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A r t i go de atualização

O Vitalismo Homeopático ao
Longo da História da Medicina
Homeopathic Vitalism along the History of Medicine

MARCUS ZULIAN TEIXEIRA

m
Unitermos: História da medicina, Homeopatia, Filosofia homeopática, Energia
vital,Vitalismo.

I NTRODUÇÃO dos cinco elementos” (água, terra, fogo, madeira


e metal), os chineses classificaram os órgãos, as
Nas civilizações primevas (assírio-babilônica,
vísceras e as patologias que os acometiam,
egípcia, iraniana, etc.), a Medicina esteve envolta
surgindo daí uma terapêutica energética
por um caráter místico-religioso, sendo
(acupuntura, moxabustão e fitoterapia), que era
praticada por guias espirituais (sacerdotes,
utilizada para reequilibrar a força vital (chi ou
magos, pajés, etc.) e estando as doenças
tsri) que circulava nos meridianos ou canais de
relacionadas a um castigo enviado pelos deuses,
energia do corpo físico.1
como forma de punição aos homens pecadores.1
Na Índia Antiga, formada pela fusão
Apesar de, em épocas mais remotas, a China
da civilização nativa do Vale do Indo
apresentar um sistema médico com
(3000 a.C.) com a civilização ária do
fundamentos religiosos e teológicos, a partir do
Indostão (Irã) em 1500 a.C., surge uma
século V a.C., a medicina chinesa incorporou a
medicina com “orientação cósmica”
“teoria cosmológica” de Tseu-Yen (336-280 a.C.).
(estequiologia), semelhante à cultura chinesa.
Essa teoria trazia a noção de um “elemento
Esse novo conceito de medicina estava
cósmico”, um “princípio material-energético”,
embasado em “cinco elementos primários
que passou a fundamentar também a Física, a
materiais-energéticos” (mahabhuta), dos quais
Alquimia e a Fisiologia. Seguindo essa “teoria
merecem destaque: o tridhâtu (três dhâtu ou

Médico Homeopata e Pesquisador do Serviço de Clínica Geral do Hospital das Clínicas


da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Trabalho apresentado no VII Congresso Brasileiro de História da Medicina, realizado em Ribeirão Preto (SP), em novembro de 2002.

Homeopat. Bras., 8(2): 109-123, 2002 


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elementos biológicos); o vento, sob a forma de outras, norteando os diagnósticos e as


sopro ou hálito vital (prâna); o fogo, sob a terapêuticas exercidas pelas mesmas.1
forma de bílis (pitta) e a água, sob a forma de Discorrendo sobre o pensamento médico
muco ou pituita (kapha ou shleshman). vitalista, encontra-se Erasistrato na medicina
Derivando-se dos exemplos de medicina empírica (Alexandria, Egito); Galeno na medicina
anteriormente apresentados, o sistema romana; Rhazes na medicina árabe; Paracelso na
estequiológico da medicina hindu, o Âyurveda, medicina renascentista; Sydenham, van Helmont,
distingue “sete elementos orgânicos” (suco Stahl, von Haller, Brown, Boerhaave e Mesmer
fundamental, sangue, carne, gordura, osso, na medicina pós-renascentista;Virchow, Claude
medula e esperma), envoltos pela “quintessência Bernard e outros no século XIX.1
ou fluido vital” (ojas), que lhes confere o vigor Ao final do século XVIII, Samuel
e a vida. Com base nesses conceitos, descritos Hahnemann utiliza a teoria vitalista como
nos Vedas (Sushruta e Caraka), eram explicadas suporte filosófico ao seu método científico e
todas as atividades e vicissitudes do organismo. experimental de tratar as enfermidades, ao qual
Apesar dessa concepção “física-estequiológica”, chamou Homeopatia (similia similibus curentur).2,3
a enfermidade englobava também as No século XIX, o modelo mecanicista e o
concepções religiosa e moral.1 cartesiano tomam vulto, substituindo o
Com Hipócrates, na Grécia Antiga, a modelo vitalista até então operante. Apoiada
Medicina adquiriu o status de Ciência, nessa forma de encarar as causas das
apresentando um corpo doutrinário enfermidades, a Medicina do século XX
específico, incluindo-se a história clínica, o abandona a concepção vitalista, dedicando-se
exame físico, a classificação e o prognóstico às ciências exatas.
das doenças e a utilização de medidas Neste trabalho, estuda-se a natureza
higieno-dietéticas como prática terapêutica. imaterial do homem, segundo as principais
Aceitava-se uma natureza imaterial no escolas médicas da Antigüidade, a fim de se
homem (vis medicatrix naturae), unida traçar analogias com as principais características
substancialmente ao corpo físico, que da força vital hahnemanniana e de se visualizar
regulava, instintivamente, todas as funções as diversas correntes que podem ter
fisiológicas do organismo e, ao se influenciado Hahnemann na elaboração de seu
desequilibrar, permitia o desenvolvimento das modelo vitalista.
doenças orgânicas. Além dessa constituição
D ESENVOLVIMENTO
energética, aceitava-se a existência de outras
entidades imateriais superiores (psyché, thumos,
Medicina Grega – Hipócrates
alma, nous, etc.) relacionadas às emoções, à
inteligência e à essência espiritual humana, Libertando a Medicina Antiga do misticismo
com ascendência sobre a vis medicatrix.1 mágico-religioso, Hipócrates converteu-a em
Pela enorme influência que Hipócrates Ciência, desenvolvendo a inspeção e a
exerceu na Medicina até o século XIX, a observação do paciente, o registro fidedigno das
existência de um princípio ou força vital histórias clínicas e promovendo a primeira
(vitalismo) era discutida em todas as escolas diferenciação sistemática das enfermidades. O
médicas, sendo aceita por umas e contestada por modelo hipocrático concentrava-se no

