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J U V E N T U D E E MÍDIA

Uma questão de
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A construção da
subjetividade não
prescinde dos. movimentos
socioculturais em que
está inserida; não é à toa,
Dortanto, que a mídia
exerce grande influência
entre os adolescentes
ao veicular padrões de
consumo e explorar a
temática sexual, ainda
que de forma latente
Por Vera Canhoni,
psicóloga e psicanalista

N
ão é novidade que a mídia cultua
a beleza física, os ideais de potên-
cia e virilidade, a sensualidade e,
não raro, a sexualidade promís-
cua, legitimando o triunfo da aparência e da
imagem em detrimento das individualidades
- que, entrelaçadas pelos afetos constituintes,
inserem o sujeito em uma história singular.
O que importa no contexto da comunica-
ção de massa é a consagração e exibição de
um " e u " com ênfase no consumo e na estéti-
ca corporal, que se torna objeto permanente
de admiração e reconhecimento à medida
^ que for capaz de alcançar os ideais sociais
? capturados na fugacidade das imagens que
I privilegiam a exterioridade,
á Como ressalta o psicanalista Joel Birman em
I O mal-estar na atualidade ( 2 0 0 0 ) , "a mídia se
1 destaca como instrumento fundamental para
u
I que se forje o polimento exaltado de si-mesmo
< pelo indivíduo, que se esmera então para estar
I sempre presente nos meios de comunicação
® de massa, em jornais ou televisão. A cultura
da imagem é o correlato essencial da estetiza-
ção do eu, na medida em que a produção do
brilhareco social se realiza fundamentalmente
pelo esmero desmedido na constituição da
imagem pela individualidade". ji-
Grande parte da mídia utiliza seu poder

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B E L E Z A E FUNDAMENTAL
O ideal de beleza e o
culto da I m a g e m , que
reforçam a importância da
aparência em detrimento
das peculiaridades
individuais, são
características da mídia
que se i m p õ e m aos
jovens e resultam
n u m a busca desenfreada
por felicidade. A
publicidade, como a do
outdoor ao lado,
atua como estímulo
à satisfação pessoal

CONFUSÃO ENTRE O EU E O
No mundo do espetácuio, as exigências de performances que delimitam
as ações encontram no enaltecimento narcísico um forte aliado
Em 5obre o narcisismo: uma introdução (1914), m e s m o , mas por quanto a m a a si por meio do outro
Freud diz q u e u m dos tipos de escolha a m o r o s a , a q u a n d o este se apresenta c o m o projeção de si m e s m o .
narcísica, c o n d u z o sujeito a eleger u m objeto de Assim, há que levar em conta que a m a n u t e n ç ã o d o
a m o r s e g u n d o as s e m e l h a n ç a s que g u a r d a c o m ele. sujeito nesse estrito universo narcísico lhe permite
A projeção de representações mentais pelas quais a evitar o confronto com a diferença radical do outro. É
i m a g e m de si se destaca g a n h a então lugar privilegia- aqui que a mídia inserida na sociedade pós-moderna
do. Ele e n u m e r a quatro c a m i n h o s q u e c o n d u z i r i a m à (pautada pelos conceitos de cultura do narcisismo e
escolha de objeto do tipo narcísico: o que se é, o q u e sociedade do espetácuio) protagoniza a c e n a .
se foi, o q u e se gostaria de ser e a pessoa q u e outrora Para o cientista social e pensador americano
fez parte de nosso si-mesmo. C h r i s t o p h e r Lasch, o traço f u n d a m e n t a l da cultura do
O narcisismo representa u m a modalidade de inves- narcisismo se e n c o n t r a no a u t o c e n t r a m e n t o aliado à
t i m e n t o não apenas pelo fato de o sujeito a m a r a si desaparição da alteridade c o m o valor, e m que o que

