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CIDADÃO CRÍTICO: FILOSOFIA NOS PRIMEIROS ANOS ESCOLARES

SOUZA, Francisco Xavier de Freitas1


Graduando em Segunda Licenciatura em Pedagogia – Faculdade IBRA

RESUMO
A ideia de formar cidadão crítico através do ensino de filosofia desde os anos iniciais de
escolarização, parte do pressuposto de que as crianças são aptas a pensar criticamente,
ter discernimento e consciência da sua posição e papel enquanto autores sociais. A partir
disso, este trabalho buscou realizar um estudo teórico acerca das concepções de
infância; fazer uma discussão a respeito da educação escolar que vem sendo direcionada
às crianças, além de trazer a discussão sobre o desafio que é formar o cidadão crítico em
um Estado marcado pela lógica burguesa capitalista, que através das mais diversas
instâncias, muitas vezes busca inviabilizar o pensamento crítico dos sujeitos. Nessa
perspectiva destacamos neste trabalho, como a escola, através do ensino de filosofia,
pode se tornar um veículo de resistência, formando os educandos desde cedo para a
consciência crítica do mundo em que vive.

Palavras-chave: infância, educação, cidadania, filosofia. 

ABSTRACT
The idea of forming critical individuals through the teaching of philosophy since the
early years of schooling, is based on the assumption that children are able to think
critically, have discernment and awareness of their position and role as social authors.
From this, this work sought to carry out a theoretical study about childhood
conceptions; make a discussion about school education that has been directed to
children, in addition to bringing up the discussion about the challenge of forming a
critical citizen in a State marked by capitalist bourgeois logic, which through the most
diverse instances, often seeks to make the critical thinking of the subjects. In this
perspective, we highlight in this work, how the school, through the teaching of
philosophy, can become a vehicle of resistance, training students from an early age for
the critical awareness of the word in which they live.
Key words: Childhood, education, citizenship, philosophy

INTRODUÇÃO

1
Graduando em Segunda Licenciatura em Pedagogia pela Faculdade - IBRA
Atualmente muito se fala em educar as crianças desde cedo para a cidadania e em
uma educação crítica. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996), aponta como um
dos seus fins, formar o educando para a cidadania;  Matthew Lipman com seu
programa instituído pioneiramente em filosofia para crianças, do qual falaremos mais
adiante, mostra-nos que a criança pode ser instruída de forma a utilizar
seu potencial criativo e questionador filosoficamente, e com isso, ser formada para uma
vida cidadã.
No entanto, vale questionarmos: que pensar é esse que se pretende do aluno?
Quais os objetivos da educação, de educar para a cidadania e o que se entende
por cidadania? Como a criança é compreendida socialmente e o que se espera dessa
criança, a mesma que estará em um futuro próximo comandando de forma direta ou
indireta os rumos da nação? Como o pensar crítico filosófico desde a infância, pode
estar a favorecer a formação de cidadãos críticos que estejam empenhados ativamente
no campo social? Essas são algumas questões que abordaremos no decorrer deste
trabalho, sem a pretensão de trazer verdades engessadas, mas sim, provocar uma
reflexão acerca do tipo de educação que está sendo dirigida às crianças, além de
estarmos a apontar os benefícios de uma educação crítica através da filosofia desde os
anos iniciais de escolarização.  
 Pensar em uma educação crítica desde a infância torna-se viável quando
atentamos para o fato de que, desde os últimos séculos, muitas civilizações vêm
passando pelos desafios de viver em uma sociedade globalizada, dinâmica e
competitiva, na qual muitas vezes é introduzido nas relações  humanas, o mercado de
valores, o que muitas vezes acaba por restringir a criticidade dos sujeitos.
Diante disso, a necessidade de pensarmos em uma educação escolar que esteja
desvinculada do modelo liberal de educação e que esteja voltada para uma
reflexão  problematizadora  da realidade social em que vivemos, demonstra ser algo
relevante; sobretudo, ao compreendemos a escola como uma instituição educativa no
sentido de formar crianças enquanto sujeitos críticos, e não apenas uma instituição
voltada apenas para a alfabetização e promoção de algumas competências que
possibilitarão a inserção das crianças futuramente, no mercado de trabalho.
Desse modo, faz-se necessário que as instituições de educação  repensem seus
objetivos educacionais e se voltem, sobretudo, para a formação das crianças, para que as
mesmas possam desde cedo, desenvolver sua autonomia; pois se pretendemos educá-las
para serem sujeitos sociais  ativos e críticos, devemos, portanto, privilegiar muito mais
que a leitura da palavra, a leitura de mundo, conforme aponta  Freire (1989),
promovendo dessa maneira a formação do pensamento crítico, favorecendo os meios
para que os alunos, desde os mais jovens, se constituam como cidadãos conscientes da
realidade onde vivem. 
A importância deste trabalho está na relevância do tema em questão para a
Educação e para sociedade, considerando que a educação é um caminho para a
construção de uma sociedade consciente, produtora de conhecimentos e transformadora
da mesma. Nesse sentido, entendemos que o papel da escola vai muito além de
alfabetizar ou transmitir alguns conteúdos, ela deve preparar os sujeitos para a
autonomia, para que esses possam se constituir enquanto sujeitos críticos, criativos e
participativos no cenário social e é com tal finalidade, que defendemos o ensino de
filosofia desde a infância.
A partir do exposto, buscamos responder o seguinte questionamento: Qual a
importância da filosofia na infância para a formação do cidadão crítico? Para isso,
tivemos como objetivo geral analisar a importância da filosofia na infância para a
formação cidadã crítica do educando.
A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE INFÂNCIA