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diagnóstico e no prognóstico das doenças, menos, impedia-se que os doentes fossem


faltando ao mesmo um sistema terapêutico bem submetidos aos tratamentos mal concebidos e
estruturado, utilizando, na maioria das vezes, venenosos daquela época, que matavam mais
medidas higiênicas como dietas, repouso, do que curavam: primo non nocere.1,5
exercícios, banhos e massagens. Além disso, esse Um médico da escola hipocrática possuía
modelo empregava também ventosas, conhecimentos de Fisiologia e Patologia,
medicamentos eméticos e purgativos, com o baseados na Teoria dos Quatro Elementos e na
intuito de expulsar a matéria doentia (materia Teoria dos Humores Orgânicos,
peccans) do organismo. Na terapêutica, recorria respectivamente. O corpo humano seria
ao princípio dos contrários (contraria contrariis) e constituído por quatro elementos (ar, terra, água
ao princípio dos semelhantes (similia similibus), e fogo), estando o equilíbrio fisiológico do
atuando “contra a causa e contra o princípio da organismo relacionado à distribuição desses
causa”, respectivamente. Buscando a elementos. Quanto aos humores, Hipócrates, no
individualização do tratamento, procurava livro “Da natureza”, cap. IV, afirma que “o
abranger a totalidade do organismo (e não corpo do homem tem em si sangue, pituita, bile
apenas a parte enferma), observando que, desse amarela e bile negra”, constituindo-se esses “a
modo, aumentava a “eficácia da dynamis natureza de seu corpo e por meio destes sente a
terapêutica do remédio.”14 dor ou goza saúde”. Hipócrates faz a relação da
A idéia de uma “natureza universal”, constituição orgânica aos quatro humores e aos
“princípio cósmico universal”, “natureza quatro elementos, atribuindo a doença ao grau
particular”, “força vital”, “vis medicatrix” ou de desequilíbrio entre eles: coração-sangue-
“physis”, que impregnava todas as coisas e todos calor; cérebro-pituita-frio; fígado-bile amarela-
os seres do Universo, surge com os pensadores seco; baço/estômago-bile negra-umidade.
pré-socráticos, fazendo parte da linha mestra do A luta entre a força vital natural
pensamento médico greco-hipocrático.1,5 (preservadora do equilíbrio orgânico) e a
Entre as inúmeras contribuições para a desarmonia dos humores corporais (doenças)
Medicina, Hipócrates demonstrou que a origina a crise (crisis), que representa o esforço
doença é um processo natural, sendo seus em busca da saúde. Dentro da patologia
sintomas reações do organismo à enfermidade, hipocrática, classificavam-se vários tipos de
atribuindo ao médico o papel de ajudar as doenças, de acordo com seus sintomas
forças defensivas naturais do organismo (vis principais: doenças do aparelho respiratório,
medicatrix) a combatê-los. Acreditando no doenças do trato intestinal, doenças do sistema
poder da physis ou força vital orgânica (vis nervoso, etc.
medicatrix) em restabelecer a saúde perdida – Apesar de atribuir à physis, força vital ou vis
associando a deficiência de uma terapêutica medicatrix um poder limitado no combate às
específica que pudesse estimular esse princípio doenças, por ser “ignorante e não instruída”
vital no sentido da cura – os médicos (diferenciando-a do poder inteligente, alma ou
hipocráticos limitavam-se a afastar os espírito), a atitude terapêutica dos médicos
impedimentos à recuperação da saúde, dando hipocráticos limitava-se a auxiliar a natureza nos
ao corpo (força vital) toda a ajuda possível por seus poderes curativos. A capacidade reativa do
meio de repouso e dietas. Com isso, pelo organismo era representada pela dynamis. “É a

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natureza mesmo que encontra o caminho; se qualidades; pneûma; quinta essentia ou éter),
bem que ignorante e não instruída, faz aquilo Aristóteles exerceu grande influência em Platão
que é apropriado.”6,7 e, conseqüentemente, na fisiologia aristoteliana.
Entende-se que essa physis hipocrática ou Para Aristóteles, esse pnêuma, quinta essentia ou
força natural de cura seja o poder fisiológico «éter» equiparava-se à physis, vis medicatrix ou
que governa as funções orgânicas. Por ser força vital hipocrática, atribuindo-lhe um
instintiva, irracional e inconsciente, não é capaz importante papel “na vida do organismo, como
de solucionar todos os problemas orgânicos, causa da saúde e da enfermidade.”5
necessitando, em muitos casos, receber a Na sua concepção antropológica, Aristóteles
orientação inteligente do médico.8,9 diferenciava a “alma” em três formas (material,
Também designada por “calor inato”, a sensível e pneumática), apresentando cinco
força vital é abundante nos jovens e escassa nos «qualidades» (nutritiva ou vegetativa, sensitiva,
idosos, estando relacionada às forças de cupitiva ou concupisciva, motiva e intelectiva).
manutenção (aquecimento) e crescimento. Localizava a alma no coração, equivocadamente
Assim sendo, a reação vital nos jovens, segundo Entralgo, ao contrário dos médicos de
observada por meio da febre, é mais intensa do Cós, que a localizavam no cérebro.5
que nas pessoas de mais idade. Analogamente à Aristóteles distinguia a força vital (pnêuma,
concepção hindu, a alimentação é vista como éter, quinta essentia) da alma, esta última
uma fonte produtora de energia vital (prâna) correspondendo às propriedades emocionais e
para o indivíduo.6 intelectuais da individualidade, enquanto a
Como outra entidade distinta, diferente da primeira apresenta a característica de manter a
força vital ou physis, Hipócrates cita a “alma” ou vitalidade e a saúde do corpo físico, de uma
“psyché.”, relacionando-a aos aspectos forma instintiva e irracional. No entanto, ele
intelectivo, afetivo e estimativo da atribui à alma nutritiva (vegetativa) propriedades
individualidade humana.1,5 semelhantes ao pnêuma, misturando termos
conceitualmente distintos.
Medicina Siciliana - Aristóteles
Medicina Empírica - Erasistrato
Embora não tenha seguido a carreira da
Medicina, Aristóteles (384-322 a.C.) Como principal expoente e fundador da
desenvolveu inúmeros estudos relacionados a medicina empírica, destaca-se Erasistrato (310 a
esta área, e apresentou uma teoria sobre a 250 a.C.), discípulo da escola grega de Cnido,
imaterialidade humana distinta daquela proposta que abandonou as teorias humorais e destacou-
por Hipócrates, que influenciou diversos se no estudo da Fisiologia, Patologia e
filósofos de diferentes épocas. Anatomia. Atento aos princípios hipocráticos,
Filho do médico Nicómano de Estagiara, dedicou-se à pesquisa baseada na observação
Aristóteles entrou para a Academia com pessoal dos fenômenos, tornando-se um
dezessete anos, destacando-se no estudo de investigador hábil, livre de preconceitos e avesso
temas médicos (Fisiologia, Biologia, Zoologia e a qualquer dogmatismo doutrinário.7 Dessa
Anatomia). Segundo Entralgo5, o médico forma, Erasistrato considerava a força vital
siciliano Filistão de Locros, com sua “doutrina hipocrática ou pneûma “uma espécie de espírito
da natureza” (teoria dos quatro elementos e vital, ligeiro, que enchia as veias”, aproximando-

