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/íU~Ulani Ba Ka~ :;;l

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Ungulani Ba Ka Khosa (nome -lsonga de Francisco Esau
Cassa) nasceu às 0.45 do dia 1 de Agosto de 1957, em Inha-
minga, província de Sofala, filho de mãe sena e pai changana .
.Da infância pouco se recorda, and:.trilho que foi pelas terras do
interior. acompanhando a mãe. enfermeira. O pai. enfermeiro de
profissão, cedo deixou o fjlho que ainda gatinhava e abalou para
Ja.JaJani
as lerras do Sul, à procura de outras prolissões mais rendosas.
Ficou com a mãe, com as fotografias do pai, e com alguma solidilo ~RRATIVA ':-.;1;-
f
interior, Frequenta o primário. trava amizades que se perderam
f Moçambique, 1990 :;...:;~.
com o tempo e em 1968, fim do primário, deixa a mãe para vjver
..com o pai nas terras do Sul. Os avós, o pai, a mãe (separada
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do pai) e todos os espíritos ancestrais reúnem-se em volta da [ron- '~J

dosa árvore que se erguia a meio do terreiro defronte à casa dos


avós e chamam-lhe Ungulani Ba Ka Khosa. O ritual estava
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DE 00:~ "~ ....

cumprido. .•. 11I.\., ..~:;~


~~
A adolescência passa-a na província da Zambéz.ia onde
completa o secundário e inicia o nível médio. A mãe, em Sofa-
Ia, morre três anos antes da independência. Em 1977 uma di-
1:!lf?ftA '~~~

.
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reetriz presidencial encerra o pré-universiuírio e uma viagem grátis
leva-o a Maputo. Frequenta um curso intensivo. pOIa professores
do primeiro nível do secundário e é colocado no Niassa como
professor, em 1978. Campos de reeducaçüo, solidão, dias lon-
9)~ :,<~

gos e tristes, frio, montanhas, aguardente de cana (fabrico ca-


seiro), terras virgens e despovoadas. É o novo cenário. Pensa em
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ser escritor. Lê para escrever. Dá aulas. Viaja pelo interior da
província. E em 1980 regressa a Maputo e frequenta a Facul- ':.
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dade de Educação na área de História e Geografia para o ensi- "'

no pré-universiLário. Começa a escrever. Em 1982 publica o TOMBO: 108151 ~~


primeiro conto: Dircc, Minha Deusa, Nossa Deusa.
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Em 1984 junta-se a uma malta maluca, sonhadora, esquizo- ,".;

frénica, que resolve, no meio duma bebedeira, fundar a melhor :~~


revista literária do mundo: Charrua. I;::~
SBD'-FFLCH-f]
Em 1987 publicou Ualalapi e em 1990 Orgia dos Loucos.
Além dos livros publicados é autor de dois argumentos de
ficção (uma longa e uma eurta-metragem).
~1
Neste momento trabalha para uma média-melragcm, enquan~ .~
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to prepara um livro que não sabe se scrú uma novela ou um ":~.~
romance. O livro tem como título (provisório) No Reino dos Abu- "~,"o

tres.
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. «UMA TERRA SEM AMOS»

CAMIN-fO :.~.:
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Indice

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DEDALUS - Acervo - FFLCH-LE ~


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11111/1 ~1I1 ~Iill~ij 111/111111 !Ilflllffllll~ 1111/11111 ffij 1I11

21300111010 .~ "

UALALAI'I Nota do autor 11


Autor: Ungulani Ba Ka Khosa
Capa: Secçio Gráfica d~ Editorial Caminho Fragmentos do fim (1) , ~ 17
sobre iluSlração de l"'one Ralha U alalapi , , 19
Orientação gráliCll: Secção GráfiCll da Editorial Caminho
Re •••
isão: Secção de Revisão da Editorial Caminho Fragmentos do fim (2) 39
e
Ungulani Ba Ka Khosa, 1987 A morte de Mputa 41
Direitos de publicaç.ão em Ponugal reservados
JXlr &filorial Caminho, SA. Lisboa, 1990 Fragmentos do fim (3) 55
TIragem: 3000 exemplares Datn boi a , ,................................ 57
Composição; Secção de Composição da Editorial Caminho
Impressão e acabamento: Tccnocor, T.da. Fragmentos do fim (4) 73
Dau de impressão: Março de ]991
Dep6sito legal n.· 42 79719\
O cerco ou fragmentos de um cerco 75
ISBN 972-21.0569·8 Fragmentos do fim (5) 91
O diário de Manua 93
Fragmentos do fim (6) 109
O último discurso de Ngungunhane 111
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'.,'.

Nota do autor

É verdade irrefutável que Ngungunhane foi impe-


rador das terras de Gaza na fase última do império.
É também verdade que um dos prazeres que cultivou
em vida foi a incerteza dos limites reais das terras a
seu mando. O que se duvida é o facto de Ngungun~
hane, um dia antes da morte, ter chegado à triste
conclusão de que ás línguas do seu império não cria~
ram, ao longo da existência do império, a palavra
imperador. Há quem diga que esta lacuna foi fatal para
a sua vida, debilitada pelos longos anos de exílio.
Saltará à vista do leitor, ao lohgo da(s) est6ria(s),
a utilização propositada e anárquica das palavras im-
perador, rei e hosi - nomeação em língua tsonga da
palavra rei.
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«Entre estes vinha o N gungunhane que


conheci logo, apesar de nunca lhe ter visto
retrato algum; era evidentemente o chefe
duma grande raça.:. É um homem alto .., e
sem ter as magn.(ficas feições que tenho no-
tado em tantos seus, tem-nas, sem dúvida,
belas, testa ampla, olhos castanhos e inteli-
gentes e um certo ar de grandeza e supe-
rioridade ... »
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Ayres D'Omellas
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.. )
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«Era um ébrio inveterado. Após qualquer
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das numerosas orgias a que se entregava, era
medonho de ver com os olhos vermelhos, a ':;J
face IUme/acla, a expressão bestial, que se " :,..'
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tornava diabólica, horrenda, 'quando, nesses
momentos se encolerizava ... » . ,J
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Dr. Liengme
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«Só' direi que admirei o homem, dis-


)
cutindo durante tanto tempo com uma argu- :.J
mentação lúcida, e /ógir.a... » i)
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Ayres D'Omellas
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« ... mas toda a sua política era de tal
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modo falsa, absurda, cheia de duplicidade, J
que se tornava dificil conhecer os seus ·'"1

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verdadeiros sentimentos» "

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Dr. Licngme

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Fragmentos do fim (1)

Nada no mundo pode dar uma pálida ideia da


magnificênda do hino, 4a' harmonia do canto, cujas
notas graves e profundas vibradas com e/ltllsiasmo por. I
6000 bocas faziam-nos estremecer até ao íntimo. Que
majestade, 'que energia naquela música, ora arrasta- 'II
da e lenta, quase moribunda, para ressurgir triunfante
numfrémito de ardor, numa explosão queimante de en-
tusiasmo! E à medida que as mangas se iam afastan-
do, às notas graves iam dominando, ainda por largo
espaço, reboando pelas encostas e entre as matas do
: "'of Manjacase. Quem seria o compositor anónimo daque-
la maravilha? Que alma não teria quem soube meter
em três ou quatro compassos, a guerra africana, com
toda a acre rudeza da sua poesia? Ainda hoje nos
«coreados ouvidos me ribomba» o eco do terrível canto
de guerra vátua, que ramas vezes o esculca chope ou-
viu transido de terror, perdido por entre as brenhas
destes matos ...

Ayrcs d'Omcllas
IICarras de África» 17
À Judite Gettessemane

U Ngungunhane! .
Uya Ngungllnya e bafazi ne madoda/ .

An6nimo, século XIX

Tu és Ngungunhane! .
Aterrorizarás as mulheres e os homens! .
.:.' , .

I
Quando chegaram a um dos outeiros mais próximos
da aldeia os guerreiros suspiraram de alívio ao contem-
plarem as casas esparsas por entre as árvores de raizes
seculares, imersas num silêncio profundo, próprio
daquela hora em que o Sol ultrapassava majestosamente
a metade do céu sem nuvens. atirando os z:aios que
causticavam os rostos, os dorsos e os troncos nus dos
guerreiros, cobertos da cintura à parte superior das coxas
por peles de animais bravios.
U alalapi, à frente dos guerreiros. percorreu com o
olhar a aldeia e pensou no doro, nome que leva o
pombe preparado nestas terras dos mundau, a entrar
pelas gÇlelas abaixo, com um bom naco de carne, à
~~ sombra da frondosa árvore, tendo defronte a mulher
I,;
atiçando o fogo e o filho brincando, enquanto a noite
entrava, calma, trazendo consigõ a Lua cortada e às
vozes mais distantes de outros homens que seroavam,
pervagando pelo mundo dos feitos nguni, em tempos ,~
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de guerra e de paz. ..:.


~
Sorriu para os guerreiros que o acompanhavam,
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carregados de carne fresca, resultado da matança feita ,':

no interior das terras, e iniciou a descida por um car- "~

reiro sinuoso, alheio ao roçar insistente dos arbustos de


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metro e meio que se erguiam nas margens quando, a ~
meio da descida, susteve o passo, obrigando os outros
a pararem e a aproximarem-se, ladeando-o. 2J

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~GUlANlBA
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KA KHOSA _
_ UALALAPI

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~. P Dois pangolins, animais de mau agouro, reluziam
cI suas vidas vulgares e sem história e destino senão o de
~ ao sol numa atitude de completa sonolência, a meio do nascerem para servirem aos superiores até à morte.
r carreira. Ualalapi olhou de soslaio os guerreiros que o A quem se dirige então este enigma 'se outra família
.~ ladeavam e viu os mesmos olhos brilhantes, trementes, não tenho que mulher e filho? .. Olhou para os guer-
'; claros, ausentes. Nada disse. Passou a mão pela carne reiros e viu-os na mesma posição rememorativa, pen-
fresca, sinal de fartura e de bons presságios, e atirou sando nas mulheres e nos filhos, ou nos pais e avós,
os olhos aos pangolins, animais agoirentos como já atirados pelo império sem fim.
ficou dito. E todos, como que petrificados pela ima- Enquanto pensavam nisto e naquilo, recordando
gem infausta, permaneceram na mesma posição, sen- coisas antigas e presentes, ligadas aos enigmas que a
tindo o sol a fulminar-Ihes os corpos e os arbustos a natureza atira aos homens sem piedade, estugavam o
atirarem os ramos mais atrevidos que se dobravam ao passo em direcção à aldeia que se avizinhava, deserta
contacto cóm os corpos, durante minutos prolongados, nas suas ruelas, sem outros ruídos que o rumorejar
até que os pangolins, recobrando as forças, retiraram- crescente ,das folhas das árvores e o altear desordena-
-se do carreiro, deÍxando-o livre à passagem dos ho- do da fumaça que saía em algumas cubatas onde o fogo
mens e à flutuação do pensamento que a todos atingiu. teimava em agarrar-se aos troncos que a cinza atacava.
Ualalapi pensou no filho e viu-o tirar da parede Aproximaram-se da cubata mais próxima e Ualala-
maticada o escudo de tantas batalhas. Mas porquê o pi adiantou-se. Uma mulher de meia-idade, sentada
t filho, pensou, e não a mãe do filho que sempre lhe
f "-. defronte à casa, amamentava uma criança.

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ofertou o c.orpo em noites de luar e em momentos por - O que se passa, mãe? - perguntou Ualalapi,
vezes impróprios à fornicação? .. Passou a mão pelo agachando-se e pondo a lança ao alcance da mão di-
\ reita.
(.' cabelo, tirou uma folha silvestre, olhou para as aves que
voavam, silenciosas, e sentiu um pequeno tremor no - Os mochos teimaram em serendar sobre as casas,
corpo. Não, ela não pode ser, pensou, deixei-a sã de chiando a toda a hora e tra~endo os espíritos há mui-
corpo e espírito. E como mulher, mulher nguni, ela to adormecidos que perturbaram as nossas mentes e
vaticina o seu destino. O meu filho túmbém não, é deram a morte a alguns - disse a mulher com um ar
impossível, pois como pode uma criança de pai e mãe cansado, preocupada com o filho que mexia desorde-
o~guni morrer inesperadamente aos dois anos, sem que nadamente os pés e os olhos, tentando afastar as moscas
. esteja adestrada no trato das armas como os pais e que teimavam poisar.
avós?!::' Não, é impossível, à sua família os ventos do - Morreu alguém da sua família?
irifórtúnio não chegarão tão já. Talvez a estes guerrei- - O meu marido.
otO'S1; péilsou, e viu-os cabisbaixos, como se tremessem - Lamento imenso, mãe ... Lamento imenso. E os
.que!~fterra se lhes abrisse aos pés, tropeçando por tudo homens, por onde andam os homens?
'e °por:nada~'A'estes também não, pertencem ao vulgo, - Quem terá co'ragem de andar nestes tempos? ...
e1~ad(vulgo a infelicidade sempre lhe surgiu, desde os Falam com os seus muzimos. Não morreu um homem,
~24 princípios dos tempos, sem enigmas, às claras como as morreu o império.
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VNOULANI DA KA KHOSA _. _ : -- UALALAPI
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- Quem mais é que morreu? uma cubata, sob o olhar atento dos maiores do reino
, - Sabê-Ia-ás. Os chefes como tu aguardam Mudun- que tinham o dever de assistir à putrefacção do corpo
gazi na praça. para que os espíritos malvados não se apossassem de .1

- Certo. De que é que morreu o seu marido? partes do corpo, aguentando durante dias e noites:o ~
- De susto. Mas que, importância tem a formiga cheiro insuportável da carne podre cujos líquidos caíam ~
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perante o elefante? °
em vasilhas preparadas para efeito. Ualalapi levou a :1
. ".:j
- Quantas vezes a fonniga não matou o elefante, mão direita às narinas e entrou na praça. Olhou para :".~
mãe? o céu e viu as nuvens escuras e pesadas a desceram
E quantas vezes o crocodilo saiu da água, das alturas. O vento zurzia as árvores altas e baixas.
homem? Acercou-se de Mputa, guerreiro que morreria de for-
- Obrigado, mamã - disse Ualalapi, perturbado. ma estúpida e inocente mas cujo rosto permaneceria na
Soergueu-se, agarrou na lança e virou-se para os guer- memória de todos, como o afirmaram ao pressagiarem
reiros que o olhavam, cansados de esperar. o seu destino, sem no entanto detalharem as caúsas da
- Ide guardar a carne e espera i qualquer ordem. sua morte, pois em histórias que entram reis e rainhas,
Em vou até à praça - e largou-os sem mais delon- todos se apartam, até os swikiros que tudo prenunciam.
gas, caminhando célere e alheio ao vento que ia levan- - O que é que se passa, Mputa?
tando grãos de areia e folhas dispersas pelo chão, -' Morreu Muzila:
formando pequenos remoinhos que se alteavam em - Como?
círculos desordenados, tocando amiúde o corpo de .- Dizem que morreu de doença, pois há várias
Ualalapi, coberto por uma camada de sangue e restos noites' que não tirava os olhos do te~lO da sua casa.,
de folhas silvestres que se despegavam do corpo com -' Uma morte desumana para um nguni.
a força do vento que carreg'ava um cheiro estranho, - Há quem afirme que o pai morreu da mesma
,; sentido na zona nos tempos imemoriais em que homens forma.
de outras tribos viram as casas aluírem com a força do - Não era o desejo deles, Mputa.
vento e da chuva que cobriu a terra e os arbustos de - Conheço poucos reis que môrreram em batalhas.
água lodosa e cheirosa no momento em que acabavam - Mas todos afirmam que é a melhor morte.
de enterrar um rei de Manica que, vaticinado pelo seu - Quando se dirigem aos guerreiros.
swikiro - nome que os médiuns chonas levavam -, - Pensas muito depressa.
não tivera outro temp~ de governação que o número - A guerra assim nos ensina, Ualalapi.
de dias iguais aos dedo~ que as suas mãos carregavam. - Tens razão ... Sentes este cheiro?
Mas foi tempo suficiente para medrar com as lautas - É o cheiro da morte. Quando' um rei morre,
refeições que pararam no dia fatídico em que morreu alguns súbditos devem acompanhá-Jo.
de congestão, - Falei com. lima mulher que perdeu o marido.
E Ualalapi pisava agora, a caminho da praça, o local - Houve outrns mortes' por aí. A velha Salama
26 onde o corpo do rei estivera estendido, no interior de 27
guando soube da morte do rei dirigiu-se a uma das
"'.
~.:.. I" •• " .', " . . ~ :.>~:::"'-:_~~'{:"
.. ,

UNGULANI BA KA KHOSA ------------ _______________ --,..,.. UALALAPI

Ganhamos batalhas. Abrimos caminhos. Semeamos


margens do rio e esperou pelos crocodilos dos seus
antepassados que a vieram buscar meia hora depois de milho em terras sáfaras. Trouxemos a chuva paraes-
ela ter estado' sentada, contemplando as águas do rio.
O velho Lucere morreu durante a sesta, devorado pelas
fonnigas gigantes que não deixaram um bocado de
CQ~tumesmais_primários. E hoje essabrutalizada
tas terras adustas e educamo~gente
vocês. Nguni!
gente está pelos
entre I
carne do seu corpo velho. Chichuaio, ao entrar em casa, Este império sem medida ergueu-o o meu avô
viu-se rodeado de serpentes que lutaram pela posse do depois de batalhas incontáveis em que sempre triunfou.
corpo. E há mais casos, é sempre assim. Nele espalhou a ordem e os costumes novos que trouxe-
_ Eu sei, mas é ,incrivel... Há quanto tempo aguar- ITl:0s.E ao morrer indicou o seu filho Muzila. meu pai,
dam Mudungazi? corno sucessor. MuzHa tinha um coração de homem.
_ Desde o entrar da tarde. Este cheiro incomoda ... Era bondoso. E muitos aproveitaram-se da sua bondade.
_ É dos mortos há muito desaparecidos, Mupta. Entre eles Mawewe, seu irmão, que no meio de caba-
_ Os ossos não cheiram, Ualalapi. las vergonhosas quis e conseguiu usurpar o poder sem
_ Mas os espíritos tudo podem fazer. anuência dos espíritos e dos maiores do reino que
_ Tens razão. Levantemo-nos. Mudungazi vai tinham aceite Muzila como sucessor, pois fora ele o
aparecer. A caça que tal foi? primeiro a abrir a sepultura onde seu pai repousaria para
- Boa. Há muita carne. todo o sempre. Mas Mawewe esqueceu-se disso e }1't4-<"'é(
_ Fartura no meio da desgraça. tomou o trono por um tempo que a história não regis-
_ É isso - disse Ualalapi, limpando o corpo. As tará, e se registar será com a perfídia estampada no
nuvens que ameaçavam a aldeia começaram a afastar- rosto desse homem que não ouso chamar tio.
-se. carregando o vento e o cheiro da morte que pai- Nesse tempo, meus guerreiros. a terra cobriu-se de ,...
rou sobre a aldeia durante a semana em que Ualalapi cadáveres inocentes e as águas tomaram a cor do sangue >.<.-"I~/ ...
c...

