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Colóquio Bento Prado Jr.

– 05/06/2017

A NECESSIDADE DO ENSAIO
(ou tentação retórica)

Thiago Rodrigues
macedoniorodrigues@gmail.com

Prelúdio
Bento Prado Jr. certamente é o autor brasileiro que representa com maior
propriedade a necessidade do ensaio. O estilo é, nesse sentido, parte constituinte do
sistema filosófico de todo autor. A maneira como uma ideia se manifesta está diretamente
relacionada com aquilo que se busca expressar, isto é, a forma como uma filosofia se
apresenta está radicalmente relacionada à filosofia que se apresenta; assim como não
existe conteúdo sem forma, também não existe forma sem conteúdo, de tal modo que o
estilo interfere diretamente no conteúdo que se busca defender. Se existe filosofia
brasileira, ela passa por Bento Prado Jr.1
Se existe filosofia no Brasil,2 o ensaio parece constituir sua forma por excelência.
Mestre neste estilo, Bento Prado Jr. escreve sobre a necessidade do ensaio em Sartre e o
destino histórico do ensaio, seu prefácio à edição brasileira de Situações I de Jean-Paul
Sartre. Um pensamento que intencione abarcar a existência em ato, inserida na dinâmica
histórica exige uma forma de expressão que ultrapasse os limites da pretensa univocidade
da linguagem filosófica tradicional. O que Bento diz de Sartre diz tanto de Bento quanto
de Sartre.
No ensaio parecem confluir o conceito e a intuição poética. Longe de reduzir a
expressão ficcional à um recurso facilitador para ilustrar conceitos filosóficos, nem
tampouco amalgamar filosofia e literatura numa prosa poética, Bento Prado Jr. desvela a

1
Cumpre destacar que buscamos, em relação à filosofia brasileira, travar interlocução com as palavras de
Bento Prado Jr. em O Problema da Filosofia no Brasil In: Alguns Ensaios, entretanto “não cabe aqui a
discussão da pertinência desta perspectiva: indicamo-la para abandoná-la em seguida”. O propósito
destas palavras é antes discutir o lugar do gênero ensaístico.
2
Pensamos nas instigantes narrativas (reflexões) de Paulo Arantes em O Fio da Meada: Uma conversa e
quatro entrevistas sobre filosofia e Um Departamento Francês de Ultramar: estudos sobre a formação da
cultura filosófica uspiana (Uma experiência nos anos 60).
necessidade de uma forma de reflexão filosófica que não negligencie a dimensão concreta
da existência. Trata-se, portanto, “de recuperar o poder de verdade da literatura [...] e de
devolver à filosofia uma linguagem viva que ela perdeu na sua produção / reprodução
intramuros nas instituições escolásticas”.3 Entre a filosofia brasileira e a filosofia no
Brasil há um hiato que – talvez – o ensaio poderia ocupar.4
A necessária exegese de textos parece exigir que o pensamento brasileiro se lance
mais além. Nesse registro “não se trata de confundir filosofia e literatura, mas de abrir
caminho para uma filosofia que seja capaz de exprimir a experiência mais concreta e de
valorizar uma literatura que nos permita ver melhor a nós mesmos e o mundo presente”.5
Bento Prado Jr. nos faz ver melhor o que seria a filosofia brasileira, e nesse esclarecer o
ensaio parece ocupar um lugar privilegiado.
O propósito dessa apresentação, portanto, é explicitar o lugar do ensaio para a
constituição do pensamento de Bento Prado Jr., o que implica defender que o autor
expressa a filosofia brasileira.

O ponto de partida que subsidia as palavras que se seguem é que o ensaio


constituiria um gênero necessário às concepções filosóficas que buscam expressar o
“desmesurado, o sensível sem conceito, dispersão caótica ou Devir enlouquecido”,6 para
ficar em uma expressão de Bento Prado Jr. em relação à Deleuze. Esse pressuposto
decorre da compreensão de que a linguagem filosófica, em sua dimensão abstrata, não
seria capaz de abarcar a esfera concreta das filosofias contemporâneas. Por outro lado, a
expressão ficcional, tomada isoladamente, seria incapaz de atingir o distanciamento
conceitual da abordagem filosófica. De tal modo que seríamos levados a assumir que
literatura e filosofia se constituiriam por uma dupla insuficiência e, de uma feita, um dupla
complementaridade. Bento Prado Jr. parece corroborar essa leitura, pois, para nosso
homenageado, na perspectiva de Deleuze “o que há em comum a toda a tradição da
filosofia é a cegueira para a irredutibilidade do sensível ao lógico ou ao conceitual”, isto

