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Narrativas juvenis: história oral e produção audiovisual no resgate da memória

coletiva do bairro Santa Cândida, Juiz de Fora - MG

Lilian Aparecida de Souza – Universidade Federal Fluminense, Brasil


souzaa.lilian@yahoo.com.br

Conrado Pavel de Oliveira – Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil


conradopavel@yahoo.com.br

Este trabalho pretende pensar a relação que os jovens residentes em periferias


estabelecem com o seu lugar de moradia a partir da experiência da produção do filme
Íris da Candinha. O vídeo faz um regate da memória coletiva do bairro Santa Cândida
em Juiz de Fora, com a perspectiva dos jovens que participaram do projeto “Juventude
conta a história”, criado e desenvolvido pelo Levante Popular da Juventude, com
financiamento da Lei Murilo Mendes de Incentivo à Cultura, da prefeitura municipal da
cidade.
O presente estudo é escrito pelos proponentes do projeto e faz parte do
processo de sistematização das atividades desenvolvidas, objetivando refletir sobre as
mudanças percebidas na relação que os jovens participantes estabelecem com o seu
bairro desde que se inseriram no projeto. Como percurso metodológico utiliza-se
pesquisa bibliográfica, resgatando as contribuições de autores que se debruçaram a
pensar as juventudes e as diferentes mediações que atravessam a vida desses sujeitos,
pesquisa documental, com as entrevistas gravadas a partir da metodologia de história
oral e que foram utilizadas para a produção do Íris da Candinha.

Juventude, periferia e ação


A proposta do projeto “Juventude conta a história” surgiu do Cursinho Popular,
iniciado em 2015. A ideia do cursinho veio de uma necessidade dos moradores, visto
que o bairro tem apenas uma instituição e ensino e esta atende somente o ensino
fundamental. Assim, militantes do Levante Popular da Juventude em articulação com a
direção da escola e lideranças do Santa Cândida criaram o Cursinho Popular para

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aprofundar os estudos dos alunos do 9° ano da escola para que pudessem prestar os
processos seletivos de ingresso no ensino médio e técnico no Instituto Federal Sudeste
MG – campus Juiz de Fora, facilitando assim o acesso ao direito fundamental de
educação de pública, gratuita e de qualidade.
O Cursinho compõe a rede nacional de cursinhos populares “Podemos +”, que
conta com 20 iniciativas em várias regiões do Brasil. A proposta político-pedagógica
está articulada a uma leitura crítica da sociedade, pois compreende-se que para cumprir
seu real papel, a educação não pode ser encerrada no campo da pedagogia, tem de sair
pelas ruas, abrir-se para o mundo (MÉSZÁROS, 2005).
Nesse sentido, o Cursinho pretende ir além da aprovação no processo seletivo,
contribuindo para o desvelamento da realidade que os estudantes vivenciam. Deste
modo, outro objetivo foi colocado: ser um espaço de debates sobre os temas que são
caros aos jovens, contribuindo na recuperação da memória histórica e protagonismo das
juventudes. A necessidade desse trabalho foi confirmada quando os militantes do
Levante perceberam que os jovens estudantes em algumas de suas falas acabavam
reproduzindo estereótipos e estigmas, tratando o bairro e seus moradores,
principalmente os outros jovens, como violentos e perigosos.
Segundo Moscovici (2003, p.33) cotidianamente palavras, ideias e imagens
“penetram nossos olhos, nossos ouvidos e nossas mentes, quer queiramos quer não e
que nos atingem, sem que o saibamos”. E isso acomete também os jovens, visto que são
sujeitos sociais que vão construindo os seus sentidos de ser jovem a partir das
experiências vivenciadas de acordo com o tempo e espaço aos quais estão inseridos
(CASSAB, 2009).
Nesse sentido, os jovens do Santa Cândida são sujeitos que tem na dimensão
espacial marcada pelas desigualdades, um elemento essencial em sua definição de
juventude. Isso porque o bairro é apenas um dos muitos bairros periféricos da cidade
que ficam à margem dos processos urbanização. Carinhosamente chamado de Candinha,
ele cresce tal como qualquer periferia do Brasil, cheio de restrições materiais e
simbólicas (BARBOSA, 2016).
É composto majoritariamente por trabalhadores negros assalariados que
convivem diariamente com infraestruturas insuficientes, precarização de equipamentos
e serviços, poucas opções de lazer, problemas com o transporte público, violência, entre
outros. Entretanto, o bairro carrega a força de seus moradores, principalmente das
mulheres, que através de sua organização para fazer reivindicações, conseguiram
melhorias para a comunidade. Porém, isso os jovens participantes do projeto
desconheciam, e acabavam reproduzindo os estigmas que também sofriam.
A interpretação dos relatos permitiu identificar que existiam consensos nas
imagens atribuídas ao Santa Cândida. Isso se explica, de acordo com Cassab e Mendes
(2013), porque o imaginário social tem a dimensão política e também a espacial, dada

