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PARA ACABAR
COM O JULGAMENTO
DE
DEUS

Baseada no poema
Pour en finir avec le jugemente de dieu
de Antonin Artaud
escrito para uma
emissão radiofônica,
traduzido e adaptado para o teatro
por Wilson Coêlho.
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I EPISÓDIO: Para acabar com o julgamento de deus

II EPISÓDIO: Tutuguri – O Rito do Sol Negro

III EPISÓDIO: A busca da fecalidade

IV EPISÕDIO: A questão se coloca de

V EPISÓDIO: Conclusão
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I EPISÓDIO: PARA ACABAR COM O JULGAMENTO DE DEUS

(Ouve-se o Concerto para violino e orquestra, “A memória de um Anjo”, de Alban Berg.


Artaud se encontra sentado à mesa no lado esquerdo do palco, imóvel, fitando a platéia.)

VOZES EM OFF – Kré, puc te, kré, puke te! É necessário que tudo seja arranjado... Pek li
le! Certinho... kré, pek ti le, e kruk, pte!... de uma ordem fulminante.

(Sai a música e entra um ator que vai em direção a um rádio antigo no fundo central do
palco. Ouve-se o ruído de uma tentativa de sintonizar o rádio, depois, a emissão original de
“Pour en finir avec le jugement de dieu”. O ator sai de cena.)

ARTAUD – (Interrompendo a emissão) – Eu soube ontem... dá para acreditar que eu me


atraso ou talvez é somente um falso boato de uma dessas imundas fofocas, como ele
se mascateia entre pias e latrinas, na hora da expulsão no vaso das refeições uma vez
mais engolidas. Eu soube ontem uma das práticas oficiais as mais sensacionais das
escolas públicas americanas e que fazem sem dúvida que esse país se creia à frente
do progresso. Parece que, entre os exames ou provas que se faz suportar uma
criança que entra pela primeira vez numa escola pública, havia o teste apelidado de
licor seminal ou esperma, e que consistia em impedir à essa criança nova entrante
um pouco de seu esperma a fim de lhe meter num frasco e de lhe manter assim
preparado a todas as tentativas de fecundação artificial que poderia em seguida
acontecer. Visto que cada vez mais ao Americanos acham que a eles faltam braços e
crianças, quer dizer não de trabalhadores mas de soldados, e eles querem á toda
força e por todos os meios possíveis fazer e fabricar soldados em vista de todas as
guerras planetárias que pudessem futuramente acontecer; e que fossem destinados á
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demonstrar pelas virtudes esmagadoras da força a superexcelência dos produtos


americanos, e dos frutos do suor americano sobre todos os campos de atividade e do
dinamismo possível da força...

(Artaud permanece imóvel e fixa o público. Ouve-se a música “La vie en rose”, de Edith
Piaf, e entram em cena três casais que dançam aos pares ao lado de Artaud. As mulheres
trajam “tailleurs” cinzentos ou azuis acinzentados e, os homens, ternos nos mesmos tons e
chapéus do tipo clássico. Artaud traja um casaco cinzento bem grande, bengala, calça cinza
ou preta com as pernas em “acordeão” sobre os sapatos surrados e um cachecol preto de 2
metros de comprimento.)

ARTAUD – (Sem a música e os casais congelados.) – Porque é preciso produzir, é preciso


por todos os meios de atividades possíveis substituir a natureza por toda parte onde
ela pode ser substituída, é preciso encontrar para a inércia humana um campo maior,
é preciso que o trabalhador tenha do que se empregar, é preciso que campos de
novas atividades sejam criados, onde isso será o reino enfim de todos os falsos
produtos fabricados, de todos os infames produtos sintéticos onde a bela natureza
verdadeira não tem o que fazer, o que ceder de uma vez por todas vergonhosamente
o lugar a todos os triunfosos produtos de substituição onde o esperma de todas as
usinas de fecundação artificial fará maravilha para produzir exércitos e couraçados.
Mais frutos, mais árvores, mais legumes, mais plantas farmacêuticas ou não é por
conseqüência mais alimentos, mais produtos de síntese à saciedade, nos vapores,
nos humores especiais da atmosfera, sobre os eixos particulares das atmosferas
arrancadas à força por síntese às resistências de uma natureza que da guerra não tem
conhecimento mais que o medo.

