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PARA ACABAR
COM O JULGAMENTO
DE
DEUS
Baseada no poema
Pour en finir avec le jugemente de dieu
de Antonin Artaud
escrito para uma
emissão radiofônica,
traduzido e adaptado para o teatro
por Wilson Coêlho.
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V EPISÓDIO: Conclusão
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VOZES EM OFF – Kré, puc te, kré, puke te! É necessário que tudo seja arranjado... Pek li
le! Certinho... kré, pek ti le, e kruk, pte!... de uma ordem fulminante.
(Sai a música e entra um ator que vai em direção a um rádio antigo no fundo central do
palco. Ouve-se o ruído de uma tentativa de sintonizar o rádio, depois, a emissão original de
“Pour en finir avec le jugement de dieu”. O ator sai de cena.)
(Artaud permanece imóvel e fixa o público. Ouve-se a música “La vie en rose”, de Edith
Piaf, e entram em cena três casais que dançam aos pares ao lado de Artaud. As mulheres
trajam “tailleurs” cinzentos ou azuis acinzentados e, os homens, ternos nos mesmos tons e
chapéus do tipo clássico. Artaud traja um casaco cinzento bem grande, bengala, calça cinza
ou preta com as pernas em “acordeão” sobre os sapatos surrados e um cachecol preto de 2
metros de comprimento.)
(Entra o “hino nacional americano”, tocado por Jimi Hendrix. Saem os casais.)
ARTAUD – E vive a guerra, não é? Porque não é, isso fazendo, a guerra que os
Americanos têm preparado e que preparam assim passo a passo. Para defender essa
usinagem insensata contra todas as concorrências que não deixariam de se erguer de
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bastão de três metros de altura. Ouve-se a emissão de mais um trecho de “Pour en finir
avec le jugement de dieu”, na voz de Maria Casarès, no Tutuguri.)
MARIA CASARÈS – O Ritual é que o novo sol passa por sete pontos antes de explodir o
orifício da terra. E há seis homens, um para cada sol, e um sétimo homem que é o
sol todo cru, vestido de negro e de carne vermelha.
TARAHUMARA II – (Interrompendo) – ... não sóis mas solos giratórios, das lotus d’água,
e a cada esguicho corresponde o gongo sempre sombrio e interiorizado do tambor...
MARIA CASARÈS – ... até que de repente se vê chegar em grande galope, com uma
velocidade de vertigem...
(Em câmara lenta, os Tarahumaras espancam o homem ao som da música dos Tarahumaras
tocando em play-back.)
MARIA CASARÈS – (Ainda com a música de fundo) – Tendo acabado de girar, eles
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(Artaud está parado, no centro do palco, de costas para a platéia. Ouve-se a emissão “Pour
en finir...”, na parte de “La recherce de la fécalité”, declamado por Roger Blin. Artaud
volta-se para a platéia e interrompe a emissão.)
ARTAUD – Lá onde se cheira a merda se cheira o ser. O homem tinha muito bem podido
não cagar, (entra um ator que atravessa o palco da esquerda para a direita e, de
cócoras, abaixa as calças.) – não abrir a bolsa anal, mas ele escolheu cagar como ele
tinha escolhido viver em lugar de consentir a viver morto. (Entra um ator rastejando,
a quem chamaremos de Micróbio e, entram outros dois, aos quais daremos os nomes
de Osso I e Osso II.) – É que para não fazer cocô, era preciso consentir a não ser,
mas ele não pôde decidir a perder o ser, quer dizer, a morrer vivo.
COCÔ – (Que continua de cócoras e com as calças arreadas, fala entre gemidos como quem
faz foça para defecar.) – Há no ser qualquer coisa particularmente tentando para o
homem e essa qualquer coisa é justamente o COCÔ.
OSSO I – (Com um grande osso nas mãos.) – Para existir basta se deixar levar pelo ser,
mas para viver, é preciso ser alguém, para ser alguém, é preciso ter um OSSO, (O
Osso II tenta lhe tomar o osso.) – não ter medo de mostrar o osso e de perder a carne
na passagem.
OSSO II – (Ainda lutando pelo osso.) – O homem tem sempre amado mais a carne que a
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terra dos ossos. É que ele não tinha mais terra e madeira de osso, e era necessário
ganhar sua carne, ele não tinha mais ferro e fogo e nenhuma merda, e o homem teve
medo de perder a merda ou antes ele tem desejado a merda e, para isso, sacrificado
o sangue.