Sendo a formação cidadã crítica das crianças o alvo principal da reflexão do


presente trabalho, faz-se necessário primeiramente refletirmos acerca do conceito de
infância construído historicamente, pois consideramos que não há como falar na
formação em filosofia na infância sem nos voltarmos antes para o entendimento do que
seja a mesma.
Sabe-se que apenas recentemente, por volta do século XIX, a criança passou a
ser foco de atenção entre filósofos e estudiosos e esses passaram, a atentar mais para a
infância, porque até então, esse tema era tratado de forma esporádica (NASCIMENTO
et al, 2008). Quando nos voltamos para o conceito de infância nas civilizações
medievais, percebemos que a infância como entendemos hoje, não existia naquele
período, pois o infante era considerado um homem pequeno, assim como aponta o
historiador Àries, que em suas pesquisas constatou que nesse período não existiam
crianças caracterizadas por uma expressão particular como percebemos hoje, mas sim,
homens de tamanho reduzido (ÀRIES, 1986). De acordo com as pesquisas desse autor,
a criança só era entendida como tal e recebia os cuidados básicos até o seu desmame,
que se dava por volta dos sete anos de idade.
Platão demonstra que na Grécia antiga também não havia a preocupação com as
especificidades do infante. Em sua obra A república, ele enfatiza a relação direta entre o
modo de ser de uma polis (cidade) e dos indivíduos que a constituem (PLATÃO, 2002).
Na lógica de Platão, se a sociedade for constituída por cidadãos corrompíveis, a
sociedade será governada por cidadãos injustos e despreocupados com o bem comum.
Para ele, o ideal seria cuidar da criança, para que a mesma reunisse no decorrer do seu
crescimento as qualidades de um bom cidadão.
Podemos perceber em suas palavras, que esse filósofo considerava a infância
apenas como um momento de se trabalhar os atributos mais significativos para que um
dia, a criança viesse a governar a cidade, o que de acordo com ele se daria após alcançar
certa maturidade, geralmente depois dos 30 anos. A partir do pensamento de Platão,
entendemos também que ele não demonstrava se preocupar com o desenvolvimento
emocional e afetivo da criança, uma vez que para ele, a educação da criança tinha
unicamente uma intencionalidade política.
Milênios à frente de Platão, no século XVIII, surgiu o filósofo suíço Rousseau,
para o qual a infância era um período que iniciava logo após o nascimento e era
considerada por ele, a fase em que nascem os vícios e os erros. Em sua obra O Emilio,
ele discute sobre o ideal do homem em seu estado natural. De acordo com ele, o homem
nasce puro, mas é corrompido pela sociedade; a fim de evitar isso, o ideal seria que o
infante fosse criado em meio à natureza. Dessa maneira, ela estaria livre de envenenar-
se pela sociedade, uma vez que no campo, a mesma estaria livre dos vícios, desejos e
injustiças (ROUSSEAU, 2004). Deixamos claro, que o Filósofo em sua obra, não nega
os aspectos positivos da vida em sociedade, mas sugere outros caminhos mais eficazes a
fim de conduzir a criança à felicidade.
Podemos perceber nas palavras de Rousseau, que ele entendia a infância como
um período de se cultivar a sabedoria necessária ao homem e na contramão do
pensamento de Platão, Rousseau se preocupava com as especificidades e peculiaridades
da criança. Ele já entendia que a criança tem sua maneira particular de se apropriar do
mundo ao seu redor, "a infância tem maneiras de ver, de pensar e de sentir que lhe são
próprias; nada é menos insensato do que querer substituir essas maneiras pelas nossas"
(ROUSSEAU, 2004 p. 91).
Diante disso, podemos perceber que a infância é compreendida de formas
diferentes, de acordo com o seu tempo histórico e da sociedade em que a mesma está
inserida. Dessa forma, entendemos que a concepção de criança que temos hoje, foi
historicamente e socialmente construída, uma vez que essas concepções vão mudando
ao passo que a sociedade muda e adquire novos valores e compreensão do mundo.
Contudo, diante da realidade atual em que vivemos, entendemos que tratar as
crianças como um adulto em miniatura parece não ser privilégio apenas das civilizações
medievais exposta por Àries, pois a criança, mesmo na atualidade, muitas vezes
continua a ser tratada na perspectiva do adulto, onde se anulam muitas vezes as
especificidades do ser criança e a mesma é ensinada a, desde cedo, comportar-se tal qual
o adulto.
A criança ao mesmo tempo, é muitas vezes, considerada um ser insensato,
desprovido de inteligência e totalmente dependente do adulto, conforme aponta Charlot
(1986), que também chama a atenção para o fato de que os adultos se sentem na
obrigação de corrigir a natureza corrompida da criança, onde esta deve obedecer e se
espelhar naquele, aceitando os modelos que o mesmo lhe impõe e imitando os padrões
de comportamento daquele que tenta moldá-la à sua imagem e semelhança. É
exatamente dessa maneira que a criança aprende o que deve ou não fazer e como deve
se comportar socialmente. Bem como também coloca Charlot, "as normas sociais
constituem o esqueleto da personalidade da criança, a qual tem suas pulsões vezes
reprimidas, vezes sublimadas quando entram em conflito com as normas sociais" (p.16).
Entendemos a partir das colocações dessa autora, que à criança é ensinada, por
exemplo, que "o sentir prazer" é um erro, logo quando suas pulsões sexuais iniciais são
reprimidas; assim como ela também aprende que revoltar-se contra algo imposto a ela é
uma violência que não é aceitável e digna de um ser socializado. Dessa maneira, cria-se
um sujeito dócil, disposto a aceitar tudo que a ele for imposto como certo e verdadeiro.
O fato é que na situação descrita, o que existe de acordo com Costa (2011), é um campo
de relações do poder, em que no caso a criança, antes de ser anulada, é capturada nesse
jogo, em que o adulto adota o papel de interditor da natureza infantil. Em lugar dessa
postura do adulto em relação ao infante, a autora sugere que:
Talvez mais do que a repressão dos comportamentos infantis
por parte dos adultos, pudesse existir, nas sociedades, um
respeito para com o modo de ser criança, e assim fossem
construídas novas perspectivas para e sobre a infância
contemporânea (COSTA 2011, p.2).

