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Ditadura da beleza

Será isso então o sinal do declínio das normas estéticas coletivas e da tradicional “ditadura” da
beleza? Longe disso. Na verdade, quanto mais a autonomia dos indivíduos é reivindicada, mais
se intensificam as servidões da aparência corporal, as “tiranias” da beleza em todas as idades, a
exigência de conformidade ao modelo social do corpo jovem, esbelto e firme. Quanto mais
legítimas as exigências hedonistas, mais se afirma um mesmo ideal de beleza, tanto mais os
indivíduos requerem intervenções tecnológicas e desempenho em matéria de aparência. Assim,
vemos a cirurgia estética ter um desenvolvimento espetacular. Para construir uma imagem de si
jovem, musculosa e esbelta, as academias de ginástica se multiplicam, os homens e
principalmente as mulheres fazem regime, se tornam consumidores bulímicos de cuidados
corporais, de cremes reestruturantes, de produtos light e orgânicos. Um superconsumo de
produtos estéticos que tem por contrapartida um culto ao corpo inquieto, obcecado, sempre
insatisfeito, marcado pelo desejo antiidade, antipeso, antirrugas, por um trabalho interminável de
vigilância, de prevenção, de correção de si. E amanhã? Alguns anunciam o recuo ou o
desaparecimento próximo desse modelo despótico de beleza, antinômico à valorização da
diferença, do pluralismo e da singularidade individual. Enquanto se multiplicam as críticas ao
“dever da beleza”, a marca Dove realizou campanhas publicitárias que apresentam corpos menos
perfeitos, mais arredondados, com o fim de promover uma definição mais ampla da beleza e de
realçar a autoestima das mulheres. Alguns costureiros põem para desfilar “mulheres de verdade”,
menos perfeitas; em 1999, apareceu a “modelo deficiente”, Aimee Mullins, num desfile de
Alexander McQueen. A mesma Aimee Mullins, que teve as pernas amputadas, se tornou a musa
da L’Oréal. Outras propagandas apresentam mulheres de idade mais madura. A revista alemã
Brigitte resolveu, em 2010, não publicar mais fotos de modelos profissionais e recorrer apenas a
modelos amadores, “de sete semanas a 81 anos”. Deve-se então falar do colapso dos estereótipos
da beleza ideal, do fim do culto da juventude e do voluntarismo estético? Nada menos certo. Será
necessário lembrar que essa exigência de tolerância é relativamente velha? O slogan “Fat is
beautiful” se afirmou nos anos 1970, mas seu sucesso simbólico não se traduziu nos fatos. Meio
século depois, é mais do que nunca a magreza que, de fato, se impõe como ideal estético em todo
o globo. A culpa é das mídias? Sim, mas só em parte. A estética da magreza não é um culto
totalmente arbitrário impulsionado apenas pelas imagens publicitárias: razões de fundo, ligadas
ao individualismo moderno, à cultura do domínio técnico, à valorização do princípio do controle
de si, à ideologia da saúde, sustentam a promoção dessa norma estética. No cerne da nossa
cultura estética, é a razão prometeica moderna que atua, animada como ela é pela refutação do
destino e seu processo de otimização sem fim do inato e do existente. O culto contemporâneo da
beleza se realiza sob o signo da não aceitação da fatalidade, da recusa do que é dado que os
valores de apropriação técnica do mundo e do corpo trazem consigo. Um dos principais efeitos
da cultura moderna é, assim, a desqualificação do espírito de resignação, do deixar fazer e do
deixar acontecer, enquanto se encontram legitimados a vontade de controle de si e os desafios
lançados ao tempo e ao corpo. É por isso que o corpo estético tende a ser pensado como um
objeto que se faz por merecer por um trabalho permanente de si sobre si e que podemos
embelezar por diferentes tipos de intervenções técnicas. Zsa Zsa Gabor já dizia isso à sua
maneira: “Não há mulheres feias, só mulheres preguiçosas”.50 São sem dúvida numerosas as