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se da concepção ocidental atual do papel do como leis até o Renascimento, sendo


oxigênio na fisiologia interna e da concepção considerado herege todo aquele que se
oriental hindu de prâna, como uma força vital posicionasse contrariamente.
captada por meio da respiração. Utilizando os “O pneûma, que é a essência da vida,
métodos hipocráticos de tratamento, “rechaçou apresenta três qualidades: o pneûma psychicon
a alopatia e utilizou métodos homeopáticos, (espírito animal) que tem sua sede no cérebro, o
medicamentos suaves e diluídos”. Assim sendo, centro da sensação e do movimento; o pneûma
o princípio da similitude assumiu destaque na zoticon (espírito vital) que se mistura ao sangue
sua prática terapêutica, adicionando-se a esta o no coração, o centro da circulação e da
princípio das doses infinitesimais, que mais tarde regulação térmica do corpo e, por fim, o pneûma
será utilizada como prática vigente na physicon (o espírito natural) que vem ao sangue
Homeopatia do século XIX.8 do fígado, o centro da nutrição e do
metabolismo. Para Galeno, o corpo é apenas um
Medicina Romana - Galeno
instrumento da alma. Percebe-se facilmente o
Os ensinamentos de Hipócrates eram motivo porque seu sistema, que corresponde
disseminados pelas várias escolas médicas da nos traços essenciais ao dogmatismo cristão,
Antigüidade e constituíam o núcleo do saber. A rapidamente recebeu o apoio da Igreja. Sua
Anatomia, a Fisiologia e a Patologia começavam autoridade obteve, assim, apoio importante. Isso
a despontar como ciências, a cirurgia ocorria explica porque seu sistema permaneceu
em raras ocasiões e a terapêutica não apresentava inalterado e inexpugnável até a época do
grandes inovações se comparadas àquelas Renascimento; como suas observações
ensinadas pelo Mestre de Cós. Questionava-se a anatômicas eram consideradas um cânon
vis medicatrix naturae hipocrática como meio de absoluto contra o qual não era permitido
cura, apresentando-se uma terapêutica sem mesmo arriscar uma crítica ou tentar uma
fundamentos precisos, polêmica esta que se experiência; e como aqueles que ousavam
perpetua desde as duas escolas médicas gregas duvidar da verdade de suas afirmativas eram
de Cós e Cnido. Perdia-se tempo em discussões tratados como heréticos.7
infundadas acerca de controvérsias teóricas, não
Medicina Árabe - Rhazes
havendo um sistema médico razoavelmente
estruturado sobre o conhecimento hipocrático e Analisando-se os filósofos árabes, encontra-se
as ciências básica e experimental que uma “antropologia fundamental”, com conceitos
começavam a despontar.7 diversos sobre a natureza imaterial do homem.
Quanto ao conceito de força vital, Galeno Essencialmente, existe uma “alma espiritual e
atribuía ao pneûma a essência da vida, mas imortal”, que atua no corpo físico (instrumento
posicionava-se contrariamente à concepção da alma), por meio do “intelecto agente”,
hipocrática do poder curativo da natureza (vis realizando as várias atividades (vegetativas,
medicatrix). Por defender conceitos aristotélicos, sensitivas e racionais). Numa dinâmica mais
aproximando-se da concepção dogmática abrangente, tem-se o «coração» (Espírito; qalb), o
assumida e divulgada pela Igreja da época (“o «espírito» (corpo muito sutil; ruh), a «alma»
corpo é apenas um instrumento da alma”), suas (alma animal ou eu humano; nafs), a «razão»
afirmativas e seus princípios foram mantidos (conhecimento e percepção; aql), o «secreto»

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(homem essencial, intimidade pessoal; sirr) e o Medicina Renascentista – Paracelso10