Consideramos, contudo, que há um processo de inclusão, em que a criança é


incluída no mundo adulto, no sentido de ser ensinada a agir como tal e ao mesmo tempo
é excluída, uma vez que a criança é tida como um ser que nada sabe, tendo sua voz
silenciada por aqueles que tudo sabem. Fato é que os defensores dessa ideia parecem
não compreender o ser em potencial que é a criança, para a qual tudo é novo, pois ela
tem o dom inato de se espantar com a vida que se abre diante dela, quer saber o que são
as coisas e como funcionam.
A criança tem todo um potencial criativo, e não precisamos ir longe para
constatar que ela é mestra em criar e trazer novidades, é mestra também em dar asas à
imaginação e é exatamente devido à sua curiosidade, que ela sente prazer em aprender,
mas desde que se trate de algo interessante para ela, pois como destacam Ceccim e
Palombine (2009, p.308), "é através da aventura e liberdade de experimentar que a
criança aprende, pois a marca da criança é sua expressão por intensidades e sua
aprendizagem pela experimentação". Portanto, a criança não é um ser desprovido de
inteligência, mas sim um ser em potência, pronta para ir de encontro aos seus próprios
caminhos e autonomia.
Contudo, será que temos ouvido o que as crianças têm a dizer? Temos atentado
para o que ela pensa a respeito das mais diversas situações ou não achamos isso digno
de nosso interesse e sincera atenção? Fato é que sempre há um adulto para representar
as crianças e falar por elas, no entanto, como bem coloca Deleuze

"se as crianças conseguissem que seus protestos


e suas questões, fossem ouvidos em uma escola
maternal, isso seria o bastante para explodir o
conjunto do sistema de ensino" (DELEUZE,
apud FOUCAULT, 1984).

Deleuze chama a atenção para o fato de as crianças serem tratadas como


prisioneiras e é nesse sentido que as escolas se assemelham com as prisões que prendem
e silenciam as mesmas dentro de suas normas burocráticas e padrões de comportamento
e conduta.

