Você está na página 1de 7

1

Hermenêutica bíblica – uma reação à palestra de Erni Seibert

É um prazer poder reagir à apresentação do colega Erni. Depois desta excelente aula de
história da hermenêutica aprendemos que nos encontramos dentro de uma longa história da
interpretação da Escritura. Cabe-nos respeitar os enormes esforços de gerações passadas e,
a partir deles, encontrar o nosso caminho de encontrar a verdade. Gostaria de destacar
alguns pontos da reflexão de Erni com o intuito de aprofundá-los, desenvolvê-los ou
complementá-los.

Antes duas informações preliminares:

O que vou dizer não tem a pretensão de ser a posição hermenêutica da IECLB. Na IECLB
não existe somente uma forma de interpretar as Escrituras. Pelo contrário, nela convivem
diversas hermenêuticas: ao lado de uma leitura fundamentalista ou melhor literalista, que
entende o texto bíblico ao pé da letra, encontramos interpretações de cunho liberal, ao lado
da leitura popular ou espontânea pode-se encontrar uma sofisticada leitura estruturalista,
uma leitura individual de cunho edificante ou psicológica pode coexistir com uma leitura
sócio-política ou feminista do texto bíblico, ao lado de uma leitura que se apresenta como
ideologicamente definida encontramos interpretações que pretendem ser objetivas e
neutras. Nem sempre essa convivência é harmônica. Mesmo assim, a IECLB não exige a
adoção de uma determinada opção hermenêutica de seus membros, obreiros ou obreiras,
entendendo que dentro da confessionalidade luterana podem conviver diversas abordagens
da Escritura.

Por isso, é necessário situar a minha posição hermenêutica. De modo geral, os marcos que
dão o perfil para a minha reflexão hermenêutica são três: a tradição luterana, a que prioriza
Lutero mais do que as confissões luteranas, a tradição acadêmica liberal das universidades
germânicas, que marcou o meu estudo, e a leitura relevante das comunidades, que busca
conectar o texto bíblico com as dúvidas e os problemas de sua vida. As minhas reflexões
não podem ser consideradas, portanto, representativas de todo o espectro hermenêutico da
IECLB.
2

1) Inicio com a afirmação de que “toda Escritura é inspirada por Deus” (2.Tm 3.16). Lutero
e as confissões luteranas aceitam essa afirmação, mas ainda não elaboram uma doutrina de
como se deve entender esta inspiração da Escritura. Somente a ortodoxia luterana
desenvolve a chamada doutrina da inspiração verbal. Matthias Flacius afirmava, em 1567,
que todos os livros bíblicos têm somente um autor, o próprio Deus. Para ele até os sinais de
vocalização usados para auxiliar na leitura da língua hebraica são de origem divina.
Johannes Musaeus, em 1678, advogava que o Espírito Santo havia ditado o conteúdo
bíblico para dentro da pena dos autores bíblicos.1

Através do dogma da inspiração verbal, a ortodoxia queria salvar o princípio sola scriptura
numa época em que a Igreja Romana rearfirmava o valor da tradição, no Concílio de
Trento. A doutrina da inspiração verbal constituía, por assim dizer, uma variante da
Reforma à instituição do magistério católico romano. No entanto, a inspiração verbal
identificava todas as palavras escritas, sem distinção, em Palavra de Deus. O Espírito se
prendia, por assim dizer, a cada letra, perdendo a sua liberdade de mover-se onde e quando
quisesse.

A pergunta que fica para nós é a seguinte: A inspiração das Escrituras deve
necessariamente ser entendida como inspiração verbal? Não seria mais adequado pensar
que o Espírito soprou em todos os momentos de um processo histórico, movendo pessoas a
testemunharem de sua fé e de sua experiência com Deus e não apenas no ato formal de
colocar por escrito estes testemunhos? Será que o longo processo de tradição oral que
precede a fixação por escrito dos textos não foi também obra do Espírito Santo? E a
pregação que sucede a fixação do texto bíblico também não é obra do Espírito?

É verdade que o próprio Lutero fez algumas observações que podem ser entendidas como
concordando com a doutrina da inspiração verbal da Escritura. Em sua grande confiança na
infalibilidade do Espírito Santo, Lutero achou que a Bíblia também teria razão em questões
relativas à história e às ciências naturais. Por exemplo, ele aceitou como verdades
3

científicas a criação em seis dias e que o sol girava em torno da terra (a partir de Js 10.12). 2
Mas nestas questões Lutero, sem dúvida, era filho de sua época, que ainda não via
necessidade de confrontar-se com as novas descobertas no âmbito da ciência natural. Mais
importante e inovador em Lutero torna-se, no entanto, a “distinção entre periferia e centro
na Escritura, entre letra e espírito, entre texto e palavra de Deus” 3. Sobre isso falaremos
mais adiante.

