Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos. Mestre em Informática. Mestre em Comunicação.
Docente do Programa de Pós-Graduação do Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento da
Câmara dos Deputados (Brasília, DF). E-mail: andre.sathler@gmail.com.
2
Doutor em Educação. Mestre em Economia. Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (Unesp).
E-mail: vapires@fclar.unesp.br
ECONOMIA DA EDUCAÇÃO, INOVAÇÃO TECNOLÓGICA E O CONCEITO DE CAPITAL HUMANO
DOSSIÊ
cadora do predomínio financeiro-tecnológico nas relações sociais atuais, submetendo-
-as ao crivo da crítica emanada da escola de Frankfurt. Essa tentativa pode fornecer
elementos bastante interessantes para a compreensão das contradições, desconfortos e
angústias que marcam a experiência individual sob um modo de vida sub-repticiamente
regulado, que em muitas circunstâncias faz parecer emancipação o que é subordinação,
esclarecimento o que é obscurantismo, civilização o que é selvageria.
Situado no campo teórico da economia da educação, o artigo discute o conceito
de capital humano a partir de suas dimensões econômicas, apresentando suas afinidades
e contradições com as linhas de pensamento keynesiano, neoclássico e da economia evo-
lucionista schumpeteriana. Aponta-se como possível síntese o pensamento frankfurtiano,
que, por sua vez, tem forte inspiração marxista.
o capitalismo […] é, pela sua própria natureza, uma forma ou método de mudança
econômica, e não apenas nunca está, mas nunca pode estar, estacionário. […]. O
impulso fundamental que inicia e mantém o movimento da máquina capitalista
decorre dos novos bens de consumo, dos novos métodos de produção ou
transporte, dos novos mercados, das novas formas de organização industrial que
a empresa capitalista cria.
3
Educação bancária no sentido atribuído por Paulo Freire, como um processo educativo no qual o professor
tem proeminência, as aulas são expositivas, valorizando a absorção e memorização de uma grande quantidade de
informações, com o aluno assumindo uma postura passiva.
DOSSIÊ
O conhecimento em constante atualização pode ser tomado, num mundo assim
desenhado, como o antídoto, nem sempre seguro, para as incertezas da competição in-
tercapitalista no mercado de bens e serviços, e intertrabalhadores, no mercado de mão-
-de-obra. Isso é o que hoje muitos chamam de sociedade do conhecimento: a sociedade
organizada e movida pelo conhecimento, tomado como fator de produção cuja proprie-
dade, em contrapartida, argumentam alguns (não sem argumentações contrárias), faz do
trabalhador um sócio e não um empregado do capitalista!
Ocorre que, na prática, o que se verifica não é uma transformação da natureza do
vínculo de subordinação do trabalhador, tampouco um processo verdadeiro de enrique-
cimento que afete a divisão vertical do trabalho (pretensamente chamado pelos gurus da
Administração de empowerment). Conforme Lojkine (2002, p. 61),
4
Distinção feita entre capitalistas e seus representantes para acentuar o predomínio de uma nova camada de
administradores executivos, os CEOs (Chief Executive Officers) Chairmans, PDGs (President-Directeur-Generale),
Presidentes etc. que exercem o poder nas sociedades anônimas, em nome dos acionistas.
recusando a imersão total no trabalho. Para Gorz (2005, p. 25), “essa é a visão neoliberal
do futuro do trabalho: abolição do regime salarial, autoempreendimento generalizado,
subsunção de toda pessoa, de toda vida pelo capital, com o qual cada um se identificará
inteiramente”. O melhor dos mundos para a empresa capitalista: a unidade produtiva
Você SA entrega seu produto [trabalho + conhecimento] e é a única responsável por man-
ter esse perfil de produto ao longo do tempo, sob pena de ser trocada por outra unidade
produtiva (é a velha lógica capitalista aqui presente).