esteve no interior das terras de Manica. durante semanas e semanas, levando pessoas a bebe- /-cÚ1 5r"""f
rem o sangue dos seus irmãos mortos por não supor-
tarem a sede que os atormentava. litudo por teimosia
TI
)71l('í~u/)"fJCVZ~ de Mawewe em se manter no Roder.
-~'-:M1iZilafiíOiTe~;sguerreiros. À· beira da morte
Numa voz entrecortada, chorosa, mas que ia ga- indicou-me como seu sucessor. A sua sepultura deverá
nhando força ao longo do discurso, como é próprio das ser aberta por mim. Acham que a história se vai re-
pessoas que têm a mestria de falar para o povo. Mu- petir?
dungazi começou o seu discurso perante os chefes guer- Os guerreiros, num compasso preciso, bateram os
reiros afinnando que as coisas da planície não têm fim. escudos de pele na terra e disseram não.
. '<i Há muitas e muitas colheitas que aqui ch~gamos Estais comigo, disse Mudungazi, não pela fidelidade
com as nossas lanças embebidas em sangue e os nos- para comigo mas por terem acatado as minhas palavras .
. seis escudos fartos de nos resguardarem. Esperava isso de vocês. 29
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______ ---------UALALAPI
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UNGULANJ BA KA KHOSA -~--------

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Susteve o discurso por momentos e percorreu com
o olhar raiado de sangue os guerreiros que· se manti~ _ Tens o hábito de subires as árvores pelos ramos,
nham em silêncio. O Sol caía. O vento estava calmo.
Mud\.mgazi.
Nuvens brancas sobrepunham-se às nuvens escuras no _. Entenderam, Damboia.
céu azuL - Duvido.
O meu irmão Mafemane, prosseguiu, vive a uns
_ A um guerreiro só se mostra o alvo.
quinze quilómetros daqui. Consta~me que se prepara _ E por que não indicaste o homem que deve
para partir a fim de abrir a sepultura do meu pai. executá-Io?
A história não deve repetir-se. O poder pertence-me. _ Fá-lo-ei ao raiar do dia. E não te preocupes com
Ninguém, mas ninguém poderá tirar-mo até à minha Mafemane: os abutres já se preparam para devorá-lo.
morte. Os espíritos poisaram em mim e acompanham- Bebamos o d'JrD pela minha ascensão ao poder deste
-me, guiando nas minhas acções lúcidas e precisas.
império.
E não irei permitir que haja a mesma carnificina como - À tua saúde, Ngungunhane.
no tempo de entronização de Muzila, porque irei ac- _ É isso, Ngungunhane. Serei para todo sempre
tuar já. Os homens que não me conhecem, conhecer- Ngungunhanee morrerei de velhice. Assim o quiseram
-me-ão. Não vou partilhar' o poder. Ele pertence-me
os espíritos.
desde que nasci do ventre de 1ozio, minha mãe, a
mulher preferida de Muzila. E serei temido por todos, - O que é que se passa, Ualalapi?
- Morreu Muzila.
I
~.porque
nhane, tal
nãocomo
me essas
chamarei
profundas
Mudunguzi,
furnas onde
mas lançamos
Ngungu- Sei. Mas o que é que Mudungazi
i os condenados à morte! O medo e o terror ao meu im-
_
_ Mafemane deve morrer.
disse?
J
] pério correrá séculos e séculos e ouvir-se-á em terras
por vocês nunca sonhadas! Por isso, meus guerreiros,
- Porquê?
[t _ Pela porta da casa entra um de cada vez.
aguçai as lanças. Teremos que limpar, o mais urgente - E o outro espera no terreiro.
possível, o atalho por onde caminharemos, para que não _ Ah ... os homens sempre evitam dar as costas a
possamos tropeçar com posslveis escolhos.
alguém. É perigoso.
Assim finalizou Mudungazi o contacto com os guer~
_ Nem sempre. Mas quem o .vai matar?
reiros. A noite entrava~ Seguido pela tia, de nome
_ Estás muito preocupada. Esquece isso. A água
Damboia, Mudungazi dirigiu-se à palhota grande,
para o banho está pronta?
bamboleando as carnes fartas que pouco mudariam até _ Está no lume. Esta situação preocupa-me.
à.morte que teria em águas desconhecidas, envolto em
- Porquê?
-'N- roupas que sempre rejeitara e no meio de gente da cor
~ I) - Tive sonhos esquisitos.
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do cabrito esfolado que muito se espantara por ver um _ É normal em dias de luto.
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preto. _ Sonhei com a tua morte.
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7- - Minha morte? - Não te preocupes. Eu só morrerei em combate


- Sim. como o meu pai que com quatro lanças enterradas no
- Como é que morri no sonho? peito teve a coragem única de arremessar a lançá que'
_ Morreste andando. A tua voz sustinha o teu hoje utilizo no peito dum tsonga a uns dez metros de
distância. Só morrerei em combate, mulher. É o meu
corpo sem vida. Eu e o teu filho morremos afogados
pelas lágrimas que não pararam de sair dos nossos destino, é o destino de todos os grandes guerreiros,
nguni.
olhçs.
_ Incrível, mas nada disso vai acontecer, mulher. - Não te enganes, Ualalapi. Muitos foram os
_ Estou com medo, Ualalapi. Estou com medo. guerreiros que morreram de forma estúpida e sem
Vejo muito sangue, sangue que vem dos nossos· avós estarem em combate. Sereko, que tanta gente matou em
'que entraram nestas terras matando... e- os ' seus filhos e combate, morreu com uma mordidela de serpente
1\
I -' .... , .....__ .... "- ....,,•...-------- . , ...
enviada pelo avô descontente. Makuko morreu no mato,
,
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",(]:}/;<,~,~~;.
.
defecando sem parar durante quinze dias seguidos. E
~\ láfapi,
netos sangue! Vive-riiéis-'do'-~n&~~Ae-s.t~~
..i~?centes. quando o encontraram, já morto, a merda ainda lhe safa
~
""'l"'\ Porquê,mantêm-se
1"
:
nela matando . também. Sangue,
Ualalapi?... .. Ua-
i . _, É necessário, mulher. Nós somos um povo eleito do corpo. Tiveram que o enterrar com a merda que não,
pelos espíritos para espalhar a ordem por estas terras. parava de sair. E tu não podes fugir a isso. Também
;.J.t,:f, E é por isso qu'e caminhamos de vitóda em vitória. se morre fora de combate. E eu tenho, medo, Ualalapi.
E antes que o verde floresça é necessário que o san- - É um sonho, mulher.
gue regue à terra. E neste momento não te deves preo- - E quanras vezes errei nos meus, sonhos?
cupar com nada, pois estamos em tempo de paz e luto. - Podes ter razão, mas se for para morrer corno
poderei fugir ao destino?
- Não fales assim. Exasperas-me. O que te peço
- E os teus irmãos, Mudungazi? é que recuses a ordem de matares Mafemane.
_ Quais? .. Como. Como, Anhane, Mafabaze? - Devo fidelidade a Mudungazi.
- Sim.
_ Não terão coragem de se oporem às minhas
IV
ordens. O perigo está com Mafemane. Esse é que deve
morrer.
O Sol não queimara ainda o orvalho quando
Manhune e os guerreiros a seu mando se aproximaram
_. Se te indicarem para matares Mafemane não da aldeia de Mafemane, pondo-se à escuta de sinais de
aceites, Ualalapi. partida. Mas o silêncio, o mesmo silêncio que a todos
_ Talvez não seja eu a pessoa indicad'a. Mas tocava naqueles dias de luto, cobria as pa:lhotas de
porquê? Mafemane e os seus homens e mulheres. Nas ruelas
32' - Temo pela tua vida, Ualalapi. nada se via para além de pequenas folhas e bocados 33
UNGULANI BA KA KHOSA _ Vi'" .c ':. UALALAPI

de bilhas partidas, esparsas pelo chão. Manhune deixou rando-os como ninguém fizera desde os tempos em que .
grande parte dos guerreiros que. o acompanhavam e aprenderam a manejar as armas. E para eles o exprobrio
levou dois à casa de Mafemane, que se erguia no centro tornava-se insustentável por vir da boca de uma mu-
da aldeia. Algo os atemorizava naquele silêncio, pois lher, uma mulher com má fama, apesar de ser da corte.
ao caminharem para o centro da aldeia não ouviam - É esta a guarda de elite com que contas,' Mu~
outtos ruídos que o som dos pés nus, calcando a terra dungazi? ... Uma cáfila de cobardes, cães que s6 sábe#i
húmida. Mafemane, alto, imperturbável estava defronte ladrar. Que fidelidade jurastes para Mudungazi? Qúe
à sua casa, de pé, com as mãos cruzadas no peito largo fidelidade, seus cães? ... Não, não me respondam; não
e forte. tendes direito a palavra. Devieis ser entregues· aos
- Esperava-os, disse Mafemane, aproximando-se de abutres. É isso que merecem, crianças, filhos· mal
Manhune. Sei que MuzHa morreu. Sei também que o paridos! Vindes aqui tentar convenéer-nos que Mafe-
meu irmão foi escolhido como sucessor, apesar de eu mane, sabendo da sua morte, quis despedir-se das .,
1
ser o filho primeiro da inkonsikazi de Muzila, Fussi. mulheres e filhos. Porque não fê-Ia antes? Ah, seus
O trono pertence a Mudungazi. Sei também que vies- cães, imbecis, estúpidos, crianças sem juízol... Mafe-
tes com ordens para me matarem. Estou preparado para mane prepara-se para fugir, e já deve ter partido.
morrer. Mas peço-vos que me deixeis despedir das Estúpidos. E tu, Mudungazi, ainda tens coragem de dar
minhas mulheres e dos meus filhos. Vinde ao cair do guarida a cães que s6 sabem ladrar? No teu· lugar
dia. matava-os ... Não percamos mais tempo com esses'
As palavras, como que vindas das alturas, entraram estúpidos. Vai Maguiguane, Mputa e Ualalapi. E levem
na mente de Manhune e dos guerreiros com tanta os guerreiros que quiserem. Mas não\apareçam nesta
clareza que ficaram petrificados pela calma e a sere- aldeia sem o corpo de Mafemane, nem que tenham que
nidade de Mafemane. Este sorriu e fixou-os. Os olhos fazer desaparecer a floresta que vos rodeia. Avancem!
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eram transparentes, brilhantes, chocantes. Sem conse- A mulher do Ualalapi acompanhou com o olhar o <"

.. ,
guirem responder, os homens de Mudungazi começa-
ir" marido até este desaparecer na floresta. Pegou no fi-
ram a recuar, com os olhos postos em Mafemane. ,~ . lho e começou a chorar mansamente. Entrou na cuba-
Manhune tropeçou, caiu, levantou-se, deu costas ao ta e não mais saiu até à morte do filho e dela, afoga-
Mafernane e pôs-se a andar num passo tão rápido que dos pelas lágrimas que não pararam de sair dos olhos
os guerreiros que o esperavam ficaram surpresos e desorbitados durante onze dias e onze noites.
perturbados. Ualalapi, longe dos tonnentos da mulher, aproxi-
- O que é que se passa, Manhune? mou-se da aldeia de Mafemane. O Sol tomara a cor
- Não me perguntem nada. Vamos, vamos à nossa vennelha. A tarde fugia. Ao divisarem a casa de Ma-
aldeia. femane, Ualalapi ficou com' os seus guerreiros a uns
.q--' E pôs-se à ·dianteira. Chegados ti aldeia tentaram quinze metros de distância. Maguigtlane e Mputa adian-
explicar a Mudungazi o que viram e ouviram, mas taram-se, à direita e à esquerda respectivamente. deixan-
/34 Damboia, com os olhos reluzentes, interpôs-se, vitupe- do um corredor a meio, onde, ao fundo, Mafemane, 35
~fr.'''IFI.:.

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t UNGULANI BA KA KHOSA _
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(7--'-- ! ,~..Y9-p' UALALAPr

com um sorriso nos lábios, os esperava, de pé, frente genuflexiva .durante segundos prolongados, esperando
," ao áditoda sua casa. ' Ualalapi que se aproximava, de cabeça baixa. A dor no
"
- Pensei que não viessem - disse Mafemane, per~ peito era de tal ordem que caiu de costas, apontando
correndo-os com o olhar, um olhar penetrante, incisi- os olhos para o céu onde três estrelas despontavam. Sem
vo -, não era necessário tanta gente, bastavam dois. a coragem de o olhar, Ualalapi aproximou-se de Ma-
Mas estou pronto. Podeis matar-me. Sei que. não femane, ajoelhou, tirou a lança do peito e voltou a en-
( ,,',

.; , t"Y'fv.J..
podereis entrar na vossa aldeia sem o meu cOlpo. terrá-Ia vezes sem conta. O rosto, o tronco, e outras
, ' Conheço Mudungazi de criança. E con heço essa cra- partes do corpo de Ualalapi foram-se cobrindo de
pulosa mulher que tem por nome Damboia. Não vos sangue quente, expelido do corpo de Mafemane, já
quero roubar tempo, andastes muito. Podeis matar-me. morto. E à medida que o sangue ia correndo pelo corpo
Bocados de palha soergueram-se de uma palhota
e de Ualalapi, este mais fechava os olhos e enterrava
próxima. Tremeram no ar calmo e voltaram a poisar. com maior fúria a lança no tronco perfurado, desfeito,
Dois pássaros cortaram o céu. Uma criança chorou. irreconhecível. Maguiguane e Mputa aproximaram-se.
Amãe abafou o choro. Mafemane sorria: Maguiguane - Chega - disseram, há muito que morreu.
quis le"antar a lança. Não conseguiu. Sentiu a mão pe- Ualalapi susteve a lança a poucos centímetros do
sada~ Mputa pennaneceu na mesma posição, impassível. peito de Mafemane e soergueu-se. Passou a lança para
Mafemane sorria. O Sol descia, vennelho. Os minutos a mão esquerda e pôs-se a correr, atravessando as casas
.~
passavam. o. silêncio carregava-se. A noite entravà. da aldeia, e gritando como nunca ninguém ouvira um
Do fundo do corredor uma lança cortou o ar e foi- .' "

não estridente, lancinante. Desapareceu na floresta "

-se enterrar no peito de Mafemane. Este, alto que era, i.


coberta pela noite, quebrando com o corpo as folhas
atirou o cOlpo para trás e voltou à posição inicial, e os ramos que os olhos ensanguentados não viam. .1:
cravando os olhos em Ualalapi que fugia. Minutos depois o choro de lima mulher e duma crian- "
l'l\
- Quem é? - perguntou Mafemane ça juntaram-se ao não e ao ruído da floresta a ser r~
. - É Ualalapi - responderam os guerreiros mais
•. 0';'

;
arrasada. E o mesmo ruído cobriu o céu e a terra
!
próximos. durante onze dias e onze noites, tempo igual à gover-
t .,-.
Chamem-no. Ele' tem que acabar comigo, como nação, em anos, de N gungunhane, nome que Mudun- .,
.,

gazi adoptara ao ascender a i!T!perador das terras de


G,E.a. -:-... = .... : .. ' .... ' .
ç;t...w~ >I' , :ji

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~F,." mandan).
E ,asre~as.
ngum. Donde é que é? {) O" ,Ir:
:x~ Ahn!' - suspirou sorrindo. O corpo começou a 11~:;'
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.T.··.' , )J l"t'''''~~
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~~::~; vergar.:. Ao dobrar para a' frente a coluna, a lança
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i? enterrou-se mais no peito ensanguentado. Voltou com rvt'-1~-,ii '"

~;\. algum esforço à posição inicial e lançou um jacto de


,~k~::sangue.!:.os joelhos foram-se aproximando à terra e
I~W,~".assentaram definitivamente_"".~n noo. chão, segundos
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depois.
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Fragmentos do fim (2) ~~·l
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~,.-:
Sentindo que pisava um objecto estranho e duro o
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cavalo levantou as patas dianteiras} relinchou, e vol· {~~
'I
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tou a poisá~las sobre o corpo} precisamente no ventre
leve e macio do negro. .~
. .. :;
O negro gri.tou, enterrou 'os dedos na areia húmida} . :..,~

abriu desmesuradamente os olhos, saliou~lhe um jac~ ' ..


.;..~
to de sangue pela boca e viu as tripas a safrem} per·
furadas por balas.
O coronel Galhardo olhou para o negro, viu as "
"

,; "
ri tripas a escorrerem pela terra, viu os lfquidos intesti- "

~L
nais a desaparecerem por entre o c,apim amassado, viu
:.;:

o sangue a escorrer pelo corpo, e não se comoveu.


Olhou de novo para o rosto do negro} e notou que o
homem tentava soerguer a cabeça. Do pescoço os
nervos despontavam, tensos.
- Onde está o rei? - perguntou.
O negro voltou a abrir desmesuradamente os olhos,
tentou enterrar com mais força os dedos} ergueu len-
tamente a cabeça, expeliu um novo jacto de sangue pela
boca e voltou a tombar definitivamente a cabeça so-
bre a terra. O coronel olhou para o sangue que es-
39
corria nas paras dianteiras do cavalo, olhou para o
~'~. -c;~:

mf: UNGULANI BA KA KHOSA _


T'
tosto desfigurado pela morte e comentou com um leve
sorriso e1Jtreos lábios: -. Estes pretos têm uma for-
ça de cavalo! ...
Puxou as rédeas do cavalo, virou-o à esquerda, e
contemplou com certo cansaço o mar de mortos sem
sepultura que a p/anfcie ostentava. Ao longe, silencio-
sa, erguia-se !b.~q.pjJ!}r4o_irrJptfrjo-ª-~Q-ª!-.~ As casas,
pardas, adormeclãmnã· tarQeqlle7üg iã.~·-
- Queimem a p~voação - sentenciou o coronel e
esporeou o cavalo em direcção ao outeiro mais
próximo.
A morte de Mputa

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40
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À Segone Ndangalila
à Magambo
e à Misete

Então, do seio da tempestade, o Senhor respondeu a Job e


disse: Quem é aquele que obscurece a minha providência com
disCllrsos sem inteligência?
Onde estavas quando lancei os fundamentos da terra?
Acaso, é sob a lua ordem que a águia levanla o vôo e faz
o seu ninho nas allUras?
Job respondeu ao Senhor e disse:
Sei que podes ludo e que nada te é impossfvel ...
Por ü:w relralo-me e faço penitência no pó e na cinza.

