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Ungulani Ba Ka Khosa (nome -lsonga de Francisco Esau
Cassa) nasceu às 0.45 do dia 1 de Agosto de 1957, em Inha-
minga, província de Sofala, filho de mãe sena e pai changana .
.Da infância pouco se recorda, and:.trilho que foi pelas terras do
interior. acompanhando a mãe. enfermeira. O pai. enfermeiro de
profissão, cedo deixou o fjlho que ainda gatinhava e abalou para
Ja.JaJani
as lerras do Sul, à procura de outras prolissões mais rendosas.
Ficou com a mãe, com as fotografias do pai, e com alguma solidilo ~RRATIVA ':-.;1;-
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interior, Frequenta o primário. trava amizades que se perderam
f Moçambique, 1990 :;...:;~.
com o tempo e em 1968, fim do primário, deixa a mãe para vjver
..com o pai nas terras do Sul. Os avós, o pai, a mãe (separada
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do pai) e todos os espíritos ancestrais reúnem-se em volta da [ron- '~J
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reetriz presidencial encerra o pré-universiuírio e uma viagem grátis
leva-o a Maputo. Frequenta um curso intensivo. pOIa professores
do primeiro nível do secundário e é colocado no Niassa como
professor, em 1978. Campos de reeducaçüo, solidão, dias lon-
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dade de Educação na área de História e Geografia para o ensi- "'
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Nota do autor
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Ayrcs d'Omcllas
IICarras de África» 17
À Judite Gettessemane
U Ngungunhane! .
Uya Ngungllnya e bafazi ne madoda/ .
Tu és Ngungunhane! .
Aterrorizarás as mulheres e os homens! .
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I
Quando chegaram a um dos outeiros mais próximos
da aldeia os guerreiros suspiraram de alívio ao contem-
plarem as casas esparsas por entre as árvores de raizes
seculares, imersas num silêncio profundo, próprio
daquela hora em que o Sol ultrapassava majestosamente
a metade do céu sem nuvens. atirando os z:aios que
causticavam os rostos, os dorsos e os troncos nus dos
guerreiros, cobertos da cintura à parte superior das coxas
por peles de animais bravios.
U alalapi, à frente dos guerreiros. percorreu com o
olhar a aldeia e pensou no doro, nome que leva o
pombe preparado nestas terras dos mundau, a entrar
pelas gÇlelas abaixo, com um bom naco de carne, à
~~ sombra da frondosa árvore, tendo defronte a mulher
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atiçando o fogo e o filho brincando, enquanto a noite
entrava, calma, trazendo consigõ a Lua cortada e às
vozes mais distantes de outros homens que seroavam,
pervagando pelo mundo dos feitos nguni, em tempos ,~
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KA KHOSA _
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~. P Dois pangolins, animais de mau agouro, reluziam
cI suas vidas vulgares e sem história e destino senão o de
~ ao sol numa atitude de completa sonolência, a meio do nascerem para servirem aos superiores até à morte.
r carreira. Ualalapi olhou de soslaio os guerreiros que o A quem se dirige então este enigma 'se outra família
.~ ladeavam e viu os mesmos olhos brilhantes, trementes, não tenho que mulher e filho? .. Olhou para os guer-
'; claros, ausentes. Nada disse. Passou a mão pela carne reiros e viu-os na mesma posição rememorativa, pen-
fresca, sinal de fartura e de bons presságios, e atirou sando nas mulheres e nos filhos, ou nos pais e avós,
os olhos aos pangolins, animais agoirentos como já atirados pelo império sem fim.
ficou dito. E todos, como que petrificados pela ima- Enquanto pensavam nisto e naquilo, recordando
gem infausta, permaneceram na mesma posição, sen- coisas antigas e presentes, ligadas aos enigmas que a
tindo o sol a fulminar-Ihes os corpos e os arbustos a natureza atira aos homens sem piedade, estugavam o
atirarem os ramos mais atrevidos que se dobravam ao passo em direcção à aldeia que se avizinhava, deserta
contacto cóm os corpos, durante minutos prolongados, nas suas ruelas, sem outros ruídos que o rumorejar
até que os pangolins, recobrando as forças, retiraram- crescente ,das folhas das árvores e o altear desordena-
-se do carreiro, deÍxando-o livre à passagem dos ho- do da fumaça que saía em algumas cubatas onde o fogo
mens e à flutuação do pensamento que a todos atingiu. teimava em agarrar-se aos troncos que a cinza atacava.
Ualalapi pensou no filho e viu-o tirar da parede Aproximaram-se da cubata mais próxima e Ualala-
maticada o escudo de tantas batalhas. Mas porquê o pi adiantou-se. Uma mulher de meia-idade, sentada
t filho, pensou, e não a mãe do filho que sempre lhe
f "-. defronte à casa, amamentava uma criança.
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ofertou o c.orpo em noites de luar e em momentos por - O que se passa, mãe? - perguntou Ualalapi,
vezes impróprios à fornicação? .. Passou a mão pelo agachando-se e pondo a lança ao alcance da mão di-
\ reita.
(.' cabelo, tirou uma folha silvestre, olhou para as aves que
voavam, silenciosas, e sentiu um pequeno tremor no - Os mochos teimaram em serendar sobre as casas,
corpo. Não, ela não pode ser, pensou, deixei-a sã de chiando a toda a hora e tra~endo os espíritos há mui-
corpo e espírito. E como mulher, mulher nguni, ela to adormecidos que perturbaram as nossas mentes e
vaticina o seu destino. O meu filho túmbém não, é deram a morte a alguns - disse a mulher com um ar
impossível, pois como pode uma criança de pai e mãe cansado, preocupada com o filho que mexia desorde-
o~guni morrer inesperadamente aos dois anos, sem que nadamente os pés e os olhos, tentando afastar as moscas
. esteja adestrada no trato das armas como os pais e que teimavam poisar.
avós?!::' Não, é impossível, à sua família os ventos do - Morreu alguém da sua família?
irifórtúnio não chegarão tão já. Talvez a estes guerrei- - O meu marido.
otO'S1; péilsou, e viu-os cabisbaixos, como se tremessem - Lamento imenso, mãe ... Lamento imenso. E os
.que!~fterra se lhes abrisse aos pés, tropeçando por tudo homens, por onde andam os homens?
'e °por:nada~'A'estes também não, pertencem ao vulgo, - Quem terá co'ragem de andar nestes tempos? ...
e1~ad(vulgo a infelicidade sempre lhe surgiu, desde os Falam com os seus muzimos. Não morreu um homem,
~24 princípios dos tempos, sem enigmas, às claras como as morreu o império.
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VNOULANI DA KA KHOSA _. _ : -- UALALAPI
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- Quem mais é que morreu? uma cubata, sob o olhar atento dos maiores do reino
, - Sabê-Ia-ás. Os chefes como tu aguardam Mudun- que tinham o dever de assistir à putrefacção do corpo
gazi na praça. para que os espíritos malvados não se apossassem de .1
- Certo. De que é que morreu o seu marido? partes do corpo, aguentando durante dias e noites:o ~
- De susto. Mas que, importância tem a formiga cheiro insuportável da carne podre cujos líquidos caíam ~
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perante o elefante? °
em vasilhas preparadas para efeito. Ualalapi levou a :1
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- Quantas vezes a fonniga não matou o elefante, mão direita às narinas e entrou na praça. Olhou para :".~
mãe? o céu e viu as nuvens escuras e pesadas a desceram
E quantas vezes o crocodilo saiu da água, das alturas. O vento zurzia as árvores altas e baixas.
homem? Acercou-se de Mputa, guerreiro que morreria de for-
- Obrigado, mamã - disse Ualalapi, perturbado. ma estúpida e inocente mas cujo rosto permaneceria na
Soergueu-se, agarrou na lança e virou-se para os guer- memória de todos, como o afirmaram ao pressagiarem
reiros que o olhavam, cansados de esperar. o seu destino, sem no entanto detalharem as caúsas da
- Ide guardar a carne e espera i qualquer ordem. sua morte, pois em histórias que entram reis e rainhas,
Em vou até à praça - e largou-os sem mais delon- todos se apartam, até os swikiros que tudo prenunciam.
gas, caminhando célere e alheio ao vento que ia levan- - O que é que se passa, Mputa?
tando grãos de areia e folhas dispersas pelo chão, -' Morreu Muzila:
formando pequenos remoinhos que se alteavam em - Como?
círculos desordenados, tocando amiúde o corpo de .- Dizem que morreu de doença, pois há várias
Ualalapi, coberto por uma camada de sangue e restos noites' que não tirava os olhos do te~lO da sua casa.,
de folhas silvestres que se despegavam do corpo com -' Uma morte desumana para um nguni.
a força do vento que carreg'ava um cheiro estranho, - Há quem afirme que o pai morreu da mesma
,; sentido na zona nos tempos imemoriais em que homens forma.
de outras tribos viram as casas aluírem com a força do - Não era o desejo deles, Mputa.
vento e da chuva que cobriu a terra e os arbustos de - Conheço poucos reis que môrreram em batalhas.
água lodosa e cheirosa no momento em que acabavam - Mas todos afirmam que é a melhor morte.
de enterrar um rei de Manica que, vaticinado pelo seu - Quando se dirigem aos guerreiros.
swikiro - nome que os médiuns chonas levavam -, - Pensas muito depressa.
não tivera outro temp~ de governação que o número - A guerra assim nos ensina, Ualalapi.
de dias iguais aos dedo~ que as suas mãos carregavam. - Tens razão ... Sentes este cheiro?
Mas foi tempo suficiente para medrar com as lautas - É o cheiro da morte. Quando' um rei morre,
refeições que pararam no dia fatídico em que morreu alguns súbditos devem acompanhá-Jo.
de congestão, - Falei com. lima mulher que perdeu o marido.
E Ualalapi pisava agora, a caminho da praça, o local - Houve outrns mortes' por aí. A velha Salama
26 onde o corpo do rei estivera estendido, no interior de 27
guando soube da morte do rei dirigiu-se a uma das
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esteve no interior das terras de Manica. durante semanas e semanas, levando pessoas a bebe- /-cÚ1 5r"""f
rem o sangue dos seus irmãos mortos por não supor-
tarem a sede que os atormentava. litudo por teimosia
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)71l('í~u/)"fJCVZ~ de Mawewe em se manter no Roder.
-~'-:M1iZilafiíOiTe~;sguerreiros. À· beira da morte
Numa voz entrecortada, chorosa, mas que ia ga- indicou-me como seu sucessor. A sua sepultura deverá
nhando força ao longo do discurso, como é próprio das ser aberta por mim. Acham que a história se vai re-
pessoas que têm a mestria de falar para o povo. Mu- petir?
dungazi começou o seu discurso perante os chefes guer- Os guerreiros, num compasso preciso, bateram os
reiros afinnando que as coisas da planície não têm fim. escudos de pele na terra e disseram não.
. '<i Há muitas e muitas colheitas que aqui ch~gamos Estais comigo, disse Mudungazi, não pela fidelidade
com as nossas lanças embebidas em sangue e os nos- para comigo mas por terem acatado as minhas palavras .
. seis escudos fartos de nos resguardarem. Esperava isso de vocês. 29
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Susteve o discurso por momentos e percorreu com
o olhar raiado de sangue os guerreiros que· se manti~ _ Tens o hábito de subires as árvores pelos ramos,
nham em silêncio. O Sol caía. O vento estava calmo.
Mud\.mgazi.
Nuvens brancas sobrepunham-se às nuvens escuras no _. Entenderam, Damboia.
céu azuL - Duvido.
O meu irmão Mafemane, prosseguiu, vive a uns
_ A um guerreiro só se mostra o alvo.
quinze quilómetros daqui. Consta~me que se prepara _ E por que não indicaste o homem que deve
para partir a fim de abrir a sepultura do meu pai. executá-Io?
