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MARCELLO DE OLIVEIRA BECREI (7567930) - NOTURNO

HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Rio de Janeiro: Vozes, 2015.

Em outubro de 2010, o jornal O Globo traz a manchete: Coca Zero, uma heroína
para a Coca-Cola. Naquele ano o produto, lançado em 2006, teve seu décimo sétimo
semestre consecutivo de alta em um período que as vendas de refrigerante, em geral,
estavam em queda. A estratégia de marketing, como explica a diretora-geral da Coca-
Cola, era direcionada à homens jovens, para os quais a palavra diet era um palavrão. O
zero da Coca-Cola, como anuncia sua propaganda, era um prazer sem limites. Na
sociedade pós moderna, este zero, como afirmado, é um jouissance excessivo, um gozar
sem consequências. A sociedade do cansaço (2015), de Byung-Chul Han, dialoga não
só com as questões de consumo e da constante oferta de novos produtos e demandas,
mas analisa as novas formas de subjetividade frente a passagem de uma sociedade
disciplinar para uma sociedade do desempenho, na qual o sujeito é afetado, cada vez
mais, pela violência da positividade.

A sociedade do desempenho, como nos apresenta Han (2015, p.101), é uma


sociedade da autoexploração. Ela se erige sobre uma liberdade paradoxal, na qual o
indivíduo se entrega a uma livre coerção voltada a maximizar seu desempenho 1. Assim
sendo, a sociedade do desempenho só se faz possível com a queda da instância
dominadora. A sociedade do dever, marcada por suas barreiras, limites e imposições, é
substituída por uma sociedade do poder ilimitado. É a passagem de uma sociedade
marcada pelo esquema imunológico para outra neuronal2. Todavia, ao desarticular a
sociedade da disciplina, que produzia loucos e delinquentes, o que se coloca é uma
sociedade que produz depressivos e fracassados3, em que liberdade e coação se
confundem em uma busca incessante por desempenho4. É a virada da biopolítica para a
psicopolitica5.

Como afirma, é o excesso de positividade da sociedade de desempenho que faz


do homem pós moderno um animal laborans hiperativo e hiperneurótico6. Esta
mudança do paradigma da sociedade disciplinar à sociedade de desempenho perpassa

1
Han, 2015, p.29-30.
2
Han, 2015, p.20.
3
Han, 2015, p.24-25.
4
Han, 2017, p.21.
5
Han, 2018, p.40.
6
Han, 2015, p.44.
outros trabalhos do autor. Assim como em A sociedade do cansaço (2015), em Agonia
do Eros (2017), Han afirma que esta passagem é marcada pela necessidade da elevação
produtiva7. O sujeito do desempenho, fruto do esquema positivo de poder, é explorado
com maior eficiência dado que esta “[...] caminha de mãos dadas com o sentimento de
liberdade8”. Assim, esta dialética liberdade-coerção o coloca na posição de um servo
neoliberal que, na dialética hegeliana de servo e escravo, é um senhor que não goza e
um escravo que o trabalho não liberta de seu mero viver9.

Ao trabalhar as novas subjetividades do sujeito pós moderno, Han (2015, p.88)


afirma a impossibilidade de se analisar este a partir do paradigma repressivo da
sociedade disciplinar – por mais que reconheça uma continuidade ao afirmar que este
continua disciplinado10. Se é, como afirma, a violência da positividade que gera o
depressivo11, a leitura freudiana, feita a partir de uma sociedade repressiva que tinha por
verbo modal o dever, não seria capaz de trabalhar com a psique de um sujeito, fruto de
uma sociedade pobre de negatividade12. Este sujeito, enquanto empreendedor de si
mesmo, escapa a negatividade das ordens do outro. A superação da coação externa, no
entanto, o coloca em uma posição de uma autocoerção infindável. A pressão por
desempenho, apresentada por Byung-Chul Han (2015, p.85-86) como uma busca
incessante pela conclusão de suas metas e a incapacidade de as sentir conclusas, remete
à noção lacaniana de objeto a e a incapacidade do sujeito em suprir o objeto faltante – o
que o daria a completude, preencheria a parte que perdeu – o qual, porém, é inatingível
e o faz saltar de objeto em objeto. Assim sendo, na concepção lacaniana, ao sujeito,
nunca falta a falta.