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de persuasão para sugerir fórmulas mágicas FORMULAS DE FELICIDADE
e inalcançáveis de felicidade e satisfação, A atividade psíquica, quando regida pelo prin-
num apelo à permanência nas posições mais cípio do prazer, afasta de modo alucinatório
primitivas do desenvolvimento psíquico, con- qualquer evento que possa gerar desprazer.
tribuindo para que a renúncia a um ideal de Mas, à medida que necessidades e exigências
plenitude e completude (tão caro às posições (internas e externas) se apresentam, o apa-
mais narcísicas) não se efetive. relho psíquico se empenha em efetuar uma
O comportamento dos homens evidencia alteração real e a satisfação passa a se dar não
que o propósito de sua vida se orienta para a mais por meio da alucinação, mas de desvios
busca da felicidade, diz Freud, em O mal-estar e adiamentos. É nesses termos que o princípio
na civilização ( 1 9 2 9 ) . De um lado, busca-se evi- de realidade pode ser concebido.
tar a dor, o sofrimento e o desprazer; de outro, Em face de diferentes fontes de sofrimento, P R A Z E R TOTAL
experimentar intensas sensações de prazer ou sob a pressão de inúmeras possibilidades Para escapar do
que, não raro, provêm da satisfação repentina que ameaçam os homens, é muito frequente sofrimento e das
de necessidades represadas em alto grau. Para que se busque certa independência do mundo frustrações, o
a psicanálise, cabe ao princípio do prazer (que, externo - seja pelo isolamento voluntário ou aparelho psíquico
ao lado do princípio de realidade, regula o fun- pela ingestão de substâncias químicas, seja por h u m a n o busca saídas
cionamento mental) nos impor o programa de qualquer outro método de afastamento, como compensatórias, como
felicidade e decidir o propósito da vida. a satisfação obtida por meio das ilusões, nas afastar de m o d o
No processo primário - o mais arcaico dos quais evitar a dor constitui o intuito primor- alucinatório as
processos mentais e único em dada fase do experiências adversas.
dial. É dessa maneira que o ser humano, para
desenvolvimento, a dos bebés - , o princípio O quadro acima,
garantir um prolongamento do prazer, num
dominante é o do prazer-desprazer. Levando O jardim das delícias,
modo primário de funcionamento mental (em
em consideração o ponto de vista económico, pintado na d é c a d a
que não se sujeita ao princípio de realidade),
o desprazer está ligado ao aumento das quan- de 1510 pelo artista
tenta escapar do desprazer, do sofrimento e
tidades de tensão e excitação, e o prazer, a sua Hieronymus Bosch
do confronto com as pressões externas.
( 1 4 5 0 - 1 5 1 6 ) , retrata
redução. Assim, as atividades psíquicas objeti- A função latente da publicidade é justa-
u m a realidade
vam evitar o desprazer e proporcionar prazer, mente estabelecer uma temática de gratifi- paradisíaca,
ou, dito de outro modo, as pulsões (forças que cação e completude, ajustando o prazer à livre da culpa
regem o psiquismo, que se encontram no limi- vivência plena de satisfação. Ao proporcionar
te do psíquico e do somático e são diversas do aos seres um refúgio num universo próprio,
instinto ou das necessidades de autoconserva- os captura e os mantém nesse modo de fun-
ção) procuram descarregar-se pelos caminhos cionamento mental, cujo objetivo é evitar a
mais curtos em busca de satisfação. dor e o sofrimento advindos de um mundo

importa é a exaltação própria do e u .


Aprisionado e m excessivos cuidados, o
e u se transforma e m objeto tanto de sua
própria admiração quanto da dos outros.
Associada a essa nova configuração, des-
taca-se a sociedade do espetácuio, con-
ceito do p e n s a d o r francês C u y D e b o r d
(1931-1994), e m que a exibição do eu se
transforma na razão de ser da existência.
Para os indivíduos que se m a n t ê m nesse
estrito universo, as exigências de per-
f o r m a n c e s que decisivamente delimitam
suas ações e n c o n t r a m no enaltecimento
narcísico um forte aliado. ECO E NARCISO, obra de John W . Waterhouse ( 1 9 0 3 )
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que não se dobra aos desejos e necessidades


