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ENSAIO SOBRE A MULHER BELA

Acautele-se o leitor quanto à decepção que o


assaltará ao final da leitura deste texto. É que,
simplesmente, o tema da mulher bela se encontra além
da razão humana, envolto nos mais “sólidos”
mistérios, só o percebemos com redobrado esforço.
Ainda assim, ele se nos apresentará entre névoas e
suposições.
Mesmo um homem que tenha vivido por muitos
anos, e observador atento, só terá encontrado, durante a
vida inteira, umas poucas mulheres belas: três, cinco,
menos de sete ― e, delas, se recordará com
surpreendente fulgor. Talvez, aqui, deparemos uma das
características sutis da bela mulher: sua imagem
dificilmente se apaga da memória de quantos a
contemplaram; muitos guardam até a hora do dia, a
atmosfera do momento, uma nesga de sol que
transpassasse a copa de uma árvore e viesse se
fragmentar na calçada onde ela passava.
Logo precisamos considerar a diferença entre
mulheres bonitas e mulheres belas. E a etimologia do
verbo considerar, de “sidus”, astros, nos incentiva a
recorrer também aos astros para a tarefa a que nos
propomos. Mulheres bonitas desfilam em profusão
pelas avenidas do planeta, com mais ou menos
requinte, com mais ou menos artificialismos, fazendo
uso “in extremis” de todo tipo de “embelezamento”,
desde recursos caseiros até os mais sofisticados e
dispendiosos disponíveis no mercado.
Se um homem quer encontrar uma bela mulher,
deve evitar os concursos de “miss”. Lá, quando muito,
haverá mulheres tipicamente bonitas, corpos em
conformidade com padrões de pesos e medidas. A
radical diferença está em que a mulher bela é capaz do
prodígio de transmitir beleza muito além do corpo. A
beleza, nelas, é a verdadeira magia, uma trama de
sentidos e impressões cuja radical conseqüência é
cairmos prisioneiros incondicionais da sua presença. E
quanto constrangimento nessa rendição do olhar que, a
despeito de esforços sobre-humanos, não consegue
desvencilhar-se da imagem sedutora! Encontrar, onde
quer que seja, uma mulher bela traz quase sempre mais
desalento do que prazeres. Ter de, doravante, arrastá-la
consigo para todo o sempre; enganar-se com a
impressão de ver seu rosto iluminado no rosto de
outras mulheres, a respiração suspensa diante do
reencontro iminente; imputar-se um desajeito
irremissível na hora em que podia ter tentado dizer-lhe
algumas palavras, e a mente atordoada travou a voz
num silêncio ignóbil; retornar ao lugar em que a viu,
humilhando-se nessa atitude ridícula e frustrante; e o
pior: procurar remediar essa perda cruel em simulacros
de frios abraços.
Numa rua onde morei durante anos, havia uma
mulher bela. Um vizinho, uma vez, me alertou: “É
espantosamente bela!”. Ficamos de tocaia, certo dia,
sentados no meio-fio à espera de que ela passasse. Era
uma rua comum, casas meio antigas, algumas
precisando de pintura na fachada. O dia estava
encoberto, e, à medida que a manhã avançava, um
mormaço forte ia nos desanimando, turvando a visão
encantada que esperávamos. Só à tarde, lá pelas 5
horas, ela surgiu na esquina, entrando na rua. Vinha de
cabelos soltos, vestido rodado, parecia andar em
câmara lenta, mas logo se encontrava na nossa frente.
Parou um instante, como que para descansar da
caminhada, sorriu e nos disse um discreto “Oi!”.
Seria supérfluo falar da sublevação atmosférica
no instante desse “Oi!”. Outro sol, que no longínquo
poente, perfura nuvens com suas espadas de ouro e
instala, sobre a rua, a cúpula de uma mundana catedral.
Numa casa próxima, um homem velho, que se deixava
levar sem rumo, na ida e vinda de uma cadeira de
balanço, põe-se de pé e admira o azul do céu,
subitamente adornado por uma alcateia em chamas,
todos os lobos com peles de cordeiro douradas. Um
cão, que viera ao gradil da frente, os olhos
melancólicos diante de um imutável que apenas se
turvava pela aproximação da noite, ergue-se nas patas
traseiras como se vencido o infinito que o distancia do
homem ― seus olhos, agora, refletem o cristal que
vem dos olhos dela. E, assim, cada fragmento do
amorfo nada, que sustenta cada coisa viva ou morta,
vibra seus inaudíveis bronzes numa sinfonia de espanto
e cismas. A beleza dessa mulher que passava nos
deixou de prêmio uma noite de interminável insônia.
Por fim, tolo é aquele que supõe poder
conquistar ou possuir uma bela mulher. Já nem falo do
ciúme, parceiro sombrio da propriedade sempre
ameaçada. Para o homem, nada lhe será mais
ultrajante, nada o fará sentir-se mais insignificante do
que o sexo ou a algema com que imagina desfrutar ou
aprisionar o corpo dessa mulher. O gozo loucamente
perseguido converter-se-á no vazio mais cruel, no qual
o macho esconderá sua pequenez e fragilidade.
Esmurre as paredes, mate ou morra, a sensação de
impotência será irrevogável.
Essa mulher existe apenas para desacreditar toda
a crença nos tesouros terrestres ou celestiais, no futuro
ou na eternidade ― ela é a simples e mágica pétala de
encantamento na efêmera e absurda existência humana.
***

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