Job,39/42
;'7~ff
.....

Ao acordar, nessa manhã nebulosa e aziaga, Domia


sentiu as vÍsceras bulindo de fonna aterradora e
mortífera, mas não se preocupou tanto, pois sabia que
tais dores sempre lhe vinham quando pensava nos
ponnenores do acto que arquitectava há anos, desde o
dia em que seu pai, de nome Mputa, fora morto 'e
retalhado por culpa da rainha, primeira mulher de
Ngungunhane, que nestas terras leva o nome de inkon-
sikazi. que o acusara de proferir palavras tão injurio-
sas que as lágrimas lhe vieram ao rosto ao contar, entre
soluços. ao rei que jurara pelo avô Manicusse que
Mputa, cão sem nome e hist6ri, beijaria a terra por todo
i'
sempre. porque palavras de tal malvadez não eram
permitidas no seu reino, e muito menos à mulher dum
rei cujo respeito os súbditos lhe deviam prestar com
~. toda serventia, e, dizendo isto com gestos largos e o
rosto contraído, mandou o chitopo, nomeação que leva
o arauto do reino, convocar a grande assembleia que
devia reunir-se nessa mesma manhã sem faltas e des-
culpas, pois uma afronta à sua mulher era um ultraje
para si, rei de terras vastas, e a todo o povo do seu
império que lhe deve dignidade e o orgulho de serem
," ( .c' - (
homens, pois fui eu e todos os que me precederam que
:~. I' ,,' .
dissipamos a noi~e_?nfj!lªªyel_q1te_CQb.r.iª_~s..~~s
terras,
dizia isto movimentando O corpo bojudo pelo átnoeJi:C
casa real e mostrando com as mãos e os olhos, as 45
. ~.<' .. ", ." .,
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UALALAPI

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I
nuvens, o Sol, e as árvores imponentes que se erguiam mexeram os olhos e a cabeça em sinal de consentimen- §
ao longe à sua mulher que soluçava e ao chitopo que ~ . .~
to unam me. ;;,
\'~
o seguia, acenando a cabeça por tudo e por nada,
Molungo, tio do soberano, homem que acompanha.,; .~
ouviste, vassalo, eu dei a luz e o somso, eu dei a carne
ria'o rei no infortúnIO dos anosintennináveis de exílio, ~
e o vinho, eu dei a alegria a estes vennes, e não será
um cão, um homem que dei a honra de cozinhar para
mim que ousará levantar a voz, por isso vai, corre, crime apois
pediu bastasciente
palavra, foramde'asquevezes quenão
Mputa viracometera tal S-r~
a inkonsi-1 J~ ,~../...~
kazi acercar-se do homem como um animal em cio, mas ~~
quero-os já, e se encontrares alguém defecando tira-o boLas, pensava, palavra do rei não volta atrás, e não ~<~
da merda, e se estiver colado à mulher retira-o do
seria ele, Molungo, que revolveria a montanha tecida, '.~
enlace com a força que o império te dá, eu sou, e serei mas tinha, para seu agrado, a capacidade de atenuar a .~
por todo o sempre Ngungunhane, assim o quiseram os
pena proferida, e daí que tenha começado a elogiar· o :~
14v~ meus pais e avós e toda a prole de her6is nguni que
levantaram estas terras do letargo dos séculos ino-
rei, enchendo os testículos, o bojo e o traseiro desc~ ';~
j h"Õ~0\_\ munal do hosi, de glórias possíveis e imaginárias, 'deJ.
I. mináveis, vai súbdito, vai, chama-os, arranca-os de onde
factos reais e irreais que ele, rei de tantos feitos,. herói $
estiverem e trá-Ios à árvore grande, e tu, mulher, mãe
sem par na História, foi protagonista primeiro e único '!
de todas as mães, limpa as lágrimas que sulcam. o teu. que a História registará enquanto os homens estiverem 2
rosto, pois não virá a lua antes de sorrires perante, a sobre a terra!
trágica morte que esse imundo animal,. filho de cães, Dito isto numa voz exaltada, própria para a 'baju-
terá.
!~ lação, o soberano mais não fez que acenar a cabeça,
. mostrando os dentes comidos pelo rapé e pelo álcool,
J
I e deixar que Molungo espremesse o tumor. Este, com
-I
\ Os grandes do reino entreolhavam-se, receosos, pois a argúcia que a vida ensinara, disse ao rei, em jeito de
'Ir,
~l...,• não sabiam, como diz o vulgo, quem teria agarrado o síntese, que a morte não seria digna para um homem
búfalo pelos chifres, e à medida que o rei cavava a que ousou cobiçar o corpo da rai,nha. Era necessário
imbonga até chegar ao mel, os maiores do reino des- um castigo brutal e memorável na mente dos súbditos;
contraíam-se, esticavam os pés, relaxavam os membros, por que não cegá-Io como faziam os tsongas em tempos
e seguiam com, mais atenção as palavras que desciam que não importa recordar? Caso faças isso o teu po-
as escadas do. reino e esbatiam-se no vulgo, nesses der imperial sairá fortificado nestes tempos. tumultuo- '.)
homens sem nome e préstimo. Depois, mais ,confian-
50S em que ~homens_ .~a..co~._<1..~.
ç:ab~to _esfolado '<:

I tes, cientes de que as palavras fugiam do centro, ace- !lllsed!~m Q)~.l.I.r.~i~o"·V"lito.Cegai-o, imperador, perante ;
navam a cabeça ao ritmo das palavras coléricas que os seus e verás que 'essa massa infonne entrará em
saíam em desconchavo. até que, para gáudio de todos, delírio, pois outra· medida não os exulta tanto que as
exceptuando Molungo, o nome de Mputa se elevou . tradições que outrora esses ~ef!11es seguiam com toda
pelos ares da manhã. E quando () soberano sentenciou a religiosidade!
46 a pena de morte ao.cão e imundo tsonga os maiores Molungo sentou-se, ciente de que o mel é doce por 47
~, .;'-."
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UNGULANI BA KA KHOSA
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UALALAPI
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si mesmo e que Mputa seria homem de tirar as teias ao rei, e passou o resto da vida carregando os testículos
que o envolviam. , sem fim. Não fales assim. Deixa'o Mputa. Deixa-o! Ele
Bateste as lripas, disse o rei, satisfeito com tanto esqueceu que quem agita a lagoa levanta o lodo.
enc6mio, e os outros, os maiores do reino, voltaram a - Mas cacarejar não é pôr ovo, avô?
mexer os olhos e o corpo em sinal de consentimento - Não fales mais, calemo-nos. Se Mputa tem razão
unânime, e pediram ao rei que cegnsse Mputa perante sairá ileso, pois o macaco não se deixa vencer pela
os seus. árvore.
O rei ordenou que informassem
o chitopo para que E foi neste ambiente de comentários, próprios do
fizesse troar a chipalapalae chamasse os tsongas dos vulgo, que Ngungunhanc apareceu perante a multidão,
arredores para que representassem todo º-ROVO Ao com o seu saiote de peles e as cautlas decorativas,
império que ia do Limpopo ao Zambeze. Dizendo isto acompanhado pelos maiores do reino e por Mputa,
levantou-se e pôs-se a caminhar em direcção à casa, ladeado por guardas reais, no meio do ram-tam que
pensando e repensando no discurso que exuItaria os ressoava das peles ressequidas como sons que vinham
mais cépticosj enquanto os maiores do reino recolhiam de entranhas continuadas em séculos, troando pela tarde
às suas casas, comentando o que já deveriam ter sem nuvens, bela, impoluta. E quando o silêncio se
comentado, sem ligarem à tarde que entrava e muito refez, o soberano, calmúmente, com o orgulho que os
menos ao som que se elevava pelos ares, sobressaltan- ,c~ herdaram, dirigiu-se ü multidão. dizendo que
~t~
... _-----...._-

do as espécies adormecidas há séculos, removendo Mpura é uma palhora sem capim. Espantou o coelho
águas paradas desde a criação do mundo e dos homens e não tem coragem de correr atrás dele. Estas foram
em cujos túmulos esquecidos plantas desconhecidas as palavras primeiras que puseram em delírio o povo
cresciam e multiplicavam-se, formando bosques impe-
netráveis onde os espíritos mais recentes repousavam ts~nga que
pOlsara esquecera
naquelas terrasquecom
estava perante dos
o sangue o in,:asor que
Inocentes I~~-_-.J
[;1)(\(11,-r")o/
~

do bulício humano e animal, enquanto seguiam com um guerr~iro~.lL1J...nS_~~-'f~J.e!Dl.?.radQs,


e todos, exceptuando
I sorriso jamais visto as -PllI.haridades que os homens_ Domia, que estava ao fundo da multidão com as
.:"
lágrimas presas nos olhos infantis, exoraram ao sobe~
~"" li\~ilSQ!R~tiª.rn
\ ~U n~. il'lfantiIidad,e..º~_razõesjnv~,tÊ.º.ª,s.
.Il!eJ;l.tadas durante séculos e séculos! y.a~-
:~ rano a morte dnquele que em tempos recentes coloca-
r
..
-: ::
v:
ra aos pés do soberano cinco cabeças de leões mortos
..;;
}:.
'4
~ à faca, numa luta corpo a corpo. As palavras exulta·
\;'
~~ .' ,' - .., .Mputa: esqueceu-se que a trovoada produz a va-os de tal modo que quando o rei Ihes perguntou se
chuva; filho. Mulher de .rei é sagrada. devia ou nito dar a palavra ao criminoso Mputa, ani-
. ; , -, Porquê, avô? O que ela tem entre as coxas outra mal semelhante aos machope, muitos duvidaram e
mulher não terá? outros recusaram tal direito. O rei sorriu, dizendo depois
- Não fales assim, filho, não fales assim, pois há que daria a palavra ao cão, apesar de tal direito não
anos atrás, o teu pai ainda não tinha nascido, houve um lhe penencer, pois os cães são cães!
48 homem que ousou lançar impropérios jamais ouvidos Mputa, com o seu corpo atlético, aproximou-se da 49
Ii, UNGULANI BA KA KHOSA

,
i, multidão e falou num tom tão sereno que o silêncio Não o cegarei como queriam que o fizesse,UALALAPI
pois os . : ~
',,:,~
I imperou como nas horas dormentes da sesta. feiticeiros agem na bruma da noite. Matá-lo-ei hoje e:;~
: 'Ç~
;
- Pod~is matar-me, rei, podeis esquanejar-me. Vós agora! E virou~se para os guardas que empurraram ~
tendes o poder imperial que pesa no vosso corpo desde . Mputa para o meio da multidão. . ~§
a nascença. Mas eu, vassalo como todos os que vedes Domia com os seus treze anos, viu o pai a ser 'J
à vossa frente, nada fiz, nada disse a inkonsikazi. É esta
a minha verdade. Sei que duvidais dela, pois a pala- elementos da população, pois os restantes, cientes "da;:~'i,
vra da inkonsikazi é sagrada aos vossos ouvidos e a de espancado e retalhado pelos guardas reais e por alguns: ,;tl~
todos os súbditos. Podeis matar-me, rei, pois há mui- inocência de Mputa,. retiraram-,se da zona, tentando ~":\~
to que foi dito que morrerei desta forma inocente. Mas
í
antes de me matarem, peço que me submeta ao mon-
dzo para que a minha inocência fique provada peran-
te o seu povo. E mais não disse, pois os olhos.
esquecer o que JamaIS esquecenam. ~~~,:~
Após anumar as suas COisa: Domia saiu da cuba-
ta, endireitou a saia vergastada pelo vento que anun-.L!
':j
(í'
com um brilho indiscritível, carregavam toda a ver-
l';,,~,. ~:
f;: . ciava a chuva que desabaria na altura da sua morte, e '.:~
f dade que as palavras não conseguiam exprimir. pôs-se a caminhar em direcção à casa real, duvidando';>~
',~ E aqueles que tiveram a coragem' de os ver viverem do seu acto, depois de quatro anos de espera.' Sabia que j~

ia morrer. Algo interior lhe anunciava a morte, uma ;~


morte terrível. "fi
:;:1'.1

I
::,.,' . ,_.'-J amargurados
11 '. O rei, antepelas ins6niaspalavras
as límpidas por se de
sentirem
Mputa,çúmplices
teve que Ngungunhane, encostado à cobertura da casa que ::~
frl " v'" dum crime. tocava o chão, alheio ao vento do infortúnio, fumava :.!:
I ,li . virar-se para o conselheiro, porque a d~vida, que nunca
, ,I K I mbhangui, nome que leva a «cannabis espontânea», ";
I~ iI corpo de forma tão intensa que as mãos tremeram. muito f~mada pelos tsongas, pensando na desventura .5
li
i; 'I O povo,
devia silencioso,
atingir não sabia
o soberano já onde penetrou-lhe
em público, pender a cabe-
no que tocara a sua casa, pois as suas trintas mulheres, es- 1:

I •• ça. O rei outra coisa não fez que aceitar que subme- palhadas pela capital, há mais dt::quatro semanas que f:

tessem Mputa ao mondzo, nome que leva o ordálio vertiam sangue pelas coxas, facto inédito na sua vida de
venenoso preparado nestas terras do império. casado e polígamo, quando viu Domia transpor o cer-
E foi num silêncio sepulcral que Mupta bebeu o cado da sua casa,
mondzo sem pestanejar, sem mexer um músculo do - O que vens fazer a esta hora?
corpo. E assim permaneceu durante minutos infindáveis - Limpar a vossa casa, hosi?
perante a incredulidade do povo e dos maiores do reino 9 rei olhou-a, viu os contornos das ancas, o tron- ..~
que o olhavam, preto e reluzente nasuu tanga de pele, co nu e os seios exsurgindo por entre a tira de pano
com o sol a bater-lhe, ao fenecer do dia, no tronco, nas que tentava cobri-Ias.
veias salientes e no cabelo riçado. - Como é que te chamas?
É feiticeiro, disse o rei com uma força jamais - Domia, senhor.
ouvida. E os feiticeiros não têm lugar no meu reino. 51
50 - Domia ... sabes quem foi Domia?
f\_ I ~,.,... ...•__ t,,:'
--------- o _ •• _~ ~ __

- Sei, hosi. Foi a mãe de Mawewe, irmão e rival vra saía da boca de uma mulher. Tremeu ao se aper-
. de seu pai Muiila. . ceber que a moça era filha de Mputa. E tremeu ao ver
- Não chames irmão a esse cão! E por que ra- o somso de escárnio que despontava dos lábios da
zão o teu pai deu-te esse nome? moça.
Domia baixou os olhos e nada disse. O rei mandou-
Minutos depois Domia era levada pelos guardas
-a entrar na casa. Como a porta fosse baixa, ela teve reais, com ordens terminantes de a fazer desaparecer
que agachar-se e entrar gatinhando. O,imperador seguiu- da face da terra.
-a com os olhos e depois entrou. Quando a chuva desabou Domia deu o último
Vendo-a de pé e tteme nte, Ngungunhane arrancou suspiro, deixando a carne a ser desfeita pela chuva que
a tira de pano que cobria os seios e puxou-a para si, não parou de cair durante semanas e semanas até que
com fúria dum animal que há muito não via o sexo sobre a terra não restasse um osso. E o rei passou o
oposto. Domia retirou a faca da saia e esperou pelo resto da vida contemplando, a sós, o sulco que não mais
momento oportuno. Foi o seu erro. se apagaria do corpo, fizesse o que fize!>se.
Ela pensou, e bem, que o rei encostá-Ia-ia à parede E poucos foram os que souberam que Ngungunhane ,<'

e faria tudo de pé, pois nunca lhe ocorrera pela cabe- bIlha uma marca indelével na coxa direita do seu corpo.
ça que o soberano levasse uma serva ao leito onde as
rainhas se deitavam. Foi o que fez, depois de ter vis-
to, durante o percurso, a ponta reluzente da faca. _
- Queres matar-me? - perguntou o rei, ao que
ela nada respondeu, pois tentou, de imediato, desferir
a faca no peito do imperador. Este empurrou a mão da
moça e sentiu a faca a penetrar na sua coxa direita. Não
ligou importância. Retirou a faca da mão da moça e
possuiu-a brutalmente, ela em baixo e ele em cima, ela
esperneando e tentando batê-Ia, e ele ofegando e ten-
tando esmagá-Ia com o seu peso de homem e de rei.
Ultrajada e ferida no íntimo, e com os planos frus-
trados, Domia outra coisa não fez que cuspir na cara
do rei e chamá-ia cão, coisa que ninguém, desde que
o rei nascera, tivera coragem de dizê-Ia de frente, por-
que de trás sabia que tudo falavam, mas de frente,
nunca! E tremeu.. Tremeu ao ver os olhos reluzentes
de Domia que incandescendiam na casa sem janelas,
como as de um gato enfurecido. Treme'] ao sentir-se
. li? aviltado como soberano. Tremeu ao sentir que a pala- 53
I
I
I
!
Fragmentos do fim (3)
I
iI :.1

ir
.'
«Estão cwnpridas as ordens de V. Exa. A coluna
j
.,
:: .)
;~. do meu comando ejectuou a marcha sobre Manjacase. ~;
i
j Chegado a langua) provoquei o inimigo em combate,
,,i bombardeando a povoação. Gente do Ngungunhal'le
r
apareceu no bosque que circunda e oculta o Kraal, em
[
t :
pequenos grupos, respondendo apenas com alguns ti-
ros de espingarda ao fogo de artilharia da coluna, que
os dispersou rapidamente .

jl~
. r

,r «Em seguida, deixando o comboio devidamente


escoltado) marchei sobre o Manjacase, que encontrei
abandonado, mas com muitas munições e objectos de
uso dos habitantes, tudo na desordem própria duma
precipitadajuga. Os auxiliares saquearam a povoaçáp
e o chigocho do régulo, que logo depois mandei in-
cendiar, ficando tudo completamente destru(do, e vol-
tando com a coluna ao bivaque na langua.»

. Assim começa o relatório à posteridade do coronel


Galhardo. Um relatório pormenorizado, prolixo, mas
falho em aspectos importantes que o coronel omitiu, ao
não registar: 55
_ o facto de ter profanado como um ímpio o lham-
belo, urinando com algwn esforço sobre .o estrado onde
Ngungunhane se dirigia na época dos rituais e muito
menoS os escarros que atirou à parede de troncos, mis-
turados com o tabaco do charuto que ostentava entre
os lábios queimados.
- O roubo de cinco peles de !dto que ostentou na
metrópole, como res{.lltado duma caçada perigosa em Damboia
terras africanas.
- O facto de ler, pessoalmente, esventrado cinco
negros com o intuito de se certificar da dimensão do
coração dos pretos.
- O facto .dese ter mantido sóbrio e sereno face
às labarelas que comiam as palhotas da capital do im-
pério e ao choro da criança em chamas que gatinha-
va, desesperada, por entre as chamas e os troncoS quei-
mados e o capim e o adobe que desabava, procll(an-
do a vida na estupidez da guerra.
A propósito deste homem o então comissário régio
de Moçambique (1895), António Enes, escreveu, anos
mais tarde, nas suas memórias, o seguinte: se na ga-
leria dos homens ilustres estiver inscrita a bravura, a
tenacidade, o respeito pelo homem, a bondade, o amor
à pátria, o coronel Galhardo tem assento por mérito
próprio.
:
1-.