2) Sabemos que, ao defender o sentido literal da Escritura, Lutero visava dois inimigos: a
interpretação alegórica e os entusiastas. A interpretação alegórica era uma maneira bastante
sutil de introduzir no texto bíblico a teologia do intérprete. Essa tendência de o espírito do
intérprete prevalecer sobre o espírito da Escritura naturalmente não podia ser admitida. O
reformador tampouco podia admitir que se pudesse reivindicar a posse do Espírito Santo à
revelia do texto bíblico, como afirmavam os entusiastas. Pois isso poderia significar que
algo externo à Escritura pudesse estar acima da mesma. Contra essas duas tendências
Lutero mantém que devamos deixar a Escritura falar por si mesma; ela tem autoridade
própria e independente. Ela se interpreta a si mesma.

Creio que nesse ponto nós luteranos podemos encontrar-nos com relativa facilidade.
Independente de que método exegético utilizarmos, certamente vamos sempre advogar o
direito inalienável da Escritura de poder falar por si mesma, de nos poder dizer a sua
mensagem. A exegese luterana não admite encarar a Escritura como mero espelho que
apenas reflete as idéias do próprio intérprete.

3) Mas creio que também podemos concordar em que priorizar o sentido literal não
significa literalismo bíblico. Pois sabemos que, além de defender o sentido literal da
Escritura, Lutero admitia que nem todos os textos bíblicos têm o mesmo valor teológico.
Há, na Escritura, um centro e uma periferia. Erni destacou com propriedade as doutrinas

1
Apud Prien, Hans-Jürgen. Palavra Divina e Palavra Humana, ou a Questão: Onde está a Verdade? Estudos
Teológicos, nº 12/2, São Leopoldo, Faculdade de Teologia, p.81.
2
Ibid., p.84.
3
Brakemeier, Gottfried. Interpretação Evangélica da Bíblia a partir de Lutero. In: M.N.Dreher (ed.).
Reflexões em torno de Lutero (Estudos Teológicos, Ano 21, nº especial), São Leopoldo, Faculdade de
Teologia, 1981, p.34.
4

fundamentais que, conforme os escritos confessionais, perfazem o centro do cânon e


representam uma espécie de chave hermenêutica com a qual podemos entender a Bíblia de
maneira apropriada. Ele cita a doutrina da justificação e a distinção entre Lei e Evangelho.
Gostaria de complementar trazendo a perspectiva do próprio Lutero.

Para Lutero, o centro da Escritura é a pessoa e a obra de Jesus Cristo, sua morte em favor
de nós e a sua ressurreição. Em Jesus Cristo, o Deus misericordioso vem a nós e nos
perdoa, aceitando-nos em nossa fragilidade e pecaminosidade. O solus Christus e o sola
gratia, portanto, perfazem o centro da Escritura, a partir do qual se deve ler e entender toda
a Bíblia. Por isso, Lutero teve uma grande liberdade de criticar certas partes ou livros da
Bíblia a partir do conhecido princípio “aquilo que promove Cristo”. “O que não ensina
Cristo, isto também não é apostólico ainda que São Pedro ou Paulo o ensinassem. Por sua
vez, o que prega a Cristo, isso é apostólico ainda que Judas, Anás, Pilatos e Herodes o
fizessem.”.4 Sabemos que, por causa deste critério, Lutero tinha preferência por alguns
livros da Bíblia e relegava a segundo plano outros, tais como Hebreus, Tiago, Judas e
Apocalipse.

Esta postura revela que Lutero não havia “divinizado” o texto bíblico. Conforme
Brakemeier,5 Lutero nunca se tornou servo da Escritura, mas sempre permaneceu servo de
Jesus Cristo.

4) Ao defender o sentido literal diante das múltiplas tentativas de domesticar o texto


bíblico, Lutero não caiu na tentação de confundir letra (texto escrito) e Espírito. Apesar de
inseparavelmente unidas, elas não podem ser confundidas. Erni distingue corretamente
entre Escritura e Evangelho. Pode-se falar também na distinção entre letra e espírito,
palavra humana e palavra divina, verbo externo e verbo interno. Importante para Lutero é
que a Palavra de Deus transcende a letra. Ela está antes da Escritura, na pregação dos
apóstolos, e depois da Escritura, na pregação oral do Evangelho às comunidades. A palavra
externa precisa tornar-se palavra viva de Deus no leitor, ouvinte ou intérprete. E isto é obra

4
WA DB 7, 384.26, apud Brakemeier, G., op.cit., p.40.
5
Op. cit., p.40.
5

do Espírito Santo. Portanto, o Espírito Santo não está ausente do processo de interpretação;
é ele que possibilita que o texto humano se torne mensagem relevante, ou seja Evangelho.

Também nesse ponto creio que podemos concordar, pelo menos parcialmente. Talvez
tenhamos diferenças no que tange a forma e metodologia acadêmica de analisar o texto
bíblico.

