Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
V41n77a11 PDF
V41n77a11 PDF
Resumo
Acerca dos arredores da mulher é um breve artigo sobre o amor, o falo e o gozo. Nota-se nesta
escrita alguns percursos que servem para desbastar o caminho até a questão final: o que dizer do
gozo da mulher, se ela nada sabe. Na perspectiva de um fragmento literário, mostra-se que não há
ninguém que não seja afetado por algo do não saber e por algo da verdade. O saber tem relação
com o amor. Trata-se de pensar com este texto sobre questões da demanda e da prova de amor,
sobre a mãe e a mulher, sobre o encontro entre uma perversão e um enigma, sobre o mito, sobre
o gozo outro que não o gozo fálico – e ainda o pai, o vazio e a père-version.
Este artigo se inicia com a escrita im- No berço das formulações deste ar-
pactante de Sandór Márai (1900-1989), tigo, havia a ideia de escrever acerca da
escritor de origem húngara, leitor de mulher, porém surgem contingências,
Freud, autor do livro De verdade, escri- inadequações e o acaso. No momento em
to no percurso de quatro décadas, que que é preciso definir o título, um certo
discorre sobre os conflitos do amor, do nome valise ocorre a palavra “acerca”,
casamento, do império austro-húngaro, usada para indicar aquilo do que se tra-
da guerra e da burguesia. Na confeitaria ta, além daquilo que está às voltas, nos
em Budapeste, a mulher partilha com a arredores.
amiga as memórias sobre o casamento
desfeito, enquanto o marido fala ao ami- Demanda, amor
go a própria versão dos acontecimentos. e o acaso do encontro
Tal como o personagem conta a própria Qualquer coisa pode ser demandada de
versão (versão diz do ato ou efeito de ver- forma infinita e incondicional. A neces-
ter, de interpretação ao acontecimento), sidade desponta como demanda, é algo
ao final deste artigo se poderá voltar à para além do declarado, alienado aos
questão da versão, contudo, a père-ver- significantes do Outro – aquele capaz
sion. Sobre a mulher e a verdade, escreve de satisfazer as necessidades e que está
Márai (2008, p. 24): aquém das necessidades que se pode
prover.
[...] Um dia despertei, sentei na cama A demanda tenta encontrar provas
e sorri. Nada mais doía. E de súbito de amor, registros de presença e de au-
compreendi que não existe mulher de sência. Nesse sentido, qualquer coisa
verdade. Nem na terra nem no céu. Não pode valer, sem especificidade, sem
existe em lugar algum, aquela. Existem alguma particularidade, o que permite
apenas pessoas, e em todas há um grão da se deslocar de forma indefinida e se
verdadeira, e nenhuma delas tem o que travestir, à beira da iminência de abolir
do outro esperamos e desejamos. a particularidade.
O gozo não fálico, não-todo seja do lado mãe – aquela que tem, seja
Contudo, a posição mulher é outra. Esse do lado mulher – aquela que não tem
outro gozo que não é o gozo fálico só (Souto, 2015).
pode ser situado a partir de outra lógica,
que é a lógica do não-todo. O falo diz de Aliança conjugal, família
uma relação, na medida em que o termo Para Julian (2000, p. 45), não há aliança
“função” na lógica designa a relação entre conjugal sem ruptura com a família. A
elementos pertencentes a duas séries dis- família de origem não deve ser fundada
juntas. A função fálica nomeia a relação sobre a parentalidade, ao inverso, é a
de cada ser falante ao gozo permitido pela conjugalidade que funda a parentalidade.
linguagem. As mulheres são não-todas Entretanto, isso não pode ser interpre-
inscritas na função fálica, o que indica um tado em termos biológicos, em que só a
além da castração e do Édipo, bem como fecundação permite ter filhos. A mãe e o
um meio de irrupção do real na mulher. pai, assim, permanecem disjuntos, podem
Assim, estão submetidas, mas também transmitir a lei do desejo aos filhos e ins-
escapam (Marcos, 2018, p. 100). crevem a sexualidade humana no registro
Por sua vez, a criança divide, no sujei- de uma transmissão. A verdadeira filiação,
to feminino, a mãe e a mulher, ou seja, por continua Julian, é ter recebido dos pais o
um lado a criança é substituto fálico, por poder efetivo de abandoná-los.
outro, produz divisão. Porém, não existe A O que se poderia dizer da definição de
mulher nem a mãe toda. Falta algo a cada família? Que tem origem no casamento?
uma delas. Esse furo é aquele que se produz Não, a família tem origem no mal-enten-
a partir da lei da interdição do incesto. dido, no desencontro, na decepção, no
Pode-se, assim, entender que A Mulher abuso sexual ou no crime. Que é formada
não existe, precisamente em função dessa pelo marido, pela esposa e as crianças,
lei. O susto inesperado que é a mulher na unidos por laços legais? Não, a família
mãe se trata daquilo que deveria ter per- é essencialmente unida por um segredo,
manecido recalcado – o desejo incestuoso. é unida pelo não dito. Então, qual é o
Entretanto, há um outro lado: só há mãe segredo? É um desejo não dito, é sempre
se houver mulher. O desejo incestuoso é o desejo sobre o gozo, de que gozam o pai
o que subjaz à estrutura do infamiliar, a e a mãe? (Miller, 2007).
entrada para o antigo Heim [lar] (Jorge, O que dizer da singularidade de ser
2017, p. 196). pai?