A Anfbal Aleluia

Dai.lhe tormentos e lágrimas na mesma medida em que fez


ostentação do seu luxo e das suas de/feias, porque disse no seu
coração: «Estou sentada no trono como rainha, não sou viúva
e jamais conhecerei o luto», Por isso, num s6 dia, virão sobre
ela os jlagelos: A morte, o pranto e (Z fome. Ela será consumi-
da pelo fogo, porque o Senhor que (l condenou é poderoso.
Apocalipse, capo 18
'.1

I
Tirando o dia, a hora, e pequenos pormenores, todos
foram unânimes ao afinnar que Damb9ia, irmã mais
nova de Muzila, morreu de urna menstruação de nun-
ca acabar ao ficar três meses com as coxas toldadas de
sangue viscoso e cheiroso que safa em jorros contínuos,
impedindo-a de se movimentar para além do átrio da"
sua casa que ficava a uns metros da residência do
imperador destas terras de Gaza que, a seu mando,
colocou guardas reais em redor da casa de Damboia,
!
impedindo olhares intrusos e queimando plantas
aromáticas que não tiravam o odor nauseabundo, do
sangue que cobriu a aldeia durante aqueles meses
fatídicos em que o nkuaia (ritual anual e sagrado em
' .. :

que os súbditos, provenientes de todos os cantos do


império, à corte se dirigiam, cantando e ofertando igua- ~.

--- fi} ,~~


:fIv~ rias e outras coisas diversas ao soberano dos sobera-
nos que tudo aceitava, no meio de cânticos de louvor
"'-

ao imperador que no dia último do mês se dirigia ao


lhambelo, nomeação do local sagrado, nu e acompa-
nhado, para os rituais que culminavam com a matan-
ça de gado e de QQisjQ.v~s, de ambos os sexos, que
entrariam no prato mágico que revigoraria o império
e lhes daria forças para a bebedeira que se seguia e
ao untento da manhã seguinte onde tudo se discutia com
o protocolo e a moderação na linguagem como nos
actuais parlamentos e assembleias) não se realizou, 61
:~';> ••••.•-.õ·
, .~~. r:':; ,>'
., I

"
. ..... . ;:.~,~-.
..'•...

UNGULANf BA KA KHOSA UALALAPI·· '

apesar de se estar num ano de tumultos e guerras, esconjurará os males de que padece. Salvem-na desta
porque a, mulher da corte, fora acometida por uma desgraça que não tocou a ele mas a todos, e se ela se
doença estranha, nunca vista nestas terras desde o tempo vai, vai-se o império, homens!
em que outra mulher, de nome Misiui, perdera leite E por isto e outras coisas mais que vos aprouver
pelos seios durante anos sem fim, enchendo potes e dizer, para o bem do reino, o nkuaia não se realiza. Na
barris e levando gente de aldeias distantes e dos pân- capital não ressoarão esses cânticos de louvor que nos
tanos impenetráveis a visitarem-na com a curiosidade rejuvenescem. Os guerreiros não baterão os escudos do
expectante de verem a mulher sáfara, de seios da bayete, levantando a poeira pré~hist6rica dos nossos
dimensão de grãos de milho, que com todos conver- antepassados esquecidos. O Sol e as nuvens não toma-
sava e fornecia leite às crianças e velhos doentes e rão a cor dos dias da vit6ria, e o vento não tratá a voz
moribundos. inapagável dos heróis nguni. Por isso, as leis que
Mas isso aconteceu em tempos recuados e não tocou vigoraram até aqui irão vigorar, e eu serei homem de
uma mulher da corte como Damboia. Por isso, dizia mais leis emanar quando para isso for necessário,
Ngungunhane, mais importante era ela que os assun- porque o império é meu, e o poder pertence-me: Ide,
tos do império e enquanto eu estiver vivo as assem- vassalos, e apagaí as tachas que por este império esti-
bIeias podem faltar, eu represento a todos, homens,
mulheres, velhos e crianças deste império sem fim, dizia ~ossa ~~E~tu,~~gui~~Íl~1. vai por_~sas terras ~-. ~~~
isto com toda a pujança na voz, como se os milhares lhar a morte e a dor. Eu quero que todos, mas todos,' (,: i:\
de vassalos coubessem no corpo bojudo que a todos
~º!TIriad~am com a dor que
veram acesas. gJ~ara_qp'~.os n9s atacou.
maéhope Ide,
não se gue:r-
riam da[ /.r.':t=,
, '~
ostentava e que medrava de dia para dia com as res-
ponsabilidades infinitas qu,e o império lhe dava, resol~
reiros, que o império vos salvaguarda;' agora e depois
da morte. '
~f
;~t"
vendo-os com a voz e os gestos, pois papel não havia ..\~

j:'}~~
e as ordens eram escritas pela voz tonitroante que
:: \j':lV (\'
.J..). ressoava nas manhãs e tardes chuvosas e secas. II ~~Ji
,(;'DI·

Mandei arautos por este império avisar, dizia, que :;~; '1;
.