3
PRADO JR., Sartre e o Destino Histórico do Ensaio in: Situações I, p. 9.
4
Reverbera a tão célebre como mal interpretada passagem de Oswaldo Porchat Pereira, na qual o autor
afirma a necessidade de ultrapassar a análise exegética de textos do método estrutural. Em outras
palavras, o método estrutural é, sem dúvida, necessário, mas não suficiente.
5
PRADO JR., Opus Cit., p. 9.
6
Idem, Sobre Deleuze: uma entrevista, p. 247.
é, precisamos admitir que o tratamento abstrato requerido pelo discurso filosófico não
parece capaz de expressar o “Ser mesmo do Devir”.7 E isso porque o “Devir não é
antecipável, domesticável na recognição do conceito e passa a ser o verdadeiro signo do
Ser. Só a ideia de Devir pode devolver, com sua rebeldia à representação, a espessura do
Ser”.8 Torna-se necessário recorrer à uma forma capaz de tangenciar essas duas esferas
da existência. Rebelde à representação, o fluxo da vida exige “um sistema de iluminação
mútua e cruzada em rede, criando o campo de uma nova iniciativa de pensamento.
História da filosofia e filosofia se entrecruzam, a ponto de se tornarem indiscerníveis”.9
A querela já não constitui novidade, mas cumpre lembrar o diálogo entre Bento
Prado Jr. e Oswaldo Porchat Pereira no que tange a nossa herança francesa. Da profunda
divergência à improvável consonância de diagnóstico: a análise exegética constitui
passagem necessária e – cabe a redundância – imprescindível à atividade filosófica,
entretanto ainda não é filosofia. Afinal, como vimos, “entre a palavra que enuncia e a
realidade que ela quer apreender, sempre haverá um abismo que ela pode, sim, atravessar
(Blanchot), mas nunca abolir”.10 Constatamos uma vez mais, na feliz expressão de Jeanne
Marie Gagnebin, o “estatuto ambíguo da atividade filosófica”.11
Antes de prosseguir é necessário voltar ao problema da relação entre filosofia e
literatura. Nesse sentido a expressão vizinhança comunicante, cunhada por Franklin
Leopoldo e Silva, surge como um primeiro esteio. Para o autor

a relação entre filosofia e literatura como uma vizinhança


comunicante [...] é responsável pela diferença e pela adequação recíproca dos
dois modos da dualidade expressiva. Com isso, queremos dizer que a expressão
filosófica e a expressão literária são ambas necessárias [...] porque, por meio
delas, o autor diz e não diz as mesmas coisas. 12

7
Ibidem. Entende-se que essa insuficiência diagnosticada em relação ao Deleuze também vale para todos
os autores que pretendem abarcar a dimensão concreta da existência, e essa tradição contempla desde
Espinosa, passando por Nietzsche, Bergson, Sartre, etc. Isso sem nos reportarmos aos gregos, entretanto
acreditamos que esse problema ganha contornos mais precisos na contemporaneidade (tal como afirma
Benedito Nunes em Poesia e Filosofia: uma transa e Jeanne Marie Gagnebin ao falar da “historicidade das
formas literárias da filosofia”, As Formas Literárias da Filosofia, p. 208).
8
PRADO Jr., Sobre Deleuze: um entrevista, p. 247.
9
Ibidem, p. 246.
10
GAGNEBIN, As Formas Literárias da Filosofia, p. 209.
11
Ibidem, p. 203.
12
SILVA, Ética e Literatura em Sartre: Ensaios Introdutórios, p. 12.
Ora, a relação que encontramos aqui descrita parece travar interlocução direta com
as reflexões de Benedito Nunes sobre o tema, em Poesia13 e Filosofia: uma transa, em
especial quando este cunha o termo transacional. “A relação transacional é uma relação
de proximidade na distância. A filosofia não deixa de ser filosofia tornando-se poética
nem a poesia deixa de ser poesia para tornar-se filosófica. Uma polariza a outra sem
assimilação transformadora”.14 Como se em diálogo com a definição de vizinhança
comunicante, defendida por Leopoldo e Silva, diz Benedito Nunes: “A noção de verdade,
assim deslocada de seu eixo proposicional para o âmbito do discurso, [...] onde poesia e
filosofia se avizinham. Tal vizinhança sustenta a aproximação histórica atual das duas
protagonistas”.15
Ambas leituras parecem se encontrar na constatação da necessidade de uma
“ontologia do concreto”.16 Tal encontro, por sua vez, recorda que devemos voltar ao nosso
homenageado. Em suma, é preciso ressaltar a vocação da filosofia contemporânea para
tematizar de forma constitutiva tanto a sua dimensão abstrata (espiritual, contemplativa),
tão cara a nossa tradição, como sua dimensão concreta (material, mundo), inescapável
após a crítica contundente de Nietzsche, Freud e Marx, para ficar na asserção de Foucault.
Isso posto, surge novamente Bento Prado Jr. que, tal como conta o já citado
professor Franklin Leopoldo e Silva, foi estigmatizado por circular pelos corredores da
faculdade de filosofia com as obras de Sartre, Wittgenstein e Drummond convivendo
harmoniosamente embaixo do seu braço, para o horror de muitos de seus colegas de
departamento (passagem essa corroborada, em alguma medida, pelas palavras
confessionais do próprio autor em Maria Antônia: uma rua na contramão, no qual Bento
Prado Jr. narra seus anos de formação). Entende-se, talvez, porque é justamente o autor
quem nos alerta para a necessidade do ensaio como forma privilegiada (talvez a única)
capaz de dar conta do pensamento vivo, imerso no mundo e prenhe de história que a
filosofia contemporânea passa a exigir.
A filosofia uspiana da literatura,17 tal como se refere Paulo Arantes ao gênero que
caracteriza o pensamento de Bento Prado Jr., parece sugerir o sentido que se pretende