ARTAUD – Para ter a merda quer dizer a carne, lá onde ele não tinha sangue e a ferragem
da ossada e onde não se tinha a ganhar mais ser mas onde se tinha somente a perder
a vida.
ARTAUD – Lá, o homem se retirou e fugiu. Então, as bestas o têm comido. Isso não foi
um estupro, ele se prestava à obscena refeição.
MICRÓBIO – (Sempre rastejando.) – Ele tem buscado gosto, ele ensinou a si mesmo a ser
uma besta e a comer o rato delicadamente.
ARTAUD – E de onde vem essa objeção à imundície? Do fato de que o mundo não é ainda
constituído, ou de que o homem não tem mais que uma pequena idéia do mundo e
que ele quer eternamente guardar? Isso vem do que um homem, um belo dia, tem
concluído a idéia de mundo.
ARTAUD – E ele tem preferido o ínfimo interior. Lá onde ele não tem que comprimir...
CÔRO – o rato,
A língua,
o ânus
ou a glande.
COCÔ – E deus,
ele mesmo
apressou o movimento.
ARTAUD – Ora, ele não é, mas como o vazio que avança com todas as suas formas.
(Em play-back ouve-se a voz de Roger Blin: “Vous êtes fou, monsieur Artaud, et la
messe?”)
(Ouve-se a música dos Tarahumaras. Sai Artaud e entra Paule Thévenin. Os personagens
Osso I, Osso II, Cocô e Micróbio passam a circular pelo palco.)
(Substitui-se a música dos Tarahumaras pelo trecho de “La question se pose de...”, na voz
original de Paule Thévenin em “Pour en finir...”. Paule Thévenin traja um roupão preto e
um comprido véu de noiva.)
PAULE THÉVENIN – O que é grave é que nós sabemos que depois da ordem desse mundo
há uma outra.
CÔRO – Qual é?
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PAULE THÉVENIN – Nós não o sabemos. O número e a ordem das suposições nesse
domínio é justamente o infinito!
PAULE THÉVENIN – Ao certo nós não o sabemos! É uma palavra da qual nós nos
servimos para indicar a abertura de nossa consciência rumo a possibilidade desmedida,
incansável e desmedida.
PAULE THÉVENIN – Ao certo nós não o sabemos. É o nada. Um nada do qual nós nos
servimos para indicar quando nós não sabemos qualquer coisa de qual lado não o
sabemos e dizemos então consciência, do lado da consciência, mas há cem mil
outros lados.
CÔRO – E então?
PAULE THÉVENIN – Parece que a consciência seja em nós ligada ao desejo sexual e à
fome; mas ela podia muito bem não lhes estar ligada sabe-se pode-se dizer, há os
que dizem que a consciência é um apetite, o apetite de viver; e imediatamente ao
lado do apetite de viver e o apetite do alimento que vem imediatamente ao espírito;
como se não houvesse pessoas que comem sem nenhuma espécie de apetite; e que
têm fome.
PAULE THÉVENIN – mas que é explosiva afirmação que há qualquer coisa a que fazer
lugar:
CÔRO – (Entram num cilindro vertical de musselina com luz interna e oblíqua vindo de
fora) – Meu corpo.
PAULE THÉVENIN – É verdadeiramente o reduzir a esse gás fedorento, meu corpo? Dizer
que tenho um corpo porque tenho um gás fedorento que se forma dentro de mim?
Não sei, mas sei que o espaço
OSSO I – o tempo
OSSO II – a dimensão
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COCÔ – o futuro
OSSO I – o porvir
OSSO II - o ser
MICRÓBIO – o não-ser
COCÔ – o eu
PAULE THÉVENIN – ... não são nada para mim; mas há uma coisa que é qualquer coisa,
uma só coisa que seja qualquer coisa, e que eu sinto a isso que quero SAIR
CÔRO – a presença
de minha dor
de meu corpo
a presença
ameaçante
jamais fatigante
de meu corpo (saem de cena)
(Ouve-se a emissão na voz de Artaud indicada por ele como “Bruitage et mon cri dans
l’escalier”.)
PAULE THÉVENIN – ... então à negação; e esse ponto é quanto alguém me imprensa,
quando alguém que me pressiona e que alguém me ordenha até a saída em mim do
alimento do meu alimento e de seu leite...