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pelas representações que são atribuídas aos lugares. A ideia difundida de que as
periferias são locais homogeneizados pela violência esconde a realidade de que elas são
a concretude do processo de urbanização, que cria uma imensa massa de pobres.
Criminaliza-se a pobreza ao invés de questionar suas causas e, nesse processo, as
periferias só aparecem nos meios de comunicação em matérias sobre assassinatos,
tráfico de drogas, etc., e essas notícias acabam por estimular o imaginário de
insegurança referente a alguns territórios e grupos, sendo os jovens residente das
periferias pobres das cidades, os principais alvos (CASSAB; MENDES, 2013).
Estes sujeitos jovens estão nas cidades, ajudando a construí-las material e
simbolicamente, mas muitas vezes, não se reconhecem como parte delas. A estes
jovens, o acesso a direitos sociais não é garantido e o ir e vir é controlado, vigiado,
quando não é negado, em função do processo de estigmatização e preconceitos que
associam de forma direta os jovens à violência.
Desse contexto veio ideia de se trabalhar a compreensão sobre os sentidos de
ser jovem e morar em um bairro de periferia. Para tanto, elaborou-se o projeto
“Juventude conta a História”, que tinha como objetivo “trabalhar o protagonismo
juvenil, o fortalecimento da autoestima, os processos de formação de identidade e o
pertencimento com o espaço onde vivem, a partir do resgate da história do bairro Santa
Cândida” (SOUZA; OLIVEIRA, 2015).
Para alcançar tal objetivo, foram realizadas oficinas de história oral, que de
acordo com Meihy e Ribeiro (2011) consistem em entrevistas com pessoas que podem
testemunhar sobre acontecimentos ou aspectos do passado e do presente através de
narrativas orais carregadas de memória e de identidade, possibilitando o contato com
perspectivas que muitas vezes não estão presentes em outras fontes. Também oficinas
de produção audiovisual, que resultaram no na gravação dos depoimentos dos
moradores. Ao final de todo esse processo, que durou cerca de 6 meses, o filme Íris da
Candinha foi apresentado à comunidade em abril de 2017.
Nesse mesmo ano, o Íris da Candinha foi agraciado como melhor filme pelo
voto do público no Primeiro Plano – Festival de Cinema de Juiz de Fora e
Mercocidades. Além disso, foi exibido em todas as turmas da escola e anualmente é
apresentado aos novos alunos, promovendo debates sobre a história do bairro, que se
funde e confunde com a história de vida de seus moradores.
Isso granha importância à medida que é através do bairro que os jovens
constroem sua história de vida individual como parte de uma história coletiva, iniciam
seu movimento pela cidade, estabelecem sua participação nos espaços públicos, as
relações com os outros e definem sua identidade. Nesse sentido, o projeto contribuiu no
processo de apropriação da história da comunidade, de suas dinâmicas e acontecimentos
cotidianos, ajudando os jovens a desvelar as imagens atribuídas ao Santa Cândida,
estreitar os vínculos com o lugar de moradia e estabelecendo relações que os fazem

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experimentar novas redes de sociabilidade, entrando de forma mais densa na vida
pública (CASSAB, 2016).
A fala de um dos jovens mostra esse processo. Quando questionados sobre o
que mudou em suas vidas a partir da participação na produção do filme, ele responde:

A gente começou a sair mais de casa, porque eu só ficava no meu


quarto (...), comecei a sair mais de casa e minha cabeça não mudou,
mas as ideias mudaram. Eu comecei a escrever poesia, conversar mais
com a galera, a dançar junto com o Afro1. Tudo isso me ajudou a
perceber que o mundo não é só o meu quarto, que o mundo tem muito
mais coisa, que o Santa Cândida a gente olha pra ele e não chama
atenção, mas se você entra nele, anda por ele você percebe que tem
muita coisa interessante, tem muita gente interessante aqui para
conhecer. (ÍRIS DA CANDINHA, 2017)