Uma tarefa bem distinta, mobilizar a iniciativa de assalariados versus a de ‘peque-
nos empresários independentes’. Desfeitas as relações tradicionais entre capital e traba-
lho, resolve-se a questão de como o capital conseguirá exercer poder sobre os homens e
mobilizá-los — os trabalhadores, mesmo quando a serviço de grandes empresas, devem
se tornar empresas individuais, as únicas responsáveis pela rentabilidade de seu trabalho.
Gorz entende que, ao final desse processo,
o trabalhador não se apresenta mais apenas como o possuidor de sua força de trabalho
hetero-produzida (ou seja, de capacidades predeterminadas inculcadas pelo empregador),
mas como um produto que continua, ele mesmo, a se produzir (GORZ, 2005 p. 19).
5
Os autores não pretendem assumir posturas conservadoras ou obscurantistas. Entendem que há mudanças na
sociedade, técnicas, culturais, econômicas, que levam à necessidade de atualização dos saberes disponíveis. O que se
questiona aqui é o uso ideológico do discurso da educação permanente e do aprender a aprender.
DOSSIÊ
nanceiros, a não ser que equalizam a demanda e oferta de dinheiro (ligando unidades
deficitárias a unidades superavitárias por meio da taxa de juros) ou, ainda, que elevam o
“fetiche da mercadoria” ao máximo de suas possibilidades.
Foi Keynes quem demonstrou a necessidade de os governos praticarem políticas eco-
nômicas (uso de recursos de poder para interferir no rumo e no ritmo da atividade econômica
visando resultados de curto prazo), derrubando a crença precedente de que isso deveria ser
evitado a todo custo. O motivo para tal defesa, impopularíssima à época (1930), foi a sua com-
preensão de que a “propensão marginal a consumir” (tendência a gastar a renda monetária
adicional obtida), numa sociedade cuja riqueza é medida em dinheiro, é sempre menor do
que 1 (o total da renda), atingindo percentuais menores em sociedades mais ricas (constante a
distribuição da renda). Ou seja, o mesmo processo que gera a riqueza física (bens e serviços)
gera também a renda necessária para adquiri-la (lucros, salários, juros, dividendos e aluguéis),
mas nem toda a renda é utilizada em consumo, uma parte sendo subtraída (poupada) para
outros fins: precaução contra desastres ou infortúnios futuros e, principalmente, especulação
(possibilidade de ganhar dinheiro com dinheiro, sem o engajamento em processo produtivo).
No processo intrínseco ao capitalismo, quando as expectativas dos agentes eco-
nômicos individuais que especulam se tornam baixistas (pessimistas), eles tendem a se
defender buscando refúgio na liquidez (posse de dinheiro), desfazendo-se de papéis re-
presentativos do capital das empresas (ações, por exemplo). Assim procedendo, retiram
dessas empresas as fontes vitais de seu financiamento e expectativas. O mesmo fazem os
capitalistas produtivos, reduzindo seus investimentos, tanto os em curso quanto os pro- 25
gramados. O dinheiro torna-se mais caro (sobe a taxa de juros) e toda a economia tende
à estagnação, com redução da renda total e do nível de emprego.
Segundo Keynes (1983), configurada tal situação (estagnação e recessão) somente o
governo dispõe de condições suficientes para retirar a economia do “fundo do poço”. Isso
porque somente ele tem capacidade de manejar a oferta de moeda e a possibilidade de agir
visando metas de longo prazo (ao contrário de consumidores, produtores e especuladores
individuais, presos aos interesses de curto prazo — sobrevivência e ganhos imediatos).
Para isso, o governo deve, fundamentalmente, gastar mais do que arrecada (pra-
ticar orçamento público deficitário), aquecendo a demanda por bens que, uma vez pro-
duzidos geram mais emprego, mais renda e, portando, as condições necessárias para a
retomada do crescimento que fora interrompida. Diante da situação contrária — cres-
cimento exagerado da economia, o governo deve enxugar liquidez (reduzir o volume
de dinheiro em circulação, através das políticas monetária e fiscal), para evitar a inflação
(perda de poder de compra da moeda).