Domboia padece de uma doença mortal, contraída ao Quanto ao dia em que Damboia, postada ao umbral :t~
~ ....•... .
serviço do império que as suas mãos ajudaram a er- da sua casa, sentiu o sangue viscoso a escorrer pelas ..'li
guer, e todos, chefes e súbditos, amos e vassalos, devem coxas, prenunciando o luar interminável da sua morte, . ".
.\ ~
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pedir aos antepassados remotos e recentes para que a as opiniões divergem. .•
" ..
ti·,,:
salvem desse mal incurável como fizeram com essa Malule, que guardara a casa sinistrada de olhares ~
serva de nome Mfussi que outra coisa não via em seu intrusos, dissera-me que nesse dia as copas das árvores ,t~~
~~~.
redor que serpentes vermelhas e pretas a abraçarem-na, foram arrasadas pelo vento maldito que vinha carrega- ~
'.~
dia e noite, andasse por onde andasse. E não será à do de conchas das profundezas abissaís do mar distante.
Damboia, mulher da corte e não vassala como essa A tarde caía. As casas choravam. E os homens, tremen-
:{
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Mfussi e nutras mais .. que a voz dos espíritos não do, recolheram tudo o que de essencial tinham fora das 63 ',~
, j", -'l/C L lU. ,-
U?Jl~'\.:'':,1 '-~-/') r L .. ' J)
.. 'o', (,<0') .••.. \
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UNGULANI BA KA KHOSA --------------------- ------_. (1).. J UALALAPI

cubatas e entraram nas casas que gemiam com o vento cadáveres que desapareceram misteriosamente com a
,~
~:~;'
,. " e esperaram pela noite, rogando aos espíritos a cessa- cessação da chuva; na sétima noite, o que levou os
ção imediata daquele vento maldito. A noite chegou.
:;.'.

f: .: No céu havia estrelas brilhantes e a Lua tinha um corte . curandeiros a afirmarem


tempos esquecidos que eram
que vieram cadáveres
chamar de àquele
atenção outros I
.. '.
ligeiro. Não havia nuvens. E o vento, aumentando de povo que nada respeitava, e que munnurava tudo o que
intensidade, tirou o tecto das casas mais pobres e expôs ouvia e o que não ouvia.,
à noite dos espíritos a pobreza de todos os séculos dos No sábado último do mês terceiro da dor, Damboia
homens sem guarida e nome. morreu. No dia seguinte, os cinco homens mais fortes
Ao amanhecer começou a cair uma chuva amare- da zona acordaram impotentes para toda a vida. E isso
la. forte, de gotas grossas e pegajosas como a baba do não foi o mais importante durante aqueles meses to-
caracol. Durante sete dias e sete noites as populações dos. A pior coisa que aconteceu durante aqueles me-
dos arredores de Mandlakazi. nome que as capitais do ses foram as palavras, homeml Elas cresciam de minuto
império levavam, sentiram na pele aquela chuva anor- a minuto e entravam em todas as casas, escancarando ~~
mal. Na aldeia real havia sol e vento calmo. Nos 'pri- portas e paredes, e mudavam de tom consoante a pes-
meiros dias era nonnal ver Ngungunhane dirigir-se aos soa que encontravam. A violência que NgungunhanC?
arredores. acompanhado pelos maiores do reino, e con- utilizou para sustá-Ias não surtiu efeito. Elas percorriam'
templar aquela chuva azeda, apelando para a calma, as distâncias à velocidade do vento. E tudo por causa
tudo vai passar, a gazela não dança de alegria em dois dessas tinlhoco - nomeação em t$onga dos servoS -
lugares, homéns, é preciso calma, muita calma. que saíam da casa de Damboia com os sacos cheios de
Os que queriam refugiar-se na aldeia real recebiam palavras que as lançavam ao vento. Malvadas! Onde já
chicotadas da guarda. E com razão, pois ninguém sabia se viu um indivíduo sem rosto vituperar uma pessoa
que doença é que transportavam, assim porcos, cober- da corte, uma mulher que todos servíamos com respei-
tos daquela massa pastosa como se de ranho se tratasse. to e amor? .. Pécoras, bestas sem nome, eram elas que
levavam no saco histórias inventadas, dizendo que
todo sempre, nem que isso custasse a vida de todos os Damboia sofria da doença do peito que faz vomitar
.:=
j O rei tinha razão em afastá-los. Ele teria que viver para
sú~ditos. sangue pela boca, mas que ela vomitava entre as coxas,
:~., Ao quarto dia os homens da corte refugiaram-se nas em paga da vida crapulosa que levara.
:~' J' casas e deixaram de aparecer à rua. Um fenómeno - Crapulosa?
_ Não ligues. São palavras do vulgo. Não têm
fundamento. Damboia teve a vida mais sã que eu
~f.//é
I~~\':i/estranho
:i~(J/
:E(.• e~rosto
que erapassava-se
apareceram nos arredores:
à su~e~ície
água aquele lIqUldo cadáveres
das águas
pastoso sem nome
lodosas,
e espesso. s.e
Tl- conheci.
~~~( , .nomba, chefe da aldeia circunvizinha, percorreu casa _ Para onde vai o fumo, vai o fogo, Malule.
f;':'
l._" ,por casa a povoação, contando os vivos e perguntan.
,
_ Nunca hás-de encontrar água raspando uma
~y~ do pelos mortos que todos desconheciam, durante três pedra. Deixa-me falar. Eu conheço a verdade. Vivi na 65
~~~~' dias e três noites, tempo igual de permanência dos corte ...
, 1.),
II
( (
..()~.~j.'",,_C

UNGULANl BA KA KHOSA
:'.

-
~~........,
. '-

UALALAPI

- Mas qual é o homem que não tem ranho no do por tudo e por nada, até que se cruzou com eiliane
nariz, Malule? que vinha com uma bilha na mão direita do seu cor-
- Se Dam boia teve erros não foram de, grande po jovem ecansado de tantos trabalhos feitos e por'
monta. Ela meteu-se com homens como qualquer mu- fazer até adiantada idade em que as mulheres se arras-
lher. E nisso não nos devemos meter. O tecto da casa
tam às fogueiras onde contam hist6rias de nunca aca-
conhece o dono.
bar, como a que Ciliane me contou sobre Damboia,
- Mas o caracol deixa baba por onde passa. megera e crapulosa mulher da corte de Ngungunhane.
- É tudo mentira o que ouviste por aí. Da boca - Para onde vais, CiHane? - perguntou Damboia.
dessa gente, só saem chifres de caracol. Inventam his- - Ao rio.' ", ':
tórias, fazem correr palavras, dormem com elas, defe- - Vamos juntas - disse, acompanhando-a, ela à
cam-nas em todo o lado. É tudo mentira. Eu vivi na
direita e Ciliane à esquerda, pelos carreiros intenni-
corte... i náveis, ladeados de plantas seculares que não iam além
r- - Mesmo que caminhes numa baixa, a corcunda
{ de um metro de altura. eiliane mudou a bilha da mão'
( há-de ver-se, MaluIe. direita para a mão esquerda e pôs-se a olhar continua-
Os olhos coriscaram na noite. Colocou duas achas
mente os pés, sem saber o que dizer à Damboia que
no fogo que morria e recusou-se a abrir a boca. Não sorria, olhando. as aves cortando· o céu.
'.'. ,~ insisti.
- Sábias que a mulher de Mosheshe meteu-se pe-
,( 'C"-'
•.•• \ ~/J los pântanos, seguida pelos filhos menores? - per-
!I. ",
guntou eiliane, olhando para os tornozelos de Dam-
3"

,-..
III boia, enrodilhados de missangas que reverberavam ao . ~
sol.
c~
: "IJ' I eiliane, que fora serva de Damboia, contouÇ, com - Não, não sabia. Por que fez isso? - retrucou,
'(:~
<. a sua vC}zroufenha, marcada pela velhice, uma versão desinteressada.
diferente, afirmando a panida que Dam boia tivera. na- - Não suportava ver-te.
quele dia fatídico, os momentos mais felizes da sua - É corajosa ... E o que se tem dito por aí? '~~
vida.
- As palavras de sempre: és uma megera.
Pelà manhã conversou com o curandeiro que afir- Mas porquê, Ciliane? .. Que mal lhes fiz?
I mou, entre outras coisas, que a realeza não é frequente, - Mataste homens, Damboia. Mataste Sidulo. Mo-
,J'J t
'~/'~(
"-'
frequente é a vassalagem, advertência que ela não quis
ligar, deslumbrada que estava com a manhã de sol a
escorrer pelas árvores gigantes e anãs, enquanto os
sheshe, Sigugo e outros.
- E quem não matou, Ciliane? -
sobre Ciliane, Iancinantes, aquilinos.
'Os olhos caíram

pássaros de mil cores trauteavam melodias nunca pau- - Muitos.


tadas. Ao afa$tar~seda casa do curandeiro pôs-se a an- - Mentes. Todos matamos. Tu jli me mataste de
dar ao acaso, bam baleando o traseiro farto de carnes, diversas maneiras.
66 pegando e despegando folhas castanhas e verdes, rin- 67
- Eu não. Nunca pensei na· tua morte. Limito-me
~~J{f,t2~"
"~. UALALAPI
,:r UNGULANI BA KA KHOSA

a dizer ,o que, se fala por aí. E são eles que afirmam com as crianças que nunca tivera. Cumprimentava a
todos que com ela se cruzavam. Ao fenecer do dia
que mataste inocentemente homens honestos.
- Não me faças rir. postou-se no ádito da sua casa e pôs~se a. contemplar
o Sol a cair, vermelho. Era quinta~feira. Mosheshe fazia
- É o que dizem ....
duas semanas de defunto. Recordo-me que ela teria dito
_ Alguma vez recusaste ordens do teu amo?
- Nunca. que aquele fora o melhor dia da sua vida. Estava ra~
_ Eles recusaram as minhas ordens. diante. Quando o Sol caiu ela sentiu o sangue a escor-
rer e limitou-se a dizer, sem grandes preocupações, que
_ Mas que ordens, Damboia? .. Não achas huma-
os dias estavam trocados. Entrou na cubata e não mais
no um homem recusar ir à cama com uma mulher?
saiu dela com vida. E só foi pela noite adentro, se bem
,_. Quem eram eles para recusar as minhas or~
dens? ... Gente da rua, sem nome, gente que nunca so- me recordo, que ela chamou por mim. Não havia es-
trelas no céu. Não havia luar. O vento era calmo.
nhou transpor a porta da minha casa. Se fossem homens
Quando entrei, gatinhando, senti as mãos a escorrerem
de palavra ter-me-iam recusado na altura que lhes
apontei o dedo. por uma massa lodosa. Pensei que fosse água, mas não
- Temiam-te.'" era. O chão estava empapado de sangue, e Damboia"es-
tava de pé, serena como sempre. Indicou-me o chão
_ E por' que deixaram de me temer?
com os olhos e com as mãos. Passei a noite inteira
_ Só tu é que deves saber... Antes de morrer,
Mosheshe teria dito, segundo me contaram, que aque- emundando o chão. Ao raiar do dia notei que o san-

les que o impontaram do mUQdo dos vivos teriam. uma gue tocava os artelhos. Damboia tinha a capulana em-
morte terrível. papada de sangue. As p'aredes estavam tingidas de ver-
_ Referia-se a mim? melho. O cheiro que pairava era o mesmo que as
mulheres tinham em certos dias do mês. E eu estava
_ Tu é que o mataste.
cansada. Damboia nada dizia. Quem a visse naquela
_ Mandei-o matar, é diferente. Mas não foi o pri-
meiro. Sidulo afirmou na minha presença que larvas posição, erecta, distante. diria que ela pensava nos
antepassados que nunca conhecera. De pé, com o corpo
iriam percorrer o meu corpo enquanto viva.
_ Os dias nascem com cores diferentes, Damboia. coberto de sangue eu esperava que ela dissesse qual-
_ É possível, mas eu vim de longe, Ciliane. Os quer coisa. Vai chamar Ngungunhane, disse, responden-
do ao meu pensamento.
piores dias virão com a velhice que detesto.
, Mantiveram-se em silêncio contemplando as águas Quando saí da cubata notei que o Sol tinha as co-
res de sempre. As árvores estavam no mesmo lugar e
do rio que comam pela planície, meneando as ancas
as aves trauteavam as cantigas já conhecidas desde o
reluzentes. Damboia despiu-se e atirou~se às águas. Es-
tava bonita, disse Ciliane, aproximando uma acha de princípio de todos os tempos. Os velhos andavam à
deriva, sorvendo a manhã. As mulheres atiçavam o fogo
fo'go., Era uma beleza indescritível, serena. Creio que
a morte já tinha entrado naquele corpo esbelto. Ao e as crianças corriam, alegres. O mundo estava no 69
68 entrar da tarde ela correu pela aldeia real, brincando mesmo lugar, facto que me espantou.
UNGULANI BA KA KHOSA
C0- ç., ••.•~ h,i" I ,:.' ."':,-.J ':.0 l

A conversa que ela teve com Ngungunhane levou de lucidez naqueles três meses. E para muitos foi a pior
horas e ninguém soube o que falaram. Mais tarde soube coisa que o curandeiro fez, pois ao entrar da noite os
que o nkuaia não se realizaria. Esta decisão, não foi uivos recomeçavam com urna intensidade brutal e: o
acatada pelos velhos, pois o nkuaia não se realizava no sangue saía em catadupa.
ano em que o rei morria. Dam boía não era soberana Ao segundo mês, creio, choveu como nunca durante
e não estava morta. Mas depressa os velhos acomoda- duas semanas. O sangue dela escorreu ao rio, tingiu-o ,,',:::
ram-se sobre o facto e os dias correram. Recordo-me
que quando trouxe mais tinhloco (I) para limpar o chão
e tratar da Damboia a casa estava cercada pelos guar-
de vermelho e matou os peixes que os nguni não'
comiam. Os crocodilos passaram a viver nas margens.
Era normal vê-Ias à soleira das nossas portas ao raiar
';,,\J
'"
:1
i
das e o átrio estava in.undado de sangue que a terra do dia. A princípio tentamos expulsá-Ios, mas eles ' .1
recusava digerir. As bilhas partiram-se aos bocados vinham em maior número, aos milhares. Alguns ve-) ~ ..,.;
quando tentamos enchê-Ias de sangue: Optamos por Jhos suicidaram-se. Outros,_yelhos.~. noyqs,_.illQn:~ram< '-("~ "
..'.c
..
-. tapar o sangue com a areia. E o sangue, para o espan- .E~sed~, pois a água. ~stava contamim~d.ª,a.oJongo cia<';.
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(;
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-(..
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to de todos, exsurgia sempre, atingindo a altura dos tor- extensão""dó·rio. O' lago das proxim idades estava con-
'~~

I nozelos. Damboia não falava, olhava. E só foi nos fi-


nais do primeiro mês que ela quis abrira boca de novo.
As palavras não saíam. A loucura invadiu-a. Começou
-iarrlhuidõ.' E 'Os poucos poços que haviam estavam
reservados às pessoas da corte. Ngungunhane andava
de um lado para o outro. afinnando que no império'
a andar de gatas e a trepar as paredes da casa, como tudo andava bem e que havia grandes progressos, pois
um réptil em desespero. Durante a noite uivava como as colheitas nunca vistas encheram celeiros de nunca
os cães. Muitos dos guardas que cercavam a casa fi- acabar, e as crianças que nunca nasceram vieram ao
caram surdos para toda a vida e outros tiveram e têm mundo mais gordas e sãs, e os velhos duravam mais
acessos de loucura de tempos em tempos, como o anos, e os guerreiros mais batalhas ganhavam. Os que
Malule com quem falaste ontem. Outros, incapazes de diziam o contrário eram pendurados nas árvores. Todos
suportarem aquele cheiro, largaram as annas e mete- são felizes, e se o nkuaia não ,se realiza é porque
ram-se pela floresta adentro, à procura da morte. O rei Damboia está doente, homens, dizia, bramindo as mãos
chamou os curandeiros famosos na zona mas pouco e elevando a voz. Se algo nos deve atonnentar é a
fizeram. Houve um, no entanto, que ficou dias e dias doença de Damboia. E passamos aqueles meses ouvin-
falando uma língua que ninguém entendia, e a única do essas palavras em todos cantos. Diariamente mor-
coisa que conseguiu foí trazer à razão Damboia, nas i riam pessoas, mas afinnava-se que morriam por ve-
quintas-feiras últimas de cada mês. Nesses dias o sangue / lhice adiantada. Os que se suicidavam eram doentes
parava de jorrar e ela conversava com todos, alheia ao mentais, indivíduos atacados pelos espíritos malignos.
drama da sua vida. Como podes' ver ela teve dois dias E os meses foram passando. E foi na quinta-feira última
'do mês terceiro da dor que Damboia, no meio da noite,
deu o uivo mais lancinante que se ouviu durante aqueles
70 (I) Designação de escravos em língua lsonga. (N. do A.) 71
meses. Morreu. Na manhã seguinte começou a chover

/.
....

,/-31 ~,C'-)~~) - Ivs' ,_"':


"~,,

(e à superfície das águas apareceram nados-mortos das


mulheres que sempre sonharam ter filhos. E era terrível
termos que calcar aqueles corpos que se desfaziam aos
nossos pés.

1/,;1;)' Ngungunhane,
sonâmbulo ~~9._~?~~gui
perdido.magro e sem voz, circulava
toda como um
a hora.

Fragmentos do fim (4)

Vendo, logo que os pretos /tlf{iram, sahir d' uma


palhow próxima um homem de corôa, perguntei-lhe
pelo Gungunhana e elle apohtou-me para a mesma
palhota d' onde sahira. Chamei-o milito d' alto no meio
d' um silencio absoluto, preparando-me para lançar fogo
li palllOta, caso elle se demorasse, q/lando vi sahir de
lá o·Régulo Vatua que os tenentes Miramia e Couto
reconheceram fogo por o terem vistrl mais d/lima vez
em Manjacase. Não se póde fazer idéa da arrogancia
com que respondeu ás primeiras perf:llntas que lhe fiz.
Mandei-lhe prender as mãos atraz das costas por um
dos dois soldados pretos e disse-lhe que se sentasse.
Perguntou-me onde, e como eu lhe apontasse para o
chão, respondeu-me muito altivo que estava sujo.
Obriguei-o então à força a sentar-se no chão (colJSa
J •.
que elle nunca fazia), dizendo-lhe que elle já não era
.'. Regulo dos Mangonis mas um matonga como qualquer
' .. :' oWro.
.. Perguntei ao regulo por Qllêw, Manhune, Molun-
, go e Maguiguana. Mostrou-me Qllêto e o Manhune que
estavam ao pé d' elle e disse que os outros dois não
72 ~m~m. n
·i

UNGULANl BA KA KHOSA

Exprobei a Manhune (que era a alma damnada do


Gungunhana) o ter sido sempre inimigo dos portugue- .
ses) ao que· elle só respondeu que sabia que devia
morrer. Mandei-o então amarrar a uma estaca da pa-
lissada e foi fuzilado por 3 brancos. Não é poss[vel
morrer com mais sangue frio, altivez e verdadeira
"
o cerco
heroicidade; apenas disse sorrindo .que era melhor
desamarral-o para poder cahir quando lhe dessem os
.j
ou fragmentos
tiros. Depois joi Quêro. EUe fora o único irmão de ~~- de um cerco
Muzil/a que quizera a guerra contra nós e o único que
jôra ao combate de «CooUe/a». Não tinha vindo pe-
gar pé, como tinhamjeito Inguiusa e Cuiu seus irmãos.
Dizendo-lhe eu isto, respondeu que não podia
abandonar o Gungunhana a quem tinha creado como
se jôra pae, retorquindo-lhe eu: que a quem desobe·
decia e jazia guerra ao Rei de Portugal, deviam pae,
mãe e irmãos abandona/-o. Mandei-o amarrar também
e juzilar.

ExtraclOS do relalório apresentndo ao Con-


'~
selheiro Correia E Lança, governador inte-
rino da Província de Moçambique, pelo
governador militar de Gll7.a, Joaquim Mou-
zinho D'Albuqucrque - 1896.

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Ao entrarem no décimo dia do cerco os guerreiros ;j


olharam para tudo com vida e sem vida que a terra
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comportava desde o princípio dos princípios e chega-
ram à triste conclusão de que o mundo perdera a sua- I'
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,t asor de cadáveres estripados. Os dias sucediam-se aos '~

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dias ao ritmo de ~nâmbulos senis. As nuvens da chuVa'
~ beleza e oàvigor
, 'I passavam de séculos. O céu e a terra tom.avam
3J distância e o vento galerno efundia cânti- ~
"
cos tristes dos insignes guerreiros, mOJztos em batalhas -i
'I,
1(' de machos, com lanças a cruzarem-se no ar e os es- ~
:~
I~ cudos a chocarenf~se estrondosamente no capim devas-'
r~ lado pelos homens e pelos ciinticos da vit6ria que
,,f~
r-
i retumbavam pela planície pejada de cadáveres e de
serpentesque silvavam, e@quecid~'ls pela visão in~
•I I 0_ , :
(o, -I . J}jlLqlJ.~ se alcandorava na planície.
;~/\.I.(:.. t( j (,,.:-.~.I.~",,,''J.f c. f.~~
Agor~;:-esbuJhadosdo vigor cÍÕsseus antepassados.
Ii'. _ ,'.I .J--( ..' (,-., n
os guerreiros encalleciam à sombra das árvores pardas.
vendo as lanças a criarem escarpas da solidão e os
escudos a servirem de ninhos aos ratos.

II
Maguiguane era então. e desde a entronização de
Ngllngunlwne, o chefe militar do impcradordns rcn'as 79
UNGULANI BA KA KHOSA UALALAPI

de Gaza. Nos primeiros dias do cerco era normal vê- com árvores espalhadas e fogueiras trementes. Maca-
,: -10 conversar com os guerreiros pelos diversos acam~ nhangana quebrava o silêncio e dizia as palavras de