vozes que, apelando para o pluralismo estético, protestam contra os caminhos balizados da
beleza feminina, traçados pelas mídias. Mas a força delas é escassa, comparada com o
demiurgismo moderno que promete uma beleza infinitamente perfectível. Quem pode duvidar de
que, amanhã, as mulheres, e também os homens, quererão ainda e sempre parecer mais bonitos e
mais jovens do que sua idade? É provável que nada detenha a fuga para a frente ativista: recursos
cada vez mais numerosos, cada vez mais high-tech serão utilizados para corrigir as
desgraciosidades do corpo, embelezar o rosto, lutar contra o peso e as rugas.51 Um dia, próximo
talvez, estas serão tidas como uma coisa inconveniente, se não obscena. Hoje já são incontáveis
os astros e estrelas do show business que rejuvenesceram o rosto. E os progressos da medicina e
da cirurgia estética abrem horizontes múltiplos, talvez ilimitados, para a transformação de nosso
corpo de acordo com nossos desejos estéticos. É possível, atualmente, mudar a forma do nariz,
implantar cabelos e reduzir as nádegas, as coxas ou a barriga, aumentar os lábios, obter seios
maiores ou menores. Ainda que, por ora, os resultados nem sempre sejam conclusivos, o fato é
que o corpo inteiro pode ser “designeado”, retocado, remodelado, à maneira de uma obra de arte.
A cultura da beleza-destino (a beleza como “dom divino” ou dádiva da natureza) foi substituída
pelo reinado da beleza voluntarista, por uma cultura ativista e performativa da beleza, expressão
estética do princípio moderno de domínio ilimitado do mundo e de livre posse de si. De resto, a
cultura técnica não é a única a sustentar o ativismo estético. Este também é favorecido por nossa
cultura individualista-consumista-narcisista, em que agradar a si e aos outros, melhorar-se
fisicamente se tornaram atitudes e aspirações legítimas. Em nossos dias, as novas normas do
corpo exacerbam as paixões narcisistas de autovigilância, de manutenção de si, de otimização da
aparência. E os valores individualistas e consumistas levam a querer o que há de melhor para si,
a aceitar menos o inato, a recusar desgraciosidades físicas e as marcas da idade.52 É em toda
parte o ideal do controle de si e da posse de si que triunfa, não obstante o número crescente de
pessoas obesas. Podemos estar certos de que as mulheres de hoje denunciam a ditadura das
mídias e os estereótipos do belo sexo, mas é duvidoso que sejam realmente relativistas em
matéria de beleza e que adiram futuramente à ideia de pouco-caso com o corpo e de uma beleza
igual de todos os corpos e rostos. As mulheres rejeitam a beleza irreal exaltada pelas imagens
midiáticas, mas, secretamente, como não sonhar com ela? Tudo leva a pensar que a pressão dos
estereótipos e a norma de uma beleza ideal não desaparecerão, ainda que, nas sondagens e na
vida cotidiana, as mulheres fustiguem as imagens inacessíveis da beleza. Não se conhece
sociedade sem modelo ideal de beleza, sem valorização e desejabilidade do belo. Pode ser que se
veja, no futuro, a multiplicação de mídias que exibam mulheres mais reais, de uma beleza menos
padronizada: mesmo assim, isso não fará desaparecer a busca perfeccionista da beleza, o desejo
de melhorar a aparência, e isso, necessariamente, em relação com os modelos ideais socialmente
reconhecidos. As mulheres condenam à execração pública os modelos “publicitários” da beleza,
mas ao mesmo tempo o prometeísmo estético não para de seguir seu caminho. O relativismo
tolerante está de vento em popa nos discursos contestatórios, mas é um ativismo voluntarista e
tecnicista que é mobilizado para tentar não envelhecer mal demais. Não duvidemos: a “ditadura
da beleza” e a obsessão pela aparência estão longe de constituir um capítulo encerrado da nossa
aventura estética.

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