(Entra o “hino nacional americano”, tocado por Jimi Hendrix. Saem os casais.)

ARTAUD – E vive a guerra, não é? Porque não é, isso fazendo, a guerra que os
Americanos têm preparado e que preparam assim passo a passo. Para defender essa
usinagem insensata contra todas as concorrências que não deixariam de se erguer de
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todas as partes, é preciso soldados, exércitos, aviões, couraçados, de lá esse esperma


no qual os governos da América tiveram a nitidez de pensar. Visto que nós temos
mais de um inimigo e que nos vigia, meu filho, nós, os capitalistas-natos, e entre
esses inimigos a Rússia de Stálin que não tem falta de braços armados. Tudo isso
está muito bem, mas eu não sabia os Americanos um povo tão guerreiro.

(Ruídos de guerra. Artaud luta golpeando no ar com sua bengala.)

ARTAUD – Para brigar é preciso receber golpes e eu tenho visto muitos


Americanos na guerra, mas eles tinham sempre diante deles incomensuráveis
exércitos de tanques, de aviões, de couraçados que lhes serviam de escudo. Tenho
visto muito se bater os Americanos com máquinas mas só vi até o infinito por detrás
os homens que as conduziam. Frente ao povo que faz comer a seus cavalos, a seus
bois e a seus asnos e os últimos tonéis de morfina verdadeira que podem lhe restar
para substitui-la por produtos sintéticos de fumaça, eu amo mais o povo que come à
mesma terra o delírio de onde ele é nascido, eu falo dos Tarahumaras que comem o
Peyotl no solo mesmo enquanto ele nasce, e que mata o sol para instalar o reino da
noite negra, e que fura a cruz a fim de que os espaços do espaço não possam jamais
se encontrar nem se cruzar. É assim que ireis entender a dança do TUTUGURI.

(Ouve-se a música dos Tarahumaras. Artaud sai.)

II EPISÓDIO: TUTUGURI – O RITO DO SOL NEGRO

(Entram os Tarahumaras com instrumentos “indígenas”, dançando em rito a sua música. O


primeiro Tarahumara se veste como um “civilizado”, roupas de cores neutras e em
frangalhos. O segundo, traja um colante cor da pele. O terceiro, uma capa fechada branca,
como um fantasma. O quarto, com uma máscara cara de cavalo de tamanho natural,
vestindo-se com um saco de estopa. Surge um homem vestido com uma grande capa branca
com cruzes vermelhas nas laterais, um avental azul claro com um triângulo no peito. Está
descalço e tem na cabeça uma coifa branca com uma auréola dourada. Nas mãos, traz um
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bastão de três metros de altura. Ouve-se a emissão de mais um trecho de “Pour en finir
avec le jugement de dieu”, na voz de Maria Casarès, no Tutuguri.)

MARIA CASARÈS – E embaixo, como embaixo da inclinação amarga, cruelmente


desesperada de coração, se abre o círculo das seis cruzes, muito embaixo, como
encaixado na terra mãe, desencaixado do abraço imundo da mãe que baba.

CÔRO – A terra de carvão negro


e o único lugar úmido
nessa fresta de rochedo

MARIA CASARÈS – O Ritual é que o novo sol passa por sete pontos antes de explodir o
orifício da terra. E há seis homens, um para cada sol, e um sétimo homem que é o
sol todo cru, vestido de negro e de carne vermelha.

CÔRO – Ora, o sétimo homem


é um cavalo,
um cavalo com um homem
que o conduz.

TARAHUMARA I – Mas é o cavalo que é o sol e não o homem.

MARIA CASARÈS – Sobre o rasgado de um tambor e de uma trombeta longa, estranho, os


seis homens que estavam deitados, enrolados, no chão da terra, jorram
sucessivamente como girassóis...

TARAHUMARA II – (Interrompendo) – ... não sóis mas solos giratórios, das lotus d’água,
e a cada esguicho corresponde o gongo sempre sombrio e interiorizado do tambor...

(Artaud atravessa a cena lentamente pelos fundos do palco.)


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MARIA CASARÈS – ... até que de repente se vê chegar em grande galope, com uma
velocidade de vertigem...

