Você está na página 1de 21

Por um cinema imperfeito

Júlio Garcia Spinoza*

Hoje em dia, um cinema perfeito - técnica e artisticamente bem produzido

- é quase sempre um cinema reacionário.

A maior tentação que se oferece ao cinema cubano nestes momentos -

quando alcança seu objetivo de um cinema de qualidade, de um cinema

com significação cultural dentro do processo revolucionário - é


precisamente a de converter-se em um cinema perfeito.

O “boom” do cinema latino-americano - com Brasil e Cuba encabeçando,

segundo os aplausos e as boas vistas da intelectualidade européia - é

similar, na atualidade, ao que vinha desfrutando com exclusividade a

novelística latino-americana.

Por que nos aplaudem? Sem dúvida, se alcançou uma certa qualidade.

Sem dúvida, há um certo oportunismo político. Sem dúvida, há uma certa

instrumentalização mútua. Mas sem dúvida há algo mais.

Por que nos preocupa que nos aplaudam? Não está, entre as regras do jogo

artístico, a finalidade de um reconhecimento público? Não equivale o

reconhecimento europeu - a nível da cultura artística, a um

reconhecimento mundial? Que as obras realizadas no subdesenvolvimento

obtenham um reconhecimento de tal natureza, não beneficia à arte e aos

nossos povos?

Curiosamente a motivação dessas inquietudes, é necessário esclarecer,

1
não é só de ordem ética, mas também, e sobretudo, estética, se é que se

pode traçar uma linha tão arbitrariamente divisória entre ambos os

termos.

Quando nos perguntamos por que nós somos diretores de cinema e não os

outros, quer dizer, os espectadores, a pergunta não é motivada apenas por

uma preocupação de ordem ética. Sabemos que somos diretores de

cinema, porque temos pertencido a uma minoria que teve o tempo e as

circunstâncias necessárias para desenvolver, em si mesma, uma cultura

artística; e porque os recursos materiais da técnica cinematográfica são

limitados e, portanto, ao alcance de poucos e não de todos. Mas o que

acontece se a universalização do ensino universitário, se o

desenvolvimento econômico e social reduz as horas de trabalho, se a

evolução da técnica cinematográfica (como já apresenta sinais evidentes)

torna possível que esta deixe de ser privilégio de uns poucos, o que

acontece se o desenvolvimento do videotape soluciona a capacidade

inevitavelmente limitada dos laboratórios, se os aparelhos de televisão e

sua possibilidade de “projetar” com independência da planta matriz,

tornam desnecessárias a construção ao infinito das salas

cinematográficas? Ocorre então não só um ato de justiça social: a

possibilidade de que todos possam fazer cinema; senão um feito de

extrema importância para a cultura artística: a possibilidade de resgatar,

sem complexos, nem sentimentos de culpa de nenhuma classe, o

verdadeiro sentido da atividade artística. Ocorre então que podemos

entender que a arte é uma atividade desinteressada do homem. Que a arte

não é um trabalho. Que o artista não é propriamente um trabalhador.


2
O sentimento de que isto é assim, e a impossibilidade de praticá-lo em

conseqüência, é a agonia e ao mesmo tempo, o farisaísmo de toda a arte

contemporânea.

De fato existem as duas tendências. Os que pretendem realizá-la como

uma atividade "desinteressada" e os que pretendem justificá-la como uma

atividade "interessada". Uns e outros estão em um beco sem saída.

Qualquer um que realize uma atividade artística se pergunta em um dado

momento que sentido tem o que ele faz. O simples fato de que surge esta

inquietude demonstra que existem fatores que a motivam. Fatores que, por

sua vez, evidenciam que o artista não se desenvolve livremente. Os que se

propõem a negar-lhe um sentido específico, sentem o peso moral de seu

egoísmo. Os que pretendem impor-lhe isso como regra, compensam com a

bondade social sua má consciência. Não importa que os mediadores

(críticos, teóricos e etc.) tratem de justificar uns e outros casos. O

mediador é, para o artista contemporâneo, sua aspirina, sua pílula

tranqüilizante. Mas, como esta, somente tira a dor de cabeça

temporariamente. É certo, sem dúvida, que a arte, como um diabinho

caprichoso, segue assomando esporadicamente à cabeça, não importa em

qual tendência.

