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Christianne de M. Gally1
Universidade Tiradentes
As gerações que se formaram sob sua [dos jesuítas] direção espiritual, em mais de
dois séculos, souberam, pois, transmitir quase na sua integridade o patrimônio de
uma cultura homogênea, – a mesma língua, a mesma religião, a mesma concepção
de vida e os mesmos ideais de ‘homem culto’(...). Humanistas por excelência e os
maiores de seu tempo, concentraram todo o seu esforço, do ponto de vista
intelectual, em desenvolver, nos seus discípulos as atividades literárias e acadêmicas
que correspondiam, de resto, aos ideais, de homem culto em Portugal onde, como e
toda a península ibérica, se encastelara o espírito da Idade Média e a educação,
dominada pelo clero, não visava por essa época senão formar letrados e eruditos.
(Azevedo, s.d, p. 516).
A cultura humanística, dessa forma, pode ser muito mais definida por sua finalidade
própria do que por seu conteúdo lingüístico e literário. Ela representava uma “educação
gratuita, desinteressada, isto é, desprovida de todo objetivo imediatista”. (Chervel, 1992).
Era, portanto, função dos estudos de Humanidades formar a aristocracia e preparar as elites
condutoras do país.
... o caráter desse modelo serviu a uma elite que tinha como parâmetro de cultura o
mundo ocidental europeu, que incluía a admiração ao seu passado clássico. Os
textos gregos e latinos, além da ênfase no estudo da Antigüidade, reforçavam, pelo
ensino, a ligação espiritual do restrito círculo de pessoas que viajavam e conheciam
a língua e a história das nações civilizadas. Essa cultura, especulativa e
desinteressada foi a marca de distinção de uma elite (...) que permitia aos seus
possuidores títulos oficiais, cargos e funções públicas. (Gasparello, 2002, p. 274).
As letras e a ciência
Gramática “é ciência”
Em Sergipe, essas reformas provocaram algumas dissensões no palco do curso de
Humanidades do Atheneu Sergipense que apresentava um caráter enciclopédico,
desprovido de todo objetivo imediatista e, inicialmente, constituído pela reunião das
disciplinas isoladas de Latim, Francês, Geografia e História, Aritmética, Álgebra e
Geometria, Retórica e Poética, filosofia Racional e Moral, Inglês e Gramática Nacional.
Apesar de ser instalado em 1870, no momento em que a reforma estava ainda sendo
implantada, o Atheneu Sergipense enfrentou algumas dificuldades em estabelecer
definitivamente o curso de Humanidades. Em relação a este fato, o articulista do jornal A
Liberdade se pronunciou:
É verdade que já temos visto quem condene o ensino clássico que se faz no Atheneu e,
entre outras heresias que nesta matéria ouvimos proferir na Assembléia Provincial por
um membro da comissão de instrução pública, sobressaía essa extravagante opinião do
que a mocidade sergipana carece apenas dos esclarecimentos que lhe permitiam
alcançar essa ou aquela indústria. Não nos parece porem que as pessoas que estudam os
problemas e sobre ele pensam refletidamente possam abraçar semelhante opinião, que
serve unicamente para demonstrar que também ha materialistas em questões de
instrução pública. Em um século todo de tendências positivistas, quando a vontade de
enriquecer é uma verdadeira que abaixa deploravelmente o nível social, e os progressos
sempre crescentes da democracia fazem diminuir cada dia o número daqueles que se
podem exclusivamente ocupar com as cousas do espírito, é perigoso preparar e
estimular a mocidade para correr em busca do ouro. (Cardoso, 1873).