A história não deve repetir-se. O poder pertence-me. _ Fá-lo-ei ao raiar do dia. E não te preocupes com
Ninguém, mas ninguém poderá tirar-mo até à minha Mafemane: os abutres já se preparam para devorá-lo.
morte. Os espíritos poisaram em mim e acompanham- Bebamos o d'JrD pela minha ascensão ao poder deste
-me, guiando nas minhas acções lúcidas e precisas.
império.
E não irei permitir que haja a mesma carnificina como - À tua saúde, Ngungunhane.
no tempo de entronização de Muzila, porque irei ac- _ É isso, Ngungunhane. Serei para todo sempre
tuar já. Os homens que não me conhecem, conhecer- Ngungunhanee morrerei de velhice. Assim o quiseram
-me-ão. Não vou partilhar' o poder. Ele pertence-me
os espíritos.
desde que nasci do ventre de 1ozio, minha mãe, a
mulher preferida de Muzila. E serei temido por todos, - O que é que se passa, Ualalapi?
- Morreu Muzila.
I
~.porque
nhane, tal
nãocomo
me essas
chamarei
profundas
Mudunguzi,
furnas onde
mas lançamos
Ngungu- Sei. Mas o que é que Mudungazi
i os condenados à morte! O medo e o terror ao meu im-
_
_ Mafemane deve morrer.
disse?
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] pério correrá séculos e séculos e ouvir-se-á em terras
por vocês nunca sonhadas! Por isso, meus guerreiros,
- Porquê?
[t _ Pela porta da casa entra um de cada vez.
aguçai as lanças. Teremos que limpar, o mais urgente - E o outro espera no terreiro.
possível, o atalho por onde caminharemos, para que não _ Ah ... os homens sempre evitam dar as costas a
possamos tropeçar com posslveis escolhos.
alguém. É perigoso.
Assim finalizou Mudungazi o contacto com os guer~
_ Nem sempre. Mas quem o .vai matar?
reiros. A noite entrava~ Seguido pela tia, de nome
_ Estás muito preocupada. Esquece isso. A água
Damboia, Mudungazi dirigiu-se à palhota grande,
para o banho está pronta?
bamboleando as carnes fartas que pouco mudariam até _ Está no lume. Esta situação preocupa-me.
à.morte que teria em águas desconhecidas, envolto em
- Porquê?
-'N- roupas que sempre rejeitara e no meio de gente da cor
~ I) - Tive sonhos esquisitos.
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do cabrito esfolado que muito se espantara por ver um _ É normal em dias de luto.
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preto. _ Sonhei com a tua morte.
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defecando sem parar durante quinze dias seguidos. E
~\ láfapi,
netos sangue! Vive-riiéis-'do'-~n&~~Ae-s.t~~
..i~?centes. quando o encontraram, já morto, a merda ainda lhe safa
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""'l"'\ Porquê,mantêm-se
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nela matando . também. Sangue,
Ualalapi?... .. Ua-
i . _, É necessário, mulher. Nós somos um povo eleito do corpo. Tiveram que o enterrar com a merda que não,
pelos espíritos para espalhar a ordem por estas terras. parava de sair. E tu não podes fugir a isso. Também
;.J.t,:f, E é por isso qu'e caminhamos de vitóda em vitória. se morre fora de combate. E eu tenho, medo, Ualalapi.
E antes que o verde floresça é necessário que o san- - É um sonho, mulher.
gue regue à terra. E neste momento não te deves preo- - E quanras vezes errei nos meus, sonhos?
cupar com nada, pois estamos em tempo de paz e luto. - Podes ter razão, mas se for para morrer corno
poderei fugir ao destino?
- Não fales assim. Exasperas-me. O que te peço
- E os teus irmãos, Mudungazi? é que recuses a ordem de matares Mafemane.
_ Quais? .. Como. Como, Anhane, Mafabaze? - Devo fidelidade a Mudungazi.
- Sim.
_ Não terão coragem de se oporem às minhas
IV
ordens. O perigo está com Mafemane. Esse é que deve
morrer.
O Sol não queimara ainda o orvalho quando
Manhune e os guerreiros a seu mando se aproximaram
_. Se te indicarem para matares Mafemane não da aldeia de Mafemane, pondo-se à escuta de sinais de
aceites, Ualalapi. partida. Mas o silêncio, o mesmo silêncio que a todos
_ Talvez não seja eu a pessoa indicad'a. Mas tocava naqueles dias de luto, cobria as pa:lhotas de
porquê? Mafemane e os seus homens e mulheres. Nas ruelas
32' - Temo pela tua vida, Ualalapi. nada se via para além de pequenas folhas e bocados 33
UNGULANI BA KA KHOSA _ Vi'" .c ':. UALALAPI
de bilhas partidas, esparsas pelo chão. Manhune deixou rando-os como ninguém fizera desde os tempos em que .
grande parte dos guerreiros que. o acompanhavam e aprenderam a manejar as armas. E para eles o exprobrio
levou dois à casa de Mafemane, que se erguia no centro tornava-se insustentável por vir da boca de uma mu-
da aldeia. Algo os atemorizava naquele silêncio, pois lher, uma mulher com má fama, apesar de ser da corte.
ao caminharem para o centro da aldeia não ouviam - É esta a guarda de elite com que contas,' Mu~
outtos ruídos que o som dos pés nus, calcando a terra dungazi? ... Uma cáfila de cobardes, cães que s6 sábe#i
húmida. Mafemane, alto, imperturbável estava defronte ladrar. Que fidelidade jurastes para Mudungazi? Qúe
à sua casa, de pé, com as mãos cruzadas no peito largo fidelidade, seus cães? ... Não, não me respondam; não
e forte. tendes direito a palavra. Devieis ser entregues· aos
- Esperava-os, disse Mafemane, aproximando-se de abutres. É isso que merecem, crianças, filhos· mal
Manhune. Sei que MuzHa morreu. Sei também que o paridos! Vindes aqui tentar convenéer-nos que Mafe-
meu irmão foi escolhido como sucessor, apesar de eu mane, sabendo da sua morte, quis despedir-se das .,
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ser o filho primeiro da inkonsikazi de Muzila, Fussi. mulheres e filhos. Porque não fê-Ia antes? Ah, seus
O trono pertence a Mudungazi. Sei também que vies- cães, imbecis, estúpidos, crianças sem juízol... Mafe-
tes com ordens para me matarem. Estou preparado para mane prepara-se para fugir, e já deve ter partido.
morrer. Mas peço-vos que me deixeis despedir das Estúpidos. E tu, Mudungazi, ainda tens coragem de dar
minhas mulheres e dos meus filhos. Vinde ao cair do guarida a cães que s6 sabem ladrar? No teu· lugar
dia. matava-os ... Não percamos mais tempo com esses'
As palavras, como que vindas das alturas, entraram estúpidos. Vai Maguiguane, Mputa e Ualalapi. E levem
na mente de Manhune e dos guerreiros com tanta os guerreiros que quiserem. Mas não\apareçam nesta
clareza que ficaram petrificados pela calma e a sere- aldeia sem o corpo de Mafemane, nem que tenham que
nidade de Mafemane. Este sorriu e fixou-os. Os olhos fazer desaparecer a floresta que vos rodeia. Avancem!
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eram transparentes, brilhantes, chocantes. Sem conse- A mulher do Ualalapi acompanhou com o olhar o <"
.. ,
guirem responder, os homens de Mudungazi começa-
ir" marido até este desaparecer na floresta. Pegou no fi-
ram a recuar, com os olhos postos em Mafemane. ,~ . lho e começou a chorar mansamente. Entrou na cuba-
Manhune tropeçou, caiu, levantou-se, deu costas ao ta e não mais saiu até à morte do filho e dela, afoga-
Mafernane e pôs-se a andar num passo tão rápido que dos pelas lágrimas que não pararam de sair dos olhos
os guerreiros que o esperavam ficaram surpresos e desorbitados durante onze dias e onze noites.
perturbados. Ualalapi, longe dos tonnentos da mulher, aproxi-
- O que é que se passa, Manhune? mou-se da aldeia de Mafemane. O Sol tomara a cor
- Não me perguntem nada. Vamos, vamos à nossa vennelha. A tarde fugia. Ao divisarem a casa de Ma-
aldeia. femane, Ualalapi ficou com' os seus guerreiros a uns
.q--' E pôs-se à ·dianteira. Chegados ti aldeia tentaram quinze metros de distância. Maguigtlane e Mputa adian-
explicar a Mudungazi o que viram e ouviram, mas taram-se, à direita e à esquerda respectivamente. deixan-
/34 Damboia, com os olhos reluzentes, interpôs-se, vitupe- do um corredor a meio, onde, ao fundo, Mafemane, 35
~fr.'''IFI.:.
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t UNGULANI BA KA KHOSA _
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(7--'-- ! ,~..Y9-p' UALALAPr
com um sorriso nos lábios, os esperava, de pé, frente genuflexiva .durante segundos prolongados, esperando
," ao áditoda sua casa. ' Ualalapi que se aproximava, de cabeça baixa. A dor no
"
- Pensei que não viessem - disse Mafemane, per~ peito era de tal ordem que caiu de costas, apontando
correndo-os com o olhar, um olhar penetrante, incisi- os olhos para o céu onde três estrelas despontavam. Sem
vo -, não era necessário tanta gente, bastavam dois. a coragem de o olhar, Ualalapi aproximou-se de Ma-
Mas estou pronto. Podeis matar-me. Sei que. não femane, ajoelhou, tirou a lança do peito e voltou a en-
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podereis entrar na vossa aldeia sem o meu cOlpo. terrá-Ia vezes sem conta. O rosto, o tronco, e outras
, ' Conheço Mudungazi de criança. E con heço essa cra- partes do corpo de Ualalapi foram-se cobrindo de
pulosa mulher que tem por nome Damboia. Não vos sangue quente, expelido do corpo de Mafemane, já
quero roubar tempo, andastes muito. Podeis matar-me. morto. E à medida que o sangue ia correndo pelo corpo
Bocados de palha soergueram-se de uma palhota
e de Ualalapi, este mais fechava os olhos e enterrava
próxima. Tremeram no ar calmo e voltaram a poisar. com maior fúria a lança no tronco perfurado, desfeito,
Dois pássaros cortaram o céu. Uma criança chorou. irreconhecível. Maguiguane e Mputa aproximaram-se.
Amãe abafou o choro. Mafemane sorria: Maguiguane - Chega - disseram, há muito que morreu.
quis le"antar a lança. Não conseguiu. Sentiu a mão pe- Ualalapi susteve a lança a poucos centímetros do
sada~ Mputa pennaneceu na mesma posição, impassível. peito de Mafemane e soergueu-se. Passou a lança para
Mafemane sorria. O Sol descia, vennelho. Os minutos a mão esquerda e pôs-se a correr, atravessando as casas
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passavam. o. silêncio carregava-se. A noite entravà. da aldeia, e gritando como nunca ninguém ouvira um
Do fundo do corredor uma lança cortou o ar e foi- .' "
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arrasada. E o mesmo ruído cobriu o céu e a terra
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próximos. durante onze dias e onze noites, tempo igual à gover-
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Chamem-no. Ele' tem que acabar comigo, como nação, em anos, de N gungunhane, nome que Mudun- .,
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:x~ Ahn!' - suspirou sorrindo. O corpo começou a 11~:;'
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~~::~; vergar.:. Ao dobrar para a' frente a coluna, a lança
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i? enterrou-se mais no peito ensanguentado. Voltou com rvt'-1~-,ii '"
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Fragmentos do fim (2) ~~·l
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À Segone Ndangalila
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nuvens, o Sol, e as árvores imponentes que se erguiam mexeram os olhos e a cabeça em sinal de consentimen- §
ao longe à sua mulher que soluçava e ao chitopo que ~ . .~
to unam me. ;;,
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o seguia, acenando a cabeça por tudo e por nada,
Molungo, tio do soberano, homem que acompanha.,; .~
ouviste, vassalo, eu dei a luz e o somso, eu dei a carne
ria'o rei no infortúnIO dos anosintennináveis de exílio, ~
e o vinho, eu dei a alegria a estes vennes, e não será
um cão, um homem que dei a honra de cozinhar para
mim que ousará levantar a voz, por isso vai, corre, crime apois
pediu bastasciente
palavra, foramde'asquevezes quenão
Mputa viracometera tal S-r~
a inkonsi-1 J~ ,~../...~
kazi acercar-se do homem como um animal em cio, mas ~~
quero-os já, e se encontrares alguém defecando tira-o boLas, pensava, palavra do rei não volta atrás, e não ~<~
da merda, e se estiver colado à mulher retira-o do
seria ele, Molungo, que revolveria a montanha tecida, '.~
enlace com a força que o império te dá, eu sou, e serei mas tinha, para seu agrado, a capacidade de atenuar a .~
por todo o sempre Ngungunhane, assim o quiseram os
pena proferida, e daí que tenha começado a elogiar· o :~
14v~ meus pais e avós e toda a prole de her6is nguni que
levantaram estas terras do letargo dos séculos ino-
rei, enchendo os testículos, o bojo e o traseiro desc~ ';~
j h"Õ~0\_\ munal do hosi, de glórias possíveis e imaginárias, 'deJ.