Entretanto, é mais fácil definir a arte pelo que não é, se é que se pode falar

de definições fechadas não já para a arte senão para qualquer atividade da

vida. O espírito de contradição a impregna totalmente, e por nada nem

ninguém se deixam fechar em um marco, por mais dourado que este seja.

É possível que a arte nos dê uma visão da sociedade ou da natureza


3
humana e que, ao mesmo tempo, não se possa definir como visão da

sociedade ou da natureza humana. É possível que no prazer estético esteja

implícito um certo narcisismo da consciência em reconhecer-se pequena

consciência histórica, sociológica, psicológica, filosófica, etc. e ao mesmo

tempo não basta esta sensação para explicar o prazer estético.

Não é muito mais fácil para a natureza artística concebê-la com seu

próprio poder cognitivo? Isto quer dizer que a arte não é ilustração de

idéias que podem ser expressas pela filosofia, sociologia e psicologia? O

desejo de todo artista de expressar o inexpressável não é mais que o desejo

de expressar a visão do tema em termos inexpressáveis por outras vias que

não sejam as artísticas? Talvez seu poder cognitivo seja como o do jogo

para a criança. Talvez o prazer estético seja o prazer que nos provoca sentir

a funcionalidade (sem um fim específico) de nossa própria inteligência e

nossa própria sensibilidade. A arte pode estimular, em geral, a função

criadora do homem. Pode operar como agente de excitação constante para

adotar uma atitude de mudança frente à vida. Mas, à diferença da ciência,

nos enriquece de tal forma que seus resultados não são específicos, não se

podem aplicar para algo em particular. Daí que a podemos chamar de uma

"atividade desinteressada", que podemos dizer que a arte não é

propriamente um trabalho, que o artista é talvez o menos intelectual dos

intelectuais.

Porque o artista, entretanto, sente a necessidade de justificar-se como

“trabalhador”, como “intelectual”, como “profissional”, como homem

disciplinado e organizado, ao par de qualquer outra tarefa produtiva? Por

4
que sente a necessidade de hipertrofiar a importância de sua atividade?

Por que sente a necessidade de ter críticos – mediadores - que o definam, o

justifiquem, o interpretem? Por que fala orgulhosamente de "meus

críticos"? Porque sente necessidade de fazer declarações transcendentes,

como se ele fosse o verdadeiro intérprete da sociedade e do ser humano?

Por que pretende considerar-se crítico e consciência da sociedade - se bem

estes objetivos possam estar implícitos ou ainda explícitos em

determinadas circunstâncias - em um verdadeiro processo revolucionário

essas funções as devemos exercer todos, quer dizer, o povo? E por que

então, por outro lado, se vê na necessidade de limitar estes objetivos, estas

atitudes, estas características? Por que ao mesmo tempo, planta essas

limitações como limitações necessárias para que a obra não se converta

em um panfleto ou em um ensaio sociológico? Por que há semelhante

farisaísmo? Por que proteger-se e ganhar importância como trabalhador,

político e cientista (revolucionário, entenda-se) e não estar disposto a

correr os riscos disto?

O problema é complexo. Não se trata fundamentalmente de oportunismo e

nem sequer de covardia. Um verdadeiro artista está disposto a correr todos

os riscos se tem a certeza de que sua obra não deixará de ser uma

expressão artística. O único risco que ele não aceita é o de que a obra não

tenha uma qualidade artística.

Também há os que aceitam e defendem a função "desinteressada" da arte.

Pretendem ser mais conseqüentes. Preferem a amargura de um mundo

fechado na esperança de que amanhã a história lhes fará justiça. Mas é o

5
caso de que todavia hoje a Gioconda não a podem desfrutar todos. Deviam

de ter menos contradições, deviam de estar menos alienados. Mas de fato

não é assim, ainda que tal atitude lhes dê a possibilidade de um pretexto

mais produtivo na ordem pessoal. Em geral sentem a esterilidade de sua

“pureza” ou se dedicam a liberar combates corrosivos mas sempre na

defensiva. Podem inclusive rechaçar, numa operação inversa, o interesse

de encontrar na obra de arte a tranqüilidade, a harmonia, uma certa

compensação, expressando o desequilíbrio, o caos, a incerteza, o que não

deixa de ser também um objetivo "interessado".