13
Cumpre alertar que o autor pensa em expressão ficcional de uma maneira geral quando se utiliza do
termo poesia, de tal modo que aquilo que é dito em relação a poesia também se aplica aos outros gêneros
literários.
14
NUNES, Poesia e Filosofia: uma transa, In: Ensaios Filosóficos, p. 13.
15
Ibidem, p.16.
16
Ibidem, p. 17.
17
ARANTES, Bento Prado Jr. e a Filosofia Uspiana da Literatura nos anos 60, In: PRADO JR., Alguns Ensaios:
Filosofia, literatura, Psicanálise, p. 248 e 294; Cf. tb. ARANTES, Bento Prado Jr. e a Filosofia Uspiana da
defender aqui em relação à forma ensaística. Dito de forma mais clara, a necessidade de
recobrar “o poder de verdade da literatura [...] e de devolver à filosofia uma linguagem
viva” decorre da insuficiência do registro expressivo tradicional em representar e
apreender o real. Isto é, a implicação entre literatura e filosofia decorre de certa
configuração filosófica que exige o gênero ensaístico. Pois, “a dialética entre filosofia e
literatura, a ser animada pela mediação do ensaio, remete à dialética do que poderíamos
chamar de condição humana, na sua dupla dimensão ontológico/abstrata e
histórico/concreta”18 reitera-se, portanto, as palavras de Bento Prado Jr. que introduziram
essa apresentação.

II

Se o cenário está montado, cumpre agora apresentar os personagens principais.


Não resta dúvida que o protagonista será Bento Prado Jr., no entanto é preciso esclarecer
que sua interlocução com o estilo ensaístico não será unilateral, nosso personagem
secundário é, certamente, multifacetado. Das faces do ensaio ignoraremos
propositadamente aquela que constitui o âmago da célebre leitura de Adorno e de
Lukács19 sobre o problema – e também do próprio Bento em relação à Sartre –, qual seja,
a “ausência [crise] do ensaio como expressão cultural da alienação social”.20 E essa
pequena transgressão se justifica, pois objetivamos antes apontar para o futuro [dimensão
positiva] do que compreender o passado [dimensão negativa ou crítica], lembremo-nos
que a tese aqui defendida é sobre a necessidade do ensaio.
Em Ensaio como Forma, Adorno afirma que a filosofia não se confunde com a
arte, entretanto é imperativo destacar alguns elementos comuns entre estes dois gêneros:
Como a arte, o ensaio é necessariamente violento (“a lei formal mais profunda do ensaio
é a heresia”),21 pois pretende recobrar o caráter simultaneamente intuitivo e conceitual da
expressão filosófica, de tal modo que a esfera imaginária constitui recurso obrigatório ao
gênero ensaístico. Ou seja, que não se trata de reduzir a imagem ao registro instrumental;
tampouco trata-se de abandonar a análise conceitual. Outro ponto que é fundamental e