«corpo humano» (corpo físico; jism). Assim
Um ano após a descoberta da América por
sendo, tem-se uma concepção antropológica
Cristóvão Colombo, nasce na Suíça um dos
que se aproxima de outras correntes filosóficas.4
grandes vultos da medicina renascentista:
No auge da medicina árabe, Abû Bakr
Philippus Teophrastus von Hohenheim,
Muhammad ibn Zakariâ, conhecido como
conhecido como Paracelso (1493-1541 d.C.).
Rhazes (865-925 d.C.), foi um dos autores
Filho de médico, Paracelso aprendeu com seu
médicos que mais se destacou, escrevendo mais
pai os primeiros segredos da profissão,
de duzentos livros de Medicina, Filosofia,
proclamando, ainda criança, o desejo de
Religião, Matemática e Astronomia. Após
revolucionar a Medicina, levando a terapêutica
estudar medicina na escola de Bagdá, assumiu a
por um caminho mais natural e questionando
prática médica no Hospital de Raj em
os ensinamentos de Celso, Galeno e Avicena.
Tabaristan (perto de Teerã), região da Pérsia em
Em razão dessa oposição a Celso,
que nascera, retornando mais tarde para Bagdá
autodenominou-se Para-Celso (para = em
onde conquistou grande reputação. Suas obras
oposição a, contra; Celso).
médicas mais importantes foram o “Liber
Paracelso freqüentou as universidades da
Continens” (enciclopédia com 24 livros de
Alemanha, França e Itália, aprendendo com as
medicina prática e terapêutica do mundo
maiores celebridades médicas da época,
maometano), o “Liber medicinalis ad Almansorem”
formando-se médico pela Universidade de
(resumo de dez tratados sobre os mais
Ferrara, na qual foi o aluno predileto de Nicola
importantes assuntos médicos) e o “Liber de
Leonicelo de Vincenza, notável conhecedor das
Pestilentia”, no qual a varíola e o sarampo são
teorias de Hipócrates e Galeno. Além do
diferenciados minuciosamente.
conhecimento médico, absorveu os
Hipocrático no verdadeiro sentido do
ensinamentos de Tritênio, célebre abade do
termo, adverso a todo tipo de especulação e
Convento de São Jorge, em Wurzburg, que era
charlatanismo, Rhazes destaca a importância da
um grande conhecedor das Escrituras Sagradas e
vis medicatrix naturae ou força vital, dizendo que
da Cabala, descobridor de fenômenos psíquicos
“os remédios que esgotam a força vital dos
como o magnetismo animal e a telepatia, além
pacientes devem ser evitados”. Atribui à
de ser um grande químico.
“febre” um papel benigno nas reações do
Viajou por toda a Europa e Oriente Médio
organismo, que se esforça para expulsar a
estudando, experimentando e aprendendo com
enfermidade. Além disso, no tratamento das
a natureza, modelo este que serviu de base ao
doenças, defende o uso de medidas higiênicas e
seu método terapêutico. Por onde passava
da administração de um único medicamento
exercia a medicina, tratando os enfermos com
simples por vez. Exalta a importância da
uma simplicidade que lhe era peculiar,
relação médico-paciente na arte de curar, fato
convivendo com alquimistas, quiromantes e
este ignorado pela escola empírica, quando
todos os tipos de pessoas. Nessa época, observou
supervalorizava as drogas que combatiam as
as enfermidades dos mineiros e dedicou-se às
doenças de forma experimental .8
virtudes curativas de alguns minerais: utilizou,
por exemplo, o mercúrio com efeitos
significativos na cura de úlceras sifilíticas.

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Adquiriu grande reputação como médico, naturais com fins terapêuticos; e, por fim, o
sendo chamado, em 1527, para ocupar a cadeira Amor, qualidade fundamental para a formação
de docente na Universidade da Basiléia, com de um bom médico.
apenas 34 anos de idade. Posteriormente, Quanto ao fundamento do amor na prática
dedicou-se ao ensino público em Colmar médica, Paracelso defendia-o como um grande
(1528), Nurember (1529), Saint-Gall (1531), instrumento terapêutico, estimulador da força
Pfeffer (1535), Augsburgo (1536) e Villach vital, “que operava por meio da fé”.8
(1538), exercendo essa atividade por mais de Em relação à vis medicatrix hipocrática ou
dez anos. força vital homeopática, seguindo a postura
Paracelso considerava que as doenças são hipocrática, Paracelso a considerava de extrema
conseqüência de cinco entidades diretoras, importância na manutenção da saúde, sendo
moderadoras e reguladoras do nosso corpo: função do médico protegê-la ou reforçá-la,
1) entidade astral (ens astrale), isto é, as auxiliando as forças curativas da natureza no seu
influências astrais e as condições do ambiente e trabalho de preservação e regeneração da
da atmosfera; 2) entidade dos venenos (ens integridade física. Segundo os estudiosos de
veneni), representada pelas impurezas e todas as suas obras, agrupadas em “A chave da
coisas contrárias à constituição humana; Alquimia”, Paracelso empregava o termo
3) entidade natural (ens naturae), que múmia (a própria essência do homem) com o
compreende as causas herdadas e todas as significado de força vital.
influências hereditárias; 4) entidade dos espíritos No “Livro das Entidades”, Paracelso aborda
(ens spirituale), englobando as doenças psíquicas mais detalhadamente o “princípio M”,
ou mentais, causadas por uma imaginação considerado como múmia ou princípio vital,
doentia e uma vontade mal dirigida; 5) entidade entidade imaterial, que forma com o corpo
de Deus (ens Dei), que representa a Lei de Causa físico uma unidade substancial, conservando e
e Efeito, pela qual sofremos as conseqüências das mantendo a vida orgânica. Em outras partes da
más ações que praticamos em vidas passadas; são obra, diferencia-o dos demais princípios
as doenças provenientes da Lei do Karma. superiores e invisíveis do homem, batizados por
Segundo Paracelso, a verdadeira Medicina ele de “entidade astral”, “alma” e “espírito”.
deveria apoiar-se em quatro pilares: a Quanto à entidade astral (corpo sidéreo),
Astronomia, na qual situava o homem como um considerada por outras filosofias como “corpo
microcosmo dentro do macrocosmo do astral” ou “corpo dos desejos”, Paracelso a
Universo, dependendo o entendimento do relaciona ao caráter e ao temperamento humano
homem da compreensão do funcionamento do (boas e más atitudes). Sendo influenciada pelos
Cosmos (por exemplo, os órgãos humanos astros, a entidade astral possui ascendência sobre
encontravam sua correspondência nos astros: o “princípio M” ou força vital, podendo
coração/Sol; cérebro/Lua; baço/Saturno; contaminá-lo e, por conseguinte, causar doenças
vesícula biliar/Marte; rins/Vênus; ao corpo físico (entidade astral ê princípio M ê
pulmões/Mercúrio; fígado/Júpiter); a Ciência corpo físico).
Natural, na qual buscava as explicações para as Em relação ao espírito ou entidade
doenças humanas e sua terapêutica; a Química, espiritual (ens spirituale), que tem no corpo
que facultava a preparação de substâncias físico sua morada temporária e seu veículo de