O depressivo, na leitura de Han (2015), é o sujeito de uma sociedade em que


tudo é possível que encontra um limite. Ele é marcado pelo não poder mais poder13. É
resultado de uma sociedade em que se é impossível escapar a si mesmo, em outras
palavras, é o sujeito de uma sociedade sem eros 14. Como afirma o autor, o eros retira o
eu de si mesmo e o aponta para o exterior 15, assim, é fundamentalmente uma relação

7
Han, 2017, p.21; Han, 2015, p.25.
8
Han, 2017, p.22; Han, 2015, p.115.
9
Han, 2018, p.10; Han, 2015, p.117-118.
10
Han, 2015, p.25-26.
11
De acordo com HAN (2015, p.26-27) a violência da positividade é inerente ao sistema.
12
Han, 2015, p.80.
13
Han, 2015, p.28.
14
Han, 2017, p.74.
15
Han, 2017, p.10.
com o outro. Desta feita, a sociedade do desempenho, fundamentada pela
“narcisificação de si mesmo”, conduz ao desaparecimento do outro16. A negatividade é
traço fundamental da separação do eu e do outro. Ela confere a ele a singularidade que
Sócrates chama de atopos17. É através dela que o sujeito se afirma enquanto tal 18. A
sociedade pobre em negatividade, por conseguinte, é o inferno do igual, no qual se
reconhece o outro não em sua alteridade atópica, mas nos traços que remetem o sujeito a
si mesmo19, ou seja, que tem o outro exclusivamente como um espelho para si.

Parte da incapacidade do sujeito de desempenho em estabelecer ligações


próximas com o outro20 se relaciona com a proliferação de novos meios de comunicação
e informação que reforçam no sujeito sua narcisificação dada a oferta incalculável de
opções de outros21 e a erosão das distâncias. A violência saturante e exaustiva da
positividade é rica em vitalidade, a ponto de se ter saúde como uma nova deusa 22. Ainda
assim, como afirma Han (2017, p.52), é uma vida sem vivacidade. A vida sem a
negatividade do não-para é um mero viver. A sociedade do desempenho, assim, é a
sociedade do cansaço excessivo, individual e limitante, próprio de um mundo marcado
pelo excesso de positividade23. O não dizer não é marca da hiperatividade desta
sociedade, assim, seu cansaço é próprio da exclusão da possibilidade de escolha, própria
da negatividade, frente uma suposta liberdade de oferta que se mostra no infindável
número de produtos – desde bens consumíveis à relações em redes sociais - à escolha do
consumidor24. Na sociedade do desempenho a contemplação, própria da cultura humana,
e o tempo de festividade são expulsos por serem opostos ao tempo do hipercapitalismo.
O tempo de trabalho e de lazer 25 se tornam um bloco homogêneo passível de ser
consumido e quantificado. Tempo é dinheiro é a máxima de uma sociedade em que
todas as formas de subjetividade são comercializáveis.

É neste ponto em específico que o filosofo esloveno Slavo Zizek crítica A


sociedade do cansaço. Em Pandemia (2020), Zizek afirma que as novas formas de
16
Han, 2017, p.7-8.
17
Han, 2017, p.8; p.90.
18
Han, 2015, p.14.
19
Han, 2017, p.9-10.
20
Han, 2017, p.92.
21
HAN (2015, p.31) afirma que o excesso de positividade, que resulta da superprodução, superdesempenho e
supercomunicação, “[...] se manifesta também como excesso de estímulos, informações e impulsos”.
22
Han, 2015, p.109.
23
Han, 2015, p.52.
24
Han, 2015, p. 126; Para CRARY (2018, p.55) a “[...] ilusão de escolha e autonomia é um dos pilares do sistema
global de autorregulação [...]”; SALECL (2005, p.18) destaca a ansiedade frente a constante necessidade de escolha.
25
Crary, 2016, p.86-87.
subjetivação são decorrentes de um capitalismo global marcado por suas desigualdades.
A análise sistêmica de Han (2015), portanto, deveria se ater as formas como o
capitalismo, em sua estrutura, se apresenta diferentes regiões – em particular, entre ricos
e pobres. Afirma Zizek (2020) que os trabalhadores manuais do terceiro mundo sentem
à dinâmica capitalista de maneira díspar aos trabalhadores analisados por Han (2015).
Assim, segundo Zizek (2020), Han (2015) deveria notar que o que está ocorrendo “[...]
não é tanto uma substituição, mas uma terceirição [...]” das relações de trabalho. As
atividades manuais das grandes empresas americanas, por exemplo, se deslocam para o
terceiro mundo enquanto mantém atividades imateriais em solo americano. Assim,
Zizek (2020) propõe uma nova divisão de trabalho entre trabalhadores imateriais
autoexplorados, que são trabalhados por Han (2015), e trabalhadores manuais do
terceiro mundo.