O que é, então, que torna possível praticar a arte como atividade

"desinteressada"? Por que esta situação é hoje mais sensível que nunca?

Desde que o mundo é mundo, quer dizer, desde que o mundo é mundo

dividido em classes essa situação tem estado latente. Se hoje tenha se

tornado mais aguda é precisamente porque hoje começa a existir a

possibilidade de superá-la. Não por uma tomada de consciência, não pela

vontade expressa de nenhum artista, senão porque a própria realidade

começou a revelar sintomas (nada utópicos) de que “no futuro já não

haverá pintores senão, quando muito, homens, que, entre outras coisas
pratiquem a pintura”. (Marx)

Não pode haver arte "desinteressada", não pode haver um novo e

verdadeiro salto qualitativo na arte, se não se termina, ao mesmo tempo e

para sempre, com o conceito e a realidade “elitista” na arte. Três fatores

podem favorecer nosso otimismo: o desenvolvimento da ciência, a presença

social das massas, a potencialidade revolucionária no mundo

6
contemporâneo. Os três sem ordem hierárquica, os três inter-relacionados.

Por que se teme à ciência? Por que se teme que a arte possa ser esmagada

diante da produtividade e utilidade evidentes da ciência? Por que esse

complexo de inferioridade? É certo que lemos hoje com muito mais prazer,

um bom ensaio que uma novela. Por que repetimos então, com horror, que

o mundo se torna mais interessado, mais utilitário, mais materialista? Não

é realmente maravilhoso que o desenvolvimento da ciência, da sociologia,

da antropologia, da psicologia, contribuam para “depurar” a arte? A

aparição, graças à ciência, de meios expressivos como a fotografia e o

cinema (o que não implica em invalidá-los artisticamente) não fez possível

uma maior “depuração” na pintura e no teatro? Hoje a ciência não torna

anacrônicos tantas análises “artísticas” sobre a alma humana? Não nos

permite a ciência livrar-nos hoje de tantos filmes cheios de charlatanias e

disfarces com isso que tem se dado chamar de mundo poético? Com o

avanço da ciência a arte não tem o que perder, ao contrário, tem todo um

mundo que ganhar. Qual é o temor, então? A ciência desnuda a arte e

parece que não é fácil andar sem roupas pela rua.

A verdadeira tragédia do artista contemporâneo é estar na possibilidade de

exercer a arte como atividade minoritária. Diz-se que a arte não pode

seduzir sem a cooperação do sujeito que faz a experiência. Está certo. Mas

o que fazer para que o público deixe de ser objeto e se converta em sujeito?

O desenvolvimento da ciência, da técnica, das teorias e práticas sociais

mais avançadas, tem feito possível, como nunca, a presença ativa das

massas na vida social. No plano da vida artística há mais espectadores que

7
em nenhum outro momento da história. É a primeira fase de um processo

"deselitário". Do que se trata agora é de saber se começam a existir as

condições para que esses espectadores se convertam em autores. Quer

dizer, não em espectadores mais ativos, em co-autores, senão em

verdadeiros autores. Do que se trata é de perguntar-se se a arte é

realmente uma atividade de especialistas. Se a arte, por desígnios extra-

humanos, é possibilidade de alguns ou possibilidade de todos.

Como confiar as perspectivas e as possibilidades da arte à simples

educação do povo, em nada mais que espectadores? O gosto definido pela

“alta cultura”, uma vez superada por ela mesma, não passa ao resto da

sociedade como resíduo que devoram e ruminam os não convidados para o

festim? Não tem sido esta uma eterna espiral convertida hoje, afinal, em

círculo vicioso? O camp (tendência que revaloriza o que está fora de moda.

N. Do T.) e sua ótica (entre outras) sobre o velho, é uma tentativa de

resgatar estes resíduos e encurtar a distância com o público. Mas a

diferença é que o camp os resgata como valor estético, apesar de que para

o público continuam sendo todavia valores éticos.

Nos perguntamos se é irremediável para um presente e um futuro

realmente revolucionários ter “seus” artistas, “seus” intelectuais, como a

burguesia teve os “seus”. O verdadeiramente revolucionário não é tentar,

desde já, contribuir com a superação desses conceitos e práticas

minoritárias, mais que em perseguir in aeternum a “qualidade artística” da

obra? A atual perspectiva da cultura artística não é mais a possibilidade

de que todos tenham o gosto de alguns, senão a de que todos possam ser

8
criadores da cultura artística. A arte sempre foi uma necessidade de todos.

