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ARTIGOS

Depois das 20 Anotações introdutórias, o texto dos EE traz o "Título“(EE 21). Logo
na 1a anotação, Santo Inácio fazia-nos ver o fim dos exercícios: buscar e encontrar a
vontade divina, orientando toda a nossa vida para ela. Condição para este fim é tirar
de si todas as afeições desordenadas, isto é, “vencer-se a si mesmo”.Traduzimos a
parte final de um artigo do Pe. Claude Viard, publicado na revista francesa Christus,
nº 124 (1984, hors série), pp. 28-32. Na primeira parte, o autor tratava do "inimigo"
(como Inácio chama ao demônio) e da sua "tática" (a "mentira" e a "ilusão").

"VENCER-SE A SI MESMO" (EE 21)


Pe. Claude Viard, SJ

Trata-se de vencer, o título dos Exercícios o diz claramente:

"EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS para vencer a si mesmo e ordenar a própria vida, sem


se determinar por nenhuma afeição desordenada" (EE 21).

Se esquecemos a realidade do "inimigo" e a dimensão simbólica de conflito1 que ele


dá aos Exercícios, a expressão "vencer-se a si mesmo" adquire uma conotação
voluntarista e puramente ascética, que seria criticável e até perigosa. Mas ela tem
um sentido legítimo: vencer em nós o "inimigo" e aquilo que, em nós, é conivente
com ele ou pode expor-nos à sua ação.

Vencer o "inimigo"

Vencer o inimigo passa pelas vitórias do exercitante sobre si mesmo. Vitórias a


serem alcançadas nos períodos chamados de "desolação", quando a presença de
Deus não é mais sentida. Trata-se, então de viver positivamente a provação em vez
de sofrê-la passivamente, não ceder às ciladas da subjetividade, mantendo o tempo
previsto para a oração e até um pouquinho mais, "para acostumar-se a resistir ao
adversário, e mais ainda a derrotá-lo" (EE 13,2); não mudar nada do que foi decidido
no tempo que precedeu à desolação (EE 318), mas reagir vigorosamente contra a
mesma desolação (EE 319).
Vencer o "inimigo" é simplesmente "enfrentar sem medo suas tentações, fazendo o
diametralmente oposto" (EE 325); ou ainda ousar encarar as zonas obscuras de si
mesmo, onde se esconde algum bloqueio, ou então desmascarar as ciladas do
segredo, falando das "astúcias e insinuações do inimigo" (EE 326). E sabemos
como, às vezes, precisa fazer-se violência para ter a coragem de falar a alguém
daquilo que nos perturba.

“Dispor-se para Deus"

"Vencer-se a si mesmo" revela seu sentido quando situamos esta expressão no


processo espiritual que é o coração dos Exercícios: deixar-se confrontar ou avaliar
por Deus, isto é, deixar que Deus seja a medida do amor que lhe temos e da
decisão espiritual que traduz este amor. Ora é isto "ordenar a própria vida, sem se
determinar por nenhuma afeição desordenada", que exige "vencer-se a si mesmo".
No momento de ter que "determinar-se", mesmo entre vários bens, trata-se de
desmascarar as ciladas que dão vez ao "inimigo", como os impulsos da
sensibilidade, os limites do ponto de vista individual, a pretensão sempre temível de
querer ser autor da própria perfeição.
No entanto, esta vitória, é recebida, por ser da ordem da disposição para Deus,
como esclarece a primeira anotação: "chamam-se exercícios espirituais todo modo
da pessoa se preparar e dispor para tirar de si todas as afeições desordenadas. E
depois de as tirar, buscar e encontrar a vontade divina na disposição de sua vida
para a salvação" (EE 1,3-4). "Preparar-se e dispor-se para tirar de si todas as
afeições desordenadas", em outras palavras, "vencer-se a si mesmo", aparece
assim como passagem para a atitude de disponibilidade para Deus: "buscar e
encontrar a vontade divina na disposição de sua vida", vale dizer, deixar-se
confrontar ou avaliar por Deus.

A mola impulsora desta caminhada é o desejo de corresponder mais ao desejo de


Deus, segundo a perspectiva do "Fundamento": "desejando e escolhendo somente
aquilo que mais nos conduz ao fim para o qual somos criados" (EE 23,7). E é para
acolher em si este mais que o exercitante se engaja no combate espiritual, como
aparece no momento da oblação do Reino: "Os que quiserem aspirar a mais...
agindo contra a sua própria sensualidade e contra o seu amor carnal e mundano,
farão oblações de maior estima e valor..." (EE 97). Oblação que só pode ser dada ao
exercitante, à condição de que ele se deixe unificar, comprometendo-se com o
Cristo pobre, humilhado e humilde, no sentido oposto ao do pecado.

