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Beleza Pura
Déborah Pimentel*
Resumo: A mídia convence que as pessoas belas, com corpos perfeitos, terão sucesso no
amor e nos negócios. A beleza torna-se encobridora da falta em uma franca recusa da
castração. O corpo passou a ser palco da perfeição e da juventude eterna. A identificação
com estas imagens segue um modelo chamado de ego ideal que aponta para o narcisismo e
a tentativa de evitar conflitos e castração, e tem como conseqüência uma falsa idéia de
completude e certo desenvolvimento paranóico com relação ao próprio corpo.
*
Membro fundador do Círculo Psicanalítico de Sergipe e sua atual presidente.
gados através das imagens perfeitas não ca reproduzir o mesmo ou ainda reme-
estão ali para serem alcançados, pois são te a uma reprodução da mesma imagem,
vazios de conteúdo e são construídos ar- isto significa o resgate do mito de Nar-
tificialmente com recursos tecnológicos ciso.
a partir de fragmentos da realidade. Com o advento tecnológico, a ci-
O gozo da imagem vazia é elevado ência faz com que o sujeito tenha a ilu-
à experiência subjetiva. O sujeito, na são de que pode ficar se esquivando da
impossibilidade de ser eterno, se satis- morte ou pode ser eternamente jovem.
faz em manter sua aparência jovial e es- A morte precisa ser aceita. Ela é inevi-
conde de si e dos outros que está enve- tável e só ela dá sentido à vida.
lhecendo. Um corpo que não aceita a Conclui-se que corpos sem morte
ação do tempo e é eternamente jovem, equivalem a corpos sem vida. Isto faz
artificialmente esculpido pelas cirurgi- pensar que corpos perfeitos são sem
as plásticas, traz o imperativo da apa- vida e, por conseguinte, vazios e todos
rência corporal que implica ser belo e iguais (CARNEIRO, 2005).
perfeito como condição básica para ser Não temos uma imagem de nós
feliz. mesmos como velhos, pois este proces-
Esta felicidade, entretanto, traz um so é lento e silencioso, traço a traço,
preço, que é ignorar o corpo particular, ruga a ruga. Percebemos entretanto,
mortal e histórico, uma vez que no ideal com facilidade o envelhecimento do
contemporâneo não há lugar para a Outro. Mucida (2004) lembra que a
velhice ou mesmo para a morte. O cor- palavra velho (vieux), em francês, guar-
po tem deixado de ser o veiculo das da tanto a palavra vie (vida) como o
sensações e do gozo. Tornou-se apenas pronome pessoal eux (eles). Velho é
aparência, é vazio, é para ser visto e sempre o Outro, no qual não nos reco-
consumido, e, na maioria das vezes, nhecemos.
supera a importância da subjetividade A fonte da juventude sempre foi uma
do sujeito e da sua história pessoal. busca humana, justo por não aceitar e
Corpos que não envelhecem fazem reconhecer a morte. A vida eterna é um
parte do sonho das ciências e tecnologia. produto enlatado, industrializado e lucra-
Há uma linha muito tênue que separa o tivo em nome da perpetuação de um so-
cuidado saudável do corpo, de uma posi- nho narcisista e mortífero.
ção compulsiva com a estética. O sujeito A aparência oferece ao sujeito a
não é apenas o que o seu corpo é. Têm identidade de que ele imagina ser de-
também a sua história e o corpo é parte tentor. O sentido da vida no mundo
dela. Esta fronteira depende portanto midiático reduz-se à produção do cor-
do significado que o sujeito dá para o po (KEHL, 2004).
seu corpo e da sua apropriação ou não. Kehl (2003) afirma que o mundo é
A esperança da imortalidade dian- um eterno espelho dos humanos, da sua
te dos avanços tecnológicos, como a mesquinhez e ridículas pretensões.
possibilidade da clonagem humana, O ser e o parecer se confundem.
parece sair do campo simbólico. Questiona-se se é possível ser algo além
O efeito imaginário da clonagem do que se aparenta, ou se é possível
expõe um ideal da contemporaneidade: aparentar justo o que não se é. A apa-
seres com corpos absolutamente perfei- rência é um operador da percepção do
tos e a caminho da imortalidade. No que o sujeito supõe ser (CARNEIRO,
dizer de Maia (1998), se clonar signifi- 2005).