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manifestação, Paracelso lhe atribui uma forma, Marcelo Malpighi difundiu a teoria de Harvey e
uma vida de relações e um plano de ação utilizou-se do microscópio para estudar
próprios, independentemente do plano físico- sistematicamente a anatomia, observando as
material. Os espíritos são regidos pela estruturas internas dos órgãos.
vontade, pelo querer (desejos, sentimentos), Mas foi com Thomas Sydenham (1624-
enquanto a alma é regida pela razão 1689 d.C.) que ocorreu uma revolução no
(pensamentos). O corpo físico pode adoecer tratamento das enfermidades. Soldado das
em consqüência de causas espirituais, tropas de Cromwell, Sydenham graduou-se
podendo um espírito ser ferido por outro, em medicina com quarenta anos,
sofrendo assim “lesões espirituais”. reformulando, posteriormente, a concepção
Segundo Hartmann11, o modelo galênica vigente quanto ao tratamento das
antropológico de Paracelso assemelha-se à doenças. Na “observação dos fenômenos
concepção septenária do modelo hindu: o naturais das diferentes enfermidades” (filosofia
Corpus, ou corpo elemental do homem naturalista), isenta de preconceitos, embasou
(Limbus); a Mumia, ou corpo etéreo, ou o sua teoria terapêutica.8
veículo da vida (Evestrum); o Archaeus, a Considerado um fiel seguidor dos
essência da vida, o Spiritus Mundi na natureza e ensinamentos hipocráticos, atribuiu-se a ele o
o Spiritus Vitae no homem; o Corpo Sidéreo, que título de “Hipócrates britânico.” Sydenham
se compõe das influências das estrelas; o Adech, fundamentava sua prática terapêutica na
o homem interno ou corpo mental, feito da concepção vitalista, procurando, por meio das
carne de Adão; o Aluech, o corpo espiritual, práticas higieno-dietéticas, manter a força vital
feito da carne de Cristo, chamado também “o equilibrada. Opunha-se ao princípio dos
homem do novo Olimpo”; e o Spiritus, “o contrários e à utilização de medicamentos
espírito universal.” combinados, prescrevendo substâncias simples.8
Utilizando substâncias simples, como não
Medicina Pós-renascentista - Sydenham
poderia deixar de ser, pôde observar mais
Apesar das inúmeras iniciativas científicas do claramente os efeitos individuais e verdadeiros
século XVII, a Medicina pouco evoluiu, pois os provocados pelas drogas, formulando a teoria de
médicos continuavam ligados a um modelo que os sintomas de um paciente não são efeitos
galênico decadente: junto à prática médica de sua enfermidade, senão da luta de seu corpo
propriamente dita, misturavam-se feitiçaria, para superar esta enfermidade (crisis hipocrática).
astrologia e religião; prescreviam-se as mais Reforçando o preceito hipocrático de força
absurdas substâncias como esterco, urina, etc. vital, em que a vis medicatrix se esforça em
Nessa época de progresso científico,Van expulsar os agentes agressores para manter o
Leuwenhoek aperfeiçoou o microscópio com equilíbrio orgânico, adianta o conceito de
lentes polidas; Sertorius inventou o termômetro doença como reação vital, difundido mais tarde
clínico;William Harvey postulou sua teoria pela Homeopatia.8,12
sobre a circulação sangüínea (De Motu Cordis),
Iatroquímicos
contrariando a antiga concepção de que o
sangue era produzido e eliminado diariamente, Conseqüentemente às divisões religiosas que
ao invés de circular no organismo. Juntamente, ocorriam no seio da Igreja nessa época, sua

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influência sobre a sociedade diminuiu. Com isso tratamento também deveria ser químico,
abrandou-se o autoritarismo dogmático que a dirigido ao órgão afetado em questão.8
religião impunha sobre o meio científico,
Georg Ernst Stahl
exemplificado na Medicina pela utilização do
Com uma concepção vitalista diferente da
sistema galênico como forma de divulgação dos
maioria dos iatroquímicos que seguiam o
conceitos teológicos de saúde e doença.
modelo hipocrático, surge a “escola animista” de
Assim, os médicos, manifestando sua
Georg Ernst Stahl (1660-1734 d.C.), que
insatisfação pelas teorias tradicionais, passaram a
substituiu a vis medicatrix naturae hipocrática pela
buscar alternativas para o modelo vigente, com
alma, atribuindo a esta a função de manutenção
base na teoria dos humores e na terapêutica,
da saúde orgânica. Assim como van Helmont,
segundo o princípio dos contrários. Daí
Stahl defendeu o princípio dos semelhantes,
surgiram novos “sistemas de medicina”, cada
afirmando que a aplicação de contrários e
qual com seu mestre e discípulos, que
outros remédios clássicos, como a sangria,
defendiam suas hipóteses fervorosamente. Como
deveriam ser evitados. Profundo conhecedor da
já era de se prever, suas argumentações
Química, criou a teoria do flogisto, que seria
assemelhavam-se aos antigos dogmáticos,
um fluido relacionado à combustão (phlogistós =
empíricos e metódicos.
fluido inflamado).8
Dividiram-se basicamente em dois grupos:
iatroquímicos e iatrofísicos. A maioria dos Albrecht von Haller
grupos iatroquímicos era vitalista, defendendo a Considerado o “gênio presidencial da
existência de uma força vital como Medicina do século XVIII” e notável
mantenedora da saúde no organismo físico. Já os fisiologista, von Haller (1708-1777 d.C.)
iatrofísicos, mais materialistas, acreditavam na caracterizava a força vital como uma
supremacia das forças físicas e químicas sobre o irritabilidade, uma capacidade do corpo de
princípio vital imaterial. reagir a estímulos.8

Jan van Helmont Paul Joseph Barthez


Considerado o fundador da iatroquímica, Grande expoente do vitalismo de
van Helmont (1577-1644 d.C.) defendia o Montpellier, Paul Joseph Barthez (1734-1806)
papel da força vital como mantenedora do denominou de force de situation fixe (força de
equilíbrio orgânico e entendia a enfermidade situação fixa) ao mecanismo natural dos órgãos
como uma reação vital. No entanto, ele recuperarem sua condição normal, a vis
acreditava que esse equilíbrio instável poderia medicatrix naturae dos antigos: “Chamo ‘princípio
ser perturbado por doenças causadas por agentes vital do homem’ à causa que produz todos os
internos ou externos, contra os quais a força fenômenos da vida no corpo humano”. Esse
vital reagiria, causando os sintomas no paciente. princípio vital de Barthez, como fonte das
Apesar de ser partidário, como Sydenham, do propriedades biológicas e mantenedor da saúde
princípio da similitude no tratamento das orgânica, aproxima-se bastante da concepção
enfermidades, não aceitando o princípio dos vitalista da Homeopatia: a causa das
contrários, acreditava que a doença gerava uma enfermidades encontra-se nos desequilíbrios do
alteração química nos tecidos do corpo, princípio vital.4,5
geralmente em um órgão em particular, e que o