n I M C A R R E Y individuais. Assim, a dimensão do princípio
de realidade, em que o desfrute vem acom-
panhado de certo trabalho de investimento e
adiamento, é deixada de lado.
Nessa perspectiva não existe uma regra
que valha para todos; cada qual tem de
descobrir por si mesmo, mediante sua cons-
tituição psíquica, a maneira de encontrar
prazer e ser feliz, de encontrar satisfações,
que jamais aplacarão, diga-se de passagem,
a condição de efemeridade e contingência
própria do ser humano.
Se a pulsão tem sua origem em fontes
de estimulação interna do organismo, se
nenhuma ação de fuga pode anulá-la, se
ela aparece como força constante sem que
um único e determinado objeto coloque fim
a sua infindável pressão, encontramos, no
afrouxamento e na assimetria que se esten-
dem entre a pulsão e os objetos de satisfa-
ção (sempre contingentes), nada mais, nada
menos que a possibilidade de angústia, que
marca o desamparo e o sofrimento psíquicos
nos quais o sujeito está inserido.
Nesse sentido, para não ter de se confron-
tar com o sofrimento e o desamparo, o sujeito
lança mão de modalidades de satisfação como
as veiculadas pela mídia, que instauram a
crença na existência de um objeto capaz de
apaziguar todas as tensões e conflitos ineren-
tes à constituição psíquica.

A TRAJETÓRiA OE KATIA
Muitas vezes a mídia toma-se "prótese identificatória"para crianças e jovens,
uma válvula de escape das vicissitudes da própria história
No reduto protegido da análise, Kátia havia algum materiais e incutem valores, modos de se comportar e
tempo desejava dizer: "Eu sou uma garota de programa". de se relacionar. De forma muito precoce, são seduzidos
De modo emocionado, relata partes de sua história. "Saí por todo tipo de m e n s a g e m ; invariavelmente, por temas
da minha cidade no interior do Nordeste e vim para São e situações referentes à violência e à sexualidade.
Paulo trabalhar como garçonete. Na minha cidade eu só Para Kátia e tantas outras meninas e meninos
tinha acesso ao mundo através de uma pequena televisão entregues à cultura da televisão, o acesso ao m u n d o
que ficava em cima de nossa geladeira e parecia condu- só se faz por essa linguagem, que, ao funcionar c o m o
zir aquele pequeno cómodo onde viviam, além de mim, guardiã de todos os valores, representante d a lei e
meus dois irmãos mais novos, minha mãe e minha avó". signo de e s p e r a n ç a , impera de m o d o absoluto. Para
Em muitos lares crianças e jovens passam a maior eles, a maior parte das referências éticas e morais se
parte do t e m p o diante da TV. Deixam de brincar, constitui por meio da TV.
estudar, conversar com os amigos e vizinhos para ficar "A televisão era a minha porta para o mundo, era
expostos às mais diversas programações veiculadas através dela que eu sonhava... O mundo das nove-
pela mídia, cujos apelos enfatizam o c o n s u m o de bens las me fascinava e me revelava tudo aquilo que eu