CÔRO – O último sol,


o primeiro homem,
o cavalo negro
com um homem nu ,
absolutamente nu e virgem
sobre ele.

MARIA CASARÈS – Tendo saltado, eles avançam seguindo de meandros circulares e o


cavalo de carne sangrenta se afoba, encaracola sem parar no topo de seu rochedo até
que os seis homens tenham acabado de cercar completamente as seis cruzes.

(Ouve-se a emissão “Pour en finir...”, no trecho da “Danse du Tutuguri”, coma Maria


Casarès, enquanto os Tarahumaras dançam ao redor do homem das “cruzes vermelhas”.)

CÔRO – Ora, o tom maior do Ritual


é justamente
A ABOLIÇÃO DA CRUZ
Ora, o tom maior do Ritual
é justamente
A ABOLIÇÃO DA CRUZ
Ora, o tom maior do Ritual
é justamente
A ABOLIÇÃO DA CRUZ

(Em câmara lenta, os Tarahumaras espancam o homem ao som da música dos Tarahumaras
tocando em play-back.)

MARIA CASARÈS – (Ainda com a música de fundo) – Tendo acabado de girar, eles
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arrancam as cruzes da terra e o homem nu sobre o cavalo arvora um imenso ferro a


cavalo que ele tem temperado num corte de seu sangue.

(Aumenta-se o volume da música, enquanto o homem é morto e colocado de bruços sobre


as costas do cavalo. Saem de cena ao mesmo tempo em que entra Artaud.)

III EPISÕDIO: A BUSCA DA FECALIDADE

(Artaud está parado, no centro do palco, de costas para a platéia. Ouve-se a emissão “Pour
en finir...”, na parte de “La recherce de la fécalité”, declamado por Roger Blin. Artaud
volta-se para a platéia e interrompe a emissão.)

ARTAUD – Lá onde se cheira a merda se cheira o ser. O homem tinha muito bem podido
não cagar, (entra um ator que atravessa o palco da esquerda para a direita e, de
cócoras, abaixa as calças.) – não abrir a bolsa anal, mas ele escolheu cagar como ele
tinha escolhido viver em lugar de consentir a viver morto. (Entra um ator rastejando,
a quem chamaremos de Micróbio e, entram outros dois, aos quais daremos os nomes
de Osso I e Osso II.) – É que para não fazer cocô, era preciso consentir a não ser,
mas ele não pôde decidir a perder o ser, quer dizer, a morrer vivo.

COCÔ – (Que continua de cócoras e com as calças arreadas, fala entre gemidos como quem
faz foça para defecar.) – Há no ser qualquer coisa particularmente tentando para o
homem e essa qualquer coisa é justamente o COCÔ.

OSSO I – (Com um grande osso nas mãos.) – Para existir basta se deixar levar pelo ser,
mas para viver, é preciso ser alguém, para ser alguém, é preciso ter um OSSO, (O
Osso II tenta lhe tomar o osso.) – não ter medo de mostrar o osso e de perder a carne
na passagem.

OSSO II – (Ainda lutando pelo osso.) – O homem tem sempre amado mais a carne que a
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terra dos ossos. É que ele não tinha mais terra e madeira de osso, e era necessário
ganhar sua carne, ele não tinha mais ferro e fogo e nenhuma merda, e o homem teve
medo de perder a merda ou antes ele tem desejado a merda e, para isso, sacrificado
o sangue.

ARTAUD – Para ter a merda quer dizer a carne, lá onde ele não tinha sangue e a ferragem
da ossada e onde não se tinha a ganhar mais ser mas onde se tinha somente a perder
a vida.

CÔRO – O reche modo


to edire
di za
tan dari
do padera coco

ARTAUD – Lá, o homem se retirou e fugiu. Então, as bestas o têm comido. Isso não foi
um estupro, ele se prestava à obscena refeição.

MICRÓBIO – (Sempre rastejando.) – Ele tem buscado gosto, ele ensinou a si mesmo a ser
uma besta e a comer o rato delicadamente.

(Ouve-se a emissão de “Pour en finir...”, trecho de “La Recherche de la fecalité”, na voz de


Roger Blin.)

