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ROUSSEAU: UM OLHAR SOBRE A INFÂNCIA E A EDUCAÇÃO
MANOEL DIONIZIO NETO
mdneto@terra.com.br
Dizia Terêncio, citado por Montaigne, que, ao seu ver, se engana "quem imagina ter sua autoridade
mais solidamente assegurada pela força do que pela afeição". [Terêncio apud Montaigne. Ensaios, II,
p. 181] Seguindo este entendimento de Terêncio, Montaigne também compreendeu que se faz
necessário afastar todo e qualquer tipo de violência no trato dos pais com os filhos, bem como do
processo de educação como um todo, conforme deixa-nos dito por suas palavras: "Sou inteiramente
contrário a qualquer violência na educação de uma alma jovem que se deseje instruir no culto da
honra e da liberdade. O rigor e a opressão têm algo de servil e acho que o que não se pode obter pela
razão, a prudência , ou a habilidade, não se obtém jamais pela força". [Montaigne. Ensaios, II, p. 181].
É desse entendimento que partimos para a compreensão daquilo que Rousseau propôs para a educação
da criança, fazendo uma certa revolução copernicana no tratamento dado à infância. Preferimos nos
referir a uma certa "revolução" por sabermos das mudanças que já se processavam no trato com as
crianças por parte de pais e professores. É o próprio Montaigne que nos permite considerar este fato.
Paradoxalmente, até poderíamos dizer, ele apresenta a sua rejeição a uma forma mais afetiva no
tratamento das crianças ainda muito novas, sendo exemplo destas as recém-nascidas, a quem ele não
concebia que fossem beijadas por estarem "ainda sem forma definida, sem sentimento nem expressão
que as tornem dignas de amor. Por isso mesmo foi com desagrado que as tive educadas ao meu lado"
[p. 180]. Esta última afirmação expressa muito bem o fato de que já havia um tratamento mais afetivo
dispensado às crianças desde a sua mais tenra idade. No entanto, conforme podemos entender,
compreendia, por outro lado, a necessidade desta afetividade à proporção em que fossem as crianças
tomando forma definida, ao adquirirem sentimento e expressão que as fizessem dignas de amor.
É também o mesmo Montaigne que nos chama a atenção para a necessidade de educarmos a criança
logo cedo, para que se torne possível dar a ela a formação que seja peculiar a sua natureza. É neste
sentido que nos diz o seguinte: "Os filhotes de ursos e de cães mostram sua tendência natural; os
homens, porém, metendo-se desde logo em hábitos, preconceitos, leis, mudam ou se mascaram
facilmente". [I, p. 74].
É nesta direção que encontramos Jean-Jacques Rousseau, compreendendo que se faz necessário
pensar seriamente no significado da infância que começa com o nascimento da criança que, por sua
vez, deve ser também educada a partir daí. Ou seja: a educação deverá começar a partir do memento
em que a criança vem ao mundo. Assim deve ser por se tratar da necessidade de formamos o homem,
antes que este possa se inserir na sociedade como cidadão. No Emílio, diz-nos da impossibilidade de
formar ao mesmo tempo o homem e o cidadão. Mas, considerando, por outro lado, a necessidade de
termos homens capazes de assumir sua cidadania, faz-se necessário também compreender a
necessidade de formar o homem, o que não poderá ser feito concomitantemente à formação do
cidadão, nem muito menos em um momento posterior. O ser, que desde o seu surgimento no mundo, é
designado como ser humano, não poderá prescindir da sua formação de homem, carecendo assim da
sua educação a partir do seu nascimento.