PROBLEMATIZANDO A EDUCAÇÃO ESCOLAR

A escola geralmente é um dos primeiros ambientes sociais fora do contexto


familiar em que a criança é inserida. Dessa forma, ela embora não seja a única que
educa, desempenha um papel fundamental na formação das crianças e na forma como
elas passam a compreender a sociedade e a vida. Mas que tipo de educação propõe a
escola e que tipo de sujeito ela pretende formar?
De acordo com Aranha (1996), não se compreende a escola fora do contexto
social e econômico em que está inserida, e dessa forma, as mudanças educacionais que
surgem, estão refletindo as mudanças ocorridas na própria sociedade. Nesse sentido,
compreendemos que nenhuma reforma educacional é neutra, bem como nenhuma ação
pedagógica é. A educação é uma ação política, que está atrelada ao universo político do
qual faz parte. Ainda de acordo com a autora citada, “ao privilegiar determinado tipo de
conteúdo, a escola não transmite apenas conhecimentos intelectuais, mas sim, valores
morais e condutas (ARANHA, 1996, p. 74)”. Os próprios documentos oficiais também
deixam claros os seus objetivos educacionais, a Lei de Diretrizes de Bases da Educação
Nacional, LDB de 1996, estabelece que:
Art. 2º. A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos
princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana,
tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho (BRASIL, 1996)
Conforme exposto, a constituição brasileira define a responsabilidade do Estado
para com a educação, sendo esta um direito do cidadão; contudo, conforme aponta Galo
(2007, p. 25), "toda educação fundamenta-se em uma concepção de homem e de
sociedade". Sendo assim, podemos questionar: para qual tipo de sociedade o Estado
pretende formar as crianças? O que percebemos é que a descrição citada da LDB
demonstra refletir a lógica da sociedade liberal, em que os sujeitos são preparados desde
cedo para se encaixar nos padrões de condutas estabelecidos e para se preparar para o
mercado de trabalho. Ser formado nessa perspectiva implica muitas vezes em ser
privado de pensar politicamente, conforme aponta as análises de Foucault, que indicam
que o sistema capitalista, além de produzir bens materiais, também tenciona produzir
sujeitos, onde estes sujeitos tenham sua capacidade produtiva econômica liberada,
enquanto suas capacidades políticas tendem a ser inibidas (FOUCAULT, 1993, apud
MARQUES, 2006).
Isso reforça a ideia de que a educação cumpre um papel político, transmitindo os
padrões de condutas e comportamentos que de acordo com o Estado, devem prevalecer
socialmente. Fica mais fácil compreender a escola nessa perspectiva ao lembrarmos em
que contexto surgiu a escola pública para as crianças, e que esta é resultado de um
postulado liberal, que se funda com a consolidação do capitalismo, onde o Estado
atribui à escola, o papel de cuidar das crianças enquanto seus pais estavam a servir de
mão de obra nas industrias, ao mesmo tempo em que essas crianças logo seriam
preparadas para exercerem a mesma função no futuro. De acordo com Borges (2012), é
a partir desse quadro que a educação passou a receber a tarefa de formar os sujeitos para
viverem conforme a nova organização social.
É notório que a escola de hoje ainda traz as marcas dos primórdios da escola
liberal criada para o fim descrito; pois essa escola, conforme aponta Charlot (1986),
continua ensinando a maior das "virtudes" que é a obediência. De acordo com essa
autora, aquele considerado um bom estudante, será mais tarde um bom soldado, um