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Artigo de atualização

John Brown modelo hipocrático, além de seus conselhos


Com um conceito vitalista semelhante ao de sobre terapêutica. Contrariamente aos
Albrecht von Haller, John Brown (1735-1788 iatroquímicos, atribuía ao corpo físico a
d.C.) acreditava que a vida fosse um estado de dominância sobre a força vital, baseando seu
excitação permanente, mantido por estímulos sistema médico na Fisiologia.8
emocionais e físicos: “a saúde ruim é
Mesmerismo – Franz Mesmer
simplesmente uma má adaptação aos estímulos,
sejam excessivos ou deficientes”. Brown No século XVIII, devido à ineficácia das
classificava as enfermidades em apenas dois terapêuticas médicas, o charlatanismo assume
grupos: estênicas, que requeriam sedativos, e proporções enormes, tornando-se cada vez mais
astênicas, que necessitavam de algo que difícil diferenciar o legítimo do espúrio. Inúmeras
estimulasse a força vital a uma atividade maior.8 panacéias surgiram, compreendendo desde
Mostrando descrença pela força curativa da métodos diversos de tratamento até fórmulas
natureza (vis medicatrix naturae), Brown era magistrais, que variavam dos “Templos de
bastante intervencionista em seu tratamento, Saúde” para combater a infertilidade até
administrando doses massivas de drogas, misturas de substâncias com fins diversos. Nesta
segundo o princípio dos contrários, para época, firma-se o mesmerismo ou magnetismo
estimular ou sedar a força vital astênica ou animal como forma de tratamento das doenças
estênica, respectivamente. Seu modelo nervosas, principalmente.8
terapêutico foi muito criticado por Desfrutando de situação social digna em
Hahnemann em suas obras.8 Viena, Mesmer era amigo pessoal de Mozart.
Em função das curas que realizava como, por
Iatrofísicos - Hermann Boerhaave
exemplo, a de Maria Paradis, uma jovem
Quanto aos iatrofísicos, estes consideravam o música, cega desde a infância por paralisia do
corpo uma máquina e supunham que as nervo óptico, que já havia recorrido aos
enfermidades seriam perfeitamente compreendidas, melhores cirurgiões de sua época sem êxito
caso fosse possível entender a maquinaria e, após se submeter ao tratamento mesmérico
corporal. Com o tratado sobre fisiologia de foi recobrando a visão gradativamente, em
Descartes, publicado em 1662, a iatrofísica pouco tempo sua reputação cresceu. Por
começou a se propagar na Europa, alcançando conta desse episódio de cura desacreditada,
grande evidência com Hermann Boerhaave. Mesmer sofreu inúmeras perseguições dos
Assumindo, como Sydenham no século médicos locais, tendo que abandonar a
XVII, a mesma posição de destaque na Áustria e indo morar na França. Em Paris, em
Medicina do século XVIII, Boerhaave se função da receptividade encontrada,
sobressaiu por seu caráter impecável, incrementou uma técnica especial para
influenciando médicos como Albrecht von congregar o magnetismo animal de várias
Haller. Considerando-se eclético, agregou o pessoas e aplicá-lo aos pacientes, que eram
conhecimento das diferentes escolas médicas em beneficiados por aquele método.8
torno de si, notabilizando-se pelas suas Para Hahnemann12,o magnetismo animal
memoráveis descrições clínicas, pela formulação significava o mesmo que a força vital, podendo
de diagnósticos e prognósticos segundo o ser transmitido de um a outro ser vivo por

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Artigo de atualização

meio da boa vontade, e utilizado para patologia vitalista clássica, Claude Bernard, seu
equilibrar os excessos ou deficiências da contemporâneo, formulava uma teoria que iria
energia vital humana. proporcionar a base científica aos antigos
humoralismo e vitalismo. Fundamentando os
Medicina do século XIX
mecanismos vitais como processos que visam
Nessa época, juntamente com a manter a homeostase orgânica, Bernard atribui
fundamentação do vitalismo homeopático por aos mesmos a faculdade de reagir a perturbações
Samuel Hahnemann, surgem teorias contrárias externas comuns, conservando o estado de
dentro da Fisiologia, Patologia e Anatomia, que saúde. Quando esse equilíbrio vital é rompido, o
embasariam as causas das enfermidades num organismo adoece e, nesse exato momento, o
substrato orgânico, criticando a patologia ideal é procurar intervir com medidas que o
humoral e o modelo vitalista até façam retornar ao estado primordial. Nessas
então vigentes.13 definições, encontra-se o pensamento vitalista
Um dos primeiros expoentes da patologia de Hipócrates e Hahnemann.8
celular foi Giovanni Morgagni que, ao final do Posteriormente a Hahnemann, que em 1796
século XVIII, publicou a obra “Tratado sobre os já fundamentava a experimentação no homem
fundamentos e causas das enfermidades”, são com valorização dos fenômenos psíquicos –
argumentando que as doenças eram entidades primeiro método científico para se estudar a
relativas a órgãos específicos do corpo e que os enfermidade experimentalmente induzida e
sintomas eram reflexo de alterações específicas controlada –, Claude Bernard frisou a
nesses mesmos órgãos.8 importância da relação entre fisiologia e
No início do século XIX, Xavier Bichat, características psicológicas.8
vitalista por formação, passou a estudar os
Medicina Homeopática - Hahnemann
órgãos e tecidos do corpo, fundamentando as
bases da Histologia e da Histopatologia. Bichat Para a Homeopatia, a causa das doenças
concluiu que não eram os órgãos que adoeciam repousa no desequilíbrio do princípio vital.
e sim os seus tecidos, podendo estar a maior Assim sendo, o tratamento homeopático visa a
parte do órgão sadia e apenas um de seus reequilibrar essa distonia vital, que trará o
tecidos enfermo para que ocorresse a doença. retorno da saúde a todo o organismo.2,3,12
Aproveitando-se da teoria histológica de Apesar da concepção vitalista homeopática
Bichat e do microscópio de Leuwenhoek, quem ampliar a compreensão do binômio “doente-
inaugurou, realmente, a patologia celular foi doença”, situando a gênese das enfermidades
Theodor Scwann, na década de 1830, sendo como uma entidade imaterial e dinâmica, com
seguido por Rudolf Virchow, que a elaborou e ascendência sobre o organismo material, os
fundamentou no enunciado “não existem diversos significados atribuídos à força ou
enfermidades gerais; desde agora princípio vital podem causar confusões
reconheceremos, unicamente, enfermidades de doutrinárias importantes, deturpando o ideal de
órgãos e células.” Essa foi a base para a Medicina cura homeopático.
do século XX.8 Ao longo de sua obra, Hahnemann
Enquanto Rudolf Virchow trabalhava em descreve fielmente sua concepção vitalista.
sua patologia celular, na tentativa de anular a Discorre sobre a vis medicatrix hipocrática,