Literatura nos anos 60, In: Um Departamento Francês de Ultramar: Estudo sobre a formação da cultura
filosófica uspiana (Uma experiência nos anos 60), p. 234.
18
PRADO JR., Sartre e o Destino Histórico do Ensaio in: Situações I, p. 10.
19
Respectivamente: Ensaio como Forma e A Alma e as Formas, lembrando que Adorno não corrobora a
definição do ensaio como uma forma artística (Lukács), p. 18.
20
PRADO JR., Opus Cit., p. 8.
21
ADORNO, Ensaio como forma in: Notas de Literatura I, p. 45.
que configura o ensaio para Adorno é seu caráter fragmentário (“o ensaio pensa em
fragmentos, uma vez que a própria realidade é fragmentada”),22 num movimento elíptico
os conceitos se entrelaçam tecendo uma malha simultaneamente desarticulada e coesa.
No ensaio, diz Adorno:

Todos os seus conceitos devem ser expostos de modo a carregar os outros, cada
conceito deve ser articulado por suas configurações com os demais. [...]
elementos discretamente separados entre si são reunidos em um todo legível;
[...] os elementos se cristalizam por seu movimento. 23

Em suma, para Adorno, [1] o ensaio comporta relativa autonomia formal (em sua
dimensão estética); [2] se caracteriza pela liberdade de imaginação; [3] define-se de forma
mista e ambígua; [4] contempla múltiplas perspectivas que acabam por particulariza-lo;
e por fim, [5] se constitui como o lugar privilegiado da interpretação. Mas antes de
avançar, cumpre convidar Adorno para um diálogo com Benedito Nunes, ume vez que o
filósofo (sic) paraense recupera e aprofunda aquilo que é dito acerca do ensaio pelo
primeiro. Com a palavra, Benedito Nunes:

[...] o ensaio [constitui] o locus privilegiado da interpretação, aquele em


que se tenta a proeza das sínteses ousadas, das formulações compreensivas em
conjunto, sempre falhas mas sempre inevitáveis, visando o todo da História, da
sociedade, da cultura, e que a ciência social rotineira olha com desconfiança.
Combinando a liberdade de imaginação e a ordem dos conceitos, esse arrojo
hermenêutico solicita a utilização convergente, interdisciplinar, das ciências
sociais dispersas na forma individuada, estética, de um discurso favorável à
hipótese fecunda e arriscada, às leis prospectivas, às apreciações valorativas, à
discussão de questões emergentes não confinadas a uma única disciplina e às
soluções problemáticas.24

A interpretação que Benedito Nunes faz do ensaio de Adorno tem o privilégio de


direcionar o foco de luz em dois pontos que precisamos abordar ainda: [1] a dimensão
interpretativa implicada no gênero ensaístico e o [2] caráter ambíguo da atividade
filosófica.
2. Comecemos pelo fim, pois é preciso destacar que uma filosofia restrita à
“produção / reprodução intramuros nas instituições escolásticas”25 não nos interessa.
Defendemos desde o início, que seria preciso resgatar o poder de verdade da filosofia

22
Ibidem, p. 35.
23
ADORNO, Ensaio como forma in: Notas de Literatura I, p. 31.
24
NUNES, Pluralismo e teoria social, In: Ensaios Filosóficos, p. 299.
25
PRADO JR., Sartre e o Destino Histórico do Ensaio in: Situações I, p. 9.
inscrita na realidade viva em sua dimensão concreta.26 Assim, a discreta asserção proposta
por Jeanne Marie Gagnebin no início desta apresentação, que definia a filosofia como
atividade ambígua, exige um parênteses extra.
Entendemos que o ensaio configura o lugar privilegiado do filosofar, ao menos se
a filosofia for entendida como atividade filosófica. Isto posto, limitemos esse parênteses
à definição proposta por Foucault na introdução do seu livro História da Sexualidade II:
o uso dos prazeres:

Mas o que é filosofar hoje em dia – quero dizer, a atividade filosófica


– senão o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento? Se não
consistir em tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar
diferentemente em vez de legitimar o que já se saber? [...] O “ensaio” – que é
necessário entender como experiência modificadora de si no jogo da verdade,
e não como apropriação simplificadora de outrem para fins de comunicação
– é o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela ainda for hoje o que era
outrora, ou seja, uma “ascese”, um exercício de si, no pensamento. 27

