(Iluminação volta para palco com as duas mulheres.)

(Mulher 2 enfim levanta e se aproxima para ver a tela do computador.)

Mulher 1: Pff, coitada.

(Mulher 1 se vira para olhar amiga e de novo para tela.)

Mulher 1: Haha, parece até um pouco com você.

(Mulher 2 encara a robô, sua expressão neutra. Então pisca e se afasta novamente, com
um sorriso sem graça.)

Mulher 1: Ha, é só um robô.

(Luzes se apagam.)
Eu comecei a fazer um jardim
já há um tempo
Não quis pesquisar como
Quão difícil pode ser?
Crescer uma flor
Passei muitos e muitos meses
Plantando plantando
e nada cresceu.
Desisti e nem fui mais no jardim
Odiava olhar para ele
Um dia chamei ela para ir em casa
Ela viu o jardim e perguntou onde estão as flores
Eu disse que nunca consegui fazer crescer
Num outro dia ela trouxe uma mudinha
e me ensinou a plantar
Engraçado é que eu estava plantando
as flores ao avesso
Folhas no chão encharcadas
Raíz para o alto completamente seca
Contei isso e ela riu
Nada pode crescer assim
É, acho que não
Mas agora você sabe o que fazer
Sim, acho que sim.

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