Nesse esforço para manter a liquidez sob controle, o governo cumpre um papel
essencial no interior do mercado financeiro, tentando, através de seus movimentos
(emissão de moeda, venda de títulos públicos, controle da taxa de juros, tributação,
gastos públicos, encaixe bancário etc.) influenciar o comportamento dos agentes,
moldar suas expectativas, evitando que sejam demasiado altistas ou baixistas, para
que as atividades econômicas fluam o mais suavemente possível, sem sobressaltos,
lubrificadas pelo financiamento de investidores (interessados no retorno de negócios
6
“to follow the conventional procedure of treating all such costs as serving only current consumption will not do. But to allocate all of these
costs to investment in future earnings, is fully as extreme and unwarranted”.
7
“countries, states, or time periods that have relatively high wages and inputs of physical capital also tend to have much human capital”..
DOSSIÊ
efeito multiplicador atribuído, na perspectiva keynesiana, ao fator investimento8 e não
teriam poder explicativo suficiente para determinar grandes diferenças de renda entre
países com mesmo estoque de capital (uma das questões que intrigam os economistas).
A resposta para o aumento da renda não encontra suas respostas nos pressupostos
keynesianos ou neoclássicos, mas na economia marxista. O próprio Friedman, analisando a
situação, afirma que o efeito do investimento em capital humano é “aumentar a produtivida-
de econômica do ser humano”9 (FRIEDMAN, 1982, p. 101, tradução livre). O aumento da
renda nacional, considerados constantes fatores como tecnologia, número de trabalhadores e
tempo, só encontra sua explicação no aumento da produtividade. Contudo, considerando-se
que o conceito usual de aumento de produtividade envolve a incorporação de novas tecnolo-
gias (mantidos constantes a quantidade de mão de obra e o tempo), na verdade o que se verifi-
ca é uma intensificação do trabalho, ou seja, os trabalhadores, melhor qualificados, produzem
mais com um mesmo equipamento e em um mesmo tempo. O que ocorre é uma maior ex-
ploração do sobretrabalho (mais-valia), do que verdadeiramente o aumento da produtividade.
8
Vale ressaltar a crítica do pensamento clássico ao próprio efeito multiplicador do investimento em modelos
keynesianos: “Considerar o investimento como não tendo efeitos multiplicadores é uma aproximação inicial
muito melhor do que considerar o investimento como o primeiro a se mover, pelo menos com respeito às
mudanças na renda real per capita” (FRIEDMAN & BECKER, 1957, p. 74, tradução livre). Texto original:
“regarding investment as having no multiplier effects is a much better first approximation than regarding
investment as the prime mover, at least with respect to the changes in real per capita income”.
9
No original: “raise the economic productivity of the human being”.
DOSSIÊ
ção das gerações atuais no sentido de uma sociedade que se guie mais pela razão, na luta pela
autonomia, pela emancipação” (PUCCI, 2003, p. 51); d) a hermenêutica deve contribuir para
o resgate do sujeito e afirmação de sua autoconsciência, e) os intelectuais coletivos, com seu
compromisso com a transformação da realidade, jogam na educação um papel no âmbito de
várias atividades formativas além da escola. Pucci (2003, p. 23) afirma que,
10
Esse trocadilho encontra-se em Bauman (1997, p. 246).