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considerada pela escola tradicional como a substancial entre o corpo e a alma do modelo
incomparável arte de curar, fiel imitação do aristotélico-tomista), que é reforçada no décimo
mais elevado objetivo do médico, a grande quinto parágrafo da mesma obra.
natureza em si e por si. Identifica a vis Na obra de Hahnemann, observa-se a noção
medicatrix com a força vital, instintiva, de uma força imaterial, incorpórea, invisível,
irracional, irrefletida, sujeita às leis orgânicas do sem qualquer ligação com o modelo
nosso corpo, mantendo as condições do materialista-mecanicista, reagindo com forças
organismo em equilíbrio desde que o mesmo semelhantes, seja no contágio morboso, seja na
esteja saudável e causando transtornos atuação das potências medicamentosas. O termo
revolucionários, quando a saúde é perturbada. espiritual (geistartig) demonstra a imaterialidade
Reiterando a identidade entre a vis (de tipo não-material) em questão, não
medicatrix naturae e a força vital, Hahnemann denotando qualquer sentido metafísico nas
compara várias vezes a natureza bruta e referidas citações, conforme mencionado na
instintiva com a força vital sujeita unicamente às tradução do “Organon da arte de curar”,
leis orgânicas e incapaz de agir segundo a razão realizado pelo Instituto Homeopático François
e a reflexão, diferenciando, nitidamente, a força Lamasson (IHFL).12
vital desprovida de razão do espírito inteligente. Difundindo a noção de uma força vital
Por meio de inúmeras citações nos textos de semelhante a outras formas de energia
Hahnemann, verifica-se que a força vital atualmente conhecidas pela Física, Hahnemann
instintiva e automática possui a propriedade de tece comparações com o magnetismo, a
manter o organismo em equilíbrio, desde que eletricidade, o eletromagnetismo, o galvanismo,
impere o estado de saúde, não conseguindo o etc. O mesmo se aplica ao magnetismo animal
mesmo quando dele se afasta. Nessas tentativas ou mesmerismo, no qual a força vital se difunde
de conservar a vida em equilíbrio, por não do mesmerizador para o doente, passando de
possuir o atributo da inteligência e reagir um para o outro, e sendo contida por
automaticamente, causa sérios danos ao corpo. substâncias isolantes, chegando a comparar sua
O organismo físico, sem a força vital, é incapaz atuação com a dos medicamentos
de qualquer sensação ou atividade, não homeopáticos, apesar de agirem de um modo
possuindo nem mesmo a capacidade de auto- distinto destes.
conservação, levando à morte e à decomposição. Toda doença natural ocorre pela perturbação
A distinção entre o princípio vital da força vital imaterial que anima o corpo
(vitalidade) e o princípio inteligente ou espírito físico, por meio de influências dinâmicas
(força intelectual) é nítida desde o início de suas morbosas de mesmo caráter. Para Hahnemann,
obras, permanecendo até a sexta edição do existia uma espécie de contágio imaterial para
Organon. Hahnemann diferencia claramente a que isso ocorresse, ficando clara esta concepção
unidade entre o corpo físico e a força vital ao explicar como os miasmas tomam conta do
(vitalidade do corpo organizado) do espírito organismo vivo por meio das terminações
racional que o dirige (força intelectual que atua nervosas, conforme será demonstrado adiante.
dentro dele). No décimo parágrafo do Organon, Essa distonia vital manifesta-se aos sentidos por
deixa explícita a unidade substancial entre corpo meio da totalidade sintomática, objetivo a ser
físico e força vital (e não a idéia de composto

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Artigo de atualização

perseguido por todo homeopata que busque a para a unidade entre o corpo físico e a força
verdadeira cura das enfermidades. vital, como um substrato material-energético
Na cura das doenças pelo medicamento por onde a força vital é influenciada e por meio
homeopático realiza-se o confronto da força do qual reage.
vital desequilibrada com a energia Observa-se a analogia dos termos alma e
medicamentosa de tipo semelhante, mas um espírito utilizados por Hahnemann de maneira
pouco mais forte, promovendo com isso uma indistinta. Quanto à mente, sede da vida
reação vital do organismo contra o distúrbio psíquica, Hahnemann a considerava órgão
morboso que lhe é próprio, mas mental e psíquico, órgão da mais alta hierarquia,
imperceptível. A força vital irracional, que quase não-material, invisivelmente sutil, com
tem como função manter o organismo em uma unidade própria, mas em relação direta
harmonia apenas no estado de saúde, não com os órgãos físicos e a alma. Esses órgãos
possui discernimento para perceber um superiores sofrem a influência das emoções e
desequilíbrio que se incorporou no estado de dos medicamentos homeopáticos que despertem
doença. Pela analogia qualitativa da força vital e essas mesmas emoções na experimentação no
orgânica com a energia do medicamento indivíduo sadio.
homeopático, obtida por meio do processo de A influência das excitações emocionais e
dinamização, no qual se libera a energia psíquicas na saúde do homem é comparável a
interna de qualquer substância da natureza, qualquer outra afecção dinâmica que possa
pode-se dizer que a força vital apresenta atingi-lo, seguindo as mesmas regras dessas.
caráter semelhante à energia contida nestas. Nessa interação entre o corpo e a mente, a força
Contrapondo-se à força vital bruta, instintiva vital funciona como elo, sendo exaurida ou
e automática, mantenedora da vida, abandonada incrementada ao organismo, com o excesso de
a si mesma nas doenças, agindo única e atividade mental ou a prática saudável de
exclusivamente sobre as leis orgânicas do corpo, exercícios musculares, respectivamente.
incapaz de agir segundo a razão e a reflexão, A mente, entidade distinta da unidade
tem-se a grandeza do espírito humano, físico-vital, devido ao seu nível hierárquico
manifestada por meio do intelecto, da livre superior, atua sobre o princípio vital
reflexão e do raciocínio. O princípio inteligente desequilibrando-o, desde que seja afetada pelas
tem como “morada” o organismo vivo, noxas psico-emocionais. Pode-se pensar numa
constituído pela unidade entre o corpo físico e unidade mental, diretamente relacionada à
a força vital, dele se utilizando para sua evolução entidade superior humana (espírito ou alma),
e seu aperfeiçoamento, em busca dos altos fins que abarca as manifestações psíquicas e
de sua existência. emocionais do ser, possuindo ascendência e
Fazendo uma analogia ao Prâna dos hindus interagindo com a força vital e o corpo físico.
que, por meio da respiração e dos exercícios Em vista do exposto, pela diferenciação
corporais (Yoga) restabelece o equilíbrio, entre a unidade mental e a unidade orgânica,
relaciona a vitalidade ao sangue, ao éter e aos deverão existir outras formas de se buscar o
nervos. As fibras nervosas têm relação com a equilíbrio dinâmico da saúde, atuando em
força vital, estando elas aptas a desempenhar o níveis superiores da entidade humana, que
papel de propagar qualquer influência dinâmica