O que não tem sido uma possibilidade de todos em condições de

igualdade. Simultaneamente à arte culta vem existindo a arte popular.

A arte popular não tem nada a ver com a chamada arte de massas. A arte

popular necessita, portanto tende a desenvolver, o gosto pessoal,

individual, do povo. A arte de massas ou para as massas, pelo contrário,

necessita que o público não tenha gosto. A arte de massa será na realidade

tal, quando verdadeiramente seja feita pelas massas. A arte de massas,

hoje em dia, é a arte que alguns poucos fazem para as massas. Grotowski

diz que o teatro de hoje deve ser de minorias porque é o cinema que pode

fazer a arte de massas. Não está certo. Possivelmente não existe uma arte

mais minoritária hoje que o cinema. O cinema hoje, em toda a parte, é

feito por uma minoria para as massas. Possivelmente seja o cinema a arte

que demore mais para chegar ao poder das massas. A arte de massas é,

pois, a arte popular, o que fazem as massas. Arte para as massas é, como

bem diz Hauser, a produção desenvolvida por uma minoria para satisfazer

a demanda de uma massa reduzida ao único papel de espectadora e

consumidora.

A arte popular é o que tem feito sempre a parte mais inculta da sociedade.

Mas este setor inculto conseguiu preservar para a arte características

profundamente cultas. Uma delas é que os criadores são ao mesmo tempo

os espectadores e vice-versa. Não existe entre quem a produz e quem a

recebe uma linha tão marcadamente definida. A arte culta, em nossos

dias, alcançou também essa situação. A grande cota de liberdade da arte

9
moderna não é mais que a conquista de um novo interlocutor: O próprio

artista. Por isso é inútil esforçar-se, lutar para que se substitua a

burguesia pelas massas, como novo e potencial espectador. Esta situação

mantida pela arte popular, conquistada pela arte culta, deve fundir-se e

converter-se em patrimônio de todos. Esse e não outro deve ser o grande

objetivo de uma cultura artística autenticamente revolucionária.

Porém a arte popular conserva outra característica ainda mais importante

para a cultura. A arte popular se realiza como uma atividade a mais da

vida. A arte culta o contrário. A arte culta se desenvolve como atividade

única, específica, quer dizer, se desenvolve não como atividade senão como

realização de tipo pessoal. Eis aí o preço cruel de haver tido que manter a

existência da atividade artística às custas da inexistência dela no povo.

Pretender realizar-se à margem da vida não tem sido um pretexto muito

doloroso para o artista e para a própria arte? Pretender a arte como seita,

como sociedade dentro da sociedade, como terra prometida, onde podemos

realizar-nos fugazmente por um momento, por uns instantes, não é

criarmos a ilusão de que realizando-nos no plano da consciência nos

realizamos também no da existência? Não resulta tudo isso demasiado

óbvio nas atuais circunstâncias? A lição essencial da arte popular é que

esta é realizada como uma atividade dentro da vida, que o homem não

deve realizar-se como artista senão como homem.

No mundo moderno, principalmente nos países capitalistas desenvolvidos

e nos países em processo revolucionário, há sintomas alarmantes, sinais

evidentes que pressagiam uma mudança. Diríamos que começa a surgir a

10
possibilidade de superar essa tradicional dissociação. Não são sintomas

provocados pela consciência, mas pela própria realidade. Grande parte da

batalha da arte moderna é, de fato, para “democratizar” a arte. Que outra

coisa significa combater as limitações do gosto, a arte para museus, as

linhas marcadamente divisórias entre criador e público? Que é hoje a

beleza? Onde se encontra? Nos rótulos de sopas Campbell's, na tampa de

uma lata de lixo? Nos “muñequitos” (Publicação particularmente destinada

a crianças com historinhas ou piadas que são narradas por vinhetas ou

quadros contendo ilustrações e textos em geral.N do T.)? Se pretende hoje

até questionar o valor de eternidade na obra de arte? Que significam essas

esculturas, aparecidas em recentes exposições, feitas de blocos de gelo e

que, por conseqüência, se derretem enquanto o público as observa? Não é

- mais que a desaparição da arte - a pretensão de que desapareça o

espectador? E o valor da obra como valor irreprodutível? Têm menos valor

a reprodução de nossos charmosos cartazes que o original? E o que dizer

das infinitas cópias de um filme? Não existe um afã por saltar a barreira

da arte “elitária” nesses pintores que confiam a qualquer um, não já a seus

discípulos, parte da realização da obra? Não existe igual atitude dos

compositores cujas obras permitem ampla liberdade a seus executantes?