I. mináveis, vai súbdito, vai, chama-os, arranca-os de onde
factos reais e irreais que ele, rei de tantos feitos,. herói $
estiverem e trá-Ios à árvore grande, e tu, mulher, mãe
sem par na História, foi protagonista primeiro e único '!
de todas as mães, limpa as lágrimas que sulcam. o teu. que a História registará enquanto os homens estiverem 2
rosto, pois não virá a lua antes de sorrires perante, a sobre a terra!
trágica morte que esse imundo animal,. filho de cães, Dito isto numa voz exaltada, própria para a 'baju-
terá.
!~ lação, o soberano mais não fez que acenar a cabeça,
. mostrando os dentes comidos pelo rapé e pelo álcool,
J
I e deixar que Molungo espremesse o tumor. Este, com
-I
\ Os grandes do reino entreolhavam-se, receosos, pois a argúcia que a vida ensinara, disse ao rei, em jeito de
'Ir,
~l...,• não sabiam, como diz o vulgo, quem teria agarrado o síntese, que a morte não seria digna para um homem
búfalo pelos chifres, e à medida que o rei cavava a que ousou cobiçar o corpo da rai,nha. Era necessário
imbonga até chegar ao mel, os maiores do reino des- um castigo brutal e memorável na mente dos súbditos;
contraíam-se, esticavam os pés, relaxavam os membros, por que não cegá-Io como faziam os tsongas em tempos
e seguiam com, mais atenção as palavras que desciam que não importa recordar? Caso faças isso o teu po-
as escadas do. reino e esbatiam-se no vulgo, nesses der imperial sairá fortificado nestes tempos. tumultuo- '.)
homens sem nome e préstimo. Depois, mais ,confian-
50S em que ~homens_ .~a..co~._<1..~.
ç:ab~to _esfolado '<:
I tes, cientes de que as palavras fugiam do centro, ace- !lllsed!~m Q)~.l.I.r.~i~o"·V"lito.Cegai-o, imperador, perante ;
navam a cabeça ao ritmo das palavras coléricas que os seus e verás que 'essa massa infonne entrará em
saíam em desconchavo. até que, para gáudio de todos, delírio, pois outra· medida não os exulta tanto que as
exceptuando Molungo, o nome de Mputa se elevou . tradições que outrora esses ~ef!11es seguiam com toda
pelos ares da manhã. E quando () soberano sentenciou a religiosidade!
46 a pena de morte ao.cão e imundo tsonga os maiores Molungo sentou-se, ciente de que o mel é doce por 47
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UNGULANI BA KA KHOSA
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UALALAPI
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si mesmo e que Mputa seria homem de tirar as teias ao rei, e passou o resto da vida carregando os testículos
que o envolviam. , sem fim. Não fales assim. Deixa'o Mputa. Deixa-o! Ele
Bateste as lripas, disse o rei, satisfeito com tanto esqueceu que quem agita a lagoa levanta o lodo.
enc6mio, e os outros, os maiores do reino, voltaram a - Mas cacarejar não é pôr ovo, avô?
mexer os olhos e o corpo em sinal de consentimento - Não fales mais, calemo-nos. Se Mputa tem razão
unânime, e pediram ao rei que cegnsse Mputa perante sairá ileso, pois o macaco não se deixa vencer pela
os seus. árvore.
O rei ordenou que informassem
o chitopo para que E foi neste ambiente de comentários, próprios do
fizesse troar a chipalapalae chamasse os tsongas dos vulgo, que Ngungunhanc apareceu perante a multidão,
arredores para que representassem todo º-ROVO Ao com o seu saiote de peles e as cautlas decorativas,
império que ia do Limpopo ao Zambeze. Dizendo isto acompanhado pelos maiores do reino e por Mputa,
levantou-se e pôs-se a caminhar em direcção à casa, ladeado por guardas reais, no meio do ram-tam que
pensando e repensando no discurso que exuItaria os ressoava das peles ressequidas como sons que vinham
mais cépticosj enquanto os maiores do reino recolhiam de entranhas continuadas em séculos, troando pela tarde
às suas casas, comentando o que já deveriam ter sem nuvens, bela, impoluta. E quando o silêncio se
comentado, sem ligarem à tarde que entrava e muito refez, o soberano, calmúmente, com o orgulho que os
menos ao som que se elevava pelos ares, sobressaltan- ,c~ herdaram, dirigiu-se ü multidão. dizendo que
~t~
... _-----...._-
do as espécies adormecidas há séculos, removendo Mpura é uma palhora sem capim. Espantou o coelho
águas paradas desde a criação do mundo e dos homens e não tem coragem de correr atrás dele. Estas foram
em cujos túmulos esquecidos plantas desconhecidas as palavras primeiras que puseram em delírio o povo
cresciam e multiplicavam-se, formando bosques impe-
netráveis onde os espíritos mais recentes repousavam ts~nga que
pOlsara esquecera
naquelas terrasquecom
estava perante dos
o sangue o in,:asor que
Inocentes I~~-_-.J
[;1)(\(11,-r")o/
~
,
i, multidão e falou num tom tão sereno que o silêncio Não o cegarei como queriam que o fizesse,UALALAPI
pois os . : ~
',,:,~
I imperou como nas horas dormentes da sesta. feiticeiros agem na bruma da noite. Matá-lo-ei hoje e:;~
: 'Ç~
;
- Pod~is matar-me, rei, podeis esquanejar-me. Vós agora! E virou~se para os guardas que empurraram ~
tendes o poder imperial que pesa no vosso corpo desde . Mputa para o meio da multidão. . ~§
a nascença. Mas eu, vassalo como todos os que vedes Domia com os seus treze anos, viu o pai a ser 'J
à vossa frente, nada fiz, nada disse a inkonsikazi. É esta
a minha verdade. Sei que duvidais dela, pois a pala- elementos da população, pois os restantes, cientes "da;:~'i,
vra da inkonsikazi é sagrada aos vossos ouvidos e a de espancado e retalhado pelos guardas reais e por alguns: ,;tl~
todos os súbditos. Podeis matar-me, rei, pois há mui- inocência de Mputa,. retiraram-,se da zona, tentando ~":\~
to que foi dito que morrerei desta forma inocente. Mas
í
antes de me matarem, peço que me submeta ao mon-
dzo para que a minha inocência fique provada peran-
te o seu povo. E mais não disse, pois os olhos.
esquecer o que JamaIS esquecenam. ~~~,:~
Após anumar as suas COisa: Domia saiu da cuba-
ta, endireitou a saia vergastada pelo vento que anun-.L!
':j
(í'
com um brilho indiscritível, carregavam toda a ver-
l';,,~,. ~:
f;: . ciava a chuva que desabaria na altura da sua morte, e '.:~
f dade que as palavras não conseguiam exprimir. pôs-se a caminhar em direcção à casa real, duvidando';>~
',~ E aqueles que tiveram a coragem' de os ver viverem do seu acto, depois de quatro anos de espera.' Sabia que j~
I
::,.,' . ,_.'-J amargurados
11 '. O rei, antepelas ins6niaspalavras
as límpidas por se de
sentirem
Mputa,çúmplices
teve que Ngungunhane, encostado à cobertura da casa que ::~
frl " v'" dum crime. tocava o chão, alheio ao vento do infortúnio, fumava :.!:
I ,li . virar-se para o conselheiro, porque a d~vida, que nunca
, ,I K I mbhangui, nome que leva a «cannabis espontânea», ";
I~ iI corpo de forma tão intensa que as mãos tremeram. muito f~mada pelos tsongas, pensando na desventura .5
li
i; 'I O povo,
devia silencioso,
atingir não sabia
o soberano já onde penetrou-lhe
em público, pender a cabe-
no que tocara a sua casa, pois as suas trintas mulheres, es- 1:
I •• ça. O rei outra coisa não fez que aceitar que subme- palhadas pela capital, há mais dt::quatro semanas que f:
tessem Mputa ao mondzo, nome que leva o ordálio vertiam sangue pelas coxas, facto inédito na sua vida de
venenoso preparado nestas terras do império. casado e polígamo, quando viu Domia transpor o cer-
E foi num silêncio sepulcral que Mupta bebeu o cado da sua casa,
mondzo sem pestanejar, sem mexer um músculo do - O que vens fazer a esta hora?
corpo. E assim permaneceu durante minutos infindáveis - Limpar a vossa casa, hosi?
perante a incredulidade do povo e dos maiores do reino 9 rei olhou-a, viu os contornos das ancas, o tron- ..~
que o olhavam, preto e reluzente nasuu tanga de pele, co nu e os seios exsurgindo por entre a tira de pano
com o sol a bater-lhe, ao fenecer do dia, no tronco, nas que tentava cobri-Ias.
veias salientes e no cabelo riçado. - Como é que te chamas?
É feiticeiro, disse o rei com uma força jamais - Domia, senhor.
ouvida. E os feiticeiros não têm lugar no meu reino. 51
50 - Domia ... sabes quem foi Domia?
f\_ I ~,.,... ...•__ t,,:'
--------- o _ •• _~ ~ __
- Sei, hosi. Foi a mãe de Mawewe, irmão e rival vra saía da boca de uma mulher. Tremeu ao se aper-
. de seu pai Muiila. . ceber que a moça era filha de Mputa. E tremeu ao ver
- Não chames irmão a esse cão! E por que ra- o somso de escárnio que despontava dos lábios da
zão o teu pai deu-te esse nome? moça.
Domia baixou os olhos e nada disse. O rei mandou-
Minutos depois Domia era levada pelos guardas
-a entrar na casa. Como a porta fosse baixa, ela teve reais, com ordens terminantes de a fazer desaparecer
que agachar-se e entrar gatinhando. O,imperador seguiu- da face da terra.
-a com os olhos e depois entrou. Quando a chuva desabou Domia deu o último
Vendo-a de pé e tteme nte, Ngungunhane arrancou suspiro, deixando a carne a ser desfeita pela chuva que
a tira de pano que cobria os seios e puxou-a para si, não parou de cair durante semanas e semanas até que
com fúria dum animal que há muito não via o sexo sobre a terra não restasse um osso. E o rei passou o
oposto. Domia retirou a faca da saia e esperou pelo resto da vida contemplando, a sós, o sulco que não mais
momento oportuno. Foi o seu erro. se apagaria do corpo, fizesse o que fize!>se.
Ela pensou, e bem, que o rei encostá-Ia-ia à parede E poucos foram os que souberam que Ngungunhane ,<'
e faria tudo de pé, pois nunca lhe ocorrera pela cabe- bIlha uma marca indelével na coxa direita do seu corpo.