Voltando-nos, pois, para o significado do que ficou compreendido por Rousseau como homem natural,
temos diante de nós a estátua de Glauco. Esta, depois de ter sido desfigurada pelo tempo, bem como
pelo mar e todas as intempéries, tornou-se um referencial com que deve ser confrontado o homem
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conforme o conhecemos hoje. Para que este homem possa se ver agora tal como o fez a natureza, faz-
se necessário retornar àquilo que ele foi originalmente, pondo à parte toda sucessão do tempo e das
coisas, separando, a partir daí tudo pertencente à sua própria essência daquilo que foi acrescentado do
seu estado primitivo pelas circunstâncias e os seus semelhantes. Assim, temos que considerar o fato de
que, no seio da sociedade que conhecemos, há uma enorme distância entre o homem natural e o
homem social configurada pela alteração da alma humana
... por milhares de causas sempre renovadas, pela aquisição de uma multidão de conhecimentos e de erros,
pelas mudanças que se dão na constituição dos corpos e pelo choque contínuo das paixões, por assim dizer
mudou de aparência a ponto de tornar-se quase irreconhecível e, em lugar de um ser agindo sempre por
princípios certos e invariáveis, em lugar dessa simplicidade celeste e majestosa com a qual seu autor a tinha
marcado, não se encontra senão o contraste disforme entre a paixão que crê raciocinar e o entendimento
delirante. [Rousseau. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, p. 227]
Isto fica reafirmado no Emílio, quando nos diz o autor que "tudo é certo em saindo das mãos do Autor
das coisas, tudo degenera nas mãos do homem" [ROUSSEAU. Emílio ou da educação, p. 9].
Considerando esta degeneração do homem, que acontece na sociedade, é que se pode pensar no
desenvolvimento humano que se dar a partir do nascimento do homem. Assim, a infância passa a ser
considerada por Rousseau o lugar, ou momento do desenvolvimento humano, em que se pode
identificar o ser humano no seu modo de ser mais natural. Pensar, então, a infância deste ser é, na
verdade, pensar no momento em que ele pode se formar enquanto homem natural. É este homem
natural, que identificamos na infância, que se estende dos primeiros momentos de vida até os seus
quinze anos, quando começa a sua adolescência, que antecede o cidadão, que somente podemos
identificar no homem, quando ele atinge a sua fase adulta.
Ou seja: a ausência de uma educação conforme à natureza, que o próprio Rousseau entendeu como
educação negativa, tem como conseqüência todo o revestimento do homem dos seus vícios e
preconceitos. Ao invés do homem natural, temos o homem desfigurado, que somente age conforme os
ditames de uma sociedade corrupta, que cada vez mais leva o homem a corromper-se, de forma que é
cada vez maior a distância da sua aparência atual daquela lhe era própria ao nascer. Dito com outras
palavras, pode ser este homem desfigurado comparado a um monstro, assim como pode ser
comparado àquela estátua de Glauco, referida no seu Segundo Discurso.
Mas, se queremos pensar na formação do homem, com vistas a sua cidadania, é preciso considerar que
o mesmo deve ser educado para ser o homem natural para o qual aponta as determinações da natureza,
ratificando-se assim o que já havia sido proposto por Montaigne, conforme vimos anteriormente,
quando diz da necessidade de educarmos o homem desde sua primeira infância, para que lhe seja
garantida a preservação de todas as suas inclinações naturais, que podem ser corroídas pelo meio
social, revestido de hábitos e costumes que imprimem os vícios e os preconceitos no indivíduo.
Assim, o processo educacional em Rousseau pode ser dividido em dois momentos distintos. O
primeiro destes vai do zero aos quinze anos, quando o indivíduo atinge a adolescência, e o outro que
vai daí até o momento em que se tem o homem adulto, o que acontecerá, segundo o entendimento
rousseauniano, por volta dos vinte cinco anos de idade. Mas é da primeira educação que depende a
segunda, de forma que podemos afirmar ser somente possível o exercício da cidadania plena mediante
a preparação do homem para a sua condição de cidadão, o que não ocorrerá se, antes, o indivíduo não
for devidamente preparado para se firmar como homem, simplesmente, o que guarda neste
simplesmente a sua condição natural de ser. Deste modo, antes de pensarmos no desenvolvimento do
intelecto, havermos de pensar no desenvolvimento de todos os aspectos físicos que constituem o
indivíduo como homem, no seu sentido mais natural que se possa imaginar no seio da sociedade que
conhecemos.