Não há toda uma tendência na arte moderna de fazer participar cada vez

mais ao espectador? Se cada vez participa mais, aonde chegará? Não

deixará, então, de ser espectador? Não é este ou não deve ser este, ao

menos, o desenlace lógico? Não é esta uma tendência coletivista e

individualista ao mesmo tempo? Se se implanta a possibilidade da

participação de todos, não se está aceitando a possibilidade de criação

11
individual que temos todos? Quando Grotowski fala de que o teatro de hoje

deve ser de minorias não se equivoca? Não é justamente o contrário?

Teatro da pobreza não quer dizer na verdade teatro do mais alto

refinamento? Teatro que não necessita de vestuário, cenografia,

maquiagem, inclusive cenário. Não quer dizer isto que as condições

materiais reduziram-se ao máximo e que, desde esse ponto de vista, a

possibilidade de fazer teatro está ao alcance de todos? E o fato de que o

teatro tenha cada vez menos público não quer dizer que as condições

começam a estar maduras para que se converta em um verdadeiro teatro

de massas? Talvez a tragédia do teatro seja de que tenha chegado cedo

demais a esse ponto de sua evolução.

Quando olhamos para a Europa nós cruzamos os braços. Vemos a velha

cultura impossibilitada hoje de dar uma resposta aos problemas da arte.

Na verdade sucede que a Europa já não pode responder de forma

tradicional e, ao mesmo tempo, lhe é muito difícil fazê-lo de uma maneira

inteiramente nova. A Europa já não é capaz de dar para o mundo um novo

“ismo” e não está em condições de fazer-los desaparecer para sempre.

Pensamos então que chegou o nosso momento. Que enfim os

subdesenvolvidos podem disfarçar-se de homens “cultos”. É nosso maior

perigo. Essa é nossa maior tentação. Esse é o oportunismo de alguns em

nosso Continente. Porque, efetivamente, dado o atraso técnico e científico,

dada a pouca presença das massas na vida social, ainda assim este

Continente pode responder de forma tradicional, quer dizer, reafirmando o

conceito e a prática “elitária” na arte. E talvez então a verdadeira causa do

aplauso europeu a algumas de nossas obras, literárias e fílmicas, não seja


12
outra que a de uma certa nostalgia que lhes provocamos. Depois de tudo o

europeu não tem outra Europa a quem voltar os olhos. Entretanto, o

terceiro fator, o mais importante de todos, a Revolução, está presente em

nós como em nenhuma outra parte. E ela sim é nossa verdadeira

oportunidade. É a Revolução o que torna possível outra alternativa, o que

pode oferecer uma resposta autenticamente nova, o que nos permite

varrer de uma vez e para sempre com nossos conceitos e práticas

minoritárias na arte. Porque é a revolução e o processo revolucionário a

única coisa que pode tornar possível a presença total e livre das massas.

Porque a presença total e livre das massas será o desaparecimento

definitivo da estreita divisão do trabalho, da sociedade dividida em classes

e setores. Por isso para nós a Revolução é a expressão mais alta da

cultura, porque fará desaparecer da cultura artística como cultura

fragmentária do homem.

Para esse futuro certo, para essa perspectiva inquestionável, as respostas

no presente podem ser tantas quantas países existem em nosso

continente. Cada parte, cada manifestação artística deverá achar a sua

própria, posto que as características e os níveis alcançados não iguais.

Qual pode ser a do cinema cubano em particular?