5) A interpretação acadêmica da Bíblia não substitui as outras leituras nem se arroga o


direito de ser a mais correta. Ela quer ajudar as comunidades a entenderem o sentido de um
texto muitas vezes estranho por ser antigo e proveniente de uma cultura bem diferente. Para
tanto faz uso de diversos métodos, conhecidos também em outras áreas do conhecimento
humana. Pelo que sei, nos centros de formação de obreiros da IELB se usa
predominantemente o método gramático-histórico que prioriza a forma final, canônica do
texto. O livro bíblico é visto como um todo sincrônico; o conteúdo está no texto em si, não
havendo necessidade de buscar auxílios hermenêuticos fora do texto. Na Escola Superior de
Teologia, o centro de formação mais antigo de pastores e pastoras da IECLB, prioriza-se,
por outro lado, o chamado método histórico-crítico, que busca traçar a história do texto
bíblico, desde a sua origem até a sua forma atual canônica.6 Acentua-se, portanto, o
aspecto diacrônico, ou seja, as diversas fases de desenvolvimento do texto bíblico com os
seus respectivos contextos. Mas o método histórico não é o único a ser ensinado e praticado
na EST.

Todos nós conhecemos as possibilidades e os limites do método histórico. Por este método
ter sido, no passado, considerado um empecilho ao diálogo entre as Igrejas luteranas, não
posso furtar-me de fazer algumas colocações breves e provisórias sobre o método.

a) O objetivo último da exegese histórico-crítica é o de buscar a intenção que o autor ou os


autores do texto quiseram transmitir a seus destinatários em seu próprio contexto. O
texto bíblico é analisado como uma peça literária. A exegese não quer, com isso,
destruir o texto bíblico com críticas. O termo “crítico” quer ser entendido em seu
6

sentido original, ou seja, como discernimento racional. Isto é, a exegese permite que o
raciocínio e a lógica levantem questões ao texto, permitem, por exemplo, que as
ciências naturais coloquem questões para o texto. O intuito não é o de destruir a
mensagem, mas chegar mais perto da verdade. O uso da razão deve estar sempre a
serviço da mensagem.

Aqui devemos também apontar para um perigo da exegese histórico-crítica. Exegetas


histórico-críticos – mas não só estes - correm o perigo de reduzir a mensagem bíblica a
verdades racionais. Mas sabemos que a fé não se limita à apreensão intelectual de um
conteúdo, que dispensasse o envolvimento de toda a existência do leitor e do exegeta.
Mas este perigo não desabona a própria exegese.

b) Ao analisar a longa trajetória do conteúdo do texto, a exegese histórica admite a atuação


do espírito de Deus ao longo de todo o processo de formação do texto, não somente no
final do mesmo, na fase de fixação por escrito ou, então, da canonização do texto. Uma
das conseqüências desta proposta é que se descobre que o texto bíblico não é
monolítico; pelo contrário nele pode-se encontrar uma sinfonia de diversas vozes.
Diversas vozes e opiniões são admitidas na Bíblia, cada qual com sua parcela de
verdade teológica. Isso ajuda o leitor e o exegeta a compreender que a palavra de Deus
não se vincula em uma única expressão de fé, mas se encarna em diversas culturas de
forma diferente. Há dois relatos de criação lado a lado, cada qual com suas
peculiaridades. O processo redacional do texto não tentou abafar uma das duas vozes,
porque entendeu que em ambas havia uma autêntica confissão ao Deus Criador. Esse
respeito a uma outra expressão de fé pode se considerado uma disposição ao “diálogo
ecumênico”!

c) Na busca pelo contexto dos autores bíblicos, a exegese depara-se com as influências
que estes autores sofreram de seu meio. Grande parte da literatura bíblica respira, por
exemplo, uma sociedade patriarcal, onde a mulher tinha uma função muito bem
definida. A exegese histórica tem muito cuidado em não identificar a palavra de Deus

6
Outros centros de formação da IECLB, como o Centro de Educação Teológica e o Centro de Pastoral e
7

com estes aspectos culturais da época. A partir daí, surge, para muitos, uma séria
dificuldade: como descobrir nesses textos antigos, provenientes de outras culturas, a
viva voz do Evangelho? Como transportar estes textos para a nossa época? Aí, alguns
exegetas capitulam, e param na arqueologia do texto. Mas também este mal não é
exclusividade do método histórico.

Concluo: Nenhum método é perfeito; nenhum exegeta é perfeito. Ainda bem que nossa
salvação não depende nem de métodos nem de exegetas. Os métodos devem ser testados
em sua capacidade de ser um auxílio para encontrar a Palavra de Deus para nós e nossas
comunidades. Toda a nossa exegese – também a acadêmica - deve, portanto, servir à
pregação do Evangelho ao nosso povo e a nossas comunidades que, em suas dores, aflições
e necessidades, anseiam por consolo, esperança e vida nova. Estas comunidades deverão,
em última análise, julgar os métodos exegéticos que usamos.

Para nós fica a seguinte questão: A diferença de métodos usados na interpretação


acadêmica do texto bíblico representa um empecilho para nosso diálogo e uma missão
conjunta?

Missão, dão preferência a outra metodologia acadêmica.

Você também pode gostar