ça que o soberano levasse uma serva ao leito onde as
rainhas se deitavam. Foi o que fez, depois de ter vis-
to, durante o percurso, a ponta reluzente da faca. _
- Queres matar-me? - perguntou o rei, ao que
ela nada respondeu, pois tentou, de imediato, desferir
a faca no peito do imperador. Este empurrou a mão da
moça e sentiu a faca a penetrar na sua coxa direita. Não
ligou importância. Retirou a faca da mão da moça e
possuiu-a brutalmente, ela em baixo e ele em cima, ela
esperneando e tentando batê-Ia, e ele ofegando e ten-
tando esmagá-Ia com o seu peso de homem e de rei.
Ultrajada e ferida no íntimo, e com os planos frus-
trados, Domia outra coisa não fez que cuspir na cara
do rei e chamá-ia cão, coisa que ninguém, desde que
o rei nascera, tivera coragem de dizê-Ia de frente, por-
que de trás sabia que tudo falavam, mas de frente,
nunca! E tremeu.. Tremeu ao ver os olhos reluzentes
de Domia que incandescendiam na casa sem janelas,
como as de um gato enfurecido. Treme'] ao sentir-se
. li? aviltado como soberano. Tremeu ao sentir que a pala- 53
I
I
I
!
Fragmentos do fim (3)
I
iI :.1
ir
.'
«Estão cwnpridas as ordens de V. Exa. A coluna
j
.,
:: .)
;~. do meu comando ejectuou a marcha sobre Manjacase. ~;
i
j Chegado a langua) provoquei o inimigo em combate,
,,i bombardeando a povoação. Gente do Ngungunhal'le
r
apareceu no bosque que circunda e oculta o Kraal, em
[
t :
pequenos grupos, respondendo apenas com alguns ti-
ros de espingarda ao fogo de artilharia da coluna, que
os dispersou rapidamente .
jl~
. r
A Anfbal Aleluia
I
Tirando o dia, a hora, e pequenos pormenores, todos
foram unânimes ao afinnar que Damb9ia, irmã mais
nova de Muzila, morreu de urna menstruação de nun-
ca acabar ao ficar três meses com as coxas toldadas de
sangue viscoso e cheiroso que safa em jorros contínuos,
impedindo-a de se movimentar para além do átrio da"
sua casa que ficava a uns metros da residência do
imperador destas terras de Gaza que, a seu mando,
colocou guardas reais em redor da casa de Damboia,
!
impedindo olhares intrusos e queimando plantas
aromáticas que não tiravam o odor nauseabundo, do
sangue que cobriu a aldeia durante aqueles meses
fatídicos em que o nkuaia (ritual anual e sagrado em
' .. :
"
. ..... . ;:.~,~-.
..'•...
apesar de se estar num ano de tumultos e guerras, esconjurará os males de que padece. Salvem-na desta
porque a, mulher da corte, fora acometida por uma desgraça que não tocou a ele mas a todos, e se ela se
doença estranha, nunca vista nestas terras desde o tempo vai, vai-se o império, homens!
em que outra mulher, de nome Misiui, perdera leite E por isto e outras coisas mais que vos aprouver
pelos seios durante anos sem fim, enchendo potes e dizer, para o bem do reino, o nkuaia não se realiza. Na
barris e levando gente de aldeias distantes e dos pân- capital não ressoarão esses cânticos de louvor que nos
tanos impenetráveis a visitarem-na com a curiosidade rejuvenescem. Os guerreiros não baterão os escudos do
expectante de verem a mulher sáfara, de seios da bayete, levantando a poeira pré~hist6rica dos nossos
dimensão de grãos de milho, que com todos conver- antepassados esquecidos. O Sol e as nuvens não toma-
sava e fornecia leite às crianças e velhos doentes e rão a cor dos dias da vit6ria, e o vento não tratá a voz
moribundos. inapagável dos heróis nguni. Por isso, as leis que
Mas isso aconteceu em tempos recuados e não tocou vigoraram até aqui irão vigorar, e eu serei homem de
uma mulher da corte como Damboia. Por isso, dizia mais leis emanar quando para isso for necessário,
Ngungunhane, mais importante era ela que os assun- porque o império é meu, e o poder pertence-me: Ide,
tos do império e enquanto eu estiver vivo as assem- vassalos, e apagaí as tachas que por este império esti-
bIeias podem faltar, eu represento a todos, homens,
mulheres, velhos e crianças deste império sem fim, dizia ~ossa ~~E~tu,~~gui~~Íl~1. vai por_~sas terras ~-. ~~~
isto com toda a pujança na voz, como se os milhares lhar a morte e a dor. Eu quero que todos, mas todos,' (,: i:\
de vassalos coubessem no corpo bojudo que a todos
~º!TIriad~am com a dor que
veram acesas. gJ~ara_qp'~.os n9s atacou.
maéhope Ide,
não se gue:r-
riam da[ /.r.':t=,
, '~
ostentava e que medrava de dia para dia com as res-
ponsabilidades infinitas qu,e o império lhe dava, resol~
reiros, que o império vos salvaguarda;' agora e depois
da morte. '
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vendo-os com a voz e os gestos, pois papel não havia ..\~
j:'}~~
e as ordens eram escritas pela voz tonitroante que
:: \j':lV (\'
.J..). ressoava nas manhãs e tardes chuvosas e secas. II ~~Ji
,(;'DI·
Mandei arautos por este império avisar, dizia, que :;~; '1;
.
Domboia padece de uma doença mortal, contraída ao Quanto ao dia em que Damboia, postada ao umbral :t~
~ ....•... .
serviço do império que as suas mãos ajudaram a er- da sua casa, sentiu o sangue viscoso a escorrer pelas ..'li
guer, e todos, chefes e súbditos, amos e vassalos, devem coxas, prenunciando o luar interminável da sua morte, . ".
.\ ~
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~
pedir aos antepassados remotos e recentes para que a as opiniões divergem. .•
" ..
ti·,,:
salvem desse mal incurável como fizeram com essa Malule, que guardara a casa sinistrada de olhares ~
serva de nome Mfussi que outra coisa não via em seu intrusos, dissera-me que nesse dia as copas das árvores ,t~~
~~~.
redor que serpentes vermelhas e pretas a abraçarem-na, foram arrasadas pelo vento maldito que vinha carrega- ~
'.~
dia e noite, andasse por onde andasse. E não será à do de conchas das profundezas abissaís do mar distante.
Damboia, mulher da corte e não vassala como essa A tarde caía. As casas choravam. E os homens, tremen-
:{
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Mfussi e nutras mais .. que a voz dos espíritos não do, recolheram tudo o que de essencial tinham fora das 63 ',~
, j", -'l/C L lU. ,-
U?Jl~'\.:'':,1 '-~-/') r L .. ' J)
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UNGULANI BA KA KHOSA --------------------- ------_. (1).. J UALALAPI
cubatas e entraram nas casas que gemiam com o vento cadáveres que desapareceram misteriosamente com a
,~
~:~;'
,. " e esperaram pela noite, rogando aos espíritos a cessa- cessação da chuva; na sétima noite, o que levou os
ção imediata daquele vento maldito. A noite chegou.
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UNGULANl BA KA KHOSA
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UALALAPI
- Mas qual é o homem que não tem ranho no do por tudo e por nada, até que se cruzou com eiliane
nariz, Malule? que vinha com uma bilha na mão direita do seu cor-
- Se Dam boia teve erros não foram de, grande po jovem ecansado de tantos trabalhos feitos e por'
monta. Ela meteu-se com homens como qualquer mu- fazer até adiantada idade em que as mulheres se arras-
lher. E nisso não nos devemos meter. O tecto da casa
tam às fogueiras onde contam hist6rias de nunca aca-
conhece o dono.
bar, como a que Ciliane me contou sobre Damboia,
- Mas o caracol deixa baba por onde passa. megera e crapulosa mulher da corte de Ngungunhane.
- É tudo mentira o que ouviste por aí. Da boca - Para onde vais, CiHane? - perguntou Damboia.
dessa gente, só saem chifres de caracol. Inventam his- - Ao rio.' ", ':
tórias, fazem correr palavras, dormem com elas, defe- - Vamos juntas - disse, acompanhando-a, ela à
cam-nas em todo o lado. É tudo mentira. Eu vivi na
direita e Ciliane à esquerda, pelos carreiros intenni-
corte... i náveis, ladeados de plantas seculares que não iam além
r- - Mesmo que caminhes numa baixa, a corcunda
{ de um metro de altura. eiliane mudou a bilha da mão'
( há-de ver-se, MaluIe. direita para a mão esquerda e pôs-se a olhar continua-
Os olhos coriscaram na noite. Colocou duas achas
mente os pés, sem saber o que dizer à Damboia que
no fogo que morria e recusou-se a abrir a boca. Não sorria, olhando. as aves cortando· o céu.
'.'. ,~ insisti.
- Sábias que a mulher de Mosheshe meteu-se pe-
,( 'C"-'
•.•• \ ~/J los pântanos, seguida pelos filhos menores? - per-
!I. ",
guntou eiliane, olhando para os tornozelos de Dam-
3"
,-..
III boia, enrodilhados de missangas que reverberavam ao . ~
sol.
c~
: "IJ' I eiliane, que fora serva de Damboia, contouÇ, com - Não, não sabia. Por que fez isso? - retrucou,
'(:~
<. a sua vC}zroufenha, marcada pela velhice, uma versão desinteressada.
diferente, afirmando a panida que Dam boia tivera. na- - Não suportava ver-te.
quele dia fatídico, os momentos mais felizes da sua - É corajosa ... E o que se tem dito por aí? '~~
vida.
- As palavras de sempre: és uma megera.
Pelà manhã conversou com o curandeiro que afir- Mas porquê, Ciliane? .. Que mal lhes fiz?
I mou, entre outras coisas, que a realeza não é frequente, - Mataste homens, Damboia. Mataste Sidulo. Mo-
,J'J t
'~/'~(
"-'
frequente é a vassalagem, advertência que ela não quis
ligar, deslumbrada que estava com a manhã de sol a
escorrer pelas árvores gigantes e anãs, enquanto os
sheshe, Sigugo e outros.
- E quem não matou, Ciliane? -
sobre Ciliane, Iancinantes, aquilinos.
'Os olhos caíram
a dizer ,o que, se fala por aí. E são eles que afirmam com as crianças que nunca tivera. Cumprimentava a
todos que com ela se cruzavam. Ao fenecer do dia
que mataste inocentemente homens honestos.
- Não me faças rir. postou-se no ádito da sua casa e pôs~se a. contemplar
o Sol a cair, vermelho. Era quinta~feira. Mosheshe fazia
- É o que dizem ....
duas semanas de defunto. Recordo-me que ela teria dito
_ Alguma vez recusaste ordens do teu amo?
- Nunca. que aquele fora o melhor dia da sua vida. Estava ra~
_ Eles recusaram as minhas ordens. diante. Quando o Sol caiu ela sentiu o sangue a escor-
rer e limitou-se a dizer, sem grandes preocupações, que
_ Mas que ordens, Damboia? .. Não achas huma-
os dias estavam trocados. Entrou na cubata e não mais
no um homem recusar ir à cama com uma mulher?
saiu dela com vida. E só foi pela noite adentro, se bem
,_. Quem eram eles para recusar as minhas or~
dens? ... Gente da rua, sem nome, gente que nunca so- me recordo, que ela chamou por mim. Não havia es-
trelas no céu. Não havia luar. O vento era calmo.
nhou transpor a porta da minha casa. Se fossem homens
Quando entrei, gatinhando, senti as mãos a escorrerem
de palavra ter-me-iam recusado na altura que lhes
apontei o dedo. por uma massa lodosa. Pensei que fosse água, mas não
- Temiam-te.'" era. O chão estava empapado de sangue, e Damboia"es-
tava de pé, serena como sempre. Indicou-me o chão
_ E por' que deixaram de me temer?
com os olhos e com as mãos. Passei a noite inteira
_ Só tu é que deves saber... Antes de morrer,
Mosheshe teria dito, segundo me contaram, que aque- emundando o chão. Ao raiar do dia notei que o san-
les que o impontaram do mUQdo dos vivos teriam. uma gue tocava os artelhos. Damboia tinha a capulana em-
morte terrível. papada de sangue. As p'aredes estavam tingidas de ver-
_ Referia-se a mim? melho. O cheiro que pairava era o mesmo que as
mulheres tinham em certos dias do mês. E eu estava
_ Tu é que o mataste.
cansada. Damboia nada dizia. Quem a visse naquela
_ Mandei-o matar, é diferente. Mas não foi o pri-
meiro. Sidulo afirmou na minha presença que larvas posição, erecta, distante. diria que ela pensava nos
antepassados que nunca conhecera. De pé, com o corpo
iriam percorrer o meu corpo enquanto viva.