Paradoxalmente pensamos que será uma nova poética e não uma nova

política cultural. Poética cuja verdadeira finalidade será, entretanto,

suicidar-se, desaparecer como tal. A realidade, ao mesmo tempo, é que

ainda existirão entre nós outras concepções artísticas (que entendemos,

além disso, produtivas para a cultura) como existem a pequena

13
propriedade campesina e a religião. Mas é certo que em matéria de política

cultural encontramos um problema sério: a escola de cinema. É justo

seguir desenvolvendo especialistas de cinema? No momento parece

inevitável. E qual será nossa eterna e fundamental lavra? Os alunos das

Escolas de Arte e Letras da Universidade? E não temos que planejar desde

agora se dita escola deverá ter uma vida limitada? O que perseguimos com

a Escola de Artes e Letras? Futuros artistas em potencial? Futuro público

especializado? Não temos que ir perguntando se desde agora podemos

fazer algo para ir acabando com essa divisão entre cultura artística e

cultura científica? Qual é o verdadeiro prestígio da cultura artística? De

onde vem esse prestígio que, inclusive, torna possível monopolizar para si

o conceito total de cultura? Não está baseado, por acaso, no enorme

prestígio que gozara sempre o espírito acima do corpo? Não se tem visto

sempre à cultura artística como uma parte espiritual da sociedade e à

científica como seu corpo? A rejeição tradicional ao corpo, à vida material,

aos problemas concretos da vida material, não se devem também a que

temos o conceito de que as coisas do espírito são mais elevadas, mais

elegantes, mais sérias, mais profundas? Não podemos, desde já, ir fazendo

algo para acabar com essa artificial divisão? Não podemos ir pensando

desde agora que o corpo e as coisas do corpo são também elegantes, que a

vida material também é bela? Não podemos entender que, na realidade, a

alma está no corpo, como o espírito na vida material, como – para falar

inclusive em termos estritamente artísticos - o fundo na superfície, o

conteúdo na forma? Não devemos pretender então que nossos futuros

alunos e, portanto, nossos futuros cineastas sejam os próprios cientistas

14
(sem que deixem de atuar como tais, desde já), os próprios sociólogos,

médicos, economistas, agrônomos, etc.? E por outro lado,

simultaneamente, não devemos tentar o mesmo para os melhores

trabalhadores das melhores unidades do país, os trabalhadores que mais

estão se superando educacionalmente, que mais estão se desenvolvendo

politicamente? Parece-nos evidente que se possa desenvolver o gosto das

massas ainda que exista a divisão entre as duas culturas, ainda que as

massas não sejam as verdadeiras donas dos meios de produção artísticas?

A revolução nos liberou como setor artístico. Não nos parece

completamente lógico que sejamos nós mesmos quem contribuirá com a

liberação dos meios privados de produção artística? Sobre estes

problemas, naturalmente, haverá que se pensar e discutir muito ainda.

Uma nova poética para o cinema será, antes de tudo e sobretudo, uma

poética "interessada", uma arte "interessada", um cinema consciente e

resolutamente "interessado", quer dizer, um cinema imperfeito. Uma arte

"desinteressada", como plena atividade estética, já só se poderá fazer

quando for o público quem faça à arte. A arte hoje deverá assimilar uma

cota de trabalho no interesse de que o trabalho vá assimilando uma cota

da arte.

A divisa deste cinema imperfeito (que não há que inventar porque já foi

criada) é: "Não nos interessam os problemas dos neuróticos, nos

interessam os problemas dos lúcidos", como diria Glauber Rocha.

A arte não necessita mais do neurótico e de seus problemas. É o neurótico

quem segue necessitando da arte, e o necessita como objeto interessado,

15
como alívio, como pretexto ou, como diria Freud, como sublimação de seus

problemas. O neurótico pode fazer arte mas a arte não tem por que fazer

neuróticos. Tradicionalmente se considerou que os problemas para arte

não estão nos sãos, mas nos doentes, não estão nos normais, mas nos

anormais, não estão nos que lutam, mas nos que choram, não estão nos

lúcidos, mas nos neuróticos. O cinema imperfeito está mudando esta

imposição. É no enfermo e não no sadio em quem mais acreditamos, em

quem mais confiamos, porque a sua verdade a purifica o seu sofrimento.

Entretanto o sofrimento e a elegância não têm por que serem sinônimos.