Considerações finais
A sociedade do conhecimento, tal como vivenciada na atualidade, apresenta uma ten-
dência a transformar a educação quase que exclusivamente num processo gerador de capital
DOSSIÊ
humano, propício à inovação tecnológica exigida pelo desenvolvimento capitalista, em um
contexto extremamente financeirizado, instável, arriscado e excludente. A racionalidade eco-
nômica se impõe em praticamente todos os âmbitos da vida, legitimando-se pelo seu discurso
de máxima produtividade e de diversificação crescente da produção, propiciadoras de maiores
e melhores confortos a partir de menos esforços físicos extenuantes (menor utilização de força
física muscular humana). Sendo essa uma racionalidade meramente instrumental e falsamente
emancipadora (posto que coisifica mais do que nunca o ser humano, tornando-o simples re-
ceptáculo do capital humano e servo da lógica financeira), é preciso submetê-la a uma reflexão
capaz de explorar as contradições presentes na subordinação do conhecimento e da educação
quase que exclusivamente à busca da elevação das forças produtivas, sem questionamento aos
efeitos antiemancipação e pró-barbárie que ela traz consigo.
A teoria crítica carrega excepcional potencialidade para contribuir nessa reflexão. A
partir do seu método dialético negativo, pode-se esclarecer que a teoria econômica, que dá
sustentação aos discursos dominantes que subordinam a educação aos objetivos da inovação
tecnológica e da especulação financeira, mais do que migrar de uma metáfora física (mercados
impessoais se equilibrando por força e graça da lei da oferta e da procura) para uma metáfora
biológica (mercados como espaço de construção de monopólios temporários baseados em
vantagens competitivas oriundas do domínio de novas tecnologias), está de fato se pautando
por uma lógica anunciada no campo da química, por Lavosier: “nada se cria, nada se perde,
tudo se transforma”, para permanecer como era — metamorfose da conservação.
O advento da chamada sociedade do conhecimento não reduziu os confrontos de 31
poder que estão na base do sistema capitalista e entremeados em suas grandes organiza-
ções e estruturas. Em que se pesem as recomposições, cada vez mais sistemáticas, do tra-
balho dos funcionários de linha, não há um genuíno questionamento à estrutura piramidal
do poder informacional e inexiste uma verdadeira descentralização. As experiências que,
em seu conjunto, vem recebendo a etiqueta luxuosa de empowerment são abruptamente in-
terrompidas quando colidem com os processos de direção estratégica das empresas, com
os capitalistas e seus representantes não dispostos, nem um pouco, a dividirem sua visão
quanto à política empresarial. Mas é preciso cuidado ao manejar a própria teoria crítica
para compreender o novo quadro da era da acumulação flexível, pois:
A mesa foi virada, por assim dizer: a tarefa da teoria crítica foi invertida. Essa tarefa
costumava ser a defesa da autonomia privada contra as tropas avançadas da ‘esfera
pública’, soçobrando sob o domínio opressivo do Estado onipotente e impessoal
e de seus muitos sustentáculos burocráticos ou réplicas em escala menor. Hoje a
tarefa é defender o evanescente domínio público, ou, antes, reequipar e repovoar o
espaço público que se esvazia rapidamente […] (BAUMAN, 2000, p. 49).
Referências bibliográficas
Friedman, M. Capitalism and freedom. Chicago: The University of Chicago Press, 1982.
Friedman, M.; Becker, G. S. A statistical illusion in judging keynesian models. The jour-
nal of political economy,. v. 65, n. 1, Fev. 1957.
Keynes, J. M. Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo: Abril Cultural, [1936] 1983.
PIRES, V. Economia da educação: para além do capital humano. São Paulo: Cortez, 2005.
Pucci, B. Teoria crítica e educação. In: PUCCI, B. (Org.). Teoria crítica e educação: a questão da
Formação cultural na escola de Frankfurt. 3a. ed. Petrópolis RJ: Vozes/São Carlos SP: Edufscar, 2003.
Schultz, T. O capital humano: investindo em educação e pesquisa. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1971.
Schultz, T. W. Investment in human capital. The american economic review, v. 51, n. 1, Mar 1961.
Zuin, A. A. S.; PUCCI, B.; OLIVEIRA, N. R. Adorno: o poder educativo do pensamento crítico.
Petrópolis RJ: Vozes, 2000.