pamentos. Depois, atacado pelo torpor das manhãs e todos os dias no mesmo tom grave e longínquo dos dias
tardes, fechava-se na cubata e passava as horas à todos.
escuta de sinais de mudança. À noite, e só à noite, atre- - Não vão aguentar.
via-se a sair da cubata. Envergava as vestes de guer- - É isso, não vão ·aguentar - ripostava Magui-
ra, ataviava a cabeça com penachos de plumas, pega- guane e seguia em direcção à sua cubata. Minutos
va na lança e no escudo, mirava-se de cima a baixo, depois Macanhangana fazia o mesmo.
saía da cubata, e caminhava em direcção a Macanhan-
gana, seu lugar-tene~te, que o esperava no mesmo sítio
e à mesma hora. TU
- Incrível!
_ Pois, no mesmo sítio e à mesma hora desde o Noite. As hienas uivam. As serpentes silvam. Os
primeiro dia do cerco à fortificação de Chirrime, onde homens sonham. As corujas piam. Os mosquitos zunem,
'.~ Binguane, rei chope. e o filho Xipenanyane se encon- entram nas cub;uas, atiram-se à carne, sugam o sangue;
j}J travam sitiados, com as mulheres, velhas e crianças. uma morre, outra atira-se à parede de paus, e outras
E os guerreiros, evidentemente. Os dois não se cum- esperam: sentem o sangue quente no ar, zunem, mor-
primentavam. Maguiguane olhava para o lugar-tenente dem, vivem, morrem.
e adiantava-se. Seguiam em silêncio pelo acampamen- Há um silêncio dissimulado, falso. As chamas per-
to principal, ouviam os risos gastos e as histórias com dem a força no terreiro deserto. O vento levanta fo-
variantes conhecidas, pisavam os mesmos sítios, con- lhas dispersas. Ouve-se o ribombar de trovões à dis-
templavam as mesmas cubatas, os arbustos de sempre, tância, muito ao longe. Chove na capital do império.
o céu da mesma cor, as estrelas sem brilho e a Lua Macanhangana bebe, bebe interminavelmente o sope.
parda e cortada. Saíam do acampamento principal pelo Teme a noite. Vê as paredes da cubata a tremerem.
mesmo carreira, desciam a pequena encosta, contorna- Sente a casa a ondular. Agarra-se à enxerga. Os olhos
vam os escolhos de sempre, acercavam-se do poço, brilham. Duas lágrimas saltam. Chora. As corujas piam.
olhavam com a mesma intensidade os guerreiros que O vento levanta timidamente a palha das cubatas .
.conversavam junto à fogueira e seguiam em direcção Maguiguane pensa no rei. O rei pensa na sua concu-
à,.fortificação que levava o nome genérico de nkoco- bina, Vuiazi, mãe de Golide, que desapareceu miste-
~" Iene, e percorriam-na de ponta a ponta. À medida que riosamente com as ancas, o corpo, o sorriso, o rosto
~~> _ caminhavam contornavam pelos mesmos sítios as fe- macio, negro, brilhante. Vuiazi pensa em KamaI
r-: ' "I zes espalhadas e os vómitos das bebedeiras e os lagos Samade, comerciante árabe que se internara nos pân-
~'. de mijo que criavam peixes sem barbatanas e olhos. tanos de inhafura por o acusarem de dormir com
f Percorrido o cercado voltavam no carreira de sempre Vuiazi. Maguiguane adormece. Sonha a mesma coisa.
~: 80 e :subiam a pequena ladeira que os levava ao terreiro Vê . serpentes I a devorarem cobardemente os homens, 81
UALALAPI
UNGULANI BA KA KHOSA

milhares de homens. As mulheres ficam, chorosas, per~ mesmas sombras e contam as mesmas histórias. Os que
didas na planície. Os guerreiros ressonam. Os guardas ouvem esforçam-se por esquecer o enredo inicial. Os
que contam fingem esquecer as sequências posteriores.
perscrutam a noite. Sentem o aproximar das hienas.
Vêem o brilho dos olhos. O olhar faminto. O passo trô~ , São trinta mil guerreiros. '
pego. A Lua perde-se numa nuvem passageira. Maca-
nhangana agarra-se à enxerga, quer vomitar, não con- )'}Q..
t .-r:J ..•........
--
segue; olha para o tecto, vê as estrelas sem brilho por
entre as frestas do capim. Maguiguane ressona. O rei
GJ VJ·).<:-í
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I·:J~?- vi /

sonha alto, chama pela Vuiazi, agarra-se à enxerga Nada se ouve. As horas passam. Os guerreiros
esperam. Esperam pelo sinal, pelo choro de todos os
;
i::

ataviada, transpira, peida, tosse, ejacula. Vuiazi pensa .~


,I
dias, da mesma hora, e com o mesmo ritmo. Nada
na pederastia de Kamal Samade, doença e mania des-
conhecida nestas terras de Gaza. A noite foge. Os ouvem. Os munnúrios cessam. Contam os dias. Enga-
nam-se. Acertam. Riem-se. Esperam. Um dos guerrei-
guerreiros temem a manhã, o Sol, o vento dos cânti- '-',
cos esquecidos, a terra sem cor, as árvores com folhas ros aventura-se a trepar o cercado de vários metros.
murchas, o "céu sem nuvens, a planície morta. Sobe pelos troncos, hesita, escorrega, volta a subir, atin-
ge as pontas pontíagudas, espreita, demora-se uns mi-
nutos. Os outros aguardam. Estão impacientes. O guer-
IV reiro desce. Tem os olhos fora das órbitas. Treme.
z '
- Perdeu a fala - diz um. A frase arrasta-se de
! boca em boca.' É envolvida pela 7aliva,irenxe~ã,
- Qual é o significado do sonho? ~"

cresce, ganha novas dimensões e chega aos ouvidos d~


,~ - O leão ruge na selva, Maguiguane.
M~miguane: ------ .....-.. -~_.
~
~ - E as mulheres, Mabuiau, as mulheres? ...
J O mesmo diálogo. As palavras de sempre. Os gestos .,.p. - Enlouquecidos pela fome os homens devoram as
de todos os dias.
Maguiguane acorda sobressaltado. Vira e revira os os maiores apontam a dedo a carne para o repasto.
~
olhos. Não vê serpentes. Vê fiapos de luz a caírem no
Jtr#1 Ninguém
mulheres efala
as no
mulheres devoram as crianças. O rei e
kocoléne.
chão. Soergue-se apoiado pelos cotovelos. Vê o c@l1'o Maguiguane ri. Os trinta mil guerreiros riem. Ma-
canhàngane donne. E a frase volta ao princípio. '
despedaçado pela luz. Chama Mabuiau, seu velho con-
selheiro. Levanta-se. Acaricia a lança. Mabuiau entra,
- É verdade? '
senta-se sobre o círculo de luz. Espera. Maguiguane - Não sabemos. Este homem perdeu a fala. Que-
res tentar subir?
conta o sonho. Faz as perguntas. Ouve as respostas. Ma-
buiau sai. A manhã cresce. Maguiguane aproxima-se da - Não. Ainda quero contar isto aos meus filhos.
- E tu?
parede e espera pelos sinais de mudança. Macanhan-
- Não.
gana donne profundamente. Os guerreiros espreguiçam-
- Porquê? 83
82 -se, caminham para as mesmas árvores, sentam-se nas
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1'''-::;' ÍM0'< 0ê J:, vlhJ" d:.. <,0<). . .;1•• '

/~ _ UALALAPI
UNGULANI BA KA KHOSA I

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I barrigas enormes caçam moscas verdes que esvoaçam
( _ I.:;to não é suerra, irmão. sobre os cadáveres. Mulheres com crianças ao colo
-. Tens J:3,zão. circulam como sonâmbulos sem destino pelo cercado.
Xipenanyane aproxima-se da ponta norte do cercado.
Vê guerreiros lutando pela posse de bosta fresca da
VI última cabeça de gado abatida para os chefes. Três
~ !
guerreiros lutam pela posse dos líquidos intestinais. Um
A lança corta o ar. Perfura a parede de adobe. Tre-
pouco distante da cena uma mulher dá a sua urina a
me. Um som eleva~se e perde-se no ar. Uma racha sulca uma criança. Os arbustos que outrora povoavam o ,4,· ~
')<'::: ...
a parede, fina, tremente, sinuosa. Uma segunda lança cercado desapareceram. As casas envelheceram. Os ve~ .f '-..
perfura a parede· uns centímetros acima., lhos incapazes de se susterem com as bengalas, cir- ~
A racha alarga-se, cobre a parede de cima a baixo culavam pela fortificação de gatas. Os miúdos, conven-
e pequenas lascas caem, soltas, perdidas. Binguane olha cidos da existência de ratos, passavam as tardes fazen-
para a racha e não lhe ocorre nenhuma imagem. Xi- do ratoeiras que destrutam na manhã seguinte. ~ j~l1in-
penanyane vê a fractura e nada lhe ocorre. Uma ter- g.uém chora va .._TºQ.9 ..sp..riªJ1l,..JJ1JL risQ_que__p..aT
..8YJUl.QS
ceira lança é atirada~ O som mantém-se no ar por se~ lábios.
gundos e lascas maiores saltam, chorosas. Xipenanyane leva as mãos ao rosto e entra numa
_ Se Maparato não vier até amanhã atacamos - cubata. Do outro lado da fortificação elevam-se garga-
diz Binguane, lhadas sonoras. "
_ Já devíamos ter feito isso há muito tempo ..
_ Eles são mais de vinte mil. E nós não passamos
de cinco mil, Xipenanyane. É por isso que aguardamos VII
Maparato.
_ E quantos de nós já morreram? Os guerreiros saltam na planície. Maguiguane cir-
- Alguns. cula à luz do dia. As lanças voltam a ter o brilho da
_ Alguns? ... Já estamos mortos, todos nós, pai. É vida. Os escudos desembaraçam-se dos ratOS. Os dias
por isso que me pergunto sempre: que guerra é esta? voltam a ser dias. Os risos renovam-se. Batuques troam.
_ Pergunta a Maguiguane. O vento é outro. As árvores são outras. A terra é outra.
_ Nunca falarei com esse vassalo nguni.
O sangue é outro. A guerra de todos os séculos aproxi-
_ Nem ele contigo, Xipenanyane. Mas deixemos ma-se. O rei, a milhas de distância, acorda bem dis-
isso. É preciso reunir os guerreiros.
posto e.pergunta pela guerra. Maguiguane está satisfei-
Separam-se. Ao longo de toda a fortificação vêem- to. Macanhangana sente que as mãos não tremem. Os
-se guerreiros· a comerem com sofreguidão os escudos guerreiros treinam. As lanças sibilam. Os escudos cho-
de pele que os protegeram em intermináveis batalhas. cam-se. 85
Cadáveres sem sepultura jazem à superfície da terra _ Atacamos amanhã, Macanhangana.
revolvida na procura de raízes inexistentes. Crianças de
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UNGULANT BA KA KHOSA
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~- ·'tMV1·I'~ .J<.!lv.~ ...:.:~.


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- Já devem estar mortos. tunidade aos machope de virem a nós e entregarem. as.:':~~
- As gerações vindouras regozijar~se-ão dos nos~ lanças, as zagaias e os escudos. Não o fizeram. E por .; W

sos feitos guerreiros: uma. razão muito simples: são animais. É isto que .: <: ~
Binguane sente que as palavras não lhe chegam à esquecemos, guerreiros. Um animal habituado à selva . :.:;:~~
boca. Os guerreiros esperam. Xipenanyane avança. Já nunca conviverá com homens e muito menos seguirá~:};
se sente rei. Os guerreiros ouvem-no. Esquecem-se de as regras mais elementares da existência humana. E esta ~>~t
Binguane, o velho rei. Seguem (lS palavras de Xipena- ~ade não a inventei, masJiiss.~Q.Jlosso_rei..NgllQ: ~.%~
nyane. Sentem forças nas pernas. Seguram as lanças
com as mãos. Mantêm-se firmes. "
-,
g~nhane__~~ ._!?1~_~
convidou-os ~~itos comunidade
para esta__grande anos. Nessa dealtura ele~4.1
homens .,~
\
L. - Vamos Jutar e morrer se for necessário, mas o ,
i"
qu~ somos e que.construímos. Recus:rram a nossa mão d~}j
...••..

\:~ \) nosso desprezo pelo~ nguni manrer-se-á por séculos, ~. candosa e prefenram andar a monte, Incomodando-nos _:.:)~
\\J'\' ~
0' " ' porque esta terra é e será nossa. E-se "luilim6s-hõje é à noite com os seus uivos e estragando as nossas ma-· ..>rJ
I ~>,.' para que os nossos filhos não vejam as orelhas dila- chambas. Houve alturas que chegamos a construir . 'i:~~l
,t l,c.
, ;.
\ ceradas pelos nguní. O nosso não é para que as nos- currais para esses animais rnachope, mas eles preferi- '::::~fH
sas mulheres não sejam escravas e os nossos filhos não ram a selva, aos dias sem rumo. ;:n
engrossem as fileiras desse exército bárbaro. A razão A nossa paciência tem limites, guerreiros. Hoje é ..:.:
pende para o nosso lado, guerreiros. o último dia que damos a Binguane para se entregar.
Iremos para a lura com a certeza da vitória, apesar Amanhã, caso não se entregue com os seus hOInens~
~ deste cerco criminoso que moveram contra n6s, um passaremos sobre os cadáveres desses animais e con- "

,~
cerco que contraria os princípios mais elementares de vidaremos o nosso rei~ esse imonal ~er6i nguni, para
' I uma guerra de homens, de uma guerra que os nossos que contemple a planície pejada de cadáveres que
~~~ M- antepassados mais remotos cultivaram com a certeza de seIVir~o,de repasto às aves por séculos sem conta.
~~~
que os homens olham-se de frente e as lanças chocam- Não pensem que haverá guerra. Não~ não haverá
-.se sob ÕOITíãr·-ate-ntocios··guerr~"i;:os:'Lançaramesta guerra. Nós não lutamos com animais. Nós matamos os
~-<Yh guerra de serpentes pensa-rido n~lifóssa morte imedia- animais. Se vos mando treinar é para afugentar a pre-
(I';,....
ta. Mas estamos vivos e a nossa luta será por igual, guiça que cultivaram nestes dias de repouso. Por isso,
apesar do elevado número de guerreiros que estão fora preparem-se, guerreiros, não para a guerra, mas para
deste cercado. matarem esses animais selvagens que se chamam ma-
Preparem-se para a vitória, guerreiros, preparem-se chope.
para matar esses invasores nguni. A razão está do nosso
lado e os espíritos protegem-nos.
- Há pouco estava eu a dizer a Macanhangana que VIII
o leão ruge na selva. Com isso quis dizer que é che-
gada a altura, guerreiros, de entrannos em acção. Du- - Chamas. Sangue. Gritos. Choros. Morte. Fuga ...
86 rante dias não tivemos outro objectivo que dar opor- - Cadáveres ...· 87
UALALAPI

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.-i:; ) lher à cubata sem contemplar a cabeça do seu ini-
~~;- ',' _ A solidão acima de tudo. O silêncio depois da ~ migo.
;:ir ,matança; O ll1undo sem sentido que fica. O yazio que .Os guerreiros dispersaram-se em silêncio. Maca-
ili:. paira depois do crime. , nhangana voltou a beber durante as noites. Maguiguane
I
fFf: - A morte não está com os mortoS. teve que chamar um curandeiro para tirar-lhe do cor-
.~
~=::~. _ A morte ficou nos intrépidos guerreiros de
,." Maguiguane. I1
po o cheiro dos mortos. E consta que os homens que
voltaram a passar pela planície de Chirrime tiveram que
j
j passar sobre cadáveres apodrecidos e por apodrecer
f, t/ .,,' '.I~r,o-? durante uma manhã, uma tarde e uma noite. Sobre
IX \,." ...
r.' 7- ••.•••
~ \ •...
.".
11'7' C\"~r>.o • os cadáveres jaziam aves mortas pelo excessO do
ri,$} Ci
repasto.
. ras sentiram o cheiro de sangue quente misturado ao
j
A matança
. capim. foi de tal
As populações ordememigraram
da zona que gerações
para vindou-
sempre,
incapazes de suportarem o cheiro dos mortos que se
I ",;1

";

colara aoadobe das cubatas. As famílias que resisti-


ram ao êxodo durante meses viram~se na contingência
de abandonar a zona pelo simples facto de o milho ter 1
o sabor do sangue humano e a água dos poços conter
restos de ossadas humanas.
A batalha durou uma manhã e uma tarde. Ao cair
I
.:;~
,_ da noite a matança terminou. Xipenanyane e Mapara- :~
~i~, to fugiram com alguns guerreiros, deixando o cadáver
de Binguane e de outros guerreiros da corre chope. Face
~;:;', ao número elevado de cadáveres Maguiguane ordenou

~~:r da zona. Magmguane obngou os guerreiros a tocarem


~~.lí.~,,:aos seus homen.s que leva~tassem o acampamento. Fora
~~t
Àt, o .batuque ~a vitó~a .. Mas ninguém, inclui~d~ Magui-
guane, sentiu-se altvlado da tensão, da sobdao.

x
_ Ngungunhane sentiu-se regozijado .
. •'_, :Não, creio que não. O único gesto que fez foi
agradecer aos guerreiros pela batalha heróica e reco-
I
~
89
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- ~~ .":

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Fragmentos do fim (5)
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Felicito em nome do governo português V. Exa. pelo
'-:'1. ~

. brilhante feito de armas que acaba de praticar e re-


cebo das suas mãos o ex-régulo de.Gaza, M undungaz,
vulgo o Gungunhana, Godide e Molungo, filho e tio
do mesmo Gungunhana, assim como as mulheres deste
Namatuco, Fussi, Patihina, Muzamussi, Maxaxa, He-
sipe, Dabondi, ex-régulo de Zichacha, Matibejana e
mulheres d' este Pambane, Oxóca e Debeza, traidores
à Pátria que ousaram contra ela levantar armas. O 5nr.
Governador do distrito queira mandar lavrar o auto
d' esta entrega e outro de reconhec(mcnto de identidade
dos referidos prisioneiros.
Palavras do Sr. Conseihciro Correia, go-
vemador inlerino de Móçambique, ao rece-
ber das mãos de Mou7.inho D'Albuqucrque,
governador mililar de Gaza, os prisioneiros
de Guerra.
6 de Janeiro de 1896

9
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..,+
I
Por entre os escombros daquilo que fora a última
capital do império de Gaza encontraram um diário com /,.....
S'
uma letra tremida, imprecisa, tímida. As folhas, amon-
j<!AA'O toadas ao acaso, estavam metidas numa caveira cj\ie
~ repousava entre assadas humanas e animais .. Não há
referência do seu autor, mas sabe-se que pertenceu a
Manua, filho de Ngungunhane, que em finais de Ju-
7r,~/ f';~ lho de 1892 embarcou no paquete Pungué de Moçam-
k~~ bique a Lourenço Marques. Os registos da época di-
zem que o paquete saiu manhã cedo. Velas enfunadas
puxavam peqüenas barcaças à costa. Nuvens escuras
cobriam o céu. Dois moços acenavam com chapéus ao
amigo que desaparecia no navio. Uma chuva miúda
acompanhou o barco até ao mar alto, fora do horizonte
das pessoas que não ia muito além das poucas milhas
da costa onde o mar glauco e revolto levantava ondas
que se desfaziam nas pedras do pré-câmbrico, despo-
I jadas das suas escarpas que foram testemunhas de cenas
várias, como a do viajante zarolho que por estas ter-

0>.;J-?1 l
!
ras apartou com um volumoso manuscrito entre as mãos
e que mais versos fez, cantando esta ilha enquanto sa-
ciava a sede e a fome que o atonnentava, ante o espanto
e a comiseração das negras islamizadas em verem um
97
branco esquálido, longe de saberem que aquele homem
I' ,;v ." :/ - :=:.. , "j. ~
...\-~
"\.Y<v.,' . UNGULANI BA KA KHOSA -------- ' UALALAPI

magro e famélico relançaria ao mundo uma terra que para esta porcaria ... Olha, vê bem a merda que fizeste ...
os pedestres de pés cambadas a percorrem numa semana Um fio que ia-se alargando até ocupar a extensão
sem outro esforço' que olhar a paisagem.' do corredor, saía do camarote. Era o v6mito. O v6mito.
. ~"
Na primeira noite, contrariando o hábito secular dos com tonalidades vermelhas e amarelas. 'Eram. cabeças )'1 ~.~
..
nguni, Manua comeu peixe. Achou-o saboroso e vitu~ de peixes. Era o cheiro. Eram as moscas a zumbirem. .... ;,,: "

perou a sua prole. Bebeu um litro de vinho, arrotou e Inacreditável, pensou Manua. Sentiu tremores nas per-' . .. ;:~~
saiu da mesa. Passeou pela ponte, cumprimentou o nas, transpirou pelos sovacos e encostou-se à parede do .. ;~~
,\,';j;
capitão do navio e postou-se na amurada do navio, corredor. A boca estava seca e os olhos, tais como os
fumando um cigarro enquanto olhava para as estrelas dos peixes saíam das órbitas, enormes. ':~l]!
e a Lua que atirava fiapos de luz à esteira prateada que - Siga-me - disse o capitão do navio.
o navio sulcava. O marulhar das águas reconfortou-lhe Em todo o lado o vómito cobria o soalho, venne- .'
o espírito. Recolheu ao beliche que lhe estava reserva- lho, amarelo. Dos peixes só se viam as cabeças enor-
do e dormiu. Sonhou com lanças e savanas secas e
verdejantes. Viu serpentes a enrodilharem-se no corpo"
mes. As moscas percorriam os corredores, entravam nos
camarotes, cobriam a ponte e zumbiam. Os passagei-
,~f1
>:-~'c,
bojudo dopai e sorriU. Ao findar da madrugac!aacor~ ros, encostados à amurada,do navio, vomhavam, inca-
. dou sobressaltado; Pancadas insistentes e ferozes caíram pazes de suportarem. aquele chão pegajoso, lamacento,
.."r":'~~
.~·~
;"':. :;f't'
(.',-::~
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na porra do camarote. Puxou os lençóis para o lado sujo e mal cheiroso. O mar, em redor do barco, toma- .~\;:~~
esquerdo, saltou da cama e, já junto à porta, sentiu algo va a cor do vómito. Peixes vinham à superffcie, mor- ';:)~~
viscoso e escorregadio a colar-se às plantas dos pés. tos. As mulheres gritavam, histéricas. As crianças des- :-J(~.