Neste ponto crucial do itinerário, o combate espiritual pode intensificar-se e tomar


uma forma decisiva, porque permanece um obstáculo a deixar-se dispor, obstáculo
a superar na oração de união com Cristo pobre, humilhado e humilde: "Para que o
Criador e Senhor atue mais seguramente na sua criatura, se a pessoa estiver
desordenadamente afeiçoada e inclinada a alguma coisa, é muito conveniente
mover-se, com todas as suas forças, para chegar ao contrário daquilo a que está
mal afeiçoada" (EE 16,1-2). "Com todas as suas forças": a oração é susceptível de
revestir uma certa força, na sua insistência, como diz o mesmo texto: "Insista em
orações e outros exercícios espirituais, pedindo a Deus nosso Senhor o contrário... a
não ser que a divina Majestade ponha em ordem os desejos, mudando-lhe a
primeira afeição" (EE 16,4-5).

Notemos: pedir o contrário não significa decidir de antemão praticar o mais difícil de
forma voluntarista. Por isso, Inácio acrescenta: "a menos que a divina Majestade,
ordenando seus desejos, mude sua primeira afeição". Engajar-se, "com todas as
forças" no combate a ser travado na oração, na súplica para que eu seja recebido
sob a bandeira do Cristo pobre, humilhado e humilde (cf. EE 147; 156, 159), é abrir-
se a Deus, na espera de sentir "o que Deus nosso Senhor lhe puser na vontade"
(155); é abrir campo a seu próprio desejo, para além das imagens, das quais é
prisioneiro. Tal é a vitória sobre si mesmo, recebida de Deus.

Engajados no mesmo combate.

No seu processo de crise, o exercitante é ajudado por aquele que lhe dá os


exercícios. Testemunha do conflito do exercitante, o orientador deve respeitar a
dinâmica. Ele ajuda nos momentos difíceis (EE 7), mas não pode anular os efeitos
do conflito, muito menos impedir que aconteça. Por isso, chega a não responder
certas perguntas, que não têm a ver com a experiência em curso ou cortar
explicações que só reforçariam os álibis do exercitante, suas resistências a deixar vir
à tona os verdadeiros desafios.

Nisso, o orientador pode produzir uma certa violência sobre o exercitante, fazendo o
papel de quem frustra e não compreende. É o risco a correr, o preço a pagar. Mas
ele não o fará com conhecimento de causa, se ele próprio não se fizer violência,
para permanecer no seu lugar, para superar suas resistências, sua angustia e seu
medo, ou seu desejo de triunfar, de ser bem aceito.

Finalmente, o orientador deve se violentar para submeter-se ao texto que o vincula


ao exercitante, o texto dos Exercícios e o texto não escrito, mas tecido pela
caminhada do exercitante, e do qual o orientador não é autor.

Conclusão

A dimensão conflitual marca a experiência dos Exercícios. Indica que estes não são
um caminho predeterminado, nem um programa de temas de oração a ser realizado
em determinado tempo, são um processo, original para cada exercitante, que se
desenvolve com patamares a alcançar, provas a superar, conflitos a resolver. Nesse
processo experimentam-se efeitos de violência, identificáveis pelo discernimento.
Mas este só é possível se há alguma coisa a "ler", isto é, se o processo de crise se
desencadeou.

Nesta perspectiva situa-se, muito naturalmente, a expressão "vencer-se a si


mesmo", expressão talvez um tanto temível, nas que faz parte do título dos
Exercícios.

Para o exercitante em busca de verdade sobre sua vida, "vencer a si mesmo" é


vencer a violência do "inimigo", vencer também as ciladas das suas próprias ilusões,
bem como suas resistências, numa palavra, vencer tudo o que violenta a liberdade
que ele procura e que Deus quer para ele. É, finalmente, acolher a vitória de Deus
que, em Jesus Cristo, superou já a violência primeira do "inimigo da natureza
humana".

NOTAS:
1
Quando o exercitante entra no processo dos Exercícios leva já em si um conflito
fundamental. Põe-se a caminho para ver claro em si mesmo, para saber o que deve
fazer. Ele chega com toda sua história, tecida de conflitos resolvidos ou não, com
suas zonas claras e outras obscuras, triunfos e decepções, talvez ferido pela
existência. Quem é ele em verdade? Quem quer ser? Há aí um conflito, latente, que
opõe seu desejo profundo e a imagem de si que ele mesmo forjou ou que os outros
fizeram dele. Quer "encontrar a vontade divina na disposição de sua vida" (EE 1,4),
mas algo se opõe nele, como em todo ser humano: o sonho de construir-se a si
mesmo ou de ser diferente do que ele é.

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