Crítica de Marx ao Estado e sua autonomia e ao status da cidadania
Glosas Críticas (1844)
Na medida em que a burguesia inglesa admite que o pauperismo é uma responsabilidade da política, o Whig considera o Tory e o Tory o Whig a causa do pauperismo. Segundo o Whig, o monopólio da grande propriedade fundiária e a legislação protecionista contra a importação de cereais são a fonte principal do pauperismo. Segundo o Tory, todo o mal reside no liberalismo, na concorrência, no exagerado desenvolvimento industrial. Nenhum dos partidos encontra a causa na política em geral; ao contrário, cada um deles a encontra na política do partido adversário; porém, ambos os partidos sequer sonham com uma reforma da sociedade. Pg 48 Como se vê, a Inglaterra tentou acabar com o pauperismo primeiramente através da assistência e das medidas administrativas. Em seguida, ela descobriu, no progressivo aumento do pauperismo, não a necessária consequência da indústria moderna, mas antes o resultado do imposto inglês para os pobres. Ela entendeu a miséria universal unicamente como uma particularidade da legislação inglesa. Aquilo que, no começo, fazia-se derivar de um excesso de assistência. Finalmente, a miséria é considerada como culpa dos pobres e, desse modo, neles punida. Pg 53-4 […] o pauperismo foi configurando-se como uma instituição nacional e chegou por isso, inevitavelmente, a ser objeto de uma administração ramificada e bastante extensa, uma administração, no entanto, que não tem mais a tarefa de eliminá-lo, mas, ao contrário, de discipliná-lo e eternizá-lo. Pg 54 Porém, por mais que os Estados tivessem se ocupado do pauperismo, sempre se ativeram a medidas de administração e de assistência, ou, ainda mais, desceram abaixo da administração e da assistência. Pode o Estado comportar-se de outra forma? O Estado jamais encontrará no “Estado e na organização da sociedade” o fundamento dos males sociais. Pg 58 Onde há partidos políticos, cada um encontra o fundamento de qualquer mal no fato de que não ele, mas o seu partido adversário, acha-se ao leme do Estado. Até os políticos radicais e revolucionários já não procuram o fundamento do mal na essência do Estado, mas numa determinada forma de Estado, no lugar da qual eles querem colocar uma outra forma de Estado. Pg 58-9 O Estado e a organização da sociedade não são, do ponto de vista político, duas coisas diferentes. O Estado é o ordenamento da sociedade. Quando o Estado admite a existência de problemas sociais, procura-os ou em leis da natureza, que nenhuma força humana pode comandar, ou na vida privada, que é independente dele, ou na ineficiência da administração, que depende dele. Pg 59 O Estado não pode eliminar a contradição entre função e a boa vontade da administração, de um lado, e os seus meios e possibilidades, de outro, sem eliminar a si mesmo, uma vez que repousa sobre essa contradição. Ele [o Estado moderno]repousa sobre a contradição entre vida pública e privada, sobre a contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares. Por isso, a administração deve limitar-se a uma atividade formal e negativa, uma vez que exatamente lá onde começa a vida civil e o seu trabalho, cessa o seu poder. Mais ainda: frente a consequências que brotam da natureza antissocial dessa vida civil, dessa propriedade privada, desse comércio, dessa indústria, dessa rapina recíproca das diferentes esferas civis, frente a essas consequências, a impotência é a lei natural da administração. Pg 60 Se o Estado moderno quisesse acabar com a impotência de sua administração, teria que acabar com a atual vida privada. Se ele quisesse eliminar a vida privada, deveria eliminar a si mesmo, uma vez que ele só existe como antítese. Por isso, o Estado não pode acreditar na impotência interior da sua administração, isto é, de si mesmo. Ele pode descobrir apenas defeitos formais, casuais, da mesma e tentar remediá-los. Pg 61 quanto mais poderoso é o Estado e, portanto, quanto mais político é um país, tanto menos está disposto a procurar no princípio do