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Os belos corpos são expostos nas é privado do prazer: trata-se de uma de-
revistas, nos outdoors ou na TV, mas fesa contra o medo da morte (MAIA,
paradoxalmente algumas vezes são 1998).
inexistentes uma vez que são retoca- Apesar de existirem outros modelos
dos e alterados pelos fantásticos de identificação, o modelo de ego ideal
softwares de edição de imagens. nos ajuda a entender as mulheres que
Estabelece-se uma impossibilidade querem parecer com aquelas oferecidas
de deslocamento do Eu ideal (lugar do pela mídia, com suas escolhas de objeto
narcisismo) em busca de um Ideal de do tipo narcísico em contraposição a uma
eu (lugar da alteridade), porque neste identificação edípica.
registro do engodo (ser e parecer), os A identificação primária da meni-
ideais inexistem como bens simbólicos. na com a mãe pré-edípica serve de pro-
O narcisismo, ou a imagem de si, como tótipo para as identificações futuras es-
processo estruturante da subjetividade, timuladas pela sociedade de consumo.
adoece e sofre (MAIA, 1998). A mãe fálica é o objeto de identifi-
Costa (1984), fazendo uma crítica cação, completo, perfeito, grandioso. A
aos conceitos de narcisismo de Cristopher identificação narcísica remete a uma
Lash, do seu livro, Cultura do Narcisismo, manutenção do vínculo com o objeto
não o reconhece como o conceito que é visto cheio de poder. A idéia de
freudiano, uma vez que não se adapta à completude projetada mantém a ilusão
imagem criada pelo fundador da psica- de acesso possível a esta plenitude ou
nálise, de um bebê saciado, indiferente a felicidade.
tudo e todos e vivendo a sua plenitude O narcisismo ilimitado, espelhado
narcísica. Para Costa, o narcisismo que é nas imagens de beleza amplamente
referido na atualidade, é o do corpo pri- divulgadas na mídia, tem a função
vado de prazer. Ele ainda se refere a uma encobridora da castração, criando a
doença da cultura do consumo, que é a expectativa de felicidade, bastando a
insatisfação que se reflete na certeza de estas mulheres que se tornem tão belas
que seu corpo está aquém do padrão es- quanto aqueles modelos de perfeição
tético vigente, criado e decretado pela (CARNEIRO, 2005).
mídia. Diante de alguém considerado belo
O corpo passa a ser palco da per- (modelos midiáticos), ou perfeito (como
feição e da juventude eterna. Muitas a mãe pré-edípica), este sujeito torna-
vezes, a identificação com estas ima- se impotente, fragiliza-se a ponto de
gens segue um modelo que Chasseguet- sentir uma exacerbada angustia de ani-
Smirguel (apud CARNEIRO, 2005) quilamento. É como se houvesse uma
chamou de ego ideal, um modelo que perda de identidade e o sujeito não se
aponta para o narcisismo e evita con- reconhecesse no seu próprio corpo, di-
flitos e castração, tendo como conse- ante do corpo ideal.
qüência uma falsa idéia de completude A busca da satisfação dessa mulher
e com certo desenvolvimento paranói- começa com a possibilidade do seu en-
co com relação ao próprio corpo. contro com o corpo ideal (FREUD,
O narcisismo freudiano, portanto, [1914] 1980). Freud complementa que,
tem o modelo de constituição normal da para realizar o ideal, o ego enriquece.