.~":l..;j
Arroz em pasta cobria o soalho. Cabeças de peixe com mailwam. Os homens berravam, insultavam, falavam
olhos brilhantes e reluzentes repousavam à superfície dos pais e avós. Os faxinas corriam de 'uma ponta a '7;1l
da pasta de arroz. O vinho coloria, aqui e ali, o arroz outra do paquete com panos e água sem saberem por
que um líquido amarelo azedava. Bolhas enonnes re- onde começarem.
bentavam de segundo a segundo. Era o seu vómito. In- E Manua chorava. Minutos dep'ois recolheu ao be-
crédulo ainda ficou parado, contemplando o vómÍto. As liche. Levantou os lençóis e viu-os impecáveis, excep-
mãos escorreram pela porta. O corpo foi-se dobrando. toando um borrão de esperma. Olhou para a roupa e
Os joelhos assentaram no chão. Chorava. O cheiro co- viu-a sem nódoas, exceptuando a parte dos joelhos.
meçou a invadir as nannas. Levou a mão direira ao Sentou-se na borda da cama. Os faxinas entraram no
nariz. Voltaram a bater à porta. Com ajuda das mãos camarote e limparam o soalho, olhando de soslaio o
ergueu-se e abriu a porta. O comandante do navio e preto, filho do rei que os portugueses tanto temiam.
os seus dois lugar-tenentes olhavam-no com certa Saíram. Manua abriu a maleta, tirou papéis, uma ca-
gravidade .
.- Tens a sorte de seres filho do rei, rapaz -' disse rante e .f~itifeiI.o. FatQu=7gQ seu temp_Q dI? estudant~~
o comandante. Caso contrário limpavas esta merda toda aITilTiãõdo Çjlle__UJ:Jl[j _:(~'!-- .porrmI o ..q\]~rt.Q_d(Lmerda
98 e atirava-te depois pela bórda fora, seu preto ... Olha ~~~te a _~oi~_
neta e tinta. do :e.ai e pª._BQj~~.~ç~~·
cl~xand.9 .-ª._~amIl.Jim
Escreve.1h.,.Falou, chamou-o igno- \ 99
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veu a dado passo, vomitei. O comandante do navio nada - Eu não queria dizer isso, mas custa-me acredi-
entende de feitiço. Se compreendesse alguma coisa tar neste facto.

\ talvez entendesse o facto de eu ter sido dos poucos na


minha nibo, que teve acesso ao mundo dos bmncos,
à sua língua, aos seuS costumes e à sua ciência. Mas
-. Isso é bruxaria - disse o primeiro interlocutor
do capitão. - Andei eu este tempo lOdo pelo sertão
e vi coisas incríveis, capitão. Se vos disser que vi
aldeias a envelhecer do dia para a noite, vocês acredi-
tumes bárbaros, a inveja que norteia a nossa vida e as tariam?
\ intrigas que nos
ele não pode matam o diariamente.
entender mundo negro, os nossos cos- - Conte lá bem essa história - pediu o capitão.
Quando eu for irpperador eliminarei estas práticas - Conto-vos, lá isso conto-vos, e não pensem que
adversas ao Senhor, pai dos céus e da Terra. Serei dos quem conta uma história, acrescenta um ponto. O que
Q... primeiros, nestas terras africanas a aceitar e assumir os vos vou contar é tão verdadeiro como verdadeiro é o
CI) costumes nobres dos brancos, homeM; que estimo desde nome de Maria das Dores que a minha mulher leva e
::::> o primeiro dia que tive acesso ao seu civismo são. que tanto sofreu com os v6mitos deste preto malvado.
A história não se passou há muito tempo, foi há bem
;; A mão tremeu. Não conseguiu continuar. Dobrou
(.,) o papel em quatro partes, guardoti-o' na maleta e pouco tempo e para comprovar isso é a minha presen-
-.I atirou-se à cama, tentando dormir. Ao cair da noite ça neste navio que me leva a mim e a minha mulher
::: ainda se ouvia o barulho das escovas sobre o pavimen- para Lourenço Marques. Estava eu e mais uns portu-
~'O
" .
~ to de madeira. Não quis comer. Esperou que os ,pas~ gueses à caça dos vendedores de escravos, esse comér- "-<-

~
Q sageiros recolhessem aos camarotes de modo a poder cio abominável feito por pretos, quando soubemos, por
CO sair. um informador negro, que estávamos a um dia de
t'I'J _ Vocês admitem pretos nestes barcos e o resul- marcha duma aldeia com essravos por embarcar para·
tado é este, capitão. O senhor sabe que a minha mu- Madagilscar.. Caminhamos durante a manhã, a tarde e
lher desmaiou? parte da noite pelo sertão, sujeitos a todos os perigos,
- Não. Mas o senhor deve compreender que o quando ouvimos, já noite alta, vozes estridentes. Está-
moço é o filho do rei das terras do sul. vamos a dois passos da aldeia. Havia fogo no terreiro.
- Qual rei, qual merda, os pretos nunca tiveram Os pretos dançavam. As mulheres, nuas, dobravam-se
reis capitão! Isso é história. No seu lugar atirava~o pela .j
\
que nem uma cobra ao som do tambor que ensurde-
borda fora. É o que ele precisa, pr-eto de merda. ceria a qualquer de nós portugueses, não fosse o hábito
,':" ,- O senhor tem razão - disse um terceiro, acer- que temos de andar por estas terras. Estavam de tal
;\_. cando~se. - O comandante devia atirá-Io ao mar.
j
modo bêbados que faziam as vergonhas da cama em
~>'.. '. - Isso não' faço .. Mas custa-me acreditar que o plena luz do luar. O nosso erro foi de não atacá~los
(
ih
moço tenha enchido o navio de vómitos.
. -' O capitão anda a insinuar o quê, eh!. .. O se-
I naquela noite. Optamos por cercar a aldeia e esperar-
mos pela luz do sol. E assim fizemos. Ao raiar do dia
entrámos na aldeia com as armas em riste e en-
~f!O
.~';. ~qui
nhor andam nãoum
acha que sabem ondecomo
branco devem
eu evomitar?
outros que por I contrámo-la deserta. E para o nosso espanto havia 101
UNGULANI BA KA KHOSA '7 ~ ~ ~ &v- V1;"" UALALAPI ",o :,,~3
v"n\~ ~ d.t.. ' ".:;C:~
..'/ ril

terrniteiras por todo o lado e as palhotas caíam ao


mínimo toque. Nas árvores s6 víamos macacos. Inacre-
ditáveL Espancámos o .info·rmàdor. O preto, ;i contor-
~~.J
um .p~to a ser esfaqueado.

- Que raça!
Em vez de sangue safa água. . ·?C~
):'~~
cer-se de dores afinnou-nos que era feitiço o que
víamos, pois os homens, segundo ele, estavam nas e deixava os ptetos na sua vida selvagem, p.oisde nada ·:;.::>i

árvores, transformados em macacos, e as mulheres eram ·1 nos - vale


Se e~tar aquireicom
eu fosse histórias
tirava de civilização.
os portugueses Estes.
destas terras , ,f~$~
" ~/:
as tenniteiras que enchiam a aldeia. Não acreditámos. pretos gozam connoscO, capitão. Voc~ diz que o I?,oÇ? ..·"<;~::1
Saímos da aldeia e durante a manhã os macacos per- esteve a estudar. Mas eu aposto conSIgo que o mIUdo, "·S?~1
seguiram-nos à distância. A meio da manhã almoçámos ao chegar à terra, tira as calças e os sapatos e volta a:\r{~).)'
debaixo das árvores e veio-me a ideia de voltar à aldeia. vestir os saiotes de pele. ., : ,o. ..::~~.

O guia acompanhou-me. Ao cair da noite chegámos à _ Estes


. pretos são duros de roer..: .~'~~
',h]
aldeia. As ca.sas estavam novas e os pretos dançavam - E verdade. .~ri~
e bebiam. _ Está-se a fazer tarde para mim. A senhora deve j~~i~
- Inacreditável - disse o capitão. estar preocupa~a, coitada. Boa noite.··t:{~~~
O outro manteve os olhos abertos. _ Boa nOlte.'· /:.~'"1;
-" É isso. Que cortem os tomates do meu pai se Dispersaram-se. Manua tirou o ouvido da porta e "'}S~1~
minto. Vi eu com estes olhos. E sabem o que fiz? ... chorou. O navio oscilou para a direita e voltou. à po- . ;,:f>~
Deixei a farda sobre a secretária do comandante e sição inicial. Os passos foram-se perdendo nos corre:" ::;:~{
eIIl.barquei neste navio com a minha mulher. Vou abrir dores do navio. O capitão dirigiu-se à cabine: do.::ii411
uma loja em Lourenço Marques. E se não volto à coman do. M anua aurou-se
. à cama. "~~,,
.',~;'.:~
O diário não faz referência aos diaS subsequentes. ~<:'ç~
IJj tão. Tenho que viver ainda por largos anos no meio Mas sabe-'-se, por outras fontes, que o moço não saiu . ,.
~ ,v"'lt'--! destes é porque
Europa pretos. E há
nãomais
tenhohistórias por no
um tostão aí. E pensando
bolso, capi- do camarote. Os dois guardas tentaram convencer a:.>'
bem, capitão, a melhor coisa a fazer é colocar dois meio mundo que viram luzes estranhas a circular pelo.~:>~
homens à porta do camarote do moço. O que o miúdo navio. Mas ninguém os acreditou:No dia dois de Agos~ .:-.
fez foi para mostrar aos brancos a força da bruxaria to o paquete atracou no porto de Lourenço Marques. ...:
destes pretos. As malas saíram dos camarotes. Os passageiros come-':··,;
- Você tem razão, senhor. .. çaram a descer. Manua foi dos últimos a descer. Dois : ... "
- António Matos. guerreiros aguardavam-no. Traziam lanças e escudos. .,,.
- Certo, senhor António Matos. É preciso ter o O Sol ia a metade do céu. Havia camadas de poeira
estômago duma baleia para tirar um v6mito destes. no ar. Os brancos, em grupos de dois, três e quatro
Meto dois homens à porta d9 camarote e não o deixo aguardavam Manua. Alguns estavam atemorizados pelas
sair, nem para a casa de banho, preto de merda. histórias que os passageiros contaram, pois não foram
- É a melhor coisa que faz, capitão. Há pessoas poucos 'os que afirmaram que o moço, além de vomi-
102 por aqui que estão na disposição de esfaqueá-Jo. Já vi tar, meteu o vento peloscamarores adentro, fazendo 10:
/7.iJ1
./é.:.(...,(.,,29<:v).{ -.,0
'I -"-.
UALALAPI

esvoaçar a roupa e incomodando as pessoas. Quando que o esperam. É a tropa deles, compadre. E onde se
se· saía dos camarotes, o vento, calmo, a ninguém vai hospedar? Na minha estalagem é que não,. de
incomodava. E o pior compadre, foi a vez que acor~ bruxarias ando eu farto; mas é possível que vá à casa
< ; , ~.

dárnos sobressaltados com os peixes que entravam pelos dos Albasine. Quem são? Uns mulatos. Lá se enten-
. ;~
~••': ' i lençóis adentro. Eram peixes deste tamanho, grandes. dem. Vamos que se está a fazer tarde, compadre, a
E por que não os apanharam, compadre? Se não apa- patroa tem um cabrito no forno.
nhámos, cada vez que ia um pela borda fora apareciam 1
cinco, compadre. Que bruxaria ... E não os comeram?
~~.~.'
;.o'.
Não diga isso, comp~dre, tinham patas. O quê? Patas,
..
1
II t(Vl vr,,,,--L ~
;{': compadre. Pareciam lagartos, compadre. Deviam quei-
:
,~·t·;:.~.
~~ mar
•..
o moço, compadre. Aquilo era só pegar-lhe e De 1892 a 1895, ano da sua morte, o diário nada
deitar-lhe no forno. Isso não dava nada. Talvez, mas diz, pois as folhas foram comidas pelos ratos. As le-
atirava-o pela borda fora, pois já o meu avô dizia, tras que rdtaram estão soltas. Juntando as cinco letras
.'. "", morre o bicho, acaba-se com a peçonha. Não nos chame tem-se a palavra morte, Ou temor. Ou tremo.
"':';'
parvos, compadre. O capitão tinha uns tipos armados Kamal Samade, que pela capital passou, dei.xou"as
à porta do preto. Vocês são uns cobardolas. Nada disso. suas impressões em ára6e, escritas em folhas desorde-
Olhe para aquele homem adiante, andou pelo sertão e nadas. Pela sua pena sabe-,se que Manua, desde a che-
disse-nos que não valia a pena matar o moço, pois vira gada, tornou-se !!~_!.!.umoe mais bêbado do que nun-
uma vez um preto a ser esfaqueado e em vez de san- ~. Era normal vê·Io fumando mbangui. Os sapatos já
gue saía aguardente, e da boa, compadre. Aguardente? não tinham solas e a roupa perdera a cor primeira. Era
Aguardente, compadre. Que bruxaria! ... Por aqui acon- um sonâmbulo, rematava Kamal Samade.
tecem coisas, mas até a esse ponto, não. Olhe, vem ai Buinsanto, que se refugiara no Transvaal depois da
o moço. Veste-se como um branco, compadre. O miúdo queda do império, afirmou que o seu irmão Manua
não tem cara de maltês, não. E estudou m'Jito mais que bebia com muita sofreguidão devido ao feitiço dos
o compadre. Não diga isso, compadre, que escrever sei bisavós que se initaram por aqueles modos estrangei-
eu. Mas o moço tirou o curso de artes e ofícios. Nada ros no andar, no vestir e no falar. O pénis minguava
vale um curso desses nas mãos de um preto. Deve ter de dia para dia. No dia da sua morte acordou sem nada
razão~ mas o moço fala bem o português. Qual portu- entre as coxas e apanhou a maior bebedeira de sem-
guês, qual quê ... Olhe, o moço tem olhos de bêbado. pre.
É da bebedeira que apanhou. O capitão disse que o Manhune transmitira ao filho e ao neto de que
moço bebeu um barril de vinho. E com razão, pois um Manua fora envenenado pelo pai, pois era uma vergo-
vómito daqueles era de enjoar uma baleia, compadre. nha para os nguni ver um filho seu assimilar costumes
O vinho é o negócio forte aqui..É da raça, bebem que de outros povos estrangeiros. E o pior, dizia Manhune,
nem uns cães. Mas o moço está envergonhado;. é da Manua parecia um chope, pois era subserviente aos
)04·· bruxaria, compadre. Tem razão. E olhe para os pretos portugueses. Matem-no na próxima oportunidade, disse 105
UNGULANI BA KA KHOSA
uALALAPI

Ngungunhane num dos encontros que teve com os - Não, dormi bem - retrucou. "

maiores do reino. - Tens os olhos vennelhos.


Sonie, que fora ainkonsikazi de Ngungunhane, con- . - Sempre foram vennelhos.
tara, depois do desterro do marido que Manua estava _' A tartaruga caminha com a sua casa,Manua.:
já louco quando entrou na capital do reino, Mangoa- - Mete-te na tua vida, Iomadamo ...
nhana. Falava constantemente sozinho a língua dos O innão olhou-o e nada disse. A cacimba desapa-
brancos. Andava corno um doido pelas ruas da capi~ receu. O Sol subia. Manua, sentindo a humidade do solo
tal, insultando a todos. Nos primeiros dias ainda tole- a roçar-lhe as plantas dos pés, foi aos currais que
ramos o miúdo, pois chegámos a pensar que era assim ficavam a sul da capital do império. O pouco gado que
que os brancos faziam quando estudavam. Mas depres- restava pastava nas redondezas. Os guerreiros traziam
sa vimos que não, pois Manua começou a mudar a gafanhotos em pequenos cestos. As mulheres vinham
ordem dos dias, donnindo à tarde, fazendo a noite com bilhas de água na cabeça. Havia jogo nas cuba-
manhã e a manhã tarde. Era triste. O curandeiro de tas. Fumou mbangui. Viu estrelas a descerem do c.éu.
Ngungunhane dissera a todos que o miúdo comera Viu as águas a cobrirem o império e Ngungunhane a
peixe, coisa que ninguém
. acreditou,
. apesar de Manua boiar nas águas, incapaz de nadar. Os olhos do rei au-
falar constantemente. em peixe. mentavam de tamanho. O corpo medrava rapidamente.
Rebentou. Tripas e bocados de carne andavam à deri-
va sobre as águas vermelhas, azuis, pretas. A água co-
lU. meçou a baixar. Manua ria. Soltava gargalhadas fortes.
Donniu. Os guerreiros olharam-no, abanaram as cabe-
No dia da sua morte, ocorrida em Março de 1895, ças e desapareceram nas palhotas do acampamento.
Manua acordou às cinco da manhã. A cacimba cobria Ngungunhane acordou. Sorlie tomava banho. Godide
Mangoanhana. Ouvia-se o tossir espaçado das pessoas treinava com uma lança. Iomadamo bebia. Maguiguane
idosas. Havia fogo nas traseiras das palhotas. Os cães estava longe da capital. A manhã crescia. As crianças
latiam, famélicos. Os guerreiros circula vam pelas cerca- brincavam. O império gemia. Os portugueses aguarda-
nias da capital à procura de gafanhotos. As mulheres, vam. Os guerreiros comiam gafanhotos. O rei comia
com bilhas à ilharga, iam à água. Ngungunhane dormia. carne de vaca. As mulheres mais filhos tinham. As
Manua, com os olhos ainda ensonados, emergiu pela crianças choravam. Os bois mugiam. As moscas zum-
portinhola da sua cubata. Viu os contornos das árvores. biam. Os lagartos aproximavam-se das clareiras. O fogo
Viu as ancas das mulheres a roçarem as bilhas. Aspi- queimava os troncos. O fumo perdia-se no ar. Manua
rou o ar matinal e espreguiçou-se. Estava magro e sujo. acordou. Escreveu na areia o seu nome e recolheu à
Os olhos estavam vermelhos. cubata. Trouxeram-lhe vinte litros de sope, nome que
- Não me digas que passaste a noite a contar os leva a aguardente preparada nestas t~rras tsongas. Be-
paus do tecto, Manua - perguntou Iomadamo, irmão beu. A manhã passou. A tarde entroU. As mulheres
·107
106 de Manua. riam. Ngungunhane dormia'com Sonie. Godide passea-
Y.J ... _':' --'.,'? /:..- /;.
~r(p·)t.,) 1

va. Iomadamo falava. Buinsanto olhava o gado magro.


Os guerreiros treinavam. As lanças erguiam-se. Os es-
cudos colavam-se aos corpos. O Sol baixava. Manua
bebia. Godide recolhia ao lar. Iomadamo conversava
com o curandeiro. Buinsanto falava com os rapazes do
gado. Manua berrava. Ngungunhane acordou. Sonie
vestia. Os guerreiros saltavam e cantavam. Manua viu
ratos a entrarem na cubata. Cercaram-no. Subiram pelo
corpo. Roeram a camisa, as calças, os sapatos, os
papéis, o tecto. Quis sair. Viu serpentes à porta. Re- Fragmentos do fim (6)
cuou. Fechou os olhos. Sentiu o cabelo a ser devora-
do. Tentou matá-Ios. Aumentavam de número. Enchiam
a casa. A noite entrava. Manua berrava. Ninguém o
acudia. Está louco, diziam. Uma coruja piou. Ngungu- A mingi bonanga e mizeni yenu
nhane dormia. Sonie sonhava com capulanas. Godide ngi ya hamba, jnanje mizokusebendza
via o império a seus pés. Cuiu viu em sonhos o seu ni bafazi benu ...
sobrinho Ngungunhane a rastejar como uma serpente
aos pés dos portugueses. Manua arfava. A Lua despon- Pu\avras últimas de Ngungunhane
antCli do embarque
tava. A coruja piou de novo. Os cães Intiram. O gar-
ratão de sope caiu. O líquido espalhou-se pelo chão.
Os ratos molharam-se. Alguns apanharam bebedeira. Jamais me vistes em vossas casas ...
A porta caiu. Manua morreu. A coruja piou. Os cães É verdade que me vou, ~as sereis escravizados
latiram. Os ratos roÍam o corpo de Manua. A noite com as vossas mulheres.
passou. A manhã nasceu. As mulheres foram à água.
Os guerreiros foram à caça de gafanhotos. Ngungu-
nhane dormia. Acordaram-no. Teu filho morreu, dis-
seram. Quem?, perguntou. Manua. Enterrem-no. respon-
deu e dormiu. A manhã cresceu. Os gafanhotos desa-
pareceram. As nuvens fugiram do céu. O império
gemia.

109
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A Teresa Manjate

Ergller-se-á povo contra povo e reino contra reino, e haverá


fomes, pestes e lerramolos em vários sítios. Tudo isto será apenas
o princípio das dores.

S. Mateus, capo 24
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Virou-se repentinamente para a multidão que o ""f:'1i,
vaiava, a uns metros do paquete que o levaria ao exílio, '~~3iJ
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e gritou como nunca, silenciando as aves e o vento ·~R'tl1
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galerno, petrificando os homens e as mulheres com .~
')~~~ftJt
"··\.:tr

n n(~ ') i
I outras bocas, gerações ~geraçoesem noites de vigília
e~as,' dada a força premonítiva que carregavam
I
f,"-'\J
~(/\,t;::)\./,·~o.i"'(}-,..r.'--;-
1I p!!lavras que saíam em catadupa e que percorreram,
nessa manhã sem outro' registo que o mar sem ondas,
em
ií~1
1 I r'- <;6'"' :
o paquete atracado, o Sol com a mesma cor, as nuvens
de todos os tempos, a multidão concentrada, Ngungu ..:: rijj~
nhane falando, e o corpo. bojudo oscilando para a di':' ";:\:':'''1'

reita e para a esquerda, enquanto os olhos reluziam "e'


':'-~~
as mãos tr~miam ao ritmo das palavras que cresciam, '~'1YJ
de minuto a minuto, como agora em que Ngungunhane
dizia a todos, 1?o~eisrir, homens,]odeis aviltar-me, rn-ª.s - ~;,
'.~
i fiem sabendo_que_a noite voltará 'a cair nesta terra .",i

j
amaldiçoada que s6 teve momentos felize,s com a
chegada dos nguni que vos tiraram dos abismos in-
~~ /1fII findáveis da cegueira e da devassidão. Fomos n6s,
homens, que vos tÍrámos da noite que vos tolhia à
j entrada ao mundo da luz e da felicidade. As nossas
i lanças tiraram as cataratas fossilizadas que ostentavam. "

e os nossos escudos esconjuraram os males de séculos


e séculos que carregavam no corpo putrefacto. E hoje,
corja de assassinos e cobardes, ousais achincalhar~me
115 .
.com toda a força dos pulmões rotos que tendes. É a

-"-~.========
UALALAPI