Na lógica do inconsciente, toda mu- Há o pai de família, que tem os papéis
lher tem parte mãe – mesmo que ela não o a preencher e tarefas junto à criança, mas
seja de fato, e toda mãe tem parte mulher. resta a questão de ser esse papel propria-
Entretanto, essas duas partes não formam mente paterno ou materno.
um todo, não fazem um, isto é, uma parte Há o pai que trabalha, abriga e nutre
descompleta a outra, fazendo com que a família, o provedor, mas a mãe também
toda mulher, por um lado, seja não-toda trabalha e provê.
mãe e, por outro, não-toda mulher. Por- Há o pai biológico atestado pelo exa-
tanto, o ‘tornar-se-mãe’ e o ‘ser-mulher’ me de sangue.
não se recobrem de forma alguma. De tal E há o pai que faz a criança passar da
fragmentação provém o não-todo, que vida familiar ao social, mediador entre o
se refere ao lado mulher e ao lado mãe, e privado e o público, que introduz a criança
assim se revela um fato de inconsistência. na condição de adulto, e que a faz se de-
E a loucura? A loucura está no universal, sembaraçar da mãe; porém, nessa função
no ponto em que se quer atingir o todo, de pedagogo, é substituível por outro.
90 Reverso • Belo Horizonte • ano 41 • n. 77 • p. 87 – 94 • jun. 2019
Scheherazade Paes de Abreu
Segundo Julian (1997, p. 25), tais rante que se pode gozar de todas. Contudo,
condições não dizem da singularidade de nessa versão, père-version, o pai, ao fazer
pai, mas talvez a pergunta seja: o que foi de uma mulher o objeto que causa o seu
ter tido um pai? desejo, surge não somente como aquele
O pai tem a função de permitir re- que transmite a significação fálica e que
lativa confrontação com o vazio; o pai transmite a castração, mas também como
simbólico não está em lugar algum, e aquele que apresenta um semblante, no
apenas nessa condição, leva a função sem qual se pode entrever o objeto que causa
potência normativa, que apenas dá forma o desejo (Rosa, 2008).
à inadequação radical do desejo. Nesse sentido, pouco importa que o
O verdadeiro pai, escreve Safatle pai tenha sintomas. Se ao menos tiver um
(2017), sintoma, que seja uma mulher, com a qual
tenha filhos, e que os queira ou não, exerça
[...] é aquele que, por se calar diante das cuidados paternos.
questões fundamentais da existência de Lacan nomeia de perversão paterna a
todo sujeito, permite que um aspecto de relação do pai com a mãe de seus filhos – a
indeterminação se abra [...]. função de pai é, desse modo, um sintoma.
O pai faz da mãe a causa de desejo e exer-
Para Julien (1997, p. 97), o pai, ao ce cuidados sobre os filhos, tudo muito
ocupar um lugar vazio, deixa entrever o tradicional, portanto o que dizer do gozo
véu que faz limite, priva o filho de saber do pai como père-version? Um movimento
totalmente do que goza. de palavras que decorrem de pai [père] e
o princípio da palavra perversão [perver-
Do que goza o pai, sion]; premissa esta para que a pequena
a mulher, a verdade criança possa fazer sua versão do pai e
Para definir de modo simples o que é o encontrar um sintoma.
pai, Lebrun (2004) nos diz que é um es- O pai garante a função a partir da
tranho, que é e sempre será um estranho, enunciação, na qual deixa entrever o
para além de quaisquer afinidades. É essa grão de seu gozo, de desejo (Morel, 2012
alteridade irredutível que o define, além p. 13-62).
da versão sobre o gozo. Para dizer um pouco mais, Lacan
Lacan diz da père-version: (1974, p. 23) define perversão paterna,
mas dispõe do conceito de perversão
Um pai só tem direito ao respeito, se não alhures, pois a causa de desejo é
ao amor, se o dito amor, o dito respeito,
estiver perversamente, pai-vertidamente [...] uma mulher que ele pai adquiriu para
orientado, isto é, feito de uma mulher lhe fazer filhos e que com estes, queira ou
objeto pequeno a que causa seu desejo, não, ele tenha cuidado paterno.
mas o que essa mulher colhe enquanto
pequeno a nada tem a ver nessa questão. O rumo do pai é a mulher como objeto
Do que ela se ocupa, são outros objetos a, mas o que é inusitado em tais consta-
pequeno a, que são as crianças junto a tações é o pai definido como sexuado. O
quem o pai então intervém, excepcio- “pai-vertido” tem a causa de desejo alhu-
nalmente, no bom caso, para manter na res, para além do filho, em outro rumo,
repressão (Lacan, 1974-1975, p. 23). diferentemente do pai que porta a lei, do
tirano, do protetor, mas é aquele que tem
O pai do Édipo se trata de o pai bas- em outro (e não no filho) o norte do desejo
tante ideal. Enquanto o pai de totem, ga- (Quinet, 2015, p. 53).
Reverso • Belo Horizonte • ano 41 • n. 77 • p. 87 – 94 • jun. 2019 91
Acerca dos arredores da mulher: amor, falo e gozo
JULIEN, P. Abandonarás teu pai e tua mãe. Rio de NAVEAU, P. O que do encontro se escreve: estudos
Janeiro: Companhia de Freud, 2000. lacanianos. Belo Horizonte: EBP, 2017.