PAULE THÉVENIN – (Saindo do cilindro) – Que eu estou sufocado e não sei se é uma
ação mas assim me pressionam de questões até a ausência e ao nada da questão
alguém tem me pressionado até a sufocação em mim da idéia de corpo e de ser um
corpo, e é então que tenho sentido o obsceno e que eu peidei de desrazão e de
excesso e da revolta de minha sufucação. É que alguém me pressionava até meu
corpo e até o corpo...
PAULE THÉVENIN – E é então que tenho feito tudo explodir porque em meu corpo
ninguém toca nunca.
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(Aumenta-se o volume da música e Paule Thévenin sai cruzando com o caminho com
Artaud que entra em cena. Também entram em cena dois casais e um “juiz”.)
V EPISÓDIO: CONCLUSÃO
(Artaud está sentado à mesa no lado esquerdo do palco, quase no proscênio. No fundo
direito do palco, o juiz está de pé e os casais congelados dentro do cilindro. Continua a
música de Alban Berg que vai diminuindo até o silêncio total.)
ARTAUD – A denunciar, no país, esse mesmo povo americano que ocupa todas a
superfície do antigo continente índio, uma ressurreição do imperialismo guerreiro na
antiga América que fez que o povo índio, antes de Colombo, fosse abjetado por toda
a precedente humanidade.
ARTAUD – Sim, eu digo uma coisa bizarra, é que os índios antes de Colombo eram,
contrariamente a tudo o que se tem podido crer, um povo estranhamente civilizado e
que eles tinham justamente conhecido uma forma de civilização baseada no
princípio exclusivo da crueldade.
ARTAUD – A crueldade é extirpar pelo sangue e até o sangue de deus, a sorte bestial da
animalidade inconsciente humana, em toda parte onde se pode encontrá-la. O
homem, quando alguém não o segura, é um animal erótico, há nele um tremor
inspirado, uma espécie de pulsação produtora de um sem número de bestas que são
a forma que os antigos povos terrestres atribuíam universalmente a deus. Isso fazia
o que se chama de espírito. Ora, esse espírito vindo dos Índios da América jorra
quase em toda parte hoje sob os ares científicos que não fazem mais que acusar o
domínio infectuoso mórbido, o estado acusado de vício, mas um vício que pulula de
doenças, porque, riam o tanto que quiserem, mas esse que se tem chamado os
micróbios é deus, e sabes com o quê os Americanos e os Russos fazem seus
átomos? Eles o fazem com os micróbios de deus.
CÔRO EM OFF – O senhor está delirando, senhor Artaud. O senhor está louco.
ARTAUD – (Ameaçando com a bengala) – Eu não estou delirando e não estou louco. Eu
digo que reinventei os micróbios a fim de impor uma nova idéia de deus. Tem-se
encontrado um novo meio de fazer ressaltar deus e de pegá-lo sobre o fato de sua
nocividade microbiana.
ARTAUD – Eu quero dizer que encontrei o modo de acabar uma vez por todas com esse
macaco e que se ninguém crê mais em deus todo mundo crê mais e mais no homem.
(Os casais descongelam, saem do cilindro, apanham a mesa e a colocam no lugar onde
estavam dentro do cilindro.)
JUIZ – Ora, é o homem que necessita agora se decidir pela sua castração.
(Os casais agarram Artaud e o levam para o cilindro e deitam-no na mesa. Congelam-se
próximo ao cilindro.)
JUIZ – (Entrando no cilindro.) – De qualquer lado que se tome, o senhor é louco, um louco
varrido. Fazendo-o passar uma vez mais todavia sobre a mesa de autópsia para lhe
refazer a anatomia.
JUIZ – É preciso se decidir por colocá-lo a nu para lhe raspar esse animálculo que o faz
coçar mortalmente...
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CÔRO – deus,
e com deus
seus órgãos.
ARTAUD – Mesmo quando você tiver feito um corpo sem órgãos, então o terá libertado de
todos os seus automatismos e restituído a sua verdadeira liberdade.
(Artaud caminha em câmera lenta e, ainda com a faca na mão, assassina os casais.)
ARTAUD – Então, ele reaprende a dançar o inverso como no delírio dos bailes populares e
esse inverso será ser verdadeiro reverso.
(Artaud vai ao fundo do palco, desliga o rádio e volta-se para a platéia com a faca na mão e
como se fosse dizer algo.)
CAI O PANO