_ Os dias nascem com cores diferentes, Damboia. coberto de sangue eu esperava que ela dissesse qual-
_ É possível, mas eu vim de longe, Ciliane. Os quer coisa. Vai chamar Ngungunhane, disse, responden-
do ao meu pensamento.
piores dias virão com a velhice que detesto.
, Mantiveram-se em silêncio contemplando as águas Quando saí da cubata notei que o Sol tinha as co-
res de sempre. As árvores estavam no mesmo lugar e
do rio que comam pela planície, meneando as ancas
as aves trauteavam as cantigas já conhecidas desde o
reluzentes. Damboia despiu-se e atirou~se às águas. Es-
tava bonita, disse Ciliane, aproximando uma acha de princípio de todos os tempos. Os velhos andavam à
deriva, sorvendo a manhã. As mulheres atiçavam o fogo
fo'go., Era uma beleza indescritível, serena. Creio que
a morte já tinha entrado naquele corpo esbelto. Ao e as crianças corriam, alegres. O mundo estava no 69
68 entrar da tarde ela correu pela aldeia real, brincando mesmo lugar, facto que me espantou.
UNGULANI BA KA KHOSA
C0- ç., ••.•~ h,i" I ,:.' ."':,-.J ':.0 l
A conversa que ela teve com Ngungunhane levou de lucidez naqueles três meses. E para muitos foi a pior
horas e ninguém soube o que falaram. Mais tarde soube coisa que o curandeiro fez, pois ao entrar da noite os
que o nkuaia não se realizaria. Esta decisão, não foi uivos recomeçavam com urna intensidade brutal e: o
acatada pelos velhos, pois o nkuaia não se realizava no sangue saía em catadupa.
ano em que o rei morria. Dam boía não era soberana Ao segundo mês, creio, choveu como nunca durante
e não estava morta. Mas depressa os velhos acomoda- duas semanas. O sangue dela escorreu ao rio, tingiu-o ,,',:::
ram-se sobre o facto e os dias correram. Recordo-me
que quando trouxe mais tinhloco (I) para limpar o chão
e tratar da Damboia a casa estava cercada pelos guar-
de vermelho e matou os peixes que os nguni não'
comiam. Os crocodilos passaram a viver nas margens.
Era normal vê-Ias à soleira das nossas portas ao raiar
';,,\J
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:1
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das e o átrio estava in.undado de sangue que a terra do dia. A princípio tentamos expulsá-Ios, mas eles ' .1
recusava digerir. As bilhas partiram-se aos bocados vinham em maior número, aos milhares. Alguns ve-) ~ ..,.;
quando tentamos enchê-Ias de sangue: Optamos por Jhos suicidaram-se. Outros,_yelhos.~. noyqs,_.illQn:~ram< '-("~ "
..'.c
..
-. tapar o sangue com a areia. E o sangue, para o espan- .E~sed~, pois a água. ~stava contamim~d.ª,a.oJongo cia<';.
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:r..~
to de todos, exsurgia sempre, atingindo a altura dos tor- extensão""dó·rio. O' lago das proxim idades estava con-
'~~
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....
1/,;1;)' Ngungunhane,
sonâmbulo ~~9._~?~~gui
perdido.magro e sem voz, circulava
toda como um
a hora.
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dias ao ritmo de ~nâmbulos senis. As nuvens da chuVa'
~ beleza e oàvigor
, 'I passavam de séculos. O céu e a terra tom.avam
3J distância e o vento galerno efundia cânti- ~
"
cos tristes dos insignes guerreiros, mOJztos em batalhas -i
'I,
1(' de machos, com lanças a cruzarem-se no ar e os es- ~
:~
I~ cudos a chocarenf~se estrondosamente no capim devas-'
r~ lado pelos homens e pelos ciinticos da vit6ria que
,,f~
r-
i retumbavam pela planície pejada de cadáveres e de
serpentesque silvavam, e@quecid~'ls pela visão in~
•I I 0_ , :
(o, -I . J}jlLqlJ.~ se alcandorava na planície.
;~/\.I.(:.. t( j (,,.:-.~.I.~",,,''J.f c. f.~~
Agor~;:-esbuJhadosdo vigor cÍÕsseus antepassados.
Ii'. _ ,'.I .J--( ..' (,-., n
os guerreiros encalleciam à sombra das árvores pardas.
vendo as lanças a criarem escarpas da solidão e os
escudos a servirem de ninhos aos ratos.
II
Maguiguane era então. e desde a entronização de
Ngllngunlwne, o chefe militar do impcradordns rcn'as 79
UNGULANI BA KA KHOSA UALALAPI
de Gaza. Nos primeiros dias do cerco era normal vê- com árvores espalhadas e fogueiras trementes. Maca-
,: -10 conversar com os guerreiros pelos diversos acam~ nhangana quebrava o silêncio e dizia as palavras de
pamentos. Depois, atacado pelo torpor das manhãs e todos os dias no mesmo tom grave e longínquo dos dias
tardes, fechava-se na cubata e passava as horas à todos.
escuta de sinais de mudança. À noite, e só à noite, atre- - Não vão aguentar.
via-se a sair da cubata. Envergava as vestes de guer- - É isso, não vão ·aguentar - ripostava Magui-
ra, ataviava a cabeça com penachos de plumas, pega- guane e seguia em direcção à sua cubata. Minutos
va na lança e no escudo, mirava-se de cima a baixo, depois Macanhangana fazia o mesmo.
saía da cubata, e caminhava em direcção a Macanhan-
gana, seu lugar-tene~te, que o esperava no mesmo sítio
e à mesma hora. TU
- Incrível!
_ Pois, no mesmo sítio e à mesma hora desde o Noite. As hienas uivam. As serpentes silvam. Os
primeiro dia do cerco à fortificação de Chirrime, onde homens sonham. As corujas piam. Os mosquitos zunem,
'.~ Binguane, rei chope. e o filho Xipenanyane se encon- entram nas cub;uas, atiram-se à carne, sugam o sangue;
j}J travam sitiados, com as mulheres, velhas e crianças. uma morre, outra atira-se à parede de paus, e outras
E os guerreiros, evidentemente. Os dois não se cum- esperam: sentem o sangue quente no ar, zunem, mor-
primentavam. Maguiguane olhava para o lugar-tenente dem, vivem, morrem.
e adiantava-se. Seguiam em silêncio pelo acampamen- Há um silêncio dissimulado, falso. As chamas per-
to principal, ouviam os risos gastos e as histórias com dem a força no terreiro deserto. O vento levanta fo-
variantes conhecidas, pisavam os mesmos sítios, con- lhas dispersas. Ouve-se o ribombar de trovões à dis-
templavam as mesmas cubatas, os arbustos de sempre, tância, muito ao longe. Chove na capital do império.
o céu da mesma cor, as estrelas sem brilho e a Lua Macanhangana bebe, bebe interminavelmente o sope.
parda e cortada. Saíam do acampamento principal pelo Teme a noite. Vê as paredes da cubata a tremerem.
mesmo carreira, desciam a pequena encosta, contorna- Sente a casa a ondular. Agarra-se à enxerga. Os olhos
vam os escolhos de sempre, acercavam-se do poço, brilham. Duas lágrimas saltam. Chora. As corujas piam.
olhavam com a mesma intensidade os guerreiros que O vento levanta timidamente a palha das cubatas .
.conversavam junto à fogueira e seguiam em direcção Maguiguane pensa no rei. O rei pensa na sua concu-
à,.fortificação que levava o nome genérico de nkoco- bina, Vuiazi, mãe de Golide, que desapareceu miste-
~" Iene, e percorriam-na de ponta a ponta. À medida que riosamente com as ancas, o corpo, o sorriso, o rosto
~~> _ caminhavam contornavam pelos mesmos sítios as fe- macio, negro, brilhante. Vuiazi pensa em KamaI
r-: ' "I zes espalhadas e os vómitos das bebedeiras e os lagos Samade, comerciante árabe que se internara nos pân-
~'. de mijo que criavam peixes sem barbatanas e olhos. tanos de inhafura por o acusarem de dormir com
f Percorrido o cercado voltavam no carreira de sempre Vuiazi. Maguiguane adormece. Sonha a mesma coisa.
~: 80 e :subiam a pequena ladeira que os levava ao terreiro Vê . serpentes I a devorarem cobardemente os homens, 81
UALALAPI
UNGULANI BA KA KHOSA
milhares de homens. As mulheres ficam, chorosas, per~ mesmas sombras e contam as mesmas histórias. Os que
didas na planície. Os guerreiros ressonam. Os guardas ouvem esforçam-se por esquecer o enredo inicial. Os
que contam fingem esquecer as sequências posteriores.
perscrutam a noite. Sentem o aproximar das hienas.
Vêem o brilho dos olhos. O olhar faminto. O passo trô~ , São trinta mil guerreiros. '
pego. A Lua perde-se numa nuvem passageira. Maca-
nhangana agarra-se à enxerga, quer vomitar, não con- )'}Q..
t .-r:J ..•........
--
segue; olha para o tecto, vê as estrelas sem brilho por
entre as frestas do capim. Maguiguane ressona. O rei
GJ VJ·).<:-í
.-:>-
I·:J~?- vi /
sonha alto, chama pela Vuiazi, agarra-se à enxerga Nada se ouve. As horas passam. Os guerreiros
esperam. Esperam pelo sinal, pelo choro de todos os
;
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I
1'''-::;' ÍM0'< 0ê J:, vlhJ" d:.. <,0<). . .;1•• '
/~ _ UALALAPI
UNGULANI BA KA KHOSA I
/
I barrigas enormes caçam moscas verdes que esvoaçam
( _ I.:;to não é suerra, irmão. sobre os cadáveres. Mulheres com crianças ao colo
-. Tens J:3,zão. circulam como sonâmbulos sem destino pelo cercado.
Xipenanyane aproxima-se da ponta norte do cercado.
Vê guerreiros lutando pela posse de bosta fresca da
VI última cabeça de gado abatida para os chefes. Três
~ !
guerreiros lutam pela posse dos líquidos intestinais. Um
A lança corta o ar. Perfura a parede de adobe. Tre-
pouco distante da cena uma mulher dá a sua urina a
me. Um som eleva~se e perde-se no ar. Uma racha sulca uma criança. Os arbustos que outrora povoavam o ,4,· ~
')<'::: ...
a parede, fina, tremente, sinuosa. Uma segunda lança cercado desapareceram. As casas envelheceram. Os ve~ .f '-..
perfura a parede· uns centímetros acima., lhos incapazes de se susterem com as bengalas, cir- ~
A racha alarga-se, cobre a parede de cima a baixo culavam pela fortificação de gatas. Os miúdos, conven-
e pequenas lascas caem, soltas, perdidas. Binguane olha cidos da existência de ratos, passavam as tardes fazen-
para a racha e não lhe ocorre nenhuma imagem. Xi- do ratoeiras que destrutam na manhã seguinte. ~ j~l1in-
penanyane vê a fractura e nada lhe ocorre. Uma ter- g.uém chora va .._TºQ.9 ..sp..riªJ1l,..JJ1JL risQ_que__p..aT
..8YJUl.QS
ceira lança é atirada~ O som mantém-se no ar por se~ lábios.
gundos e lascas maiores saltam, chorosas. Xipenanyane leva as mãos ao rosto e entra numa
_ Se Maparato não vier até amanhã atacamos - cubata. Do outro lado da fortificação elevam-se garga-
diz Binguane, lhadas sonoras. "
_ Já devíamos ter feito isso há muito tempo ..