ARTAUD – E de onde vem essa objeção à imundície? Do fato de que o mundo não é ainda
constituído, ou de que o homem não tem mais que uma pequena idéia do mundo e
que ele quer eternamente guardar? Isso vem do que um homem, um belo dia, tem
concluído a idéia de mundo.

CÔRO – Duas rotas se oferecem a ele:


essa do infinito exterior,
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essa do ínfimo interior.

ARTAUD – E ele tem preferido o ínfimo interior. Lá onde ele não tem que comprimir...

CÔRO – o rato,
A língua,
o ânus
ou a glande.

COCÔ – E deus,
ele mesmo
apressou o movimento.

OSSO I – Deus é um ser?

OSSO II – Se ele é, é merda.

OSSO I – Se ele não é

OSSO II – ele não é.

ARTAUD – Ora, ele não é, mas como o vazio que avança com todas as suas formas.

(Em play-back ouve-se a voz de Roger Blin: “Vous êtes fou, monsieur Artaud, et la
messe?”)

VOZES EM OFF – O senhor está louco, senhor Artaud, e a missa? (3 vezes)

ARTAUD – (Ameaçando com sua bengala.) – Eu renego o batismo e a missa.

OSSO I – (Aproximando-se do Osso II.) – Não há um ato humano...


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OSSO II - ... que, no plano erótico interno,

OSSO II – ... seja mais pernicioso que a descida...

OSSO I – ... do pretenso Jesus Cristo...

OSSO I e OSSO II – ... sobre os altares.

ARTAUD – Ninguém acreditará em mim e eu vejo daqui a indiferença do público mas o


chamado cristo não é nenhum outro senão aquele que diante do piolho deus
consentiu viver sem corpo, então um exército de homens descido de uma cruz, onde
deus acreditou ter, há muito tempo, pregado, se revoltou, e, revestido de ferro, de
sangue, de fogo, e de ossadas, avança, invectivando o Invisível a fim de acabar com
o JULGAMENTO DE DEUS.

(Ouve-se a música dos Tarahumaras. Sai Artaud e entra Paule Thévenin. Os personagens
Osso I, Osso II, Cocô e Micróbio passam a circular pelo palco.)

IV EPISÓDIO: A QUESTÃO SE COLOCA DE...

(Substitui-se a música dos Tarahumaras pelo trecho de “La question se pose de...”, na voz
original de Paule Thévenin em “Pour en finir...”. Paule Thévenin traja um roupão preto e
um comprido véu de noiva.)

PAULE THÉVENIN – O que é grave é que nós sabemos que depois da ordem desse mundo
há uma outra.

CÔRO – Qual é?
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PAULE THÉVENIN – Nós não o sabemos. O número e a ordem das suposições nesse
domínio é justamente o infinito!

CÔRO – E o que é o infinito?

PAULE THÉVENIN – Ao certo nós não o sabemos! É uma palavra da qual nós nos
servimos para indicar a abertura de nossa consciência rumo a possibilidade desmedida,
incansável e desmedida.

CÔRO – E o que é ao certo


a consciência?

PAULE THÉVENIN – Ao certo nós não o sabemos. É o nada. Um nada do qual nós nos
servimos para indicar quando nós não sabemos qualquer coisa de qual lado não o
sabemos e dizemos então consciência, do lado da consciência, mas há cem mil
outros lados.

CÔRO – E então?

PAULE THÉVENIN – Parece que a consciência seja em nós ligada ao desejo sexual e à
fome; mas ela podia muito bem não lhes estar ligada sabe-se pode-se dizer, há os
que dizem que a consciência é um apetite, o apetite de viver; e imediatamente ao
lado do apetite de viver e o apetite do alimento que vem imediatamente ao espírito;
como se não houvesse pessoas que comem sem nenhuma espécie de apetite; e que
têm fome.

CÔRO – Por isso também


existe
de ter fome
sem apetite;
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PAULE THÉVENIN – E então?

CÔRO – E então? (3 vezes)

PAULE THÉVENIN – Então o espaço da possibilidade me foi um dia dado como um


grande peido que eu farei; mas nem o espaço, nem a possibilidade eu não sabia ao
certo o que era, e eu não tinha necessidade de pensar; eram palavras inventadas para
definir coisas que existiam ou não existiam diante da urgência insistente de uma
necessidade: aquela de suprimir a idéia, a idéia e seu mito, e de fazer reinar no lugar
a manifestação trovejante dessa explosiva necessidade...