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REALITY S H O W
A realidade dominada pela
mídia adquire caráter
performatico, e m que cada
u m parece desempenhar
u m papel, como o d r a m a
vivido pelo personagem
de j i m Carrey (pág. ao
lado), em O show de
Truman, dirigido por Peter
Weir. No filme, T r u m a n
é adotado na infância por
uma rede de televisão, que
o cria num m u n d o fictício.
A vida do personagem é
u m reality show. Reagindo
a essa dimensão artificial
d a realidade, a fotógrafa
americana Cindy S h e r m a n
Sabemos que o desejo humano é inexaurí- TEATRO PERFORMATICO
(ao lado) faz auto-retratos
vel e, na busca de uma satisfação, desliza de um Na contemporaneidade, embora baseadas em
naturalistas para representar
objeto a outro na ilusão de reencontrar aquele valores efémeros e bastante frágeis, as imagens
a mulher na sociedade
objeto perdido, primordial. De acordo com a determinam o que se " é " . Sua ditadura conduz
e discutir a natureza d a
psicanálise freudiana, o objeto da satisfação à crença de que "uma imagem vale mais que mil criação artística
jamais existiu, pois é fruto da condição aluci- palavras", tomada como verdade pelos adoles-
natória do bebé, que o criou em função de um centes. Estes, em virtude da vulnerabilidade de
objeto ausente, por meio do qual toda possibili- seu estágio de desenvolvimento, tendem a ficar
dade de satisfação será então estruturada. mais passivos e sujeitos aos apelos da mídia no
Podemos entrever na configuração das tocante à beleza, ao culto do corpo e ao ideal de
singularidades uma infinita gama de con- completude e de tudo poder realizar.
tingências e combinações que a mídia, na Ainda não têm claro o que é esperado deles
medida em que cultua certas modalidades de nesse novo universo (adulto) que começa a
construção subjetiva, tende a aniquilar. se configurar, nem ante a questão "o que o

poderia conquistar se pudesse passar


para este outro mundo: dinlieiro, carro,
beleza, roupas, perfumes, cosméticos e
até amor e reconhecimento. E é claro
que eu acreditava que tudo isso podia
ser conquistado num pequeno espaço
de tempo, num tempo curto e rápi-
do demais. O trabalho em São Paulo
revelou-se mais duro do que eu podia
pensar e suportar e num certo dia cedi
às propostas para que me prostituísse.
A prostituição parecia o caminho mais
rápido para conquistar o sonho de
menina que tinha encontrado nas telas
da TV. Assim, eu pensava que consegui-
ria tudo aquilo que havia desejado."

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da onipotência narcísica, que se caracterizam,


entre outros aspectos, pela crença em um eu
soberano capaz de obter domínio sobre o
curso dos acontecimentos do mundo, bem
como no poder da realização de seus desejos
por meio do simples pensamento.
É nesse sentido que os apelos da mídia
encontram um forte aliado no jovem quando
sugerem, por meio de frases de impacto, que
as soluções diante dos desconfortos, dos mal-
estares e da insatisfação com o próprio corpo
podem ser encontradas seguindo recomen-
dações que se traduzem de forma imperativa
e mágica: "Emagreça! Perca 10 kg em um
mêsl", "Novidade: cardápio seca barriga!" ou
"Pílula antibarrigal Não fique de fora!".
A necessidade dos jovens de crerem em um
eu soberano e dominante - livre de qualquer
adversidade, acaso e vicissitude, que em certa
medida escamoteiam o reconhecimento da
CÓPIA DA CÓPIA outro quer de mim?". O trabaliio psíquico a morte, da fragilidade diante do mundo e da
Ao estudar a formação ser realizado por eles envolve desprender-se vulnerabilidade em face do incontrolável e não-
do e g o , Sigmund Freud das imagens parentais infantilizadas, remanejar dominável - revela de modo bastante evidente
(acima com Oscar Nemon suas ligações com os progenitores e renunciar que a fragilidade e o desamparo são amiúde
Pôtzleindorf, em 1931) às satisfações infantis, o que lhes gera experiên- ocultados e dissimulados pela mídia, que for-
faia no desejo inconsciente cias inquietantes, bem como incertezas diante nece ao sujeito, no brilho excessivo das perfor-
de se colocar na mesma das mudanças processadas em seu corpo, ao mances corporais, a ilusão que o apazigua.
posição d a pessoa a ser mesmo tempo estranho e vigoroso.
imitada, o que afuda a Aceitar as experiências que estão marcadas
explicar a criação pela dúvida e solidão, rumo à conquista de
de modelos pela mídia uma identidade sexuada, significa ao adoles-
cente poder investir o outro na sua diferença ou
reconhecer as próprias faltas e a própria incom-
pletude - o que a mídia, munida de diversos
instrumentais e apelos em geral, contrapõe.
Os próprios laços sociais inserem o ado-
lescente nessa cultura da imagem, em que o
sujeito vale pelo que ele parece ser. E é nesse
teatro performatico e exibicionista que o sujei-
to goza da admiração que provoca no olhar
do outro e pode "ocupar" a cena social legiti-
mada e valorizada pela cultura do narcisismo.
Desse modo, o próprio corpo, como obje-
to-fetiche, evita que o sujeito, capturado na
MUNDO MATRIX
estética e na estetização do eu num movimen-
Os laços sociais introduzem
to performatico e exibicionista, relativize as
o adolescente na cultura da
imagem e d o exibicionismo, angústias, o desamparo e as incertezas pelas
A internet se t o r n a o vias da simbolização.
cenário de relacionamentos Não nos parece irrelevante acrescentar que
virtuais e de realidades o adolescente, na medida em que é capturado
paralelas, onde se podem nas redes da exaltação narcísica de si mesmo,
viver fantasias ilimitadas busca permanecer no registro do eu ideal e