Estado, portanto no atual ordenamento da sociedade, do qual o Estado é a expressão ativa, autoconsciente e oficial, o fundamento dos males sociais e a compreender-lhes o princípio geral. O intelecto político é político exatamente na medida em que pensa dentro dos limites da política. Quanto mais agudo ele é, quanto mais vivo, tanto menos é capaz de compreender os males sociais. […]. O princípio da política é a vontade. Quanto mais unilateral, isto é, quanto mais perfeito é o intelecto político, tanto mais ele crê na onipotência da vontade e tanto mais é cego frente aos limites naturais e espirituais da vontade e, consequentemente, tanto mais é incapaz descobrir a fonte dos males sociais. Pg 62 Tão falso é que a miséria social gere o intelecto político, como mais verdadeiro é antes o contrário, isto é, que o bem-estar social gera o intelecto político. O intelecto político é um espiritualista e é concebido a quem já possui e desfruta das comodidades. Pg 73 Sobre a questão judaica (1843) Os judeus alemães almejam a emancipação. Que emancipação almejam? A emancipação cidadã, a emancipação política. Pg 33 A emancipação política em relação à religião não é a emancipação já efetuada, isenta de contradições, em relação à religião, porque a emancipação política ainda não constitui o modo já efetuado, isento de contradições, da emancipação humana. Pg 38 Porém, o comportamento do Estado, principalmente do Estado livre, para com a religião nada mais é do que o comportamento das pessoas que compõem o Estado para com a religião. […]. Decorre, por fim, que, mesmo proclamando-se ateu pela intermediação do Estado, isto é, declarando o Estado ateu, o homem continua religiosamente condicionado, justamente porque ele só reconhece a si mesmo mediante um desvio, através de um meio. Pg 39 O Estado anula a sua maneira a diferenciação por nascimento, estamento, formação e atividade laboral ao declarar nascimento, estamento, formação e atividade laboral como diferenças apolíticas, ao proclamar cada membro do povo sem consideração dessas diferenças, como participantes igualitários da soberania nacional, ao tratar todos os elementos da vida real de um povo a partir do ponto de vista do Estado. Não obstante, o Estado permite que a propriedade privada, a formação, a atividade laboral atuem a maneira delas, isto é, como propriedade privada, como formação, como atividade laboral, e tornem efetiva a sua essência particular. Longe de anular essas diferenças fáticas, ele existe tão somente sob o pressuposto delas, ele só se percebe como Estado político e a sua universalidade só se torna efetiva em oposição a esses elementos próprios dele. Pg 40 O Estado político pleno constitui, por sua essência, a vida do gênero humano em oposição à sua vida material. Todos os pressupostos dessa vida egoísta continuam substituindo fora da esfera estatal na sociedade burguesa [...]. Onde o Estado político atingiu a sua verdadeira forma definitiva, o homem leva uma vida dupla não só mentalmente, na consciência, mas também na realidade, na vida concreta; ele leva uma vida celestial e uma vida terrena, a vida na comunidade política, na qual ele se considera um ente comunitário, e a vida na sociedade burguesa, na qual ele atua como pessoa particular, encara as demais pessoas como meios, degrada a si próprio à condição de meio e se torna um joguete não mão de poderes estranhos a ele. Pg 40 Na sua realidade mais imediata, na sociedade burguesa, o homem é um ente profano. Nesta, onde constitui para si mesmo e para outros um indivíduo real, ele é um fenômeno inverídico. No Estado, em contrapartida, no qual o homem equivale a um ente genérico, ele é o membro imaginário de uma soberania fictícia, tendo sido privado de sua vida individual real e preenchido com uma universalidade irreal. Pg 40-1 A emancipação política de fato representa um grande progresso; não chega a ser a forma definitiva da emancipação humana dentro da ordem mundial vigente até aqui. Que fique claro: estamos falando aqui de emancipação real, de emancipação