CÔRO – dilatar o corpo de minha noite interna,


do nada interno
de meu eu
que é noite,
nada,
irreflexão,

PAULE THÉVENIN – mas que é explosiva afirmação que há qualquer coisa a que fazer
lugar:

CÔRO – (Entram num cilindro vertical de musselina com luz interna e oblíqua vindo de
fora) – Meu corpo.

PAULE THÉVENIN – É verdadeiramente o reduzir a esse gás fedorento, meu corpo? Dizer
que tenho um corpo porque tenho um gás fedorento que se forma dentro de mim?
Não sei, mas sei que o espaço

OSSO I – o tempo

OSSO II – a dimensão
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MICRÓBIO – o vir a ser

COCÔ – o futuro

OSSO I – o porvir

OSSO II - o ser

MICRÓBIO – o não-ser

COCÔ – o eu

COCÔ – o não-eu (saem do cilindro)

PAULE THÉVENIN – ... não são nada para mim; mas há uma coisa que é qualquer coisa,
uma só coisa que seja qualquer coisa, e que eu sinto a isso que quero SAIR

CÔRO – a presença
de minha dor
de meu corpo
a presença
ameaçante
jamais fatigante
de meu corpo (saem de cena)

PAULE THÉVENIN – (Dentro do cilindro como se tentasse escapar de uma teia de


aranha.) – Se fortemente alguém me pressiona de questões e eu nego todas as
questões...
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(Ouve-se a emissão na voz de Artaud indicada por ele como “Bruitage et mon cri dans
l’escalier”.)

PAULE THÉVENIN – Há um ponto onde eu me vejo obrigado a dizer não,

CÔRO EM OFF – NÃO!!! (Três vezes)

PAULE THÉVENIN – ... então à negação; e esse ponto é quanto alguém me imprensa,
quando alguém que me pressiona e que alguém me ordenha até a saída em mim do
alimento do meu alimento e de seu leite...

CÔRO EM OFF – E o que é que fica?

PAULE THÉVENIN – (Saindo do cilindro) – Que eu estou sufocado e não sei se é uma
ação mas assim me pressionam de questões até a ausência e ao nada da questão
alguém tem me pressionado até a sufocação em mim da idéia de corpo e de ser um
corpo, e é então que tenho sentido o obsceno e que eu peidei de desrazão e de
excesso e da revolta de minha sufucação. É que alguém me pressionava até meu
corpo e até o corpo...

CÔRO EM OFF – E é então


que tenho feito tudo
explodir
porque em meu corpo
ninguém toca nunca.

(Ouve-se ao fundo a música de Alban Berg.)

PAULE THÉVENIN – E é então que tenho feito tudo explodir porque em meu corpo
ninguém toca nunca.
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(Aumenta-se o volume da música e Paule Thévenin sai cruzando com o caminho com
Artaud que entra em cena. Também entram em cena dois casais e um “juiz”.)

V EPISÓDIO: CONCLUSÃO

(Artaud está sentado à mesa no lado esquerdo do palco, quase no proscênio. No fundo
direito do palco, o juiz está de pé e os casais congelados dentro do cilindro. Continua a
música de Alban Berg que vai diminuindo até o silêncio total.)

JUIZ – E a quê tem servido, senhor Artaud, essa Rádio-Difusão?

ARTAUD – Em princípio, denunciar um certo número de sujeiras oficialmente consagradas


e reconhecidas. Essa emissão do esperma infantil dado benevolamente às crianças
em vista de uma fecundação artificial de fetos ainda para nascer e que verão o dia
num século ou mais.

JUIZ – E que lhe tem servido, senhor Artaud, essa Rádio-Difusão?

ARTAUD – A denunciar, no país, esse mesmo povo americano que ocupa todas a
superfície do antigo continente índio, uma ressurreição do imperialismo guerreiro na
antiga América que fez que o povo índio, antes de Colombo, fosse abjetado por toda
a precedente humanidade.

JUIZ – Você anuncia ali, senhor Artaud, coisas bem bizarras.

ARTAUD – Sim, eu digo uma coisa bizarra, é que os índios antes de Colombo eram,
contrariamente a tudo o que se tem podido crer, um povo estranhamente civilizado e
que eles tinham justamente conhecido uma forma de civilização baseada no
princípio exclusivo da crueldade.