Através da produção do Íris da Candinha os jovens se colocaram de forma mais


ativa no bairro e em Juiz de Fora. Como diz um dos participantes do projeto “nós
explodiu”, pois foram convidados para exibir filme em diversos eventos, como: o
Colóquio Cidade, Memória, Educação para outras sensibilidades, organizado pela
Secretaria Municipal de Educação; Acampamento Regional Zona da Mata do Levante
Popular da Juventude, realizado no Instituto Federal Sudeste Minas Gerais, campus Juiz
de Fora; evento Psicologia para quem?, organizado pelo Conselho Regional de
Pscicologia da Zona da Mata; mesa Juventude, Cidade e Mémória, produzida pelo
Nucleo de Pesquisa Geografia, Espaço e ação, da UFJF, entre outros. Nestes, os jovens
produtores puderam apresentar seu documentário e debater sobre a experiência de sua
construção e o que mudou em sua vida a partir de sua produção.
Segundo Adenilde Petrina, liderança do bairro “as pessoas ‘do asfalto’ tendem
a ver o Santa Cândida como improdutivo, mas o filme surge, também, para que elas
possam conhecer nossas lutas e ações e para que tenham mais respeito pelos moradores
e pela periferia” (UFJF, 2018, s/p). Ainda de acordo com a militante, o filme demonstra
“o protagonismo dos jovens em relação à sua própria história, dá visibilidade ao seu
trabalho e contribui para que o asfalto os valorize e as suas produções.” (UFJF, 2018,
s/p).
Para nós proponentes, também autores deste trabalho, o mais importante foi
perceber que os jovens mudaram sua forma de perceber o bairro e a si mesmos,
entendendo-se como sujeitos protagonistas da história, estimulando assim o
desenvolvimento da participação social. Nesse sentido, alguns dos jovens se inseriram
no Coletivo Vozes da Rua, principal movimento organizado do Santa Cãndida, no qual

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Afro Rudy – grupo de breakdance, um estilo de dança parte da cultura hip-hop.

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assumiram as tarefas de construção de iniciativas como o Slam de Perifa e o Agosto
Negro, entre outras. Também se somaram ao Levante e participam atualmente da
organização do Cursinho Popular, e hoje são referência no bairro.
Analisa esse processo Carlos (2001), quando afirma que na esfera do vivido os
sujeitos vão criando e recriando significados em torno de suas experiências de vida e é
através da criatividade que as resistências são travadas na dimensão do cotidiano,
configurando-se como possibilidade para sua afirmação como sujeito produtor do
espaço e para a subversão da ordem que os excluí da vida urbana. Acredita-se que os
jovens do Candinha a partir do momento em que se reconheceram como sujeitos,
passaram a ocupar as ruas, o bairro e a cidade para fazer política e fazer arte, lutando
contra a desigualdade socioespacial a que estão submetidos.

Referências (References)
CARLOS, A. F. A. Espaço-tempo na metrópole. São Paulo: Contexto, 2001.
CASSAB, C. (Re) construir utopias: jovem, cidade e política, 2009. 228f. Tese
(Doutorado em Geografia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009.
CASSAB, C. Da casa para a rua: a dimensão espacial da juventude. In: CAVALCANTI,
L. S.; CHAVEIRO, E. F.; PIRES, L. M. (Orgs.) A cidade e seus jovens. Goiânia: PUC
Goiás, 2016, p.137-158.
CASSAB, C.; MENDES, J. T. N. Programas Habitacionais e a Produção do Espaço:
Processos de Des-Re- Territorialização de Jovens Pobres em Duas Cidades Médias.
Revista de geografia, Juiz de Fora, v. 3, n. 1, p. 1-8, 2013.
ÍRIS DA CANDINHA, Matheus Silva. Filme. Lei Murilo Mendes de Incentivo à
Cultura: Juiz de Fora, 2017.
MEIHY, J. C. S. B.; RIBEIRO, S. L. S. Guia prático de história oral. São Paulo:
Contexto, 2011.
SOUZA, L. A.; OLIVEIRA, C. P. Projeto Juventude conta a história. Juiz de Fora: Lei
Murilo Mendes - FUNALFA, 2015.
MÉSZÁROS, I. A Educação para além do Capital. São Paulo: Boitempo, 2005.
UFJF, Universidade Federal de Juiz de Fora. Evento Juventudes, Cidade e Memória
exibe documentário sobre Bairro Santa Cândida. In: UFJF Notícias. Disponível em:
https://www2.ufjf.br/noticias/2018/07/02/evento-juventudes-cidade-e-memoria-
exibedocumentario-sobre-bairro-santa-candida/. Acesso em: 10/12/2018.

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