Se vai aprender as línguas mortas, sai-lhe, em luta titânica, a sublime e escabrosa teoria
gramatical que, aplicada à própria língua (...), percebe-se e compreende-se muito mais
facilmente do que aplicada às línguas desconhecidas. (...) Isto é claro, porque todas as
línguas estão sujeitas às mesmas noções gerais e imutáveis, porque a ciência gramatical
é anterior a todas as línguas e, finalmente, porque as diferenças que se notam entre elas
são acidentais, são de formas, são de construções, mas nunca de princípios. (Cardoso,
1873).14
a quem quer que seja, a nenhum homem, deixar de conhecer a lei do discurso, as leis da
proposição, o valor e peso específico das palavras, dependendo o valor de suas idéias da
lógica e sã construção da frase e do verdadeiro emprego dos vocábulos. O homem pode
não ser homem de ciência, mas cometerá um crime da lesa sociabilidade, se descurar-se
de ser homem de educação, o que a ninguém é livre. Será porventura bem educado
aquele que, desprezando a cultura da palavra, o estudo da mecânica da frase desce até
quase confundir-se com o bruto? Certamente não. O mecânico, o artista, o agricultor,
todos devem saber tão bem a sua língua, como o literato e o homem da ciência.
Notas
1
Mestre em Educação/ UFS e professora do Curso de Letras da Universidade Tiradentes.
2
O curso de Humanidades foi alvo de inúmeras definições. Considerada como, “antes, e principalmente, uma
educação, educação estética, Retórica, mas também igualmente moral e cívica” (cf. CHERVEL, André &
COMPÈRE, Marie-Madeleine. As humanidades no ensino. Educação e Pesquisa. São Paulo: FENSP, v. 25,
n.2, p.149-170, jul./dez., 1999), as Humanidades imprimiram um modelo de formação intelectual nos
séculos em que vigorou. (Cf. SOUZA, Roberto Acízelo. O império da eloqüência: Retórica e poética no
Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: EDUFF: EDUERJ, 1999).
3
O período das publicações estende-se de 22 de outubro de 1873 a 14 de abril de 1874.
4
Fundado em 1870, o Atheneu Sergipense fora o responsável pelo ensino secundário na Província. Era ele
composto dos cursos Normal e de Humanidades. Sobre esse assunto, ver GALLY, Christianne. Brício
Cardoso no cenário das Humanidades do Atheneu Sergipense (1870-1874). São Cristóvão: UFS, 2004.
Dissertação de Mestrado; NUNES, Maria Thetis. História da Educação em Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e
Terra; Aracaju: Secretaria de Educação e Cultura do Estado de Sergipe: Universidade Federal de Sergipe.
1984; CALASANS, José. O ensino público em Aracaju: 1830/1871. Revista do IHGS. Aracaju, v. 15, n.º 20,
p. 96-120, 1949/1951; TORRES, Araújo Acrísio. O velho Ateneu Sergipense hoje Colégio Estadual de
Sergipe. Aracaju: Imprensa Oficial, 1970.
5
Esta dominação reflete a luta pela nacionalidade impressa pela corrente romântica. Sobre esse assunto ver
RIBEIRO, João. A língua nacional e outros estudos lingüísticos. Petrópolis: Vozes, 1979; CUNHA, Celso.
Língua portuguesa e realidade brasileira. 8ªed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1981; ELIA, Silvio. O
problema da língua brasileira. Rio de Janeiro: INL: MEC, 1961. GUIMARÃES, Eduardo. Língua de
civilização e línguas de cultura. A língua nacional do Brasil. In: BARROS, Diana Luz Pessoa de(org.). Os
discursos do descobrimento. São Paulo: EDUSP; FAPESP, 2000. CASTRO, José Ariel. Formação e
desenvolvimento da língua nacional brasileira. .In: COUTINHO, Afrânio (direção)& COUTINHO, Eduardo
de Faria (co-direção). A literatura no Brasil. 4ed. São Paulo: Global, 1997. Vol.1.
6
Também conhecida como Gramática Geral, a Gramática filosófica foi a que talvez exercera maior
influência no ensino de Gramática da língua portuguesa durante quase todo o século XIX Ela propunha ser a
ciência das leis da linguagem às quais se submetiam todas as línguas e utilizava a comparação do vernáculo
com o latim.
7
Desde o século XVIII, alguns gramáticos queriam não estipular normas de conduta, mas apenas descrever
as línguas, baseando-se no método histórico-comparativo, que dava suporte às mais recentes pesquisas
científicas na lingüística.
