Terminei a leitura do Diário II em uma noite. Num primeiro momento,
parecemos capazes de escrever páginas e páginas com impressões sobre a vida de Lúcio naqueles 10 anos (51-62), mas logo é o silêncio que nos domina, silêncio no qual a voz de Lúcio canta-e-grita: gritos de loucura, cantarolados de meninice. O que nos diz ele nesse diário? Quais as ênfases, o leitmotiv, a espinha dorsal? Qual a linha condutora, quais as ideologias, os rigores da convicção religiosa ou das ideias políticas? Resposta: Lúcio não se deixa entender, compreender, por esse ou aquele recurso lógico. Seu método é a derivação, a errância, os rios e as estradas são suas paixões… Caminhos, encontros possíveis, indagações que se multiplicam indefinidamente; a Fé não conforta, não ancora, não aplaca os Infinitos que se acotovelam dentro do seu pensamento, incontornavelmente rebelde e rebelado. As tempestades e as bonanças sucedessem-se em seu coração: tempestades intermináveis, breves períodos de bonança. Mas há algo que me intrigou profundamente: a saga da escrita da Cônica da Casa Assassinada, praticamente, não aparece nesse diário. Sim, porque essa obra, convenhamos, não é de simples execução, ainda que seu autor, como é o caso, fosse um gênio. Não é possível que isso não se explique de alguma razão! A gênese da Crônica, desde que a li pela primeira vez em 1968, sempre me pareceu algo que não podia deixar de ser espetacular. Nesse período que o Diário II perfaz, Lúcio demonstra dificuldades intransponíveis para realizar-se na vocação de escritor. Dá-nos a impressa (que acaba sendo falsa!) de ser incapaz de produzir uma simples redação escolar. Assim, constatamos que a escrita/construção do romance O viajante (que lhe parece tão caro, e ele morre sem concluí-lo) aparece inúmeras vezes nesses dez anos: Em janeiro de 1951, ainda no Diário I (este, como sabemos, publicado em vida pelo autor!) aparece a primeira referência: “Escrevo O viajante, com o mistério e a lentidão de quem abrisse aos poucos uma janela para uma paisagem inteiramente agreste e desconhecida” Na segunda menção a esse romance, ainda em 1951, Lúcio inicia o rosário de lamentações que vai até 1962, quase que invariavelmente lamentando as dificuldades de realizar esse projeto, mas sempre reafirmando o sonho de concluí-lo. São mais 2 menções ainda no Diário I. Já no diário II, temos: Em 1951, primeiro ano do Diário II: 8 menções. Vejamos o que diz em duas delas: Em agosto de 51: “Continuo a escrever O viajante, mas sem encontrar a forma adequada à história. Além do mais, o estilo é arrastado, não vive e nem explode como eu desejaria.” (Pág. 369) Em dezembro de 51: “Escrevo novamente O viajante, uma versão que me agrada bem mais do que a primeira.” Depois, nos cinco anos que transcorrem (de 1952 a 1956), não se encontra nos diários nenhuma referência a O viajante. Apenas em outubro de 1957, ele registra: “…tratar de pôr de pé os velhos esteios de O viajante.” Ainda em 57, aparecem mais duas menções da elaboração desse romance. Em 1958, logo em janeiro, ele diz: “Escrevi hoje vinte páginas de O viajante – e com que élan, com todo o entusiasmo do meu corpo e do meu espírito.” Num registro seguinte, ele diz: “Trabalho: O viajante. Nunca, em minha vida, escrevi com maior regularidade. A narrativa flui como água que corresse de um veio natural. À noite, angustiado, sonho com soluções e situações que ainda não tinha deparado – tudo de uma terrível, de uma sufocante beleza.” Logo depois, em fevereiro: “Luto, em vão, com o terceiro capítulo de O viajante. Parece-me, não sei, que tinha seu desenvolvimento suficientemente amadurecido. Escrevo, mas o que escrevo parece-me sem graça…” Em março: “O viajante encaminhando, célere, para o fim.” Em agosto: “A extrema dificuldade com que avanço no O viajante: o romance parece permanentemente travado.” Em outubro: “No momento, passo à máquina O viajante. O romance cresce e se adensa nesta nova versão. Ainda não atingi cinquenta páginas, mas o ritmo do trabalho vai em ascendência: começo a pegar fogo e a sentir que o volume de trabalho aumenta em minha mãos. Isto me enche de uma orgulhosa felicidade.” Há mais 2 registros nesse ano. Em 1959, 1960 e 1961, não há referências a esse romance. Em 1962, janeiro, aparece a derradeira menção a esse projeto: “Acho-me diante deste ano que começa, diante de dois compromissos que considero graves: a publicação de O viajante, que sem ser uma continuação da Crônica da casa assassinada, é uma sequência diretamente ligada a este romance, e a do “Diário II”, que aprofunda e amplia ideias expostas no primeiro. Há mais de dez anos que temas e planos de O viajante vivem comigo.” Já em relação à Crônica, encontramos os seguintes registros: Em setembro de 52, há uma anotação que tanto poderia ser do O viajante quanto da Crônica: “Prazer em se descobrir de novo: o romance ressurge e é como uma fonte que no escuro da noite recomeçasse a jorrar…” O mais provável é que se refira a O viajante. No mesmo mês, no dia 24, aparece: “Ontem, jantando com Vito Pentagna, falei durante todo tempo sobre o meu romance, sentindo que muitas coisas esparsas se cristalizaram no momento. Depois, não me é fácil falar noutro assunto, já que nada mais me interessa neste momento.” Também aqui não é possível assegurar de que romance se trata. Em outubro desse mesmo ano, ele faz um balanço do ano: “Estamos no fim deste ano que jurei ser decisivo para mim; não posso dizer que não tenha lutado, mas é extraordinário como todas as coisas fugiram das mãos.” Ainda nesse mesmo mês ele informa: “Começo a passar a limpo o volume II deste Diário. E, curiosamente, em dezembro, dia 14, encontrando-se em Recife, ele anota: “Durante a noite, insone, levantei-me e escrevi mais um capítulo da Crônica.” É a primeira menção da Crônica no diário. Em janeiro de 1953, há o registro: “Ontem disse a Vito Pentagna: ‘Não sei o que me impede de trabalhar, de concluir meu romance. Nunca tive tanta ordem na vida.’” Essa referência só pode ser à Crônica.