JUIZ – E o senhor sabe bem ao certo o que é a crueldade?


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ARTAUD – Assim, não, eu não sei.

JUIZ – E o senhor sabe bem ao certo o que é a crueldade?

ARTAUD – A crueldade é extirpar pelo sangue e até o sangue de deus, a sorte bestial da
animalidade inconsciente humana, em toda parte onde se pode encontrá-la. O
homem, quando alguém não o segura, é um animal erótico, há nele um tremor
inspirado, uma espécie de pulsação produtora de um sem número de bestas que são
a forma que os antigos povos terrestres atribuíam universalmente a deus. Isso fazia
o que se chama de espírito. Ora, esse espírito vindo dos Índios da América jorra
quase em toda parte hoje sob os ares científicos que não fazem mais que acusar o
domínio infectuoso mórbido, o estado acusado de vício, mas um vício que pulula de
doenças, porque, riam o tanto que quiserem, mas esse que se tem chamado os
micróbios é deus, e sabes com o quê os Americanos e os Russos fazem seus
átomos? Eles o fazem com os micróbios de deus.

JUIZ – O senhor está delirando, senhor Artaud. O senhor está louco.

CÔRO EM OFF – O senhor está delirando, senhor Artaud. O senhor está louco.

ARTAUD – (Ameaçando com a bengala) – Eu não estou delirando e não estou louco. Eu
digo que reinventei os micróbios a fim de impor uma nova idéia de deus. Tem-se
encontrado um novo meio de fazer ressaltar deus e de pegá-lo sobre o fato de sua
nocividade microbiana.

JUIZ – O senhor está louco, senhor Artaud.

ARTAUD – É de cravar o coração, lá onde os homens o preferem sob a forma da


sexualidade doentia, nessa sinistra aparência de crueldade mórbida que revisse as
horas onde lhe agrada “tetanizar” e enlouquecer assim como atualmente a
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humnanidade. Ele utiliza o espírito de pureza de uma consciência ainda cândida


como a minha para o asfixiar de todas as falsas aparências que ele espalha
universalmente nos espaços e é assim que Artaud, o Mômo, pode ganhar figura de
alucinado.

JUIZ – Que quer dizer, senhor Artaud?

ARTAUD – Eu quero dizer que encontrei o modo de acabar uma vez por todas com esse
macaco e que se ninguém crê mais em deus todo mundo crê mais e mais no homem.

(Os casais descongelam, saem do cilindro, apanham a mesa e a colocam no lugar onde
estavam dentro do cilindro.)

JUIZ – Ora, é o homem que necessita agora se decidir pela sua castração.

ARTAUD – Como assim?

CÔRO EM OFF – Como assim?

(Os casais agarram Artaud e o levam para o cilindro e deitam-no na mesa. Congelam-se
próximo ao cilindro.)

JUIZ – (Entrando no cilindro.) – De qualquer lado que se tome, o senhor é louco, um louco
varrido. Fazendo-o passar uma vez mais todavia sobre a mesa de autópsia para lhe
refazer a anatomia.

CÔRO EM OFF – Eu digo, para lhe refazer a anatomia! (Três vezes)

JUIZ – É preciso se decidir por colocá-lo a nu para lhe raspar esse animálculo que o faz
coçar mortalmente...
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CÔRO – deus,
e com deus
seus órgãos.

ARTAUD – (Lutando com o Juiz e libertando-se da mesa.) – Pode prender-me se quiser,


mas não há nada mais inútil que um órgão.

(Artaud saca uma faca, mata o juiz e sai do cilindro.)

ARTAUD – Mesmo quando você tiver feito um corpo sem órgãos, então o terá libertado de
todos os seus automatismos e restituído a sua verdadeira liberdade.

(Artaud caminha em câmera lenta e, ainda com a faca na mão, assassina os casais.)

ARTAUD – Então, ele reaprende a dançar o inverso como no delírio dos bailes populares e
esse inverso será ser verdadeiro reverso.

(Artaud vai ao fundo do palco, desliga o rádio e volta-se para a platéia com a faca na mão e
como se fosse dizer algo.)

CAI O PANO

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