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Reportar-se a esta sociedade que conhecemos se faz necessário, tendo em vista o fato de que é para ela
que se educam os homens. Se partimos deste entendimento, podemos compreender que a educação
primeira é imprescindível, o que seria diferente, se, hipoteticamente, pensamos na possibilidade de
uma preparação do homem para habitar simplesmente na selva, digamos assim, onde somente
poderíamos contar com o meio natural, para o qual se tornou impossível o retorno do homem com o
advento da sociedade, o que muito bem ficou demonstrado no Segundo Discurso. Considerando,
portanto, a importância desta primeira educação, Rousseau nos diz o seguinte:
A educação primeira é a que mais importa, e essa primeira educação cabe incontestavelmente às mulheres: se
o Autor da natureza tivesse querido que pertencesse aos homens, ter-lhes-ia dado leite para alimentarem as
crianças. Falarei portanto às mulheres, de preferência, em vossos tratados de educação; pois além de terem a
possibilidade de para isso atentar mais de perto que os homens, e de nisso influir cada vez mais, o êxito as
interessa também muito mais, porquanto em sua maioria as viúvas se acham quase à mercê de seus filhos e
que então precisam sentir, em bem ou mal, o resultado da maneira pela qual os educaram. As leis, sempre tão
preocupadas com os bens e tão pouco com as pessoas por terem como objetivo a paz e não a virtude, não
outorgam suficiente autoridade às mães" [Emílio ou da educação, nota 1, p. 9-10].
Chamamos a atenção para esta "Nota" de Rousseau, para enfatizarmos a importância que ele dá à
primeira educação, mas também queremos fazer aqui uma referência ao sujeito que aparece no
pensamento de Rousseau como sendo o primeiro do processo educativo: a mãe. Com isto ficamos
sabendo que, segundo o autor do Emílio, não se trata de pensarmos a educação conduzida somente
pelo professor. Os pais são os primeiros educadores, sendo com estes com quem o indivíduo afirma o
seu contrato pedagógico, de forma que fica nas mãos deles a responsabilidade de conduzir o processo
educacional segundo os ditames da natureza ou não. Sendo a mãe, segundo ele, o primeiro educador
que aparece neste processo educacional é com ela que o indivíduo estabelece um contrato para que
seja garantida a sua formação de homem, considerando-se esta no seu sentido mais natural possível.
A questão que fica posta está voltada para o significado de um contrato que se faz entre pessoas de
diferentes condições em termos de liberdade. De um lado, temos o adulto, educador, que, em primeiro
momento, é identificado com os pais, e mais precisamente com a mãe. Por outro lado, temos a criança
que, como bem o diz Rousseau, não é um adulto em miniatura, mas um ser com características
próprias, isto é, um homem ainda em sua infância, momento em que há uma desproporção entre suas
forças e os seus desejos ou necessidades. Neste sentido, a criança, em um primeiro momento, se
encontra a mercê do adulto que lhe aprece como educador; mas, por outro lado, ainda não pode ser
considerado um ser livre, uma vez que não se encontra em condições de fazer as escolhas que lhe são
necessárias à satisfação dos seus desejos; estas condições lhe faltam tanto porque não dispõe da força
necessária para viabilizar esta satisfação, como também não viveu ainda o suficiente para conhecer a
experiência humana de modo a ser capaz de discernir com precisão o sim e o não em suas escolhas.
Poderíamos, portanto, falar de inviabilidade de qualquer contrato entre estas partes, já que entendemos
ser o contrato um acordo afirmado entre pessoas livres, que assim o são devido às possibilidades de
livres escolhas por parte delas. Para que se torne compreensível a possibilidade deste contrato,
conforme o entendimento de Rousseau, há de considerarmos as condições que, direta ou
indiretamente, ele nos apresenta para a viabilização do mesmo. Temos assim de voltarmos a questão
da mãe, isto é, ao significado do primeiro educador.
A formulação desta questão poderia se fazer de uma forma mais simplificada, se perguntássemos pela
possibilidade da afirmação de um contrato em que somente de um lado se encontra um ser livre,
contradizendo o que é racionalmente permitido. Para que bem se entenda isso, faz-se necessário
considerar uma categoria que é forte no pensamento de Rousseau: o sentimento. Temos que ver a
racionalidade humana revista pelo sentimento que a antecede. Neste sentido, é possível compreender
que, na afirmação de um contrato, ao contrário do que parece a primeira vista, não somente se
encontra a racionalidade de ambos os lados; há também sentimentos. Se levarmos em consideração o
significado dos sentimentos nas decisões humanas, haveremos de ver que não há ato humano, por
mais frio ou racional que possamos imaginar, sem que, de uma forma ou de outra, diretamente ou não,
seja antecedido pelo sentimento. De alguma forma, sentimos. É para este sentimento que teremos que
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nos voltar para compreendermos que o homem, mesmo em sua mais tenra infância, já é capaz de
sentir.