bom operário, um bom escravo e um bom cidadão. Os documentos oficiais continuam
deixam claros quais os fins da educação, conforme continua a apontar a LDB (1996, p.
1), "A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social" ou
seja, a classe trabalhadora precisa assimilar a concepção de mundo dominante e estar
dentro dos padrões socialmente estabelecidos, além de estar a servir de mão de obra à
indústria capitalista. É para atender tal finalidade, que de acordo com Charlot, "a escola
continua estática, sombria, e seguindo os mesmos modelos tradicionais de ensino, que
obriga as crianças à aceitação cega do que existe" (CHARLOT, 1986, p. 12).
Conforme exposto, a escola continua focada em atender aos currículos fechados
e as rotinas exaustivas e monótonas. Isso é o que Bourdieu e Passeron (1975) chamam
de violência simbólica. Esses autores analisavam a escola como reprodutora do modo de
produção capitalista e definiam a educação como reprodutora das ideologias das classes
dominantes; eles chamam de violência simbólica, no caso da escola, uma ação
pedagógica que impõe ideias e padrões de comportamentos que logo tendem a ser
inculcados e naturalizados pelos sujeitos, já que essas verdades vêm de uma autoridade
pedagógica que é o professor. E dessa forma que a escola através de seus currículos e
rotinas, legitima a ordem vigente e reproduz a cultura dominante, através de uma ação
camuflada de neutralidade; doutrinando os alunos de modo que eles acabam por pensar
e agir de forma corresponder ao que espera a ordem vigente.
Fernando Backer, critica a visão de Bourdieu, dizendo que as sociedades não se
reproduzem, elas se constroem pela interação entre os grupos. Backer ainda indo na
direção oposta às teorias de Bourdieu, diz que o meio social não é determinante nem
nada reproduz, a não ser que seja pela mediação da ação do sujeito; para ele o mundo é
composto por sujeitos autônomos e não por um mundo que suprime o sujeito
(BACKER, 2001).
Concordamos com as proposições de Becker a respeito de que, em se falando de
seres humanos, nada é determinante e no caso da educação, ainda que a mesma continue
a perpetuar as sociedades de classes, ainda é possível revolucionar a escola através da
ação autônoma dos sujeitos. Contudo, consideramos que isso só pode ser possível
quando houver um novo olhar para a escola, quando os mais diversos grupos ligados à
educação reverem quais devem de fato ser os objetivos do sistema educacional e para
qual fim o estudante deve ser formado. No entanto, se esses grupos, bem como nós
educadores sejam da educação básica ou superior, continuarmos alheios e indiferentes a
isso, conformando-se com a ideia já naturalizada de que "tudo é assim mesmo", aí fica
bem mais complicado de se reverter esse quadro educacional e então as teorias de
Bourdieu permanecerão válidas.
Adorno (1947), em sua obra, Dialética do esclarecimento, traz que o problema
da educação está exatamente nesse afastamento de seu objetivo real, que seria a
promoção do domínio pleno do conhecimento e da capacidade de reflexão. Para
Adorno, a escola assim como traz Bourdieu, também se mostra como um instrumento
que trabalha a serviço da indústria cultural, onde o ensino é tratado como uma
mercadoria. Adorno na citada obra, faz uma crítica à indústria cultural e capitalista, que
trabalha a fim de alienar as massas impedindo-as de agir com autonomia. Contudo, para
esse autor, a escola deve ser um veículo de resistência a essa indústria cultural,
contribuindo para a formação crítica dos sujeitos.