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Artigo de atualização

não seja somente por meio dos para embasar suas teorias sobre a natureza
medicamentos homeopáticos. imaterial humana, distanciando-se das demais
O caminho da moral é visto como o mais entidades superiores aceitas por diversas
elevado objeto da vida, capaz de aproximar o correntes filosóficas.
homem do Criador por meio de sensações que A força vital hipocrática ou vis medicatrix
asseguram a sua felicidade, de ações que exaltam naturae (poder natural de cura), considerada o
a sua dignidade, de conhecimentos que abraçam poder fisiológico que governa as funções
o Universo, exercitados pelo sopro divino ou orgânicas, era, por definição, irracional,
espírito racional na busca de sua evolução e destituída de inteligência, comandando o
crescimento interior. organismo por reações automáticas e instintivas,
Desde o início de suas obras, Hahnemann podendo causar sérias perturbações ao mesmo
critica os excessos de especulações que não quando abandonada à própria sorte. Atribui-se
auxiliem a prática de curar o doente. Mantendo ao poder inteligente ou alma o termo psyché.
sua postura prática e experimental, habilidade Aristóteles denomina a força vital com os
que permitiu à Homeopatia permanecer termos pnêuma, aethér ou quinta essentia. Divide a
atuante até os dias de hoje, ele afirma com uma “alma humana” em três formas (material,
proposição incontestável que é preciso sensível e pneumática), apresentando cinco
renunciar a todas as discussões ontológicas “qualidades” (nutritiva ou vegetativa, sensitiva,
acerca da enfermidade, objeto para sempre cupitiva, motiva e intelectiva); confunde
enigmático. Frisando ser a Homeopatia um conceitos distintos atribuindo propriedades
método terapêutico com fundamentos simples semelhantes ao pnêuma e à alma vegetativa.
e claros, Hahnemann garante não haver Com os árabes, observa-se uma divisão dos
necessidade de perder-se em discussões veículos de manifestação humana muito
metafísicas e escolásticas sobre a impenetrável semelhante às concepções orientais: jism
causa primária das enfermidades. (corpo físico), ruh (corpo vital), nafs (corpo
Se acreditar que a força vital representa uma astral), aql (corpo mental), sirr (corpo causal) e
energia primordial presente em todos os seres, qalb (Espírito).
envolvendo todas as unidades celulares, Em Paracelso, encontram-se importantes
propiciando que o fenômeno da vida e da saúde referências sobre as demais entidades imateriais
se façam presentes, ter-se-á uma idéia do que humanas (entidade astral, entidade espiritual,
representa a concepção vitalista de Hahnemann. etc.), além da força vital (mumia) e do princípio
Sob esse enfoque, o medicamento homeopático vital (archeus).
irá atuar nessa unidade substancial entre o corpo Claude Bernard e Cannon aproximam o
físico e o princípio vital, nesse binômio “matéria- princípio vital homeopático da conceituação
energia”, promovendo a homeostase orgânica e o fisiológica moderna, atribuindo-lhe, assim como
equilíbrio “neuro-imuno-endócrino-metabólico” Hahnemann, o papel de manter a homeostase
do indivíduo. orgânica (sistema integrativo homeostático).
O entendimento da força vital hipocrática
C ONCLUSÕES
(vis medicatrix naturae) é de fundamental
A Medicina fixou-se ao conceito de força importância para se entender a concepção
vital, diretamente relacionada ao corpo físico, vitalista da Homeopatia, que se estrutura em

 Homeopat. Bras. m vol.8 · n 02 · 2002


Artigo de atualização

conceitos semelhantes. A analogia com o R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


modelo homeostático de Claude Bernard e
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vitalist model. According to the different lines of
thought examined, it becomes evident that the Endereço para correspondência:
Rua Teodoro Sampaio, 352 – cj. 128 – São Paulo – SP
disturbance responsible for the genesis of the organic CEP: 05406-000
Tel: (11) 3083-5243
diseases is located in the vital principle, tsri or chi, e-mail: marcus@homeozulian.med.br
linga sharira, double-etheric, vital body or etheric body,
all of them corresponding to hippocratic vis
medicatrix naturae, instinctive, automatic and
deprived of intelligence, similar in its modus
operandi to the homeostatic system or psycho-neuro-
immuno-endocrino-metabollic system studied in
integrative physiology in reactions to stress.
Key words: History of medicine, Homeopathy,
Homeopathic philosophy,Vital force,Vitalism.

Homeopat. Bras. m vol.8 · n 02 · 2002 

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