_ Eles são mais de vinte mil. E nós não passamos
de cinco mil, Xipenanyane. É por isso que aguardamos VII
Maparato.
_ E quantos de nós já morreram? Os guerreiros saltam na planície. Maguiguane cir-
- Alguns. cula à luz do dia. As lanças voltam a ter o brilho da
_ Alguns? ... Já estamos mortos, todos nós, pai. É vida. Os escudos desembaraçam-se dos ratOS. Os dias
por isso que me pergunto sempre: que guerra é esta? voltam a ser dias. Os risos renovam-se. Batuques troam.
_ Pergunta a Maguiguane. O vento é outro. As árvores são outras. A terra é outra.
_ Nunca falarei com esse vassalo nguni.
O sangue é outro. A guerra de todos os séculos aproxi-
_ Nem ele contigo, Xipenanyane. Mas deixemos ma-se. O rei, a milhas de distância, acorda bem dis-
isso. É preciso reunir os guerreiros.
posto e.pergunta pela guerra. Maguiguane está satisfei-
Separam-se. Ao longo de toda a fortificação vêem- to. Macanhangana sente que as mãos não tremem. Os
-se guerreiros· a comerem com sofreguidão os escudos guerreiros treinam. As lanças sibilam. Os escudos cho-
de pele que os protegeram em intermináveis batalhas. cam-se. 85
Cadáveres sem sepultura jazem à superfície da terra _ Atacamos amanhã, Macanhangana.
revolvida na procura de raízes inexistentes. Crianças de
,. :
-.,
.:.;"
UNGULANT BA KA KHOSA
""- UALALAPI, ' / ;--::;~i
...··.·1}
sos feitos guerreiros: uma. razão muito simples: são animais. É isto que .: <: ~
Binguane sente que as palavras não lhe chegam à esquecemos, guerreiros. Um animal habituado à selva . :.:;:~~
boca. Os guerreiros esperam. Xipenanyane avança. Já nunca conviverá com homens e muito menos seguirá~:};
se sente rei. Os guerreiros ouvem-no. Esquecem-se de as regras mais elementares da existência humana. E esta ~>~t
Binguane, o velho rei. Seguem (lS palavras de Xipena- ~ade não a inventei, masJiiss.~Q.Jlosso_rei..NgllQ: ~.%~
nyane. Sentem forças nas pernas. Seguram as lanças
com as mãos. Mantêm-se firmes. "
-,
g~nhane__~~ ._!?1~_~
convidou-os ~~itos comunidade
para esta__grande anos. Nessa dealtura ele~4.1
homens .,~
\
L. - Vamos Jutar e morrer se for necessário, mas o ,
i"
qu~ somos e que.construímos. Recus:rram a nossa mão d~}j
...••..
\:~ \) nosso desprezo pelo~ nguni manrer-se-á por séculos, ~. candosa e prefenram andar a monte, Incomodando-nos _:.:)~
\\J'\' ~
0' " ' porque esta terra é e será nossa. E-se "luilim6s-hõje é à noite com os seus uivos e estragando as nossas ma-· ..>rJ
I ~>,.' para que os nossos filhos não vejam as orelhas dila- chambas. Houve alturas que chegamos a construir . 'i:~~l
,t l,c.
, ;.
\ ceradas pelos nguní. O nosso não é para que as nos- currais para esses animais rnachope, mas eles preferi- '::::~fH
sas mulheres não sejam escravas e os nossos filhos não ram a selva, aos dias sem rumo. ;:n
engrossem as fileiras desse exército bárbaro. A razão A nossa paciência tem limites, guerreiros. Hoje é ..:.:
pende para o nosso lado, guerreiros. o último dia que damos a Binguane para se entregar.
Iremos para a lura com a certeza da vitória, apesar Amanhã, caso não se entregue com os seus hOInens~
~ deste cerco criminoso que moveram contra n6s, um passaremos sobre os cadáveres desses animais e con- "
,~
cerco que contraria os princípios mais elementares de vidaremos o nosso rei~ esse imonal ~er6i nguni, para
' I uma guerra de homens, de uma guerra que os nossos que contemple a planície pejada de cadáveres que
~~~ M- antepassados mais remotos cultivaram com a certeza de seIVir~o,de repasto às aves por séculos sem conta.
~~~
que os homens olham-se de frente e as lanças chocam- Não pensem que haverá guerra. Não~ não haverá
-.se sob ÕOITíãr·-ate-ntocios··guerr~"i;:os:'Lançaramesta guerra. Nós não lutamos com animais. Nós matamos os
~-<Yh guerra de serpentes pensa-rido n~lifóssa morte imedia- animais. Se vos mando treinar é para afugentar a pre-
(I';,....
ta. Mas estamos vivos e a nossa luta será por igual, guiça que cultivaram nestes dias de repouso. Por isso,
apesar do elevado número de guerreiros que estão fora preparem-se, guerreiros, não para a guerra, mas para
deste cercado. matarem esses animais selvagens que se chamam ma-
Preparem-se para a vitória, guerreiros, preparem-se chope.
para matar esses invasores nguni. A razão está do nosso
lado e os espíritos protegem-nos.
- Há pouco estava eu a dizer a Macanhangana que VIII
o leão ruge na selva. Com isso quis dizer que é che-
gada a altura, guerreiros, de entrannos em acção. Du- - Chamas. Sangue. Gritos. Choros. Morte. Fuga ...
86 rante dias não tivemos outro objectivo que dar opor- - Cadáveres ...· 87
UALALAPI
_~UNGULANI
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BA KA KHOSA
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.-i:; ) lher à cubata sem contemplar a cabeça do seu ini-
~~;- ',' _ A solidão acima de tudo. O silêncio depois da ~ migo.
;:ir ,matança; O ll1undo sem sentido que fica. O yazio que .Os guerreiros dispersaram-se em silêncio. Maca-
ili:. paira depois do crime. , nhangana voltou a beber durante as noites. Maguiguane
I
fFf: - A morte não está com os mortoS. teve que chamar um curandeiro para tirar-lhe do cor-
.~
~=::~. _ A morte ficou nos intrépidos guerreiros de
,." Maguiguane. I1
po o cheiro dos mortos. E consta que os homens que
voltaram a passar pela planície de Chirrime tiveram que
j
j passar sobre cadáveres apodrecidos e por apodrecer
f, t/ .,,' '.I~r,o-? durante uma manhã, uma tarde e uma noite. Sobre
IX \,." ...
r.' 7- ••.•••
~ \ •...
.".
11'7' C\"~r>.o • os cadáveres jaziam aves mortas pelo excessO do
ri,$} Ci
repasto.
. ras sentiram o cheiro de sangue quente misturado ao
j
A matança
. capim. foi de tal
As populações ordememigraram
da zona que gerações
para vindou-
sempre,
incapazes de suportarem o cheiro dos mortos que se
I ",;1
";
x
_ Ngungunhane sentiu-se regozijado .
. •'_, :Não, creio que não. O único gesto que fez foi
agradecer aos guerreiros pela batalha heróica e reco-
I
~
89
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.~ :~::=j
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Fragmentos do fim (5)
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Felicito em nome do governo português V. Exa. pelo
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ras apartou com um volumoso manuscrito entre as mãos
e que mais versos fez, cantando esta ilha enquanto sa-
ciava a sede e a fome que o atonnentava, ante o espanto
e a comiseração das negras islamizadas em verem um
97
branco esquálido, longe de saberem que aquele homem
I' ,;v ." :/ - :=:.. , "j. ~
...\-~
"\.Y<v.,' . UNGULANI BA KA KHOSA -------- ' UALALAPI
magro e famélico relançaria ao mundo uma terra que para esta porcaria ... Olha, vê bem a merda que fizeste ...
os pedestres de pés cambadas a percorrem numa semana Um fio que ia-se alargando até ocupar a extensão
sem outro esforço' que olhar a paisagem.' do corredor, saía do camarote. Era o v6mito. O v6mito.
. ~"
Na primeira noite, contrariando o hábito secular dos com tonalidades vermelhas e amarelas. 'Eram. cabeças )'1 ~.~
..
nguni, Manua comeu peixe. Achou-o saboroso e vitu~ de peixes. Era o cheiro. Eram as moscas a zumbirem. .... ;,,: "
perou a sua prole. Bebeu um litro de vinho, arrotou e Inacreditável, pensou Manua. Sentiu tremores nas per-' . .. ;:~~
saiu da mesa. Passeou pela ponte, cumprimentou o nas, transpirou pelos sovacos e encostou-se à parede do .. ;~~
,\,';j;
capitão do navio e postou-se na amurada do navio, corredor. A boca estava seca e os olhos, tais como os
fumando um cigarro enquanto olhava para as estrelas dos peixes saíam das órbitas, enormes. ':~l]!
e a Lua que atirava fiapos de luz à esteira prateada que - Siga-me - disse o capitão do navio.
o navio sulcava. O marulhar das águas reconfortou-lhe Em todo o lado o vómito cobria o soalho, venne- .'
o espírito. Recolheu ao beliche que lhe estava reserva- lho, amarelo. Dos peixes só se viam as cabeças enor-
do e dormiu. Sonhou com lanças e savanas secas e
verdejantes. Viu serpentes a enrodilharem-se no corpo"
mes. As moscas percorriam os corredores, entravam nos
camarotes, cobriam a ponte e zumbiam. Os passagei-
,~f1
>:-~'c,
bojudo dopai e sorriU. Ao findar da madrugac!aacor~ ros, encostados à amurada,do navio, vomhavam, inca-
. dou sobressaltado; Pancadas insistentes e ferozes caíram pazes de suportarem. aquele chão pegajoso, lamacento,
.."r":'~~
.~·~
;"':. :;f't'
(.',-::~
"",~.r\~
na porra do camarote. Puxou os lençóis para o lado sujo e mal cheiroso. O mar, em redor do barco, toma- .~\;:~~
esquerdo, saltou da cama e, já junto à porta, sentiu algo va a cor do vómito. Peixes vinham à superffcie, mor- ';:)~~
viscoso e escorregadio a colar-se às plantas dos pés. tos. As mulheres gritavam, histéricas. As crianças des- :-J(~.
.~":l..;j
Arroz em pasta cobria o soalho. Cabeças de peixe com mailwam. Os homens berravam, insultavam, falavam
olhos brilhantes e reluzentes repousavam à superfície dos pais e avós. Os faxinas corriam de 'uma ponta a '7;1l
da pasta de arroz. O vinho coloria, aqui e ali, o arroz outra do paquete com panos e água sem saberem por
que um líquido amarelo azedava. Bolhas enonnes re- onde começarem.
bentavam de segundo a segundo. Era o seu vómito. In- E Manua chorava. Minutos dep'ois recolheu ao be-
crédulo ainda ficou parado, contemplando o vómÍto. As liche. Levantou os lençóis e viu-os impecáveis, excep-
mãos escorreram pela porta. O corpo foi-se dobrando. toando um borrão de esperma. Olhou para a roupa e
Os joelhos assentaram no chão. Chorava. O cheiro co- viu-a sem nódoas, exceptuando a parte dos joelhos.
meçou a invadir as nannas. Levou a mão direira ao Sentou-se na borda da cama. Os faxinas entraram no
nariz. Voltaram a bater à porta. Com ajuda das mãos camarote e limparam o soalho, olhando de soslaio o
ergueu-se e abriu a porta. O comandante do navio e preto, filho do rei que os portugueses tanto temiam.
os seus dois lugar-tenentes olhavam-no com certa Saíram. Manua abriu a maleta, tirou papéis, uma ca-
gravidade .