prática. Pg 41 […] isto quer dizer, portanto, que o direito humano à liberdade deixa de ser um direito assim que entra em conflito com a vida política, ao passo que pela teoria a vida política é tão somente a garantia dos direitos humanos, dos direitos do homem individual e, portanto, deve ser abandonada assim que começa a entrar em contradição com os seus fins, com esses direitos humanos. Porém, a práxis é apenas a exceção, a teoria é a regra. Pg 51 Ideologia alemã 1845-6 A essa propriedade privada moderna corresponde o Estado moderno, que, comprado progressivamente pelos proprietários privados por meio dos impostos, cai plenamente sob o domínio destes pelo sistema de dívida pública, e cuja existência, tal como se manifesta na alta e na baixa dos papéis estatais na bolsa, tornou-se inteiramente dependente do crédito comercial que lhe é concedido pelos proprietários privados, os burgueses. Pg 75 A atitude do burguês para com as instituições de seu regime é como a atitude do judeu para com a lei; ele as transgride sempre que isso é possível em cada caso particular, mas quer que todos os outros as observem. Pg 181 O capital 1 1867 A dívida pública torna-se uma das alavancas mais poderosas
da acumulação primitiva. Como com um toque de
varinha mágica, ela infunde força criadora no dinheiro improdutivo
e o transforma, assim, em capital, sem que, para
isso, tenha necessidade de se expor aos esforços e riscos inseparáveis
da aplicação industrial e mesmo usurária. Na
realidade, os credores do Estado não dão nada, pois a
soma emprestada se converte em títulos da dívida, facilmente
transferíveis, que, em suas mãos, continuam a funcionar
como se fossem a mesma soma de dinheiro vivo.
Porém, ainda sem levarmos em conta a classe de rentistas
ociosos assim criada e a riqueza improvisada dos financistas
que desempenham o papel de intermediários entre o
governo e a nação, e abstraindo também a classe dos
coletores de impostos, comerciantes e fabricantes privados,
aos quais uma boa parcela de cada empréstimo estatal
serve como um capital caído do céu, a dívida pública impulsionou
as sociedades por ações, o comércio com papéis
negociáveis de todo tipo, a agiotagem, numa palavra: o
jogo da Bolsa e a moderna bancocracia. Pg 824-5
Como a dívida pública se respalda nas receitas estatais,
que têm de cobrir os juros e demais pagamentos anuais
etc., o moderno sistema tributário se converteu num complemento
necessário do sistema de empréstimos públicos.
Os empréstimos capacitam o governo a cobrir os gastos extraordinários
sem que o contribuinte o perceba de imediato,
mas exigem, em contrapartida, um aumento de impostos.
Por outro lado, o aumento de impostos, causado pela
acumulação de dívidas contraídas sucessivamente, obriga
o governo a recorrer sempre a novos empréstimos para
cobrir os novos gastos extraordinários. O regime fiscal
moderno, cujo eixo é formado pelos impostos sobre os
meios de subsistência mais imprescindíveis (portanto, pelo
encarecimento desses meios), traz em si, portanto, o germe
da progressão automática. A sobrecarga tributária não é,
pois, um incidente, mas, antes, um princípio. Razão pela
qual na Holanda, onde esse sistema foi primeiramente aplicado,
o grande patriota de Witt o celebrou em suas máximas
como o melhor sistema para fazer do trabalhador assalariado
uma pessoa submissa, frugal, aplicada e... sobrecarregada
de trabalho. A influência destrutiva que esse sistema
exerce sobre a situação dos trabalhadores
assalariados importa-nos aqui, no entanto, menos que a
1005/1493
violenta expropriação do camponês, do artesão, em suma,
de todos os componentes da pequena classe média. Sobre
isso não há divergência, nem mesmo entre os economistas
burgueses. Sua eficácia expropriadora é ainda reforçada
pelo sistema protecionista, uma de suas partes integrantes.
O grande papel que a dívida pública e o sistema fiscal
desempenham na capitalização da riqueza e na expropriação
das massas levou um bom número de escritores,
como Cobbett, Doubleday e outros, a procurar erroneamente