8
Era o método histórico-comparativo aplicado à aprendizagem considerado como o mais inovador no ensino
da língua vernácula. As doutrinas de Max Muller, Miguel Bréal, Gaston Paris, Whitney, Littré, Darmesteter,
Ayer, Brunot, Brachet, Fréderich Diez, Bopp, Adolpho Coelho e outros, passaram a influenciar o ensino da
disciplina Gramática, não só inovando seu método de ensino, como também seus mecanismos de exposição
dos assuntos inerentes a ela. Sobre esse assunto, ver LEROY, Maurice. As grandes correntes da lingüística
moderna. São Paulo:Cultrix, 1971; ROBINS, R. H. Pequena História da Lingüística. Rio de Janeiro: Ao
Livro Técnico, 1983; NEF, Frederic. A linguagem: uma abordagem filosófica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1995.
9
CHERVEL, André. “Quando surgiu o ensino secundário?” Revista da Faculdade de São Paulo, São Paulo,
V. 18, n. 1, p.99-112, 1992.
10
O curso de humanidades oferecido pela instrução secundária se destinava “a formar a elite ilustre e
ilustrada, inserida mais plenamente nos atributos de liberdade e propriedade, portadora de privilégios do
pequeno círculo que participava do poder de Estado, tanto no nível local, quanto no nível mais amplo do
Império”. (NUNES, Clarice. O ‘velho’ e ‘bom’ ensino secundário: momentos decisivos. Revista Brasileira
de Educação. n. 14. mai./jun./jul./ago. 2000.) Ainda sobre esse aspecto, ver NUNES, Maria Thétis. O ensino
secundário e sociedade brasileira. São Cristóvão: Editora da UFS, 1999.; SILVA, Geraldo Bastos. A
educação secundária: perspectiva histórica e teoria. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969; e
HAIDAR, Maria de Lourdes Mariotto. O ensino secundário no Império. São Paulo: Ed. da Universidade de
São Paulo, 1972.
11
Sobre a escolarização dos saberes, ver HEBRARD, Jean. A escolarização dos saberes elementares na
época moderna. Revista Teoria & Educação. Porto Alegre: Ed. Pannonica, 1990.
12
Desde as reformas pombalinas, a gramática era considerada a porta dos outros estudos, da qual depende a
boa eleição dos mais. Mas este aprendizado não deveria partir do estudo da gramática latina como vinha
sendo feito pelos jesuítas. Sobre esse assunto, ver BEZERRA, op. cit.; FÁVERO, Leonor Lopes. As
concepções lingüísticas no século XVII: a gramática portuguesa. Campinas,SP: Unicamp, 1996.
13
Em 1870, através do decreto 4.468 de 1º de fevereiro de 1870, “o programa implantado nesse
estabelecimento dava sinais de declínio da formação tradicional, com nova queda do latim e da Retórica (...).
O quadro de horário das aulas no Colégio Pedro II, de 1865, aponta a diminuição de 23% na carga horária de
latim, assinalando mais um degrau rumo ao declínio da formação clássica, queda que se tornaria irreversível
e acentuada nos programas seguintes”. (RAZZINI, op. cit.).
14
Ele ainda continua: “aquele que estudou a teoria gramatical na sua língua, facilmente, sem enfado, com
pouco trabalho, a estuda nas línguas estranhas. Se tem de aprender as línguas vivas, o conhecimento da
língua vernácula faz delas desaparecer toda a dificuldade etimológica e sintática, por tornar-se fácil de achar
a razão de certas estruturas gramaticais, e de conhecer e de distinguir caráter e a índole de umas e de outras,
restando apenas o embaraço da prosódia, que, nas línguas do norte da Europa, é o desespero dos estudantes”.
15
O conceito de civilização sempre foi bastante discutido na esfera intelectual. Relacionada, às vezes, ao
nível de tecnologia, às maneiras e aos costumes de cada sociedade, a idéia de “civilização/Kultur” expressa
uma consciência nacional (para os franceses e ingleses) ou ainda uma auto-imagem do estrato intelectual da
classe média (para os alemães). Foi a partir da consciência de superioridade ou da consciência de civilização
do seu próprio comportamento e sua corporificação na ciência, nas artes e na tecnologia que a França,
constituiu, por exemplo, para o ocidente, um padrão do que seria civilização numa sociedade. Cf. ELIAS,
Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. V. 1.
Referências bibliográficas