.- Tens a sorte de seres filho do rei, rapaz -' disse rante e .f~itifeiI.o. FatQu=7gQ seu temp_Q dI? estudant~~
o comandante. Caso contrário limpavas esta merda toda aITilTiãõdo Çjlle__UJ:Jl[j _:(~'!-- .porrmI o ..q\]~rt.Q_d(Lmerda
98 e atirava-te depois pela bórda fora, seu preto ... Olha ~~~te a _~oi~_
neta e tinta. do :e.ai e pª._BQj~~.~ç~~·
cl~xand.9 .-ª._~amIl.Jim
Escreve.1h.,.Falou, chamou-o igno- \ 99
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veu a dado passo, vomitei. O comandante do navio nada - Eu não queria dizer isso, mas custa-me acredi-
entende de feitiço. Se compreendesse alguma coisa tar neste facto.
~
Q sageiros recolhessem aos camarotes de modo a poder cio abominável feito por pretos, quando soubemos, por
CO sair. um informador negro, que estávamos a um dia de
t'I'J _ Vocês admitem pretos nestes barcos e o resul- marcha duma aldeia com essravos por embarcar para·
tado é este, capitão. O senhor sabe que a minha mu- Madagilscar.. Caminhamos durante a manhã, a tarde e
lher desmaiou? parte da noite pelo sertão, sujeitos a todos os perigos,
- Não. Mas o senhor deve compreender que o quando ouvimos, já noite alta, vozes estridentes. Está-
moço é o filho do rei das terras do sul. vamos a dois passos da aldeia. Havia fogo no terreiro.
- Qual rei, qual merda, os pretos nunca tiveram Os pretos dançavam. As mulheres, nuas, dobravam-se
reis capitão! Isso é história. No seu lugar atirava~o pela .j
\
que nem uma cobra ao som do tambor que ensurde-
borda fora. É o que ele precisa, pr-eto de merda. ceria a qualquer de nós portugueses, não fosse o hábito
,':" ,- O senhor tem razão - disse um terceiro, acer- que temos de andar por estas terras. Estavam de tal
;\_. cando~se. - O comandante devia atirá-Io ao mar.
j
modo bêbados que faziam as vergonhas da cama em
~>'.. '. - Isso não' faço .. Mas custa-me acreditar que o plena luz do luar. O nosso erro foi de não atacá~los
(
ih
moço tenha enchido o navio de vómitos.
. -' O capitão anda a insinuar o quê, eh!. .. O se-
I naquela noite. Optamos por cercar a aldeia e esperar-
mos pela luz do sol. E assim fizemos. Ao raiar do dia
entrámos na aldeia com as armas em riste e en-
~f!O
.~';. ~qui
nhor andam nãoum
acha que sabem ondecomo
branco devem
eu evomitar?
outros que por I contrámo-la deserta. E para o nosso espanto havia 101
UNGULANI BA KA KHOSA '7 ~ ~ ~ &v- V1;"" UALALAPI ",o :,,~3
v"n\~ ~ d.t.. ' ".:;C:~
..'/ ril
- Que raça!
Em vez de sangue safa água. . ·?C~
):'~~
cer-se de dores afinnou-nos que era feitiço o que
víamos, pois os homens, segundo ele, estavam nas e deixava os ptetos na sua vida selvagem, p.oisde nada ·:;.::>i
esvoaçar a roupa e incomodando as pessoas. Quando que o esperam. É a tropa deles, compadre. E onde se
se· saía dos camarotes, o vento, calmo, a ninguém vai hospedar? Na minha estalagem é que não,. de
incomodava. E o pior compadre, foi a vez que acor~ bruxarias ando eu farto; mas é possível que vá à casa
< ; , ~.
dárnos sobressaltados com os peixes que entravam pelos dos Albasine. Quem são? Uns mulatos. Lá se enten-
. ;~
~••': ' i lençóis adentro. Eram peixes deste tamanho, grandes. dem. Vamos que se está a fazer tarde, compadre, a
E por que não os apanharam, compadre? Se não apa- patroa tem um cabrito no forno.
nhámos, cada vez que ia um pela borda fora apareciam 1
cinco, compadre. Que bruxaria ... E não os comeram?
~~.~.'
;.o'.
Não diga isso, comp~dre, tinham patas. O quê? Patas,
..
1
II t(Vl vr,,,,--L ~
;{': compadre. Pareciam lagartos, compadre. Deviam quei-
:
,~·t·;:.~.
~~ mar
•..
o moço, compadre. Aquilo era só pegar-lhe e De 1892 a 1895, ano da sua morte, o diário nada
deitar-lhe no forno. Isso não dava nada. Talvez, mas diz, pois as folhas foram comidas pelos ratos. As le-
atirava-o pela borda fora, pois já o meu avô dizia, tras que rdtaram estão soltas. Juntando as cinco letras
.'. "", morre o bicho, acaba-se com a peçonha. Não nos chame tem-se a palavra morte, Ou temor. Ou tremo.
"':';'
parvos, compadre. O capitão tinha uns tipos armados Kamal Samade, que pela capital passou, dei.xou"as
à porta do preto. Vocês são uns cobardolas. Nada disso. suas impressões em ára6e, escritas em folhas desorde-
Olhe para aquele homem adiante, andou pelo sertão e nadas. Pela sua pena sabe-,se que Manua, desde a che-
disse-nos que não valia a pena matar o moço, pois vira gada, tornou-se !!~_!.!.umoe mais bêbado do que nun-
uma vez um preto a ser esfaqueado e em vez de san- ~. Era normal vê·Io fumando mbangui. Os sapatos já
gue saía aguardente, e da boa, compadre. Aguardente? não tinham solas e a roupa perdera a cor primeira. Era
Aguardente, compadre. Que bruxaria! ... Por aqui acon- um sonâmbulo, rematava Kamal Samade.
tecem coisas, mas até a esse ponto, não. Olhe, vem ai Buinsanto, que se refugiara no Transvaal depois da
o moço. Veste-se como um branco, compadre. O miúdo queda do império, afirmou que o seu irmão Manua
não tem cara de maltês, não. E estudou m'Jito mais que bebia com muita sofreguidão devido ao feitiço dos
o compadre. Não diga isso, compadre, que escrever sei bisavós que se initaram por aqueles modos estrangei-
eu. Mas o moço tirou o curso de artes e ofícios. Nada ros no andar, no vestir e no falar. O pénis minguava
vale um curso desses nas mãos de um preto. Deve ter de dia para dia. No dia da sua morte acordou sem nada
razão~ mas o moço fala bem o português. Qual portu- entre as coxas e apanhou a maior bebedeira de sem-
guês, qual quê ... Olhe, o moço tem olhos de bêbado. pre.
É da bebedeira que apanhou. O capitão disse que o Manhune transmitira ao filho e ao neto de que
moço bebeu um barril de vinho. E com razão, pois um Manua fora envenenado pelo pai, pois era uma vergo-
vómito daqueles era de enjoar uma baleia, compadre. nha para os nguni ver um filho seu assimilar costumes
O vinho é o negócio forte aqui..É da raça, bebem que de outros povos estrangeiros. E o pior, dizia Manhune,
nem uns cães. Mas o moço está envergonhado;. é da Manua parecia um chope, pois era subserviente aos
)04·· bruxaria, compadre. Tem razão. E olhe para os pretos portugueses. Matem-no na próxima oportunidade, disse 105
UNGULANI BA KA KHOSA
uALALAPI
Ngungunhane num dos encontros que teve com os - Não, dormi bem - retrucou. "
109
--- -~---------------------------~-._.- --._.~_._-
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S. Mateus, capo 24
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Virou-se repentinamente para a multidão que o ""f:'1i,
vaiava, a uns metros do paquete que o levaria ao exílio, '~~3iJ
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e gritou como nunca, silenciando as aves e o vento ·~R'tl1
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galerno, petrificando os homens e as mulheres com .~
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I outras bocas, gerações ~geraçoesem noites de vigília
e~as,' dada a força premonítiva que carregavam
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1I p!!lavras que saíam em catadupa e que percorreram,
nessa manhã sem outro' registo que o mar sem ondas,
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o paquete atracado, o Sol com a mesma cor, as nuvens
de todos os tempos, a multidão concentrada, Ngungu ..:: rijj~
nhane falando, e o corpo. bojudo oscilando para a di':' ";:\:':'''1'
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amaldiçoada que s6 teve momentos felize,s com a
chegada dos nguni que vos tiraram dos abismos in-
~~ /1fII findáveis da cegueira e da devassidão. Fomos n6s,
homens, que vos tÍrámos da noite que vos tolhia à
j entrada ao mundo da luz e da felicidade. As nossas
i lanças tiraram as cataratas fossilizadas que ostentavam. "
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UALALAPI
~) UNGULANl BA KA KHOSA
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~~ paga, eu sei, dos bens que os nguni fizeram. Mas ficai horas seguidas ouvi-o falar. Quis acordá~lo, pois já era
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~h'~'" , sabendo, seus cães, que o vento trará das profundezas tarde. Ao tocá-lo notei, q1.leo corpo estava frio. Há
dos séculos o odor dos vossos crimes e viverão a vossa muito que tinha momdo. Tiveram que o enterrar
curta vida tentando afastar as imagens infaustas dos imediatamente para que os vizinhos não nos chamas-
males dos vossos pais, avós, pais dos vossos avós e sem feiticeiros. E o nosso espanto foi ouvir a voz
outra gente da vossa estirpe. Começareis a odiar os vos- saindo da cova, uma voz como que vinda de escarpas
IJ, sos vizinhos, increpando-os dos males que padecerão abissais. O meu pai teve que sentar-se sobre a sepul-
t> nas palhotas sem idade. O ódio alastrar-se-á de família tura e acompanhar, movimentando a boca, a voz do
}.: em família, atingind9 os animais da vossa estima que defunto. Os vizinhos e outros familiares distantes
r,' passarão a lutar pelos pastos, se de gado bovino ou sentiram pena do meu pai, pois pensaram que estivesse
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" caprino se tratar. Os galos não se meterão com as ga- louco. Noite e dia, durante uma se-mana e meia, o meu
linhas da vizinha e os ratQs dividir-se-ão por casas e pai abria e fechava a boca.
roerão os bens de uma só famOia ao longo de gera- _ Como é que se chamava?
ções e gerações. E aí, seus cães, não terão coragem de - O meu avô?
erguer a cabeça. A corcova será de tal ordem que tereis - Sim.
filhos e netos com' uma bossa inténniriável e hereditária! _ Somapunga. E ele, aoc'ol1tar-me as histórias de
- Há ponnenores que o tempo vai esboroando- Ngungunhane, repisava alguns aspectos que o meu pai
disse o velho, tossindo. Colocou duas achas no _fogo se esquecia e que tu omitiste. E são pormenores impor-
e soprou. Novelos de' fumo passaram pelo rosto. Pe- tantes,
quenas lágrimas saíram dos olhos cansados e tocaram _ Não me recordo de ter omitido nada.
na pele coberta de escamas. Afastei os papéis. Olhei- _ Quando Ngungunhane falava à multidão que o
-o. Era noite. vaiava, uma mulher, sem aparências de gravidez, teve
- Era. miúdo ainda - prosseguiu - quando o meu uma criança sem olhos e sexo. Dois homens tiveram
avô me contava histórias de Ngungunhane. E eu tinha um colapso cardíaco.
medo. Um medo que hoje não consigo explicar. Mas - E ninguém reparou?
~;:::., era medo. Quando donnia sonhava sempre com lanças _ Petrificados que estavam com as palavras de
~.~~{ e escudos a chocarem-se na planíc~e, numa planície sem Ngungunhane, creio terem sido poucos os que viram.
~}~~~;' guerreiros, mas com escudos e lanças que se movimen- - A mulher não gritou?
f~'itavarn; chocando-se constantemente. Nunca contei ao _ Não. Deve ter aberto os olhos e a boca antes de
rir,?" meu avô os. me?s sonhos. Receava que ele parasse de desmaiar. -Quando deram por ela já estava morta. E o
que impressionou as pessoas foi o sangue escorrendo
~~, va.a voz
~~." . )' contar as tremIa
hlst~nase os
de gestos segUIam,o
Ngungunha~e. ritmo daconta-
E q~ando voz. em direcção à fortaleza. 'Q sangue era negro como a
~m~':'
í ;,-".:.(.~. Morreu a donnir,
' sonhando
. alto.