BREVE HISTÓRICO DO ENSINO DE FILOSOFIA NO BRASIL

De acordo com Oliveira (2004) houve um grande percurso para que o ensino de
filosofia fosse incorporado aos sistemas de ensino como disciplina obrigatória. O ensino
dessa disciplina teve início com o ensino rígido e medieval dos jesuítas, passando mais
tarde pelo movimento Escolanovismo o qual surge em oposição ao ensino tradicional na
década de 20, objetivando a formação de um novo sujeito para uma nova sociedade em
transformação. Nesse período, embora a filosofia não fosse obrigatória no currículo,
esse movimento abriu portas para que isso pudesse acontecer. Até que durante os anos
de 1946 a 1960, nos anos de luta por uma lei de Diretrizes e Bases da Educação
nacional, a filosofia a princípio indicado como disciplina complementar, para os cursos
colegiais destinados às elites, por fim torna-se obrigatória nos cursos colegiais, hoje
ensino médio.
Contudo, durante o período militar, entre 1964 à 1982, a disciplina de filosofia
foi substituída pela Educação Moral e Cívica e a chamada Organização Social e Política
Brasileira (OSPB), sendo essas coerentes com o sistema de segurança e de democracia
restrita que surgia, a qual valorizava as ciências exatas em detrimento dos demais
campos do conhecimento humano, os quais eram considerados "inúteis e prejudiciais
aos bons e disciplinados comportamentos e aceitação do status quo" (OLIVEIRA, 2004,
p. 31).
Ainda segundo Oliveira, com a volta do regime democrático, e logo as
reformulação do sistema de ensino brasileiro, embora as ciências humanas tenham sido
reintroduzidas nos quadros curriculares, a disciplina de filosofia e de sociologia
permaneceu de fora até mesmo do currículo do ensino médio e o argumento foi que o
ensino das mesmas já estava integrado de forma interdisciplinar na organização
curricular. Isso levou à formação de um grande movimento em favor da inclusão dessas
disciplinas no ensino médio, até que o projeto de lei nº 9/2000 que visava essa inclusão
foi aprovado no congresso nacional, mas logo vetado pelo então presidente da república,
o sociólogo Fernando Henrique Cardoso.
O que consideramos com isso, é que a exclusão das disciplinas d caráter crítico,
se mostra desejável em um regime que não convive com o diálogo democrático e que
pretende impor um domínio de pensamento a fim de manter a ordem e os interesses
vigentes. Nesse caso, o pensamento reflexivo proposto pela filosofia, constitui uma
ameaça a tal ordem. São situações como essa que torna imprescindível pensar em um
ensino de filosofia já na infância, nas séries iniciais do ensino fundamental, a fim de que
as crianças desde cedo tenham consciência do regime opressor, camuflado de
democrático, que tenta restringir sua liberdade de agir, de pensar e de Ser.
O fato é que somente em 2006, após muitas lutas de movimentos ligados à
educação, o ensino de filosofia e sociologia tornou-se obrigatório no currículo do ensino
médio.