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Q U A L I D A D E S COMPARTILHADAS
A identificação é a mais remota expressão
DE OLHO NA VEICULAÇÃO
de um laço emocional com outra pessoa e
Alertas ao grande alcance da mídia, organizações buscam
é um processo por meio do qual o ego se
moldará segundo certos traços, caracte-
regular informações nos vários meios de comunicação
rísticas ou comportamentos daquele que Há no Brasil agências e conselhos reguladores que visam assegu-
foi tomado como modelo. É o mecanismo rar que os conteúdos veiculados pela mídia respeitem e m primeira
psicológico pelo qual o sujeito se constitui instância o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal n °
e se estrutura. 8.069, de 13-7-1990), p r o m o v e n d o e d e f e n d e n d o seus direitos.
Freud descreve, em Psicologia de grupo É o caso da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi),
e análise do ego ( 1 9 2 1 ) , três modalidades organização não-governamental que e m suas sugestões aos meios
de identificação: como forma originária de comunicação procura dar acessibilidade aos direitos básicos da
de laço afetivo com o objeto; como subs- infância e juventude, divulgando ideias que d i m i n u a m as condições
tituto de um objeto que foi abandonado de exclusão social. Para isso, conta com site próprio, c o m informes
e perdido, por meio de sua introjeção no e boletins periódicos dirigidos aos profissionais da mídia e com
ego; e como assimilação ou apropriação de programas que os incentivam a buscar e divulgar informações sobre
características de pessoas que não sejam projetos sociais voltados aos jovens.
alvo de qualquer investimento sexual, mas
possuam determinadas qualidades que o
sujeito deseja compartilhar.
Para refletir acerca da mídia como uma
das forças constituintes de subjetividades,
interessa-nos sobretudo trabalhar com essa
terceira fonte de identificação, cujo princi-
pal mecanismo se baseia no desejo incons-
ciente de se colocar na mesma posição que
a da pessoa a ser imitada.
Os sujeitos da cultura do narcisismo
se acreditam soberanos e livres - sem
compromisso para com o outro e/ou com
a própria história ou passado - para tudo
consumir, ser e gozar. Na sociedade do
individualismo, os sujeitos são capturados Outra organização com propósitos semelhantes é o Observatório
na dimensão alienante e onipotente sem Jovem, da Universidade Federal Fluminense, que pesquisa o tema
se dar conta de que o imperativo do gozo da juventude, em parceria com outras universidades e organizações
a que são submetidos é mais tirânico que sociais, enfocando a diversidade, as desigualdades sociais e a educa-
a repressão sexual, pois gozar plenamente ção. A preocupação básica é a transformação histórica da condição
e de modo generalizado é da ordem do juvenil e sua situação contemporânea. O site da instituição apresenta
impossível. A mídia e, em consequência, o entrevistas e reportagens sobre a juventude, agenda de atividades
discurso publicitário são hoje os legítimos dirigidas aos jovens, conferências e publicações voltadas a eles, além
senhores com base nos quais as referências de projetos, documentos e artigos relacionados.
são construídas. Neles, enuncia-se o que se |á o Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária
deve escolher e desejar para que a dimen- (Conar), formado em sua maioria por profissionais de mídia e publi-
são da falta seja obturada, encoberta e cidade, regula a produção e divulgação de propagandas, visando a
suprimida - ilusoriamente, bem sabemos. formação de cidadãos responsáveis e consumidores conscientes. Na
No caso de jovens que se prostituem, área da infância e juventude, procura combater a discriminação, a
como Kátia (ver quadro nas págs. 42 e 43), degradação de valores sociais, a imposição do consumo, entre outras
o ideal do eu, instância psíquica substitu- situações que infrinjam o Estatuto da Criança e do Adolescente.
tiva do narcisismo perdido da infância, Por Laura Battaglia Cavalcanti, psicóloga e mestre em psicologia pela USP.
resultante das identificações com os pais, Mais informações: Andi: www.andi.org.br; Conar: www.conar.org.br;
com seus substitutos e com os ideais Observatório jovem: www.uff.br/obsjovem.
coletivos - que, não raro, se tecem em

