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É um prazer poder reagir à apresentação do colega Erni. Depois desta excelente aula de
história da hermenêutica aprendemos que nos encontramos dentro de uma longa história da
interpretação da Escritura. Cabe-nos respeitar os enormes esforços de gerações passadas e,
a partir deles, encontrar o nosso caminho de encontrar a verdade. Gostaria de destacar
alguns pontos da reflexão de Erni com o intuito de aprofundá-los, desenvolvê-los ou
complementá-los.
O que vou dizer não tem a pretensão de ser a posição hermenêutica da IECLB. Na IECLB
não existe somente uma forma de interpretar as Escrituras. Pelo contrário, nela convivem
diversas hermenêuticas: ao lado de uma leitura fundamentalista ou melhor literalista, que
entende o texto bíblico ao pé da letra, encontramos interpretações de cunho liberal, ao lado
da leitura popular ou espontânea pode-se encontrar uma sofisticada leitura estruturalista,
uma leitura individual de cunho edificante ou psicológica pode coexistir com uma leitura
sócio-política ou feminista do texto bíblico, ao lado de uma leitura que se apresenta como
ideologicamente definida encontramos interpretações que pretendem ser objetivas e
neutras. Nem sempre essa convivência é harmônica. Mesmo assim, a IECLB não exige a
adoção de uma determinada opção hermenêutica de seus membros, obreiros ou obreiras,
entendendo que dentro da confessionalidade luterana podem conviver diversas abordagens
da Escritura.
Por isso, é necessário situar a minha posição hermenêutica. De modo geral, os marcos que
dão o perfil para a minha reflexão hermenêutica são três: a tradição luterana, a que prioriza
Lutero mais do que as confissões luteranas, a tradição acadêmica liberal das universidades
germânicas, que marcou o meu estudo, e a leitura relevante das comunidades, que busca
conectar o texto bíblico com as dúvidas e os problemas de sua vida. As minhas reflexões
não podem ser consideradas, portanto, representativas de todo o espectro hermenêutico da
IECLB.
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1) Inicio com a afirmação de que “toda Escritura é inspirada por Deus” (2.Tm 3.16). Lutero
e as confissões luteranas aceitam essa afirmação, mas ainda não elaboram uma doutrina de
como se deve entender esta inspiração da Escritura. Somente a ortodoxia luterana
desenvolve a chamada doutrina da inspiração verbal. Matthias Flacius afirmava, em 1567,
que todos os livros bíblicos têm somente um autor, o próprio Deus. Para ele até os sinais de
vocalização usados para auxiliar na leitura da língua hebraica são de origem divina.
Johannes Musaeus, em 1678, advogava que o Espírito Santo havia ditado o conteúdo
bíblico para dentro da pena dos autores bíblicos.1
Através do dogma da inspiração verbal, a ortodoxia queria salvar o princípio sola scriptura
numa época em que a Igreja Romana rearfirmava o valor da tradição, no Concílio de
Trento. A doutrina da inspiração verbal constituía, por assim dizer, uma variante da
Reforma à instituição do magistério católico romano. No entanto, a inspiração verbal
identificava todas as palavras escritas, sem distinção, em Palavra de Deus. O Espírito se
prendia, por assim dizer, a cada letra, perdendo a sua liberdade de mover-se onde e quando
quisesse.
A pergunta que fica para nós é a seguinte: A inspiração das Escrituras deve
necessariamente ser entendida como inspiração verbal? Não seria mais adequado pensar
que o Espírito soprou em todos os momentos de um processo histórico, movendo pessoas a
testemunharem de sua fé e de sua experiência com Deus e não apenas no ato formal de
colocar por escrito estes testemunhos? Será que o longo processo de tradição oral que
precede a fixação por escrito dos textos não foi também obra do Espírito Santo? E a
pregação que sucede a fixação do texto bíblico também não é obra do Espírito?
É verdade que o próprio Lutero fez algumas observações que podem ser entendidas como
concordando com a doutrina da inspiração verbal da Escritura. Em sua grande confiança na
infalibilidade do Espírito Santo, Lutero achou que a Bíblia também teria razão em questões
relativas à história e às ciências naturais. Por exemplo, ele aceitou como verdades
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científicas a criação em seis dias e que o sol girava em torno da terra (a partir de Js 10.12). 2
Mas nestas questões Lutero, sem dúvida, era filho de sua época, que ainda não via
necessidade de confrontar-se com as novas descobertas no âmbito da ciência natural. Mais
importante e inovador em Lutero torna-se, no entanto, a “distinção entre periferia e centro
na Escritura, entre letra e espírito, entre texto e palavra de Deus” 3. Sobre isso falaremos
mais adiante.
2) Sabemos que, ao defender o sentido literal da Escritura, Lutero visava dois inimigos: a
interpretação alegórica e os entusiastas. A interpretação alegórica era uma maneira bastante
sutil de introduzir no texto bíblico a teologia do intérprete. Essa tendência de o espírito do
intérprete prevalecer sobre o espírito da Escritura naturalmente não podia ser admitida. O
reformador tampouco podia admitir que se pudesse reivindicar a posse do Espírito Santo à
revelia do texto bíblico, como afirmavam os entusiastas. Pois isso poderia significar que
algo externo à Escritura pudesse estar acima da mesma. Contra essas duas tendências
Lutero mantém que devamos deixar a Escritura falar por si mesma; ela tem autoridade
própria e independente. Ela se interpreta a si mesma.