Há todavia uma corrente na arte moderna – relacionada, sem dúvida, com

a tradição cristã - que identifica a seriedade com o sofrimento. O fantasma

de Margarita Gauthier ("Camille" ("A Dama das Camélias" (título no Brasil)

ou "Margarida Gauthier" (título em Portugal) é um filme norte-americano

de 1937, do gênero drama, dirigido por George Cukor e estrelado por Greta

Garbo e Robert Taylor. N. Do T.) impregna ainda a atividade artística de

nossos dias. Só o que sofre, só o que está doente, é elegante e sério e até

belo. Só nele reconhecemos a possibilidade de uma autenticidade, de uma

seriedade, de uma sinceridade. É necessário que o cinema imperfeito

acabe com essa tradição. Afinal, não só as crianças, também os adultos

nasceram para ser felizes.

O cinema imperfeito acha um novo destinatário nos que lutam. E, nos

problemas destes, encontra sua temática. Os lúcidos, para o cinema

imperfeito, são aqueles que pensam e sentem que vivem em um mundo

que podem mudar, que, apesar dos problemas e das dificuldades, estão

convencidos que o podem mudar, que, apesar dos problemas e das


16
dificuldades, estão convencidos que o podem mudar e

revolucionariamente. O cinema imperfeito não tem, então, que lutar para

fazer um público. Ao contrário. Pode dizer-se que, neste momento, existe

mais “público” para um cinema desta natureza que cineastas para o dito

“público”.

O que nos exige este novo interlocutor? Uma arte carregada de exemplos

morais dignos de serem imitados? Não. O homem é mais criador que

imitador. Por outro lado, os exemplos morais é ele que nos pode dar. Se por

acaso pode nos pedir uma obra mais plena, total, não importa se dirigida

conjunta ou diferenciadamente, à inteligência, à emoção ou à intuição.

Pode nos pedir um cinema de denúncia? Sim e não. Não, se a denúncia

está dirigida aos outros, se a denúncia é concebida para que se

compadeçam de nós e tomem consciência os que não lutam. Sim, se a

denúncia serve como informação, como testemunho. Como uma arma a

mais de combate para os que lutam. Denunciar o imperialismo, para

demonstrar uma vez mais que é mau? Para quê se os que lutam já lutam

principalmente contra o imperialismo? Denunciar o imperialismo mas,

sobretudo, naqueles aspectos que oferecem a possibilidade de planejar-lhes

combates concretos. Um cinema, por exemplo, que denuncie aos que

buscam os “passos perdidos” de um capanga que têm que julgar, seria um

excelente exemplo de cinema-denúncia.

Ao cinema imperfeito entendemos que exige, sobretudo, mostrar os

processos dos problemas. Quer dizer, o contrário a um cinema que se

dedique fundamentalmente a celebrar os resultados. O contrário a um

17
cinema auto-suficiente e contemplativo. O contrário a um cinema que

“ilustra belamente” as idéias ou conceitos que já possuímos. (A atitude

narcisista não tem nada a ver com os que lutam). Mostrar um processo

não é precisamente analisá-lo. Analisar, no sentido tradicional da palavra,

implica sempre um juízo prévio, fechado. Analisar um problema é mostrar

o problema (não seu processo) impregnado de juízos que gera a priori a

própria análise. Analisar é bloquear de antemão a possibilidade de análise

do interlocutor. Mostrar o processo de um problema é submetê-lo a um

juízo, sem emitir o discurso. Há um tipo de jornalismo que consiste em dar

o comentário mais que a notícia. Há outro tipo de jornalismo que consiste

em dar as notícias valorizando-as porém através da composição ou

paginação do jornal. Mostrar o processo de um problema é como mostrar o

desenvolvimento próprio da notícia, sem o comentário, é como mostrar o

desenvolvimento pluralista - sem valorizá-lo - de uma informação. O

objetivo é a seleção de um problema condicionada pelo interesse do

destinatário, que é o sujeito. O objetivo seria mostrar o processo, que é o

objeto.

O cinema imperfeito é uma resposta. Porém também é uma pergunta que

irá encontrando suas respostas em seu próprio desenvolvimento. O cinema

imperfeito pode utilizar o documentário ou a ficção ou ambos. Pode utilizar

um gênero ou outro ou todos. Pode utilizar o cinema como arte pluralista

ou como expressão específica. Para ele é igual. Não são estas suas

alternativas, nem seus problemas, nem muito menos seus objetivos. Não

são estas nem as batalhas nem as polêmicas que lhe interessa libertar.