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SUJEITO DESCARTÁVEL
A mídia é u m terreno
fértil para a difusão de
valores e padrões a serem
seguidos, que os jovens
absorvem em muitos
formatos, seja no consumo
de m o d a ou no desejo
efémero por novas marcas
de ténis, por exemplo

uma cultura que valoriza e reconhece o outro ção psíquica que, em conjunto, podem levar à
somente pelo viés do apelo sexual - , consti- prostituição como laço privilegiado de encon-
tuirá um modelo a que o sujeito procurará tro com o outro.
conformar-se. Nesse sentido, esse terceiro No entanto, relatos como o de Kátia ofe-
tipo de identificação, enaltecido de determi- recem rica oportunidade para enfatizar que a
nados valores e qualidades compartilhados, mídia, uma vez que encontra um terreno fértil
encontra sólidas bases para sua estruturação. para difundir seus valores ou estabelecer certo
Os caminhos que levam um jovem à amálgama com as peculiaridades psíquicas de
prostituição não estão ligados unicamente cada um, tem seu papel na constituição psíqui-
à influência da mídia, é claro. Seria reducio- ca e nos modos de relação afetiva e social.
nismo apreciar apenas esse aspecto ante as Esse exemplo também toca numa questão
vicissitudes da história particular e estrutura- essencial com base na qual grande parte das
relações humanas passa a se organizar na
atualidade. Centrado no próprio umbigo, o
sujeito não se interessa pelo outro a não ser
como objeto capaz de incrementar e elevar a
auto-imagem. Ao não ser tomado como pura
alteridade, o outro só existe como objeto para
o próprio usufruto. Como tudo aquilo que é
descartável, o "sujeito-objeto" corre o risco de
ser eliminado a qualquer momento, quando,
no caso, não se prestar mais ao enaltecimen-
to de um " e u " , que precisa se proteger do -
desamparo pelas vias narcísicas, sustentadas
pelo olhar do outro.