Creio que nesse ponto nós luteranos podemos encontrar-nos com relativa facilidade.
Independente de que método exegético utilizarmos, certamente vamos sempre advogar o
direito inalienável da Escritura de poder falar por si mesma, de nos poder dizer a sua
mensagem. A exegese luterana não admite encarar a Escritura como mero espelho que
apenas reflete as idéias do próprio intérprete.
3) Mas creio que também podemos concordar em que priorizar o sentido literal não
significa literalismo bíblico. Pois sabemos que, além de defender o sentido literal da
Escritura, Lutero admitia que nem todos os textos bíblicos têm o mesmo valor teológico.
Há, na Escritura, um centro e uma periferia. Erni destacou com propriedade as doutrinas
1
Apud Prien, Hans-Jürgen. Palavra Divina e Palavra Humana, ou a Questão: Onde está a Verdade? Estudos
Teológicos, nº 12/2, São Leopoldo, Faculdade de Teologia, p.81.
2
Ibid., p.84.
3
Brakemeier, Gottfried. Interpretação Evangélica da Bíblia a partir de Lutero. In: M.N.Dreher (ed.).
Reflexões em torno de Lutero (Estudos Teológicos, Ano 21, nº especial), São Leopoldo, Faculdade de
Teologia, 1981, p.34.
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Para Lutero, o centro da Escritura é a pessoa e a obra de Jesus Cristo, sua morte em favor
de nós e a sua ressurreição. Em Jesus Cristo, o Deus misericordioso vem a nós e nos
perdoa, aceitando-nos em nossa fragilidade e pecaminosidade. O solus Christus e o sola
gratia, portanto, perfazem o centro da Escritura, a partir do qual se deve ler e entender toda
a Bíblia. Por isso, Lutero teve uma grande liberdade de criticar certas partes ou livros da
Bíblia a partir do conhecido princípio “aquilo que promove Cristo”. “O que não ensina
Cristo, isto também não é apostólico ainda que São Pedro ou Paulo o ensinassem. Por sua
vez, o que prega a Cristo, isso é apostólico ainda que Judas, Anás, Pilatos e Herodes o
fizessem.”.4 Sabemos que, por causa deste critério, Lutero tinha preferência por alguns
livros da Bíblia e relegava a segundo plano outros, tais como Hebreus, Tiago, Judas e
Apocalipse.
Esta postura revela que Lutero não havia “divinizado” o texto bíblico. Conforme
Brakemeier,5 Lutero nunca se tornou servo da Escritura, mas sempre permaneceu servo de
Jesus Cristo.
4
WA DB 7, 384.26, apud Brakemeier, G., op.cit., p.40.
5
Op. cit., p.40.
5
do Espírito Santo. Portanto, o Espírito Santo não está ausente do processo de interpretação;
é ele que possibilita que o texto humano se torne mensagem relevante, ou seja Evangelho.
Também nesse ponto creio que podemos concordar, pelo menos parcialmente. Talvez
tenhamos diferenças no que tange a forma e metodologia acadêmica de analisar o texto
bíblico.
Todos nós conhecemos as possibilidades e os limites do método histórico. Por este método
ter sido, no passado, considerado um empecilho ao diálogo entre as Igrejas luteranas, não
posso furtar-me de fazer algumas colocações breves e provisórias sobre o método.
sentido original, ou seja, como discernimento racional. Isto é, a exegese permite que o
raciocínio e a lógica levantem questões ao texto, permitem, por exemplo, que as
ciências naturais coloquem questões para o texto. O intuito não é o de destruir a
mensagem, mas chegar mais perto da verdade. O uso da razão deve estar sempre a
serviço da mensagem.
c) Na busca pelo contexto dos autores bíblicos, a exegese depara-se com as influências
que estes autores sofreram de seu meio. Grande parte da literatura bíblica respira, por
exemplo, uma sociedade patriarcal, onde a mulher tinha uma função muito bem
definida. A exegese histórica tem muito cuidado em não identificar a palavra de Deus
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Outros centros de formação da IECLB, como o Centro de Educação Teológica e o Centro de Pastoral e
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com estes aspectos culturais da época. A partir daí, surge, para muitos, uma séria
dificuldade: como descobrir nesses textos antigos, provenientes de outras culturas, a
viva voz do Evangelho? Como transportar estes textos para a nossa época? Aí, alguns
exegetas capitulam, e param na arqueologia do texto. Mas também este mal não é
exclusividade do método histórico.
Concluo: Nenhum método é perfeito; nenhum exegeta é perfeito. Ainda bem que nossa
salvação não depende nem de métodos nem de exegetas. Os métodos devem ser testados
em sua capacidade de ser um auxílio para encontrar a Palavra de Deus para nós e nossas
comunidades. Toda a nossa exegese – também a acadêmica - deve, portanto, servir à
pregação do Evangelho ao nosso povo e a nossas comunidades que, em suas dores, aflições
e necessidades, anseiam por consolo, esperança e vida nova. Estas comunidades deverão,
em última análise, julgar os métodos exegéticos que usamos.