Quando nos voltamos para esta questão de sentimentos, que antecede a racionalidade, passamos a ver
numa outra perspectiva a afirmação do contrato pedagógico de Rousseau. Trata-se de um contrato que
terá necessariamente de estar fundado na afetividade entre as partes, para que o mesmo possa ser
viabilizado. O estudo feito por Georges Snyders e apresentado em seu livro Alunos felizes nos coloca
diante desta questão de afetividade que está subentendida no pensamento de Rousseau, quando a
questão proposta é aquela que diz respeito à educação, sobretudo àquela que se dá na infância, e mais
precisamente naquela primeiríssima. Snyders chama muito bem a atenção para o fato de que o
processo educativo não se fará satisfatoriamente se não houver a devida afetividade entre o aluno e o
professor. O mesmo podemos dizer a respeito do que vemos como contrato pedagógico em Rousseau,
que, por sua vez, antecede aquilo que posteriormente ele apresentou como contrato social, o que já
está anunciado mesmo no Emílio. E daí vem-nos a lembrança de Antoine de Saint-Exupéry, em seu O
Pequeno Príncipe: para que seja possível a conquista da amizade de alguém, o que implica na verdade
a conquista da confiança deste alguém em relação a nós, precisamos antes cativá-lo, como o diz a
raposa ao principezinho:
"Tu não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho
necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a
cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no
mundo. E eu serei para ti única no mundo..." [Antoine SAINT-EXUPÉRY. O Pequeno Príncipe, p. 68-69].
Seguindo as trilhas deixadas por Saint-Exupéry, vemos que, depois de muito chamar a atenção do
Pequeno Príncipe para a necessidade de cativar o outro para que o tenha como amigo, a raposa
acrescenta: "só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos" [p. 74]. Daí conclui:
"Os homens esqueceram essa verdade, disse a raposa. Mas tu não deves esquecer. Tu te tornas
eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela rosa..." [p. 74]
Chamamos a atenção para o significado deste "cativar" posto no Pequeno Príncipe para enfatizar a
habilidade necessária de um educador para que se torne possível um contrato entre ele e uma criança.
Se ele não a cativa, de forma que possa se falar da verdadeira afetividade referida por Snyders, não se
torna possível um contrato pedagógico entre um bebê e sua mãe, por exemplo. Da mesma forma se
torna inviável qualquer tentativa de contrato entre um educando e um educador, seja ele em sua fase
mais infantil ou mesmo na adolescência, se é que não queremos aqui também nos referir ao homem
em sua fase já adulta. A grande diferença no modo de estabelecer o contrato está na manifestação do
sentimento pela via da racionalidade, quando o indivíduo já se encontra em condições de verbalizá-lo,
de modo que possa dizer com todas as palavras alguma coisa que possa se expressar como cláusulas
de um contrato. Assim, pelo viés da afetividade, podemos compreender como se firma o processo de
educação em Rousseau, que começa no memento do nascimento da criança, indo até a fase adulta,
quando o homem já é capaz de fazer suas escolhas e verbalizar seus sentimentos através de diferentes
argumentos que pode articular diante do outro que lhe aparece como possível educador.
—————. Ensaios. Tradução por Sérgio Milliet.5. ed. São Paulo : Nova Cultural, 1991. p.
179-188 Lv. II. (Os Pensadores, 18).
—————. Emílio ou da educação. Tradução por Sérgio Milliet. 3. ed. Rio de Janeiro :
Bertrand Brasil, 1995. Tradução de: Émile; ou, De l’éducation.
SAINT-EXUPÉRY, Antoine. O Pequeno Príncipe. Tradução por Dom Marcos Barbosa. 31. ed.
Rio de Janeiro : Agir, 1987.
SNYDERS, Georges. Alunos felizes: reflexão sobe a alegria na escola a partir de textos
literários. Tradução por Cátia Ainda Pereira da Silva. 2. ed. Rio de Janeiro: 1996. 208 p.
Tradução de: Des elèves heureux – Reflexion sur la joie à l’école à partir de quelques textes
littéraires.
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