~) UNGULANl BA KA KHOSA

,,1ft,"
~~ paga, eu sei, dos bens que os nguni fizeram. Mas ficai horas seguidas ouvi-o falar. Quis acordá~lo, pois já era
ff}.:";~:·
~h'~'" , sabendo, seus cães, que o vento trará das profundezas tarde. Ao tocá-lo notei, q1.leo corpo estava frio. Há
dos séculos o odor dos vossos crimes e viverão a vossa muito que tinha momdo. Tiveram que o enterrar
curta vida tentando afastar as imagens infaustas dos imediatamente para que os vizinhos não nos chamas-
males dos vossos pais, avós, pais dos vossos avós e sem feiticeiros. E o nosso espanto foi ouvir a voz
outra gente da vossa estirpe. Começareis a odiar os vos- saindo da cova, uma voz como que vinda de escarpas
IJ, sos vizinhos, increpando-os dos males que padecerão abissais. O meu pai teve que sentar-se sobre a sepul-
t> nas palhotas sem idade. O ódio alastrar-se-á de família tura e acompanhar, movimentando a boca, a voz do
}.: em família, atingind9 os animais da vossa estima que defunto. Os vizinhos e outros familiares distantes
r,' passarão a lutar pelos pastos, se de gado bovino ou sentiram pena do meu pai, pois pensaram que estivesse
i;:
" caprino se tratar. Os galos não se meterão com as ga- louco. Noite e dia, durante uma se-mana e meia, o meu
linhas da vizinha e os ratQs dividir-se-ão por casas e pai abria e fechava a boca.
roerão os bens de uma só famOia ao longo de gera- _ Como é que se chamava?
ções e gerações. E aí, seus cães, não terão coragem de - O meu avô?
erguer a cabeça. A corcova será de tal ordem que tereis - Sim.
filhos e netos com' uma bossa inténniriável e hereditária! _ Somapunga. E ele, aoc'ol1tar-me as histórias de
- Há ponnenores que o tempo vai esboroando- Ngungunhane, repisava alguns aspectos que o meu pai
disse o velho, tossindo. Colocou duas achas no _fogo se esquecia e que tu omitiste. E são pormenores impor-
e soprou. Novelos de' fumo passaram pelo rosto. Pe- tantes,
quenas lágrimas saíram dos olhos cansados e tocaram _ Não me recordo de ter omitido nada.
na pele coberta de escamas. Afastei os papéis. Olhei- _ Quando Ngungunhane falava à multidão que o
-o. Era noite. vaiava, uma mulher, sem aparências de gravidez, teve
- Era. miúdo ainda - prosseguiu - quando o meu uma criança sem olhos e sexo. Dois homens tiveram
avô me contava histórias de Ngungunhane. E eu tinha um colapso cardíaco.
medo. Um medo que hoje não consigo explicar. Mas - E ninguém reparou?
~;:::., era medo. Quando donnia sonhava sempre com lanças _ Petrificados que estavam com as palavras de
~.~~{ e escudos a chocarem-se na planíc~e, numa planície sem Ngungunhane, creio terem sido poucos os que viram.
~}~~~;' guerreiros, mas com escudos e lanças que se movimen- - A mulher não gritou?
f~'itavarn; chocando-se constantemente. Nunca contei ao _ Não. Deve ter aberto os olhos e a boca antes de
rir,?" meu avô os. me?s sonhos. Receava que ele parasse de desmaiar. -Quando deram por ela já estava morta. E o
que impressionou as pessoas foi o sangue escorrendo
~~, va.a voz
~~." . )' contar as tremIa
hlst~nase os
de gestos segUIam,o
Ngungunha~e. ritmo daconta-
E q~ando voz. em direcção à fortaleza. 'Q sangue era negro como a
~m~':'
í ;,-".:.(.~. Morreu a donnir,
' sonhando
. alto.
. De manhã, ao entrar nossa pele. E à medida que avançava abria um peque-
~.~~~<
na sua cubata, vi-o deitado ao comprido, olhando o no sulco pela encosta acima. Os portugueses cobriram 117
~~:? tecto. Falava. A voz tocava-me profundamente. Durante com saibro.
UNGULANI BA KA KHOSA

- Interessante.
:#~~
obriga a tomar banho antes de entrar nos lenç6is cheios
- É, é· interessante - disse o velho, soprando o de espenna e lama, como se ela não tivesse tomado ~
fogo .. Pequenas faúlhas saltaram e· desapareceram na' banho de manhã e à tarde, no rio ou em casa. O ma-
noite.
rido suportará estes' insultos ouvindo a água a escor-
Estes homens da cor de cabrito esfolado que hoje
aplaudis entrarão nas vossas aldeias com o barulho das
o o

rer pela cútis negra e limpa enquanto aguarda, com um


olhar de cadáver, o estertor maníaco do branco e o
o

,··;i;S.~~l
i1
"'t,'., •._~~.

l' ;':'s:! ... :?,

_ +''\ suas annas e o chicote do comprimento dajib6ia. Cha- ofegar da mulher que se contorcerá na cama, libertan- \,r,~ -7'-', '!.t

"'~x':'t:
\\. l, ' marão pessoa por pessoa, registando-vos em papéis que do sons do fim dos tempos que rebentarão com os
( o enlouqueceram Manua e que vos aprisionarão. Os tímpanos e as veias donde escorrerá o sangue e as
nomes que vêem dos vossos antepassados esquecidos lágrimas da vergonha que atingirão o ponto culminante
morrerão por todo o sempre, porque dar-vos-ão os no- às latas horas da noite, quando o branco, do parapeito'
mes que bem lhes aprouver, chamando-vos merda e da janela, atirar a moeda da fome que procurará como
vocês agradecendo. Exigir-vos-ão papéis até na retrete, um sonâmbulo na noite sem estrelas. Seguirá para casa .
Como se não bastasse a palavra, a palavra que vem dos
nossos antepassados,. a palvra que impôs a ordem nestas
silencioso, incapaz de falar com a mulher que vai ",~?~~ .;.I~
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tropeçando nos escolhos, envergonhada, aviltada. ~'. "'-;"'.


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X terras sem ordem, apalavraque tirou crianças dos ven- E por todo o lado, como uma doença que a todos ,'~-:-'~'~
tres das vossas mães e mulheres. O papel com rabis- ataca, começarão. a nascer crianças' com a pele da cor ~AAi

1'f'P7 ~,~ J
cos norteará a vossa vida e a vossa morte, filhos das do mijo que expelis com agrado nas manhãs. Serão ~d
trevas,
crianças da infâmia. E pela primeira vez na vossa vida '+~-M
As mulheres, que tanto estimais, passarão a ser vereis filhos rejeitando as mães que se atirarão às ca- :":~~
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fomicadas como animais nas vossas casas óu nas tra- sas onde o corpo se venderá ao preço do pão, fomi- ·.t:
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seiras das casas destes animais que hoje respeitais mais cando comas crias que desconhecem e apontando ao 1
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que os vossos irmãos nguni. Os gritos de dor e de
prazer das mulheres perseguir-vos-ão por todo o lado
acaso os presumíveis pais da caterva de miúdos que nas- .. :'~~; .~.{\~

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cem às dezenas. As doenças nunca vistas tocar-vos-ão
e passareis noites e noites contando os paus do teclO, i a todos, e não darão ouvidos ao curandeiro porque
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incapazes de se vingarem da infâmia que tocou as haverá casas onde espetarão ferros pelo corpo; e ha-
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mulheres. Muitos de entre vocês suicidar-se-ão em
árvores anãs ou entregar-se-ão aos crocodilos que vos
i
j
verá homens com vestes de mulher que percorrerão
campos e aldeias, obrigando-vos. a confessar males co-
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regeitarão pela cobardia que transportam, e flutuarão metidos e não cometidos, convencendo-vos de que os
pelas águas durante anos e anos sem que um animal
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espíritos nada fazem, pois tudo o que existe na terra
. aquático se aproxime da carne putrefacta. Outros su- I e nos céus está sob o comando do ser que ninguém
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portarão a dor e a ignomínia e passarão a acompanhar I conhece mas que acompanha os vossos passos e as ,,~~t}
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a mulher à casa do branco, mantendo-se na escuridão vossas palavras e os vossos actos. A noite terá caído ~
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do pátio, enquanto a mulher transpõe a porta e entra


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118 definitivamente nestas terras que mudarão de face' com


no quarto donde sairá com insultos do branco que a o vosso suor. 119

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UALALAPI
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t:· crianças presas, fazendo-as mulheres, mimando-as como-


",,:,'';'Abrirão estradas, rebentarão os pés. e as mãos,
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beberão sârigue dos vossos innãos com balidos e verão mimam as.vossas mulheres, ralhando-Ihes como ralham
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;.,.: ." as vossas mulheres parindo pedras e troncos em plena às vossas mulheres. E aí o :rrlundo terá múdado para
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estrada sem que possam mexer um dedo porque o sempre.


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chicote que estes fabricarão de.minuto a minuto reben~
tará com as vossas costas cheias de escarpas fossiliza-
_ Ngungunhane babava - disse o velho.
- E já não via ninguém.
~~' ... ..

das. Começarão a abandonar as vossas aldeias ante a _ Pois, é isso. já não via ninguém com os olhos
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vergohha e a impotência de verem as voss'as filhas reluzentes. Estava no auge do discurso. E o mais im-
violadas em plena, rua, os vossos pais mortos como pressionante eram as nuvens a desaparecerem do céu
reses, os vossos irmãos chicoteados por peidarem de e os brancos, sem nada entenderem, tinham os cabe-
medo frente ao branco que vos aviltará por todo o los eriçados.
sempre, queimando as vossas casas, usurpando a terra Fora das grades os vosso netos esquecer-se-ão da
que vem dos vossos antepassados,cobra'ndo as moedas Hngua dos seus antepassados, insultarão os pais e en-
pelas palhotas que erguestes com suor, obrigando-vos vergonhar-se-ão das mães descalças e ocultarão as casas
. a trabalhar em machambas enormes, onde dia e noite aos amigos. A nossa história e os nossOShábitos serão
andarão como sonâmbulos, comendo jibóias e macacos, vituperados nas escolas sob o olhar atento dos homens
escalavrando a terra com os dedos descarnados e tiran- com vestes de mulher que obrigarão as crianças a fa-
do a merda da criança do vosso patrão. lar da minha morte e a chamarem-me criminoso e
- .

E por onde andardes encontrarão as mesmas ima- canibal. As crianças rir-se-ão desta vergonha que os
gens, a mesma degradação, o mesmo crescimento. Os velhos sem auditório tentarão redimir dando a versão
vossos irmãos pedir-vos-ão os papéis que não terão em que ninguém escutará. :
dia e entrarão em casas cheias de ferros e ficarão Por todo o lado, filhos das trevas, verão a morte a
loucos. Comecarão a rugir, treparão as paredes como estampar-se nas casas que forem erguendo. Andarão
lagartos cegos e uivarão como hienas famintas pela como lagartos por estas terras, procurando a luz para
noite adentro. De manhã tirar-vos-ão dos quartos nus, aquecer as vossas escamas de sáurios. E à noite, atra-
com correntes pelos pés, como o gado prestes a ser vancados nas casas, sentirão passos estranhos a calea-
abatido. Não dormireis com as vossas mulheres que se rem as varandas e a aproximarem-se da porta, onde
limitarão a olhar-vos e a dizerem as palavras de sem- ficarão estampados por séculos, os contornos das ore-
pre.no tempo programado para a visita. Meses depois lhas que escutarão o que não disserem. A morte e o
dir-vos-ão que a vossa mulher teve um filho da cor do luto espalhar-se-á por estas terras e o preto sobrepor-
mijo. Rebentarão' com as grades a atirar~se-ão à noite -se-á à negrura da vossa pele farta de caminhar entre
a caminho da casa onde retalharão em bocados a vossa cadáveres 'Vivose apodrecidos que se espalharão pelas
mulher inocente. E voltarão para toda a vida à cadeia, ruas. E chegará o tempo em que fugirão para o mato,
vendo o sexo a minguar de dia para dia. E o~ que não onde começarão a caçar os homens da vossa perdição,
suportarem entregarão o traseiro ou perseguirão as matando um aqui e outro ali. Aí respirarão o ar da 121
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UNGULANI BA KA KHOSA
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vossa existência por pouco tempo, pois começarão a séculos e séculos. E na ilusão da vossa vitória invadi~' ':,.:::i,~~~~
odiar-se e a matarem-se por pensarem no trono antes rão éasas que erguestes e mudarão a ordem das coi- , /·'.\~~t
de o conquistarem. Haverá sangue a correr, chamar-se- sas, passando a cagar .onde deviam comer e acorner ' ','(:~~ _
-ão nomes que a vossa língua não comporta e volta- onde deviam cagar. A desordem será de tal ordem. que' "":/!),~~
rão a procurar os curandeiros da vossa salvação que pas- as casas mudarão de cor, passando a ter a cor da n'!Qrt~',' ,;,,~,::~~i~::
sarão a cobrar pela mesma moeda que o cantineiro vos que se instalará nas vossas terras que terão a ex~e_n~ã2 :>~~
cobra pelo arroz. Matarão à distância o vosso oposi- de meses e meses de percurso. Haverá chuvas de 'nuÍ1ca«~
tor, fazendo-o emergir na bacia de morte onde a água acabar que arrasarão os ,campos e as cidades. As,:es~~<:"«{i~"1$
tomará a cor do sangue. Lançarão abelhas mortíferas tradas rebentarão e começarão a surgir pelas avenidas .: .:'~/!"3,~
aos vossos animigos e haverá cacimba ao meio-dia. Mas e ruas, serpentes com ninhos à vista de toda a gente e :;,\~'nf
começarão a aprender novas doutrinas que rejeitarão os· confundirão os seus silvos com os apitos desordenados .. ;::.:~"
espíritos, os feiticeiros e curandeiros. Todos ou quase de polícias em jejum de séculos à caça de ladrões prcr .' ·':;U::&
todos aceitarão o novo pastor, mas pela noite adentro fissionais que roubam'cigarros e pilhas e batatas e res~ .':·;:i~.
muitos irão ao curandeiro e pedirão a raiz contra as tos de comida. Os carros de bois passarão a substituir .' .,:/~'
balas do inimigo, porque não quererão morrer antes de as máquinas que deitam fumo e verão as ruas repletas ..'}?
saborearem a'vitória, e a curandeiro pedirá o coração de bostas secas e frescas que os homens recolherão nas
do inimigo que abaterão sem piedade na emboscada dos noites infindáveis da fome. Ávidas em se alimentarem
troncos que se movem. Em todo o lado sentir-se-ão farão papas de merda que provocarão diarreia e v6mitos
her6is;~'pois a bala passará à distância e se vos tocar que encherão as casas de cimento, saindo depois pe-:-
bastará um encosto à árvore que secará e que vos Ias corredores e escadas sem degraus até aos jardins e
restituirá a saúde. Outros transfonnar-se-ão em serpen- ruas, provocando o dilúvio de diarreias e v6mitos que
tes, entrarão no campo inimigo, estudarão os seus passos afogará crianças e velhos, homens e mulheres, que se-
e verão o quantitativo. E esta será a nossa guerra vi· rão o alimento de ratos gigantes que terão a liberdade
toriosa contra os homens que entraram nestas terras sem das avenidas e casas sem dono. Serão os primeiros dias
, autorização de ninguém. Muitos dos filhos destes ho- da vossa desgraça que se completarão 'com os homens
mens ficarão nestas terras e aprenderão as nossas línguas que percorrerão as matas, matando os pais e a mães,
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e dançarão as nossas danças e casarão com as nossas ávidos do tempo do chicote e das plantações de sonâm-
~ mu-lheres à vista de toda a gente e serão nossos innãos bulos. A confusão reinará por séculos e haverá suplícios
de verdade porque esconjurarão com os curandeiros do ao fogo; rebentarão as barrigas grávidas de mulheres
amanhã os seus males de séculos. inocentes, obrigando os pais a comer os nados-mortos
Chegada a vitória tereis um preto no trono destas sem uma lágrima nos olhos. O sol mudará de cor e as
terras. Exultareis de alegria ao verem subir panos na nuvens afastar-se-ão do céu por tempos imprecisos,
noite chuvosa da vossa vitória. Mas não tereis chega- trazendo a chuva quando menos esperam e o sol quan· ·:3~~!;'
do ainda ao tempo da vossa felicidade, seus cães, por- do se espera a chuva. E a fome chegará à loja onde ,qm
122 que a maldição que abraçou estas terras, perdurará por os canrineiros passarão a vida a espantar as moscas, 123

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';C':'-tJNGULANIBA KA KHOSA
UALALAPI

barítono, tirou lágrimas aos velhos e novos que olha-


énqulmto 'o povo inteiro transfonna as ruas em canti-
vam o navio a abrir às águas afastando-se da costa.
,nas. As cadeias multiplicar-se-ão e os homens do mando
·chegarão 'ao ponto de prender a todos porque todos Depois do barco se perder no. mar ouviu~se ainda o
canto a cobrir o céu e a terra. Ngungunhane desapa-
, venderão e comprarão coisas ao preço que ninguém
'sabe. Eas ruas estarão desertas. E haverá chefes sem receu.
Levou duas achas ao fogo e soprou.
súbditos~ E terão que voltar ao princípio dos princípios.
_ A seca invadiu estas terras - continuou. A co-
Eis' o, que é e o que será a vossa desgraça de séculos
lheita foi má. Maguiguane quis aproveitar-se do des-
homens. Agora riam-se à vontade, riam-se, homens!...
,,;:,';'- E blhou-os - disse o velho -, estava cansa- contentamento para a revolta mas os portugueses ti-
nham mais forças. O império desabou para todo o
do. Transpirava por todo o corpo e o peito estava cheio
de'baba~ A multidão olhava-o petrificada. As nuvens sempre. Já tinha desabado com a partida de Ngungu-
nhane.
tinham desaparecido. As ondas começaram a surgir nas
_ É isso - redarguiu o velho. - Já tinha desa-
águas e o paquete começou a roncar. O Sol estava a
meio do céu. As mulheres começaram a chorar. Os bado. Os portugueses venceram.
homen~, incrédulos ainda, olhavam Ngungunhane que _ Mas perderam num campo mais vasto. ~::
limpàvacalmamente a baba. Deu dois passos em frente _, Ngungunhane tinha predito.
_ Tem razão. Não vai dormir?
epatou'" Numa voz arrastada, calma, cansada, disse:
...:..:.:.,A chuva ,não virá a estas terras antes de se com-
_ Vou dormir aqui, junto ao fogo .
Levantei-me. Estava cansado. A noite clara, sem
o pletarem dois anos. Irão pelo mato fora e comerão ratos
nuvens, dava totalliberdade à Lua. Comecei a afastar-
,~~;-"<:j,tie'=desaparecerãona primeira noite. Depois procura-
~t tão 'gafanhotos que não encontrarão. Entrarão nas águas -me da fogueira. Com a capeça apoiada entre as mãos
o velho soluçava. Comecei a andar depressa. Não sei
porquê mas à medida que ouvia o choro do velho
çí
i
~>::: eze,~tesao
V,- comerãolongo da nossa
os peixes, estada ne.sotasjuramento
contrariando terras. Osque
nguni
fi- ~ I' apressava o passo. Afastei-me da cabana que me esta-
va reservada e virei o rosto em direcção à fogueira.
'~{:I'o'<iü:'r~s:taremvoltarã~ à Zululândia,
,~B::t~O}' vossacobardla, t.so~gas semporq~~
espmto!não
. supor- "J~,'~:, <:.-
Entre duas mangueiras enormes, o velho, com a cabe-
l;\\A~:'):Dltas estas palavras fmaIs Ngungunhane VlTou-see :
"i~~r"'âminhou em direcção ao navio, acompanhado pelas ça entre as mãos, não via o fogo e a noite. Chorava..
"~ffiú1Heresje<o,filho e outros homens. Subiu as escadas E eu afastava-me da cubata, do meu quarto, e atirava-
-me à noite de luar. Algo me intrigava no velho e no
·~:sbhi.r!.voltâr:·uma
úniCa vez o rosto. Desapareceu no in-
{t~1ioi-:âd:havio. Durante uma hora, aproximadamente, discurso de Ngungunhane.
f-fl,taram:à:espera que o navio arrancasse. Os motores
éL·1Íàb~hâvam.' As águas em volta estavam revoltas. I
:\~;',Ofnavlo~,não arrancava. Passada a hora ouviu-se um
ê~~o:a'elevar-se pelos ares e os pássaros a invadir o
,.f,s:)~ 125
lil~~êU[.i.Ngungunhane cantava e dançava. A voz, em

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