. De manhã, ao entrar nossa pele. E à medida que avançava abria um peque-
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na sua cubata, vi-o deitado ao comprido, olhando o no sulco pela encosta acima. Os portugueses cobriram 117
~~:? tecto. Falava. A voz tocava-me profundamente. Durante com saibro.
UNGULANI BA KA KHOSA
- Interessante.
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obriga a tomar banho antes de entrar nos lenç6is cheios
- É, é· interessante - disse o velho, soprando o de espenna e lama, como se ela não tivesse tomado ~
fogo .. Pequenas faúlhas saltaram e· desapareceram na' banho de manhã e à tarde, no rio ou em casa. O ma-
noite.
rido suportará estes' insultos ouvindo a água a escor-
Estes homens da cor de cabrito esfolado que hoje
aplaudis entrarão nas vossas aldeias com o barulho das
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"'t,'., •._~~.
_ +''\ suas annas e o chicote do comprimento dajib6ia. Cha- ofegar da mulher que se contorcerá na cama, libertan- \,r,~ -7'-', '!.t
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\\. l, ' marão pessoa por pessoa, registando-vos em papéis que do sons do fim dos tempos que rebentarão com os
( o enlouqueceram Manua e que vos aprisionarão. Os tímpanos e as veias donde escorrerá o sangue e as
nomes que vêem dos vossos antepassados esquecidos lágrimas da vergonha que atingirão o ponto culminante
morrerão por todo o sempre, porque dar-vos-ão os no- às latas horas da noite, quando o branco, do parapeito'
mes que bem lhes aprouver, chamando-vos merda e da janela, atirar a moeda da fome que procurará como
vocês agradecendo. Exigir-vos-ão papéis até na retrete, um sonâmbulo na noite sem estrelas. Seguirá para casa .
Como se não bastasse a palavra, a palavra que vem dos
nossos antepassados,. a palvra que impôs a ordem nestas
silencioso, incapaz de falar com a mulher que vai ",~?~~ .;.I~
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X terras sem ordem, apalavraque tirou crianças dos ven- E por todo o lado, como uma doença que a todos ,'~-:-'~'~
tres das vossas mães e mulheres. O papel com rabis- ataca, começarão. a nascer crianças' com a pele da cor ~AAi
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cos norteará a vossa vida e a vossa morte, filhos das do mijo que expelis com agrado nas manhãs. Serão ~d
trevas,
crianças da infâmia. E pela primeira vez na vossa vida '+~-M
As mulheres, que tanto estimais, passarão a ser vereis filhos rejeitando as mães que se atirarão às ca- :":~~
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fomicadas como animais nas vossas casas óu nas tra- sas onde o corpo se venderá ao preço do pão, fomi- ·.t:
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seiras das casas destes animais que hoje respeitais mais cando comas crias que desconhecem e apontando ao 1
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que os vossos irmãos nguni. Os gritos de dor e de
prazer das mulheres perseguir-vos-ão por todo o lado
acaso os presumíveis pais da caterva de miúdos que nas- .. :'~~; .~.{\~
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cem às dezenas. As doenças nunca vistas tocar-vos-ão
e passareis noites e noites contando os paus do teclO, i a todos, e não darão ouvidos ao curandeiro porque
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incapazes de se vingarem da infâmia que tocou as haverá casas onde espetarão ferros pelo corpo; e ha-
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mulheres. Muitos de entre vocês suicidar-se-ão em
árvores anãs ou entregar-se-ão aos crocodilos que vos
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verá homens com vestes de mulher que percorrerão
campos e aldeias, obrigando-vos. a confessar males co-
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regeitarão pela cobardia que transportam, e flutuarão metidos e não cometidos, convencendo-vos de que os
pelas águas durante anos e anos sem que um animal
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espíritos nada fazem, pois tudo o que existe na terra
. aquático se aproxime da carne putrefacta. Outros su- I e nos céus está sob o comando do ser que ninguém
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portarão a dor e a ignomínia e passarão a acompanhar I conhece mas que acompanha os vossos passos e as ,,~~t}
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a mulher à casa do branco, mantendo-se na escuridão vossas palavras e os vossos actos. A noite terá caído ~
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UALALAPI
..,~;/~NàULANIBA KA KHOSA
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das. Começarão a abandonar as vossas aldeias ante a _ Pois, é isso. já não via ninguém com os olhos
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vergohha e a impotência de verem as voss'as filhas reluzentes. Estava no auge do discurso. E o mais im-
violadas em plena, rua, os vossos pais mortos como pressionante eram as nuvens a desaparecerem do céu
reses, os vossos irmãos chicoteados por peidarem de e os brancos, sem nada entenderem, tinham os cabe-
medo frente ao branco que vos aviltará por todo o los eriçados.
sempre, queimando as vossas casas, usurpando a terra Fora das grades os vosso netos esquecer-se-ão da
que vem dos vossos antepassados,cobra'ndo as moedas Hngua dos seus antepassados, insultarão os pais e en-
pelas palhotas que erguestes com suor, obrigando-vos vergonhar-se-ão das mães descalças e ocultarão as casas
. a trabalhar em machambas enormes, onde dia e noite aos amigos. A nossa história e os nossOShábitos serão
andarão como sonâmbulos, comendo jibóias e macacos, vituperados nas escolas sob o olhar atento dos homens
escalavrando a terra com os dedos descarnados e tiran- com vestes de mulher que obrigarão as crianças a fa-
do a merda da criança do vosso patrão. lar da minha morte e a chamarem-me criminoso e
- .
E por onde andardes encontrarão as mesmas ima- canibal. As crianças rir-se-ão desta vergonha que os
gens, a mesma degradação, o mesmo crescimento. Os velhos sem auditório tentarão redimir dando a versão
vossos irmãos pedir-vos-ão os papéis que não terão em que ninguém escutará. :
dia e entrarão em casas cheias de ferros e ficarão Por todo o lado, filhos das trevas, verão a morte a
loucos. Comecarão a rugir, treparão as paredes como estampar-se nas casas que forem erguendo. Andarão
lagartos cegos e uivarão como hienas famintas pela como lagartos por estas terras, procurando a luz para
noite adentro. De manhã tirar-vos-ão dos quartos nus, aquecer as vossas escamas de sáurios. E à noite, atra-
com correntes pelos pés, como o gado prestes a ser vancados nas casas, sentirão passos estranhos a calea-
abatido. Não dormireis com as vossas mulheres que se rem as varandas e a aproximarem-se da porta, onde
limitarão a olhar-vos e a dizerem as palavras de sem- ficarão estampados por séculos, os contornos das ore-
pre.no tempo programado para a visita. Meses depois lhas que escutarão o que não disserem. A morte e o
dir-vos-ão que a vossa mulher teve um filho da cor do luto espalhar-se-á por estas terras e o preto sobrepor-
mijo. Rebentarão' com as grades a atirar~se-ão à noite -se-á à negrura da vossa pele farta de caminhar entre
a caminho da casa onde retalharão em bocados a vossa cadáveres 'Vivose apodrecidos que se espalharão pelas
mulher inocente. E voltarão para toda a vida à cadeia, ruas. E chegará o tempo em que fugirão para o mato,
vendo o sexo a minguar de dia para dia. E o~ que não onde começarão a caçar os homens da vossa perdição,
suportarem entregarão o traseiro ou perseguirão as matando um aqui e outro ali. Aí respirarão o ar da 121
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UNGULANI BA KA KHOSA
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vossa existência por pouco tempo, pois começarão a séculos e séculos. E na ilusão da vossa vitória invadi~' ':,.:::i,~~~~
odiar-se e a matarem-se por pensarem no trono antes rão éasas que erguestes e mudarão a ordem das coi- , /·'.\~~t
de o conquistarem. Haverá sangue a correr, chamar-se- sas, passando a cagar .onde deviam comer e acorner ' ','(:~~ _
-ão nomes que a vossa língua não comporta e volta- onde deviam cagar. A desordem será de tal ordem. que' "":/!),~~
rão a procurar os curandeiros da vossa salvação que pas- as casas mudarão de cor, passando a ter a cor da n'!Qrt~',' ,;,,~,::~~i~::
sarão a cobrar pela mesma moeda que o cantineiro vos que se instalará nas vossas terras que terão a ex~e_n~ã2 :>~~
cobra pelo arroz. Matarão à distância o vosso oposi- de meses e meses de percurso. Haverá chuvas de 'nuÍ1ca«~
tor, fazendo-o emergir na bacia de morte onde a água acabar que arrasarão os ,campos e as cidades. As,:es~~<:"«{i~"1$
tomará a cor do sangue. Lançarão abelhas mortíferas tradas rebentarão e começarão a surgir pelas avenidas .: .:'~/!"3,~
aos vossos animigos e haverá cacimba ao meio-dia. Mas e ruas, serpentes com ninhos à vista de toda a gente e :;,\~'nf
começarão a aprender novas doutrinas que rejeitarão os· confundirão os seus silvos com os apitos desordenados .. ;::.:~"
espíritos, os feiticeiros e curandeiros. Todos ou quase de polícias em jejum de séculos à caça de ladrões prcr .' ·':;U::&
todos aceitarão o novo pastor, mas pela noite adentro fissionais que roubam'cigarros e pilhas e batatas e res~ .':·;:i~.
muitos irão ao curandeiro e pedirão a raiz contra as tos de comida. Os carros de bois passarão a substituir .' .,:/~'
balas do inimigo, porque não quererão morrer antes de as máquinas que deitam fumo e verão as ruas repletas ..'}?
saborearem a'vitória, e a curandeiro pedirá o coração de bostas secas e frescas que os homens recolherão nas
do inimigo que abaterão sem piedade na emboscada dos noites infindáveis da fome. Ávidas em se alimentarem
troncos que se movem. Em todo o lado sentir-se-ão farão papas de merda que provocarão diarreia e v6mitos
her6is;~'pois a bala passará à distância e se vos tocar que encherão as casas de cimento, saindo depois pe-:-
bastará um encosto à árvore que secará e que vos Ias corredores e escadas sem degraus até aos jardins e
restituirá a saúde. Outros transfonnar-se-ão em serpen- ruas, provocando o dilúvio de diarreias e v6mitos que
tes, entrarão no campo inimigo, estudarão os seus passos afogará crianças e velhos, homens e mulheres, que se-
e verão o quantitativo. E esta será a nossa guerra vi· rão o alimento de ratos gigantes que terão a liberdade
toriosa contra os homens que entraram nestas terras sem das avenidas e casas sem dono. Serão os primeiros dias
, autorização de ninguém. Muitos dos filhos destes ho- da vossa desgraça que se completarão 'com os homens
mens ficarão nestas terras e aprenderão as nossas línguas que percorrerão as matas, matando os pais e a mães,
'~
e dançarão as nossas danças e casarão com as nossas ávidos do tempo do chicote e das plantações de sonâm-
~ mu-lheres à vista de toda a gente e serão nossos innãos bulos. A confusão reinará por séculos e haverá suplícios
de verdade porque esconjurarão com os curandeiros do ao fogo; rebentarão as barrigas grávidas de mulheres
amanhã os seus males de séculos. inocentes, obrigando os pais a comer os nados-mortos
Chegada a vitória tereis um preto no trono destas sem uma lágrima nos olhos. O sol mudará de cor e as
terras. Exultareis de alegria ao verem subir panos na nuvens afastar-se-ão do céu por tempos imprecisos,
noite chuvosa da vossa vitória. Mas não tereis chega- trazendo a chuva quando menos esperam e o sol quan· ·:3~~!;'
do ainda ao tempo da vossa felicidade, seus cães, por- do se espera a chuva. E a fome chegará à loja onde ,qm
122 que a maldição que abraçou estas terras, perdurará por os canrineiros passarão a vida a espantar as moscas, 123
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