Na leitura de Zizek (2020), à cada um destes tipos de trabalhadores há um


cansaço específico. O empreendedor de si mesmo, no entanto, cumpre um papel de
subordinação permanente ao capital que o faz cumprir tarefas de organização do
processo de trabalho, que eram tarefas dos capitalistas – fica, portanto, com as
preocupações inerentes à gestão e as próprias a posição de trabalhador assalariado, ou
seja, a insegurança frente as condições de trabalho. O que escapa à crítica de Zizek
(2020) é o que Crary (2016, p.76) afirma como persistências dentro da dinâmica de
modernização capitalista, ou seja, a manutenção de formas de produção anteriores à esta
modernização. Para além desta crítica, cabe notar que países periféricos passam por
processos similares de alteração nas relações trabalhistas e, sobretudo, nos meios de
comunicação e difusão de informações – a transformação do tempo de lazer em
mercadoria26 também não é uma exclusividade de países desenvolvidos.

De acordo com Han (2018, p.14), o processo de transformação do trabalhador


em empreendedor de si mesmo não é estrito a formas de trabalho imaterial ou a funções
criativas dentro da dinâmica capitalista. É um sintoma desta mudança a inclusão,
proposta pela Prefeitura de São Paulo em 2019, de aulas de empreendedorismo para
alunos do ensino fundamental da rede pública. Assim o é, também, a venda de
smartphones e sucesso de redes sociais no Brasil. Assim, o que Han (2018, p.15) chama
de ditadura do capital, em sua psicopolitica, marca tanto pessoas que ocupam posições

26
Crary, 2016, p.78-80.
socialmente desejadas quanto motoristas de aplicativo e outras formas de trabalhos
precarizados.

Cumpre-se questionar as formas possíveis pelo o qual o neoliberalismo torna-se


possível. Segundo Han (2018), a liberdade de curtir e se mostrar parte desta crise da
liberdade do regime27. Deve-se ter em conta a percepção de que o neoliberalismo não
nega a liberdade, pelo contrário, afirma-a e, assim, a explora. É central a suposição de
que sob o regime neoliberal se é possível encontrar inumeráveis maneiras de satisfação
e que o sujeito é livre para ser quem quiser ser28. Assim, a inerente dialética entre
liberdade e coação que nos apresenta Han (2015) se mantém mediante ao ataque de
todas as formas de vida voltadas à coletividade e cooperação 29. Como afirma Crary
(2016, p.124), na sociedade neoliberal, somos livres “[...] enquanto na verdade vivemos
uma sujeição mais completa ao funcionamento ‘livre’ dos mercados”.

A passividade do sujeito, desta feita, é fundamental à manutenção da sociedade


de desempenho. A crítica de Crary (2016, p.129) ao potencial revolucionário das redes
sociais reforça a afirmação de Han (2015) sobre a impossibilidade do sujeito de
desempenho, que se considera o único responsável por seus fracassos, em se unir em
uma classe. A estabilidade do regime30 parte, portanto, da agonia do Eros, ou seja, a
impossibilidade de relacionar com o outro. O trabalhador que explora a si mesmo
transforma a luta de classes em luta interior 31. Substituí o Grande Irmão orweliano pelo
seu reflexo na tela do celular. É incapaz de notar as formas com as quais o
neoliberalismo transforma “[...] todas as relações humanas em relações comerciais 32”.
Para ficarmos com a conclusão de Byung-Chul Han (2015, p.128), “já é hora de
transformar essa casa mercantil novamente numa moradia [...] onde valha mesmo a
pena viver”.

BIBLIOGRAFIA
CRARY, Jonathan. 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Ubu, 2016.
HAN, Byung-Chul. A Agonia do Eros. Rio de Janeiro: Vozes, 2017.
___. A sociedade do cansaço. Rio de Janeiro: Vozes, 2015.

27
Han, 2018, p.27.
28
Salecl, 2005, p.11.
29
Crary, 2016, p.124.
30
Han, 2018, p.15.
31
Han, 2018, p.14.
32
Han, 2015, p.127.
___. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Âyiné,
2018.
SALECL, Renata. Sobre a felicidade: ansiedade e consumo na era do hipercapitalismo. São
Paulo: Alameda, 2005.
ZIZEK, Slavoj. Pandemia: Covid-19 e a reinvenção do comunismo. São Paulo: Boitempo,
2020.

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