18
O cinema imperfeito pode ser também divertido. Divertido para o cineasta

e para o seu novo interlocutor. Os que lutam não lutam à margem da vida

mas dentro. A luta é vida e vice-versa. Não se luta para “depois” viver. A

luta exige uma organização que é a organização da vida. Ainda que, na fase

mais extrema, como é a guerra total e direta, a vida se organiza, o que é

organizar a luta. E na vida como na luta há de tudo, inclusive a diversão.

O cinema imperfeito pode divertir-se, precisamente, com tudo aquilo que o

nega.

O cinema imperfeito não é exibicionista no duplo sentido literal da palavra.

Não o é no sentido narcisista; nem o é no sentido mercantilista, quer dizer,

no marcado interesse de exibir-se em salas ou circuitos estabelecidos. Há

que lembrar que a morte artística do vedetismo nos atores resultou

positivamente para a arte. Não há porque duvidar que o desaparecimento

do vedetismo nos diretores possa oferecer perspectivas similares.

Justamente o cinema imperfeito deve trabalhar, desde já, em conjunto com

sociólogos, dirigentes revolucionários, psicólogos, economistas, etc. Por

outro lado o cinema imperfeito rechaça os serviços da crítica. Considera

anacrônica a função de mediadores e intermediários.

Ao cinema imperfeito não interessa mais a qualidade nem a técnica. O

cinema imperfeito pode fazer o mesmo com uma Mitchell ou uma câmera 8

mm. O mesmo se pode fazer em um estúdio, que com uma guerrilha no

meio da selva. Ao cinema imperfeito não interessa mais um gosto

determinado e muito menos o “bom gosto”. Da obra de um artista não lhe

interessa mais encontrar a qualidade. A única coisa que lhe interessa de

19
um artista é saber como responde à seguinte pergunta: Que faz para saltar

a barreira de um interlocutor “culto” e minoritário que até agora

condiciona a qualidade de sua obra?

O cineasta dessa nova poética não deve ver nela o objeto de uma realização

pessoal. Deve ter também desde já, outra atividade. Deve hierarquizar sua

condição ou sua aparição de revolucionário acima de tudo. Deve tratar de

realizar-se, em uma palavra, como homem e não só como artista. O cinema

imperfeito não pode esquecer que o seu objetivo essencial é o de

desaparecer como nova poética. Não se trata mais de substituir uma escola

por outra, um ismo por outro, uma poesia por uma anti-poesia, senão de

que, efetivamente, cheguem a surgir mil flores distintas. O futuro é do

folclore. Não exibamos mais o folclore com orgulho demagógico, com um

caráter celebrativo, exibamo-los mais como uma denúncia cruel, como

testemunho doloroso do nível que os povos foram obrigados a deter seu

poder de criação artística. O futuro será, sem dúvida, do folclore. Porém,

então, já não haverá necessidade de chamá-lo assim porque nada nem

ninguém poderá voltar a paralizar o espírito criador do povo.

A arte não vai desaparecer no nada. Vai desaparecer no tudo.

Havana, 7 de dezembro de 1969.

* Texto que influenciou o Manifesto de los Cineastas de la Unidad Popular.

20
Extraído de:

Hablemos de cine, nº 55/56, Lima, set/dez, 1970. Pp. 37-42.

Reproduzido em: GARCIA ESPINOSA, J. Por un cine imperfecto. Caracas: Rocinante,


1970. Pp. 11-32 e _________. La doble moral del cine. Madri: EICTV/Ollero & Ramos,
1996. Pp 13-28.

Texto traduzido por Luzilene Cardoso de Souza e Luciano José de Freitas, a partir de
original em espanhol publicado em 15/09/2010 na Revista Universitária do Audiovisual, e
disponível no endereço eletrônico: http://www.ufscar.br/rua/site/p=3065.

Sobre o autor:

Julio García Espinosa (nascido em 1926) é um diretor de cinema cubano e roteirista.


Ele dirigiu quatorze filmes entre 1955 e 1998. Seu 1967 filme As Aventuras de Juan
Quin Quin foi inserido no Festival de Cinema de 5ª Moscow International. (fonte
Wikipedia)

21

Você também pode gostar