POR QUE ENSINAR FILOSOFIA NA INFÂNCIA?

Como já exposto, o ensino de filosofia no Brasil sofreu um longo período de


exclusão, mesmo para o ensino médio, fase em que para muitos a partir da adolescência
o aluno já está de fato preparado para o estudo da mesma. Diante disso, se a inserção da
filosofia no ensino médio já encontra objeção por parte das políticas educacionais e dos
setores conservadores da sociedade, o que diriam do mesmo ser inserida como
disciplina obrigatória no ensino fundamental, desde os anos iniciais de escolarização?
Essa não parece uma tarefa fácil, sobretudo quando nos deparamos com os discursos
daqueles que entendem que não seja viável para a criança ter contato com a filosofia
precocemente, uma vez que para eles, o infante ainda não está de posse do instrumental
cognitivo necessário à abstração filosófica.
A restrição da criança quanto ao filosofar vem de longas datas, Platão, conforme
já exposto, defendia a ideia de que a filosofia estava destinada apenas para um pequeno
grupo, aqueles capazes de conduzir a cidade com justiça, ou seja, aqueles considerados
bons cidadãos; enquanto isso, a filosofia, ou poderíamos dizer, as discussões filosóficas
na polis, era negada aos mais jovens sob pena de que os mesmos colocassem em risco a
integridade e harmonia da cidade devido a sua imaturidade. Sobre a infância, Platão
pensava apenas na importância da mesma para a formação do futuro cidadão. Contudo,
para este filósofo, apenas por volta dos cinquenta anos, é que a pessoa atingiria a
maturidade necessária para se dedicar à filosofia, já que para ele, somente após essa
idade, os sujeitos estariam prontos para ordenar a cidade como um todo (PLATÃO,
2002). Entendemos que a restrição da criança à filosofia, que muitos ainda carregam,
tem a ver com a concepção de infância que muitas vezes está ligada a ideia de que a
mesma não é capaz e como já entendia Platão, ela não tem maturidade para filosofar.
O fato é que todo ser humano em algum momento da vida filosofa, pois o
filosofar é próprio do ser humano, como bem destaca Gramsci quando critica o elitismo
filosófico, afirmando que a capacidade de raciocinar é inerente a todo ser humano.
Porém, à criança é negada a filosofia e mais do que isso, frequentemente a criança tem
seu senso investigativo e a curiosidade que elas naturalmente possuem, podadas por
aqueles que afirmam que à ela não cabe questionar e ser curiosa, mas sim, manter-se
calada, obediente e introjetar as verdades impostas por aqueles que tudo sabem.
O que acontece de acordo com Oliveira (2004), é que com isso, muitas vezes a
curiosidade na criança vai se apagando, o que tende a levá-la tornar-se um adulto
acrítico e não reflexivo. De acordo com a autora, essa é razão mais que suficiente para
que a filosofia seja inserida no currículo desde o início da vida escolar da criança a fim
de evitar que seu potencial reflexivo seja apagado.
Entendemos que querer manter a criança longe da reflexão e da filosofia, reflete
exatamente o conceito de infância, exposto por Charlot no capítulo anterior, quando diz
que a criança é entendida muitas vezes como um ser insensato e desprovido de
inteligência, pronta para ser lapidada e receber todo conhecimento vindo do adulto.
Contudo, Lipman na década de 60, foi contra aqueles que diziam que para
filosofar se exige um nível de reflexão inalcançável às crianças; para ele, fazer filosofia
não é questão de idade, mas sim de refletir, escrupulosa e corajosamente sobre o que se
considera importante (LIPMAN, 1990). Não precisamos ir longe também para saber que
as crianças, no processo de descoberta do mundo e de si mesma, estão sempre
explorando o meio, investigando e questionando o porquê das coisas; nesse sentido,
como aponta Lipman, o filosofar na infância é uma expressão da curiosidade que as
crianças naturalmente possuem. Isso porque o filosofar é uma ação presente no
cotidiano delas e entendemos que esse exercício filosófico quando estimulado e
valorizado desde a primeira infância, leva os infantes a aprenderem a pensar por si
mesmos, diferentemente do ensino alienante, sobre o qual, os alunos são meros
receptáculos de informações.
Sendo a filosofia a ciência dos porquês e sendo a criança mestra em querer
descobrir o porquê das coisas, podemos considerar que a criança é amiga da filosofia
por natureza. No entanto, o meio em que a criança está inserida nem sempre estimula
suas capacidades reflexivas, que logo vão se apagando com o tempo. Isso demonstra a
necessidade de que as crianças sejam estimuladas ao ato de investigar, questionar e
dizer não a aceitação de determinadas normas e padrões de comportamento que a elas
são impostos como únicos e verdadeiros; que ela não seja privada de sentir e não tenha
suas pulsões e potência de vida reprimida por uma sociedade que visa o seu controle
e obediência.
Isso nos revela como uma educação crítica e libertadora desde a infância pode
promover a transformação social e cidadania. Para Kohan "uma das maneiras de
perceber a filosofia é como um processo educacional de libertação da criança para que
elas possam pensar por elas mesmas" (KOHAN, 1998). É nessa perspectiva que a escola
deve instruir os educandos à criticidade diante dos discursos e informações que circulam
na sociedade e em seu cotidiano.
Em síntese, consideremos desde já, alguns pontos para reafirmarmos a
importância da filosofia na infância para a formação do cidadão crítico: Conforme
vimos até aqui, a filosofia é a ciência da reflexão, dos questionamentos e da criação de
conceitos que escapa da opinião acrítica. Conforme vimos também, a escola deve ser
um veículo de resistência que forme os alunos para a consciência crítica do mundo,
superando assim, a alienação carregada das falácias desprovidas de reflexão crítica que
circulam na sociedade. Nesse sentido, concebendo a criança uma filósofa por natureza,
um ser em potência capaz de refletir e construir conceitos; consideramos a partir disso,
que a filosofia presente no currículo escolar a partir da infância, representa um
valiosíssimo instrumento para a formação cidadã crítica das crianças, valorizando seu
potencial questionador e sua curiosidade, de modo que elas possam constitui-se desde
cedo, como uma cidadã crítica da sociedade em que está inserida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Consideramos que pensar a filosofia na infância é imprescindível, especialmente