Foucault propõe que nos lancemos para além da “apropriação simplificadora de


outrem para fins de comunicação”, isto é, que ousemos transcender a dimensão exegética
afim de realizar a filosofia como atividade filosófica, e nesse movimento o ensaio
representa, para o filósofo, o papel principal.
1. No que tange a dimensão ativa, ou seja, interpretativa do ensaio, Adorno afirma
que, na abordagem ensaística, compreender não se reduz ao “processo de destrinchar a
obra em busca daquilo que o autor teria desejado dizer em dado momento”,28 e que,
portanto, não se trata apenas de explicar o texto. Trata-se, desse modo, de ultrapassar a
dimensão explicativa [exegética] pois, nesse registro, compreender significa no máximo
comentar a obra – lembremos da célebre asserção que diz que fazer História da Filosofia
corresponde à explicação de textos (José Arthur Giannotti) –, seria preciso, nesse registro
ao menos, “evocar aquela liberdade de espírito” de que fala Adorno.
Se “a cadeira de filosofia regida por um professor europeu na recém-fundada
Universidade de São Paulo era justamente a estufa de que tanto carecíamos, [pois
necessitávamos de] um conjunto de métodos e técnicas intelectuais cristalizado na
tradicionalíssima cultura filosófica universitária francesa”,29 posto que era preciso

26
Ibidem.
27
FOUCAULT, História da Sexualidade II: o uso dos prazeres, p. 13. (Grifo nosso)
28
ADORNO, Ensaio como forma in: Notas de Literatura I, p. 17.
29
ARANTES, Uma História dos Paulistas no seu Desejo de ter uma Filosofia, In: O Fio da Meada: Uma
conversa e quatro entrevistas sobre filosofia e vida nacional, p. 273.
“favorecer a formação de uma rotina”, por outro lado, a instigante colocação de Benedito
Nunes nos convida à transgredir a condição de comentadores afim de tornarmo-nos
interpretes. Esperávamos a famigerada promoção para Paris, de que fala Paulo Arantes,
no entanto os professores franceses se foram, e o que restou foi a camisa de forças do
método estrutural.30 Ecoa, novamente, a provocação feita por Oswaldo Porchat Pereira:
não resta dúvida de que a etapa exegética (leitura estrutural) é necessária, no entanto o
método estrutural é insuficiente quando se trata da atividade filosófica.
Seria preciso ao menos consumar a passagem da dimensão exegética (“explicação
de texto”) à análise hermenêutica, num movimento que poderíamos chamar, como faz
Bento Prado Jr. ao se referir à Rubens Rodrigues Torres Filho, de uma “hermenêutica
sem metafisica e teologia”.31 Torna-se imperativo transgredir a condição de
comentadores passivos afim de realizar a atividade filosófica como exercício
interpretativo. Ao menos, se entendermos a filosofia “como experiência modificadora de
si no jogo da verdade”, portanto, entendemos que a dimensão concreta e viva do “Ser
mesmo do Devir enlouquecido” se manifesta (desvela) no necessário recurso ao gênero
ensaístico.
Por fim, se começamos essa fala com a leitura que Bento Prado Jr. faz de Deleuze,
estamos autorizados a recorrer às palavras do filósofo da diferença afim de concluí-la.
Contra algum espírito mais delicado, cabe argumentar que o filósofo francês recomenda
transgredir o decoro da esfera tradicional e desrespeitar nossos mestres. Devemos
entender a história da filosofia como uma espécie de enrabada [enculer], 32 postura que
talvez nos liberte do constrangimento de filosofar.

III

Para terminar onde começamos: Mas afinal, do que falamos ao requerer uma
filosofia brasileira?; De uma filosofia feita no Brasil?; De um modo brasileiro de produzir

30
Ibidem.
31
PRADO JR. “Significar” significa “não ficar no signo” In: TORRES FILHO, Ensaios de Filosofia Ilustrada, p.
9 e 11.
32
DELEUZE, Conversações, p. 14. “Mas minha principal maneira de me safar nessa época foi concebendo
a história da filosofia como uma espécie de enrabada, ou, o que dá no mesmo, de imaculada concepção.
Eu me imaginava chegando pelas costas de um autor e lhe fazendo um filho, que seria seu, e no entanto
seria monstruoso. Que fosse seu era muito importante, porque o autor precisava efetivamente ter dito
tudo aquilo que eu lhe fazia dizer. Mas que o filho fosse monstruoso também representava uma
necessidade, porque era preciso passar por toda espécie de descentramentos, deslizes, quebras, emissões
secretas que me deram muito prazer”.
pensamento?; De uma contribuição original ao devir filosófico? Paulo Arantes; Oswaldo
Porchat Pereira; Jeanne Marie Gagnebin; Franklin Leopoldo e Silva; Benedito Nunes;
Bento Prado Jr. Todos fios que tecem esta malha que, por falta de outro nome, urge
chamar de filosofia brasileira.

BIBLIOGRAFIA

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