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destacam como legítimos representantes de UM MUNDO À P A R T E
poder e respeitabilidade. A exaltação do eu
Passam a acreditar que a potência efetiva e a necessidade de
não comporta outras equivalências e o signo autocentramento são
da virilidade fica restrito à possibilidade de defesas do psiquismo
acesso a esses objetos de consumo. Na falta h u m a n o exploradas pela
de uma identidade que os sustente além mídia e m suas variadas
desses objetos, vêem-se confundidos com formas, visuais ou escritas,
eles, dos quais precisam não só para con- muitas vezes resultando no
quistar e seduzir, mas acima de tudo para individualismo e na
poder existir na cena social. dificuldade de reconhecer
a importância do outro
No que concerne à identificação, a consti-
e d a diversidade
tuição subjetiva de tais meninos está atraves-
sada por essas figuras admiradas pelo grupo,
que indiscutivelmente, em muitos casos, a
mídia contribui para legitimar e valorizar.
Além disso, é fato que a fragilidade
(afetiva e simbólica) a que estão expostos
encontra na cultura das drogas, da violência
e da prostituição sexual - explorada explícita
e implicitamente pela mídia nesse caldo de
cultura que se instala mediante diferentes
meios de comunicação - modos de sobrevi-
vência e inserção social.
O exercício da violência e da agressivida-
de é então a contraparte do desamparo e da
PARA CONHECER MAIS
falta de perspectivas em que esses meninos
estão lançados. A agressividade e a violência, O mal-estar na atualidade:
Assim, a mídia contribui de forma exem-
sem sombra de dúvida, denunciam toda a a psicanálise e as novas
plar para o estabelecimento dessa nova confi-
fragilidade - psíquica e identitária - à qual formas de subjetivação.
guração das relações. Ao manter os benefícios
estão submetidos. J. Birman. Civilização
narcísicos e os investimentos na imagem,
As formas de se proteger do desamparo, Brasileira, 2 0 0 0 .
mitiga as possibilidades de desdobramentos
da passividade e da finitude reverberam nos Adolescentes.
psíquicos para que a inclusão do outro em sua
estados de exaltação narcísicos tão caros M. R. Cardoso (org.).
singularidade e diferença possa se efetivar.
àqueles que, à mercê da força e constância Escuta, 2 0 0 6 .
Mais um exemplo dos efeitos da mídia na
das pulsões, necessitam se proteger da dor da
constituição psíquica dos jovens - que per- À guisa de introdução
incompletude, da insuficiência e do vazio que
passa, naturalmente, as fronteiras das dife- ao narcisismo. Escritos sobre
os atravessa. A exaltação do eu ou a necessi-
rentes classes sociais - surge de um grupo a psicologia do inconsciente
dade de autocentramento são defesas em face
de meninos da periferia. Empenhados em (1856-1939).
da pulsionalidade (intrinsecamente conflituosa
tentar descobrir como conquistar meninas e S. Freud. Imago, 2 0 0 4 .
e inquietante) próprias do humano.
mulheres - chamadas por eles de "galinhas", Psicologia de grupo
Desse modo, a insistência no narcisismo e/ou
"danadas" e "putas" (referências extraídas e análise do ego
no " e u " se opõe ao que existe de mais essencial
de exemplos cotidianos e personagens de (1925-1926). S. Freud,
no ser humano: a capacidade de desconstruir
novelas ou programas de televisão) - , são em Edição standard brasileira
o eu soberano como condição para entrever
categóricos ao dizer que elas só estão inte- das obras psicológicas
outras facetas, as quais abrem possibilidades de
ressadas nos coloridos (dinheiro), nas motos completas, vol. XVIIII.
novos arranjos psíquicos tão imprescindíveis à
que esses homens-modelo possuem, nas rou- Imago, 1 9 8 7 .
redução da miséria psíquica. vn^
pas de marca que vestem e nas drogas que O mal-estar na civilização
eles podem oferecer. Na realidade cultural (1927-1931). S. Freud, em
A A U T O R A VERA CANHONI é psicóloga e
em que esse grupo de meninos se insere, Edição standard brasileira das
psicanalista, mestre em psicologia clínica pela PUC-
não é novidade ressaltar que o traficante, o SP e co-autora de Falando de amor: uma escuta dos obras psicológicas completas,
ladrão, o usuário de droga e o fora-da-lei se vínculos afetivos (Agora, 2 0 0 6 ) . vol. X X I . Imago, 1 9 8 7 .

ESPECIAL O OLHAR A D O L E S C E N T E 47
4 I
^•^xérebro
APRESENTA

adolescente
OS INCRÍVEIS ANOS DE TRANSIÇÃO PARA A IDADE ADULTA

ESPELHOS DA
SOCIED
RITOS DE P A S S A G E M • M O R A L E ÉTICA • V A L O R E S E C O N S U M O •
jUVEIMTUDE E MÍDIA • GÉNERO E DIVERSIDADE • MAIORIDADE PENAL •
VIOLÊNCIA • MOVIMENTOS SOCIOCULTURAIS • ADULTOS DE AMANHÃ

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