diante da conjuntura política atual do Brasil, em que há um número considerável de
parlamentares comprometidos em combater o desenvolvimento do pensamento crítico
nas escolas através de projetos de lei que visam entre outras coisas, excluir as
disciplinas de filosofia e sociologia do ensino médio. Assim, não é difícil
imaginarmos o que diriam eles sobre inserir a filosofia na grade curricular dos anos
iniciais do ensino fundamental. 
Contudo, como defende Adorno, "a educação só faz sentido se estiver voltada
para a reflexão crítica" (ADORNO, 1986, apud OLIVEIRA, 2003, p.144). Nesse
sentido, se a formação crítica é competência da educação, a mesma deve em primeiro
lugar refletir sobre si mesma e ter uma clareza a respeito de quais são os seus objetivos
e seus fins educacionais; e como vimos, o ensino filosófico é de grande valor na
formação de um cidadão ativo e crítico da realidade em que está inserido, uma vez que
o pensamento filosófico se opõe ao enganador senso comum. 
Com isso, partilhamos a ideia de que o ensino de filosofia deve continuar a ser
defendido, para toda educação básica, e que os mais diversos setores relacionados à
educação se ponham a lutar pela mesma. Embora reconheça as dificuldades que
encontrarão na implantação da disciplina no currículo obrigatório desde os anos iniciais
do ensino fundamental, vale lembrarmos que a inserção da filosofia no ensino médio
também foi uma conquista e não um favor concedido pelo Estado. 

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento:


Fragmentos filosóficos. 1947. Disponível em:
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