subjetividade, enquanto o narcisismo Na realidade, ao se transformarem
contemporâneo é regenerador e defensi- aqueles corpos midiáticos expostos em
vo, passando pela dor e pela violência, e puros objetos de consumo, em ideais de
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vida e sem maiores perspectivas exis- Diante da mídia invasiva que des-
tenciais, estabelece-se um empobreci- fila corpos de beleza pura, o sujeito tor-
mento subjetivo. na-se culpado e se responsabiliza pela
Será que estas mulheres que tratam sua incompetência em ascender à con-
o próprio corpo como objeto, subme- dição do objeto do desejo que se torna
tendo-o a todas as espécies de sacrifí- cada vez mais distante e inacessível. Ele
cios (dietas torturantes, procedimentos se sente irremediavelmente distante dos
estéticos perversos), conseguem sentir- padrões de beleza vigentes e ditados
se satisfeitas, ou será que rapidamente pela sociedade de consumo.
esta satisfação desaparece ao surgirem Há uma espécie de falha na pro-
novas demandas em nome da perfeição messa narcísica da satisfação total, ou
e beleza? Seria uma mera busca pelo seja, em vez de atingir a perfeição e a
ideal ou uma ação superegóica que lhe aspirada felicidade, esta mulher se per-
cobra e exige a perfeição? cebe cada vez mais distante dos seus
Freud em 1923 (1980), no texto “O ideais de beleza, precisando de mais e
ego e o id”, trabalha o conceito de infindáveis retoques. O sintoma é sus-
superego mais uma vez além dos con- tentado pela cultura e pela mídia.
ceitos anteriormente apontados por ele, Essa incompletude fica cada vez
que vão do ideal do ego ao de defesa mais presente quando esta mulher se dá
egóica. Agora ele fala no superego conta da transitoriedade do corpo, e ela
como herdeiro do complexo de Édipo ou recusa o conflito e nega a passagem
e instrumento capaz de garantir inter-re- do tempo (senhoras vestidas feito ado-
lações harmônicas e, por conseguinte, ser lescentes sem se dar conta do ridículo
base para a criação, civilização e cultura. a que se expõem) ou sofrem por fazer
Afirma também que o superego pode ser, uma renúncia narcísica (não raro mu-
algumas vezes, por excesso de moralidade, lheres que sempre estiveram vigilantes
muito cruel, tanto quanto o Id, alimen- deste corpo vilão, de uma hora para
tado pela pulsão de morte e capaz de le- outra abrem mão dos seus ideais e rela-
var o ego ao aniquilamento total. Pós- xam com seu peso e suas formas), dan-
freudianos desenvolvem esta idéia de um do-se por vencidas.
superego arcaico e sádico, como Lacan, O psiquismo precisa habitar o pró-
que a ele se refere como sendo insensato prio corpo, um bem a ser protegido.
e feroz ([1953]1981). Piera Aulagnier, citada por Maia
Muitas dessas mulheres plastificadas (1998), diz que quanto mais ameaçado
estão identificadas e paralisadas diante da é o corpo com risco de morte ou como
imagem da Gisele Bündchen, por uma fonte de sofrimento, mais este corpo é
via narcísica e porquanto a presença de visto como vilão, ou seja, o Eu precisa-
um superego cruel e sádico, arcaico por- rá de um suporte da cultura para ino-
tanto, são impedidas de habitar e se re- centar este corpo da responsabilidade
conhecer no próprio corpo, que é trata- pelo sofrimento e morte.
do como objeto ameaçador, vigiando-o, Este suporte que o sujeito encon-
controlando-o e transformando-o con- tra na cultura é chamado de contrato
tinuamente por motivação estética. narcisista e é oferecido a uma parte da
Essas questões falam além de uma sua libido narcísica que o ajudará com
referência a modelos estéticos. Dizem relação aos laços identificatórios na
também de uma angústia de fragmen- rede social e que vão além da família.
tação, o horror ao vazio. Maia (1998) conclui que a nossa
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Beleza Pura
Referências
CARNEIRO, Cristina. Produz-se um corpo-
imagem: perfeição que vocifera contra nós?
Revista Tempo Psicanalítico, Rio de Janeiro:
Